Das relações entre Igreja e Estado no pensamento político de Guilherme de Ockham

July 3, 2017 | Autor: Abraão Carvalho | Categoria: Igreja, Estado, Guilherme de Ockham, Pensamento político medieval
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Das relações entre Igreja e Estado no pensamento político de Guilherme de Ockham Abraão Carvalho abraaocarvalho.com Resumo O presente texto parte de um esforço no que tange à tentativa em se estudar o pensamento político de Guilherme de Ockham (1285/1347-49) no que se refere às suas reflexões a respeito das relações entre Igreja e Estado, a partir de seu texto “Sobre o Poder dos Imperadores e dos Papas” (1346). Palavras-chave: Guilherme de Ockham, Igreja, Estado, Filosofia Política, Pensamento político Medieval

Ockham, nascido na Inglaterra, Frade Menor, estudou e foi professor na Universidade de Oxford. Vivera em um período onde a autoridade eclesiástica apresentava um grau de intervenção política efetiva no interior da sociedade da época, de modo a aniquilar quase que por completo o universo de locução contrário a seus postulados, isto é, expresso em publicações, debates públicos, que de alguma forma questionassem alguns tabus tradicionais à época. O pensamento político de Ockham nasce justamente das contradições daí decorrentes, frente à conjuntura política e as pretensões do papado naquele período. Em 1324 fora intimado a comparecer à cúria papal para se explicar a respeito de algumas teses que expusera em determinados trechos de sua produção filosófico-teológica. Enquanto aguardava o exame de seus escritos pela comissão papal, Ockham se viu diante da disputa política entre o Papa João XXII e o imperador Ludovico IV de Wittelsbach, acerca da plenitude do poder, inclusive na esfera temporal, que o papa reinvindicava para si, em decorrência dos

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conflitos ideológicos entre a tese política hierocrática e a autonomia administrativa para a Alemanha e as demais regiões do império, pleiteada por Ludovico VI. Ockham, que fora dentre outros, excomungado pelo Papa e em decorrência disto, um dos tantos poucos franciscanos fugitivos de Avinhão, é obrigado a buscar asilo político na Alemanha (Munique) sob proteção de Ludovico VI, e é justamente na sua estadia em Munique que Ockham se destaca como um pensador político–social defendendo a autonomia da esfera secular e do Império; a negação da hierocracia pontifícia, bem como a tentativa de restabelecer a harmonia entre os poderes espiritual e temporal, considerados isoladamente, e os grupos sociais que a constituíam. Tratou e debateu profundamente o relevante problema medieval no interior das relações entre os poderes espiritual e secular, bem como outras tantas questões decorrentes destes temas. Tais como as esferas próprias de atuação de cada poder e suas conjunturais intervenções exteriores ao próprio âmbito, no que tange às suas finalidades; esforçouse em elaborar o melhor regime político para a Igreja e o Estado, bem como a conduta ética que deve nortear a ação política dos representantes eclesiásticos e dos governantes seculares, segundo o seu pensamento. A atualidade do pensamento de Ockham consiste, em parte, pela sua incisiva crítica aos desdobramentos práticos utilizados através da Igreja e seu âmbito de intervenção política e cultural no interior da sociedade; a tomando como uma instituição de finalidade não meramente religiosa, mas também de carácter político, tal qual expressava em seus discursos e em sua respectiva elaboração reflexiva; a compreendendo como um monstruoso mecanismo de difusão cultural, isto é, Ockham toma a “instituição-humana” Igreja, como um privilegiado espaço, no qual as suas mais “íntimas” convicções políticas, éticas e religiosas pudessem ser passíveis de efetivação. O que nos surpreendeu foi justamente o fato de ter tomado o conhecimento, de que o pensamento da Idade Média não só viveu na “escuridão”, como bem o expressa a tradição do pensamento Ocidental, mas ao contrário, produziu em seu próprio seio,

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alternativas para a sua própria superação - mesmo que de forma limitada e até mesmo “retrógrada” aos olhos da “pós- modernidade”, por exemplo-,

contrariando tal

tradição, que ao privilegiar o debate acerca do pensamento de determinados autores em detrimento de outros, acaba por calar aqueles, que mesmo de forma limitada, formularam alternativas de negação às concepções vigentes da época, tanto nos âmbitos ético, político, e sobretudo, filosófico e teológico, tal qual Isidoro de Sevilha, Marsílio de Pádua, dentre outros. Formulações estas que superariam as vigentes estruturas de organização da vida coletiva de grande parte da sociedade, no interior das instituições Igreja e Estado – bem como, a relação destas com a sociedade -,

caso

viessem e ser efetivadas “no terreno da história”. Guilherme de Ockham, no que tange ao período histórico que vivera, esteve diante de uma época de progressiva centralização do poder político, configurado aí, no âmbito da monarquia imperial, que produzira, dentre outros desdobramentos, o surgimento de uma outra burocracia, um pouco diferente da eclesiástica, que abarcava em seu âmbito, um exército dirigido por sua respectiva aristocracia a partir da estrutura do Império; que “fortalecera a sua justiça”; que arrecadava impostos e promovia a unificação monetária, bem como, asfixiava a outrora “autonomia” das “cidades”; e sobretudo, Ockham vivera em uma época, na qual o pensamento hegemônico, justificava uma certa “teorização do poder”, que afirmava e legitimava a hierarquia supostamente existente entre as figuras do pai, de Deus, do Papa e do Imperador, respectivamente. Além de os relacionar com a ideia de verdade e com a ideia de lei, reproduzindo assim, a hierarquia celeste na eclesiástica e esta na sociedade, tal qual a idealizada por Pseudo Dionísio, de modo a formular uma ordem que se desdobra de cima para baixo, em graus hierárquicos e que se difunde no interior da humanidade, tendo a Igreja, bem como a burocracia eclesiástica, a função de intermediar a relação entre Deus e seus súditos, que por sua vez teriam como seus dirigentes os membros da hierarquia eclesiástica, que possuem a obrigatoriedade, devido ao seu ofício, de difundir a lei de Cristo “pela face da terra e a todos os homens”, pois para este modo de pensamento, partindo da compreenssão de que a desordem e a desigualdade provocadas pelo pecado são hegemônicas no interior da humanidade, “uns devem

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mandar enquanto outros estão fadados unicamente a obedecer”, obedecer a uma ordem na qual a sua própria procedência lhes é inatingível, e sobretudo desconhecida, região esta onde habitam os entes superiores no âmbito do pensamento predominante no interior da Idade Média. A experiência de Ockham, certamente esteve marcada, no que se refere ao seu período histórico, por intensas disputas políticas travadas no interior da sociedade que vivera, que se mostravam aos olhos do franciscano fugitivo de Avinhão, nas formas das aristocracias tradicionais daquele período, isto é, enquanto agrupamentos econômicos com intervenção política, de caráter efetivo e real, inclusive no interior da instituição Igreja, não obstante a isto, pois tais disputas também nos são visíveis atualmente, o que de fato preocupava e de certo modo impulsionava a escrita de caráter político do Venerabilis Inceptor consistia por um lado, nos rumos que a difusão da fé cristã estava tomando, bem como as suas consequências ulteriores, e por outro, nas contradições daí decorrentes no âmbito ético e político no raio não só da cristandade, mas também da sociedade como um todo, pois de fato esta, está sob seu alcance. A práxis dos dirigentes eclesiásticos, mais especificamente aqueles vinculados à instituição de Avinhão e à “Ordem dos Frades Menores”, era vista por Ockham com incisiva recusa, em decorrência daquilo que lhe é evidente, isto é, segundo os seus termos: “que a referida Igreja de Avinhão professa e ensina erros e heresias patentes, aos quais favorece, assente, adere, aprova e defende, com enorme vigor, e igualmente não para de cometer gravíssimas e enormes injúrias e injustiças contra os direitos e liberdades dos fiéis, grandes e pequenos, leigos e clérigos. E ao fazer isso, coloca em perigo toda Cristandade e, ao menos efetivamente, um grande número de frades menores”1.

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“Sobre o poder dos imperadores e dos Papas”, “Prólogo”, pág.171.

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“Sobre o Poder dos Imperadores e dos Papas” constitui-se no “último opúsculo autêntico”, no que concerne à sua obra política. Mas, o que teria impulsionado Ockham a escrever este “compêndio” sobretudo? Segundo a introdução ao tratado, o que de fato o teria impulsionado a tal empresa, consistiria na arbitrariedade da Igreja de Avinhão em ter reivindicado para si a primazia quanto à eleição imperial, chegando ao ponto de intentar eleger rei a um outro indivíduo, que não fora legitimado pela maioria dos príncipes não aliados à cúria papal, ato este que segundo Ockham, “prejudica o império semeando discórdias entre seus súditos, e também o imperador”2. Ockham, demarca que semelhante conduta da igreja de Avinhão é de fato decorrência de sua “ambição de dominar” e de dirigir ao seu modo a massa cristã, isto é, a utilizando como instrumento de seus interesses individuais e sobretudo utilizando todo o aparato material de que a instituição igreja dispunha, para tornar predominante determinado tipo de cosmovisão no interior do pensamento de todos aqueles nucleados religiosos na figura dos entes divinos – Cristo, Deus. Com o intuito permanente de sustentar o poder político que tais dirigentes eclesiásticos usufruíam. Portanto, nos é visível que o herege fugitivo de Avinhão, compreende esta forma de pensamento como aquele que simboliza os interesses pontuais entre um certo conjunto de valores éticopolítico-religiosos. Isto é, a instituição igreja, bem como o papado, externalizam para a maioria da sociedade a qual lhes era possível atingir, por intermédio de todas as formas de difusão cultural da fé crista que dispunham, uma linguagem e um discurso, que obscurece os reais interesses daqueles que se dirigem de maneira abrangente aos seus súditos. Segundo Ockham, estes são: “movidos pela ambição de dominar e completamente cegos por tamanha fúria de avidez e de capacidade, desejam submeter a si o império romano, não deixando de favorecer, aumentar, suscitar e estimular novas discórdias, sedições e

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Idem, Capítulo XXII, “A Igreja de Avinhão prejudica o Império semeando discórdias entre seus súditos , e também o imperador, procurando eleger rei a um outro indivíduo”, pág. 212.

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guerras entre os príncipes e povos do império, as quais põe em perigo toda cristandade”3. Ora, mas se Ockham nega este conjunto de condutas éticas dos dirigentes eclesiásticos do período que vivera e as contradições daí decorrentes, qual seria para ele o âmbito de intervenção da instituição igreja? Pelo que pudemos apreender a partir da leitura de capítulos como o II e IV do “compêndio” em questão, o Venerabilis Inceptor, afirma que os limites de atuação da esfera eclesiástica estão circunscritos ao âmbito espiritual e que a instituição igreja está privada de interferir na esfera temporal, a não ser em caso de necessidade impulsionada por negligência da esfera temporal, no seu âmbito coercitivo, pois o que importa para Ockham, enquanto questão, é identificar os “limites lícitos” aos quais o exercício do poder espiritual está circunscrito, e consequentemente: “vir a saber, de um lado, até onde se estende a autoridade do principado papal e, de outro, qual é o limite à mesma. E são, portanto, esses dados ... que precisam ser examinados”4. Contudo, o que de fato Guilherme quer expor não é senão a justificativa teórica no âmbito filosófico e teológico da negação da primazia do papa quanto à jurisdição suprema no âmbito secular, o que de fato era pleiteado pelo suposto “juiz e árbitro das eleições imperiais”, pois para o Venerabilis Inceptor a intervenção no âmbito secular por parte do papa só se faz legítima “em caso de necessidade”, isto é: “é preciso que saiba que está a meter a foice em seara alheia, a menos que tenha recebido do imperador... a incumbência de fazer isso. Por isso, o que ele fizer naquela esfera de poder, recorrendo a força, não tem valor algum,...., conforme está escrito no Livro VI das Decretais”.5

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Idem. Idem, Capítulo II, “O pricipado papal de modo algum se estende regularmente aos assuntos temporais e seculares”, pág. 176. 5 Idem. 4

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No capítulo IV, Ockham nos apresenta mais indícios de sua tese de submissão da esfera espiritual à esfera secular, com base na Bíblia, na “Política” de Aristóteles, bem como, no direito canônico medieval, no sentido de legitimar a autoridade dos reis e dos imperadores em detrimento da instituição eclesiástica e seu respectivo pontífice máximo, o papa, pois “a quem o reino eterno está a disposição, não procura obter o reino temporal.”6 Insistindo na reflexão a respeito do propósito da filosofia política de Ockham, qual e a alternativa proposta por ele, para a relação entre igreja e Estado a partir da análise das relações de poder circunscritas às intervenções das esferas de atuação dos imperadores e dos papas? Qual seria a sua concepção de Estado? A partir de nossas leituras, acerca destas questões, pontuamos que Ockham não nos apresenta nenhuma conclusão acabada acerca do problema envolvendo os limites das esferas de poder, tanto no âmbito espiritual quanto no secular, de modo a formular uma teoria capaz de suprimir as contradições existentes no interior desta relação. Em outra direção, Ockham aponta para uma via de saída pautada no exame crítico direcionado à possibilidade de vislumbrar as esferas, segundo ele, reais de intervenção de cada poder, simbolizadas aí nas figuras do papa, bem como na dos imperadores, sem, no entanto, questionar os pressupostos que legitimavam a existência do “Estado laico ou civil”, no âmbito de seu poder coercitivo. Mas de que maneira este problema se desdobra? O franciscano fugitivo de Avinhão apresenta uma concepção conciliadora entre dois aspectos da instituição eclesiástica, que certamente não lhe eram indiferentes, e que sobretudo não se distanciavam, mas em outra direção, se identificavam e expressavam em sua escrita de caráter político. A saber, os aspectos hierárquicos e coercitivos das instituições igreja e Estado. O Venerabilis Inceptor, por conseguinte, procura fixar alguns dos limites de intervenção referentes à cada esfera, no intuito de vislumbrar situações de caráter ordinário e extraordinário e/ ou excepcionais, pois: 6

Idem, Capítulo IV, “O principado papal de forma alguma se estende de modo regular sobre os direitos e liberdades de outrem”, pág. 178.

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“A afirmação ockhamista sobre o controle do governo da igreja por parte de toda a comunidade eclesial não significa afirmação

do

princípio

da

soberania

popular

ou

da

superioridade do concílio sobre o papa, pois o que estava no coração do mestre inglês era a salvaguarda de ambos os aspectos da instituição eclesiástica, o hierárquico e o comunitário. Trata-se de dois momentos essenciais, que devem ser conciliados não obstante as dificuldades que tal conciliação apresenta”7. Entretanto, o herege inglês não nega o poder coercitivo da igreja e do Estado, decorrência disto consiste na legitimação, por sua parte, da autoridade imperial, afirmando inclusive a necessidade do imperador ter a obrigatoriedade de ser cristão, “porque, em caso contrário, não estaria apto a prover o bem comum espiritual de seus súditos.”8 Isto é, Ockham atribui ao imperador o título de “Juiz e moderador supremo”, que consistia na centralização, de certo modo, do poder de intervenção no âmbito temporal, manifesto na figura mesmo do imperador, que salvaguardaria a: “convivência civil, de modo a preservá-la da desordem, das injustiças, de tudo aquilo que no interior ou do exterior pode ameaçar a paz e a propriedade de seus súditos.”9 Ora, porque no pensamento de Ockham o imperador tem a necessidade de ser cristão? O herege fugitivo de Avinhão possivelmente observara nas estruturas tanto da igreja quanto do Estado, instrumentos de grande poder de intervenção, no que se refere à possibilidade de potencialização efetiva, através da difusão em grande escala de determinados valores éticos e políticos, e religiosos, aos quais acreditava, tendo como universo privilegiado de locução, bem como ponto de partida para tal, a difusão da “fé cristã”. Entretanto, tal caminho de reflexão, exigia-lhe um embate permanente, a 7

“Guilherme de Ockham”, Capítulo IX , “O Pensamento Político”; pág. 299. Idem, pág. 300. 9 Idem, Pág. 300. 8

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respeito da possibilidade de se superar o pensamento conservador e anti-ético que se fazia predominante de certa maneira naquele período histórico. Neste contexto, o interior da cristandade, também alvo da crítica do pensamento político do também conhecido como Venerabilis Inceptor, que não hesita em sustentar a tese de que compete a um cristão a faculdade de: “assegurar a obtenção do supremo bem espiritual para a humanidade” e que “hereges, judeus e outros infiéis são incapazes de exercer a autoridade imperial e que só aos cristãos pertence portanto o direito de governar os destinos do império universal”10 De certo, que das contradições daí decorrentes se é possível vislumbrar que a necessidade da obrigatoriedade da cristandade do imperador, consiste possivelmente, nas finalidades do pensamento político de Ockham em se atribuir à figura do “juiz e moderador supremo”, a faculdade máxima de jurisdição no âmbito do poder temporal. Pois, para o Venerabilis Inceptor, apesar de suas críticas às consequências da conduta dos dirigentes eclesiásticos no que concerne às suas intervenções “ilícitas” no âmbito temporal, o caráter hierárquico e coercitivo da instituição igreja, era sobretudo, conservado e reformulado na sua concepção de Estado. Bem como, podemos perceber na sua tese de submissão da esfera espiritual à esfera secular, onde o “juiz e moderador supremo” em hipótese alguma pode abrir mão de sua faculdade de intervenção, segundo Ockham, legítima, no âmbito do instituição igreja, pois é de competência do mesmo âmbito, inclusive, o dever de fiscalizá-la, para que os valores éticos e políticos no âmbito do pensamento cristão, sejam de fato difundidos de maneira adequada no interior da cristandade .

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Idem, Pág. 301.

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Entretanto, o sistema ockhamista ao negar a maneira com a qual os dirigentes eclesiásticos dispunham a sua respectiva hierarquia - que por conseguinte, legitimava a submissão do papa ao imperador, bem como, estabelecia a partir destes, a relação estreita com a ideia de lei e de verdade -, em contrapartida, não ousa suprimir de sua formulação teórica os traço hierárquicos que lhes são próprios. Construindo assim um outro modelo de hierarquia, onde não mais é o papa que representa a autoridade última tanto no âmbito espiritual quanto no secular, pois como pudemos identificar em seus escritos, tal poder supremo é agora conferido à figura do “juiz e moderador supremo”, encarnado aí na pessoa mesmo do “imperador-cristão”, que por sua vez encontra no Estado e na igreja os instrumentos necessários à difusão e à legitimação da fé cristã no interior da sociedade, fazendo da instituição igreja, uma espécie de extensão do poder coercitivo do Estado, sem, no entanto, atribuir-lhe faculdades que estejam para além de seu próprio âmbito de atuação, isto é, o espiritual. Todavia, como o Venerabilis Inceptor vislumbra os limites de atuação das esferas de poder tanto no âmbito espiritual quanto no temporal? Isto é, como Guilherme de Ockham caracteriza de fato, as instituições igreja e Estado, de modo a deixar subjacente nesta caracterização as suas respectivas finalidades e âmbitos de atuação? A partir da leitura de trechos encontrados aos capítulos VI e VII, onde o herege fugitivo de Avinhão trata acerca das causas que legitimaram a instituição do principado papal e sua respectiva finalidade, pudemos encontrar indícios de resoluções à estas problemáticas, pois é justamente nestes capítulos que Ockham afirma que tal principado, isto é, o papal: “foi instituído por causa da utilidade e proveito dos súditos, não por causa da honra ou proveito do governante”, pois, “ele ( o papa ) não pode apropriar-se , sem que haja culpa e um motivo razoável e manifesto, dos direitos , liberdades e

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bens dos súditos , [salvo] enquanto possa exigir deles algo para fazer frente às suas necessidades”.11 Ora, para fazer frente às suas necessidades, ao papa é lícito apropiar-se dos direitos, liberdades e bens de seus súditos? A partir desta sentença de Ockham nos é possível visualizar, que mesmo não sendo o papa o “juiz e moderador supremo”, a este lhe é dado a faculdade de, ao menos em caso de “necessidade”, usufruir de sua condição superior, diante de seus súditos, para que possa, em caso de “um motivo razoável e manifesto”, exigir de seus, “algo para fazer frente às suas necessidades”. Pois para o Venerabilis Inceptor o principado papal constitui-se em um principado “ministrativo” e não dominativo que, por seu turno: “se exerce sobre pessoas livres, o qual é muito mais nobre e maior em dignidade do que um principado dominativo, embora não seja tão amplo pela extensão de seu poder, dado que alguém, ao governar ministrativamente, deverá ordenar muito poucas coisas aos seus súditos, enquanto o mesmo não acontece com aquele que governa dominativamente os próprios servos.”12 Entretanto, apesar de ser o principado papal, aquele de caráter ministrativo, isto é, “mais nobre e maior em dignidade” que o principado dominativo, Ockham atribui a este último a faculdade máxima de jurisdição, pois segundo a norma apostólica,

a dominação a partir do principado ministrativo é terminantemente

proibida, faculdade esta somente possível a partir do Estado, que por sua vez configura-se como o principado genuinamente dominativo, preservando, pois, em ambas as esferas, o caráter coercitivo que tais instituições possuem, posto que para o franciscano fugitivo de Avinhão, igreja e Estado apresentam-se como “duas faces de uma mesma realidade”. Portanto, ambos, segundo Ockham, possuem uma relação de 11

Sobre o Poder dos Imperadores e dos Papas, Capítulo VI, “O principado papal foi instituído por causa do proveito e da utilidade dos fiéis, não por causa da utilidade e da honra do papa, de modo que este principado deve ser justamente chamado ministrativo, não dominativo”, pág. 183. 12 Idem, Capítulo VII, “Prova-se cuidadosamente um pouco tudo aquilo que foi enunciado no capítulo precedente”, pág. 186.

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reciprocidade, reciprocidade esta que está disposta de forma hierárquica, pois o que legitima a intervenção da esfera espiritual na esfera temporal, não é da mesma procedência, da qual a legitimidade de intervenção da esfera temporal na espiritual, provém. Pois,

como

afirma

o

Venerabilis

Inceptor,

àquele

que

governa

ministrativamente não lhe é dado a faculdade de ordenar a seus súditos, tanto quanto àquele que governa dominativamente os seus, pois, é do ofício deste que domina, possuir mais alto poder de intervenção no interior da sociedade, e não daquele que ministra. Sendo portanto, no pensamento de Ockham, a circunscrição ministrativa, isto é, a igreja, apenas parte da estrutura organizacional daqueles seres humanos referenciados de alguma forma nos entes divinos Cristo e/ou Deus. Que as instituições humanas igreja e Estado difundem por intermédio de seus mecanismos de difusão cultural - na qual tudo aquilo que é ministrado, é em instância última, governado dominativamente, instância esta, configurada aí, no âmbito do império dirigido pelo “juiz e moderador supremo”. Entretanto, chegar a esta conclusão acerca da tese ockhamista da submissão da esfera espiritual à esfera temporal, não é suficiente, para ao menos compreendermos quais são, segundo o Venerabilis Inceptor, os pressupostos que de fato legitimam tal hipótese acerca das contradições, existentes na Idade Média, no interior das relações entre as instituições igreja e Estado, no âmbito, em último plano, temporal. Pois o terreno do qual emergem as contradições entre as instituições humanas da igreja e do Estado, está no âmbito da história. Não obstante a isso, é de fundamental importância nos questionarmos acerca dos pressupostos que de fato, em Ockham, legitimam a existência dos limites de cada esfera de poder, bem como, a relação que tais limites possuem com suas respectivas finalidades. No entanto, vislumbrar caminhos que nos levem a tais conclusões, não consiste em tarefa das mais simplificáveis, pelo fato de Guilherme de Ockham não nos apresentar tão claramente, as suas posições referentes a estas questões envolvendo as

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problemáticas a respeito das relações entre as esferas de atuação nos âmbitos espiritual e secular. De modo que Ockham, parte de uma espécie de exegese alegórica dos textos das “autoridades”, os quais, segundo o próprio, “sou obrigado a acatar” 13. De certo, que tendo a obrigatoriedade de ser o imperador, cristão, o Venerabilis Inceptor argumenta que os imperadores não-cristãos, de certo modo, têm uma forma de conduta diferente da dos imperadores cristãos, posto que, aqueles, segundo a autoridade “do bem aventurado Crisóstomo”: “existem por esse motivo: para que dominem os seus súditos e os subjuguem com a servidão e os espoliem e os usem até a morte, para sua utilidade e glória. Os príncipes da igreja, porém, são estabelecidos para que sirvam os menores e lhes ministrem o que receberam de Cristo, a fim de que sejam negligentes com os próprios interesses , mas procurem obter os deles”14 E justamente por terem “os príncipes do mundo”, tal conduta diante de seus súditos, no sistema ockhamista, o âmbito de caráter temporal se fundamenta na necessidade, enquanto que as de caráter espiritual, por sua vez, se fundamentam na vontade. Isto significa: Ockham utiliza uma espécie de recurso teórico em pares de relações, de modo a estabelecer a relação estreita entre, governo e principado ministrativo, no âmbito da esfera espiritual. Que por sua vez tem como fundamento a vontade. Ou seja, isto resulta na afirmação de que servir espiritualmente aos súditos no âmbito ministrativo, consiste, em última instância, em uma “obra querida pela vontade”, daquele que governa ministrativamente. Posto que já no âmbito temporal, o caráter dominativo do Estado não lhe é indiferente, tal qual a sua faculdade coercitiva , de modo que é do oficio mesmo daquele que governa dominativamente, dominar os seus súditos, pois tal ofício “é algo decorrente da necessidade”, necessidade esta que está circunscrita no âmbito da possibilidade histórica.

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Idem, “Prólogo”, pág.172 Idem, Capítulo VI, pág.190.

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Ora, mas não estritamente, a necessidade justifica e fundamenta o âmbito de caráter temporal, pois é também esta mesma necessidade que faz com que tudo o que a igreja venha a precisar, seja legitimamente providenciado, isto é, somente a partir da necessidade que é dada à igreja a faculdade de intervir no âmbito temporal . A partir desta afirmação nos é possível compreender que: “a razão que autoriza o papa a intervir em questões políticas é somente uma razão de necessidade, que toma consistência no caso em que nenhum dos juízes naturais do imperador faça o que é seu dever, enquanto o direito do imperador de submeter a juízo um papa herético ou escandaloso aparece como uma prerrogativa do ofício do juiz supremo da cristandade”15 Das afirmações daí decorrentes podemos compreender, que não obstante à época em que vivera, Ockham conseguira, até certo ponto, construir uma tese, mesmo que de forma limitada, que fosse de alguma forma de encontro com a tese hierocrática, predominante em seu período, de forma a, de certo modo, inverter a lógica de dominação, não só no âmbito da cristandade, como também, na sociedade de sua época. Transferindo para o Estado a primazia de utilização do poder temporal, com o intuito de limitar os exageros da esfera espiritual no que tange às suas incursões no âmbito temporal. Não obstante a isso também, compreendemos que de fato, Ockham prenunciara muitos dos postulados do Estado moderno ocidental, como instrumento de poder, sobretudo quanto à sua faculdade coercitiva, sendo portanto, relevante no processo de homogeinização cultural, ética e religiosa. Referência: OCKHAM, Guilherme. Obras Políticas. Porto Alegre: EIDPUCRS, 1999. TRADUÇÃO José Antônio de Camargo Rodrigues de Souza. Coleção Pensamento Franciscano, V.II. 15

“Guilherme de Ockham”, Capítulo IX, “O Pensamento Politico”, pág. 303.

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