Das telas do cinema à vida real: Depoimento infantil e falsas memórias.

June 23, 2017 | Autor: L. Furtado | Categoria: False Memory, Direito e Cinema, Falsas Memórias, Caso Escola Base
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01/11/2015

Das telas do cinema à vida real: depoimento infantil e falsas memórias ­ Canal Ciências Criminais ­ Promovendo o Saber

DAS TELAS DO CINEMA À VIDA REAL: DEPOIMENTO INFANTIL E FALSAS MEMÓRIAS por Letícia de Souza Furtado ­ 30/10/2015

Por Letícia de Souza Furtado Imagine  uma  pequena  vila  dinamarquesa  cujos  habitantes  possuam fortes  traços  da  solidariedade  mecânica  conceituada  por  Durkheim (2004,  p.  38).  Os  homens  se  reúnem  para  beber,  bradam  canções uníssonos,  colidindo  seus  canecos,  soqueando  a  mesa  e  espalhando cerveja  por  tudo.  Lá  a  caça  é  tradição,  todos  têm  armas.  Quando  os http://canalcienciascriminais.com.br/artigo/das­telas­do­cinema­a­vida­real­depoimento­infantil­e­falsas­memorias/

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rapazes  atingem  certa  idade,  são  presenteados  com  um  rifle,  sob  um discurso:  “Você  se  tornará  um  homem,  ganhará  a  floresta”.  O  filme  A Caça  se  passa  em  um  cenário  assim.  O  protagonista  Lucas  é  nativo  e trabalha  em  uma  escolinha,  onde  estuda  Klara,  filha  mais  nova  de  seu melhor amigo. Com  cinco  anos  de  idade,  a  menina  está  sempre  esperta  aos  diálogos de quem a cerca. Certo dia, seu irmão, num frenesi estúpido, mostra­lhe uma  revista  pornográfica  –  “Pinto  levantado!  Pinto,  pinto!  Oi,  Klara! Olha  só,  duro  como  um  bastão!”  –;  esse  episódio  se  torna  essencial  à interpretação  do  que  vem  a  seguir,  pois  propaga  seus  efeitos  pelo restante do longametragem. Aliás, ele pode ser observado em conjunto com a cena na qual Klara aguarda sentada na frente de casa, enquanto seus  pais  brigam  para  decidir  quem  a  levará  na  escola.  Lucas  passa  e pergunta  para  a  criança  se  está  triste  com  a  discussão;  ela  responde: “não,  ele  merece  um  pé  na  bunda”.  A  frase  de  Klara,  em  um  primeiro momento,  pode  parecer  “engraçadinha”;  contudo,  em  verdade,  é sintoma  de  sua  forma  de  interagir  com  o  mundo.  Trata­se, possivelmente,  da  mera  reprodução  de  algo  que  ouviu,  pois  Klara,  é como uma criança qualquer: age por imitação. A atenção que recebe de Lucas  faz  com  que  a  pequena  passe  a  alimentar  uma  paixonite  pelo professor.  Ele  logo  repara  e  a  chama  para  uma  conversa,  ao  final  da qual  a  menina  deixa  a  sala  sentindo­se  rejeitada.  Depois,  abatida  e sentada  na  penumbra,  ela  dialoga  com  a  diretora  da  escolinha,  diz  que odeia o professor, e que o “pinto” dele é “levantado, como um bastão”. Polvorosa  na  comunidade,  claro.  Lucas  vira  “a  caça”,  passa  a  ser coagido pelo clã. O professor é um sujeito sereno. Seu comportamento quase  passivo  o  deixa  vulnerável,  algo  muito  conveniente  para  os perseguidores.  Não  é  à  toa  que  somente  consegue  ser  ouvido  quando “explode”  e  demonstra  agressividade.  Contestando  de  outra  forma  – pacato – apanha, porque, onde não há defesa, a acusação impera. A vila inteira está convencida de que ele abusou dos aluninhos. Segundo GIRARD,  no  que  tange  às  perseguições  em  massa:  “A  representação persecutória  conserva  certas  características  de  uma  representação coletiva  no  sentido  de  Durkheim”.  O  antropólogo  francês  ainda menciona (2004, p. 261): O  melhor  meio  de  fazer  amigos,  em  um  universo  não amigável, é desposar as inimizades, é adotar os inimigos dos http://canalcienciascriminais.com.br/artigo/das­telas­do­cinema­a­vida­real­depoimento­infantil­e­falsas­memorias/

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outros.  O  que  dizemos  a  esses  outros,  neste  caso,  nunca varia  muito:  ‘Somos  todos  do  mesmo  clã,  formamos  apenas um só e mesmo grupo, pois temos o mesmo bode expiatório.’ Em outras palavras, quem se une para perseguir diz ao confrade: “pode contar comigo, nos importamos com as mesmas coisas”. Em A Caça, a narrativa  de  Klara  desestabiliza  o  grupo  –  ao  qual  Lucas,  até  então, pertence  –  porque  a  noção  preestabelecida,  sedimentada  e incontestável, de que as crianças não podem ser molestadas é posta em cheque.  Trata­se  de  um  dogma  que  contribui  para  a  boa  fluência  das interações  sociais,  uma  segurança  de  aplicação  imediata,  que  afasta impasses. No  momento  em  que  alguém,  supostamente,  macula  essa  regra,  a incerteza  quanto  à  incolumidade  dos  infantes  emerge  tal  qual  uma ameaça  de  caos.  “Destacando”  Lucas  do  grupo,  os  membros  da comunidade  frisam  os  limites  do  sistema,  para  restabelecê­lo.  Quando Girard  comenta  que  a  representação  persecutória  se  assemelha  à representação  coletiva  de  Durkheim,  aclara  que  aquela  somente  é possível  porque  a  multidão  é  a  representação  de  todos  em  um,  uma entidade  formada  por  diversos  indivíduos  de  ímpeto  concertado, dominados  pela  convicção  de  culpa  do  acusado.  Isso  ocorre  porque todos interpretam os fatos de forma semelhante, sob a lente da mesma essência cultural. Histórias  como  a  contada  pelo  filme  A  Caça  não  são  exclusividade  da ficção.  O  Brasil  teve  seu  episódio  real,  que  ficou  conhecido  como “Escola  Base”.  Esse  caso  foi  televisionado  e  seu  desenrolar  poderia, tranquilamente, originar uma novela “emocionante”. As semelhanças com o filme são inúmeras: criancinhas de creche; acusação de abuso sexual; relatos parecidos que se multiplicaram; comoção popular e contraditório sufocado. Em São Paulo, no ano de 1994, durante dois meses – março e  abril  –  seis  pessoas  que  trabalhavam  na  escola  de  educação  infantil Base foram massacradas, moral e fisicamente, pela imprensa nacional e pela polícia, sem que houvesse contra eles mais do que alegações feitas por duas mães de aluninhos. Segundo elas, os filhos teriam revelado um esquema  de  abuso  sexual  coletivo,  supostamente  praticado  pelos  pais de  outro  aluno  em  conjunto  com  os  donos  do  estabelecimento,  uma professora  e  o  motorista  do  transporte  escolar.  Com  um  delegado vidrado  pelo  brilho  dos  holofotes,  e  jornalistas  secos  por  notícias bombásticas, o caso logo virou um jogo de RPG. http://canalcienciascriminais.com.br/artigo/das­telas­do­cinema­a­vida­real­depoimento­infantil­e­falsas­memorias/

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A cada dia, novas vítimas eram “descobertas”, e detalhes escandalosos eram  inseridos  na  história.  A  Escola  Base  ficou  conhecida  como “escolinha  do  sexo”,  de  onde  as  crianças  seriam  levadas  até  uma  casa na  qual  participariam  de  orgias,  usariam  drogas,  seriam  fotografadas  e abusadas.  No  desfecho  da  investigação,  após  o  afastamento  do delegado  que  conduzia  o  “inquérito­espetáculo”,  restou  comprovada  a inocência de todos. E, nesse ponto, é necessário explicitar que a teoria mimética de René Girard também é aplicável à história da Escola Base, pois  a  imprensa  é  capaz  de  transformar  o  país  em  uma  grande  vila, despertando  aquele  mesmo  comportamento  de  clã  nas  pessoas,  as quais,  então  em  maior  escala,  polarizam­se  em  face  dos  personagens das polêmicas que recheiam os jornais e noticiários. A  similitude  entre  os  episódios  se  dá,  dentre  outros  motivos,  por  algo bem  sabido:  os  adultos  lidam  mal  com  situações  nas  quais  os  infantes falam em sexo – haja vista o temor que circunda a clássica pergunta “de onde  vêm  os  bebês?”  À  histeria  que  tal  situação  causa  em  “gente grande”,  soma­se  o  temor  de  que  pureza  infantil  seja  maculada,  e  a falsa  ideia  de  que  crianças  só  falam  a  verdade.  Para  começar,  já  é amplamente  sabido  que  certas  formas  de  colheita  de  testemunho  são mais  eficazes  do  que  outras,  porque  extraem  narrativas  de  maior fidedignidade.  Questionando  os  infantes  de  modo  indutivo,  elaborando perguntas  que  os  levem  a  responder  “sim”  ou  “não”,  os  adultos desencadeiam um processo em que a realidade pode ser perigosamente distorcida pela criação infantil (WELTER e FEIX). Divulgado o escândalo, a cena tende a se reproduzir no lar de cada uma das  crianças,  pois  nenhum  dos  pais  terá  controle  emocional  para conduzir  uma  narrativa  livre,  tampouco  poderão  disfarçar  a  tensão.  No Caso  da  Escola  Base,  o  autor  do  livro  que  registrou  o  fato  relata  que uma das mães deixou o filho, suposta vítima, frente a frente com o dono da creche e, na presença da polícia e de jornalistas, perguntou: “É esse aí?????” (RIBEIRO, 1995). Além disso, a mulher deu entrevistas com a criança no colo. As  crianças  não  falam  somente  a  verdade;  esta  ideia  só  pode  ser mantida  pela  falta  de  observação.  Elas  eventualmente  mentem, sobretudo porque são amorais – desconhecem, ainda, a noção de moral –,  estão  recém  ingressando  no  empirismo  vitalício,  seus  juízos  de valores são deficitários demais, não sabem a extensão consequencial de seus atos. Infância é tempo de observar, imitar e testar. http://canalcienciascriminais.com.br/artigo/das­telas­do­cinema­a­vida­real­depoimento­infantil­e­falsas­memorias/

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As  crianças  faltam  com  a  verdade  quando  a  imaginação  fértil  voa  livre (ANDRADOS,  1970);  quando  a  maldade  genuína  se  manifesta (BARBIRATO);  ou  quando  lançam  mão  de  um  mecanismo  de  defesa. Por vezes, estão apenas inventando/brincando mas, por não perceber a seriedade  implícita  daquilo  que  dizem,  deixam  de  avisar  ao  ouvinte. Falhas  de  percepção  da  realidade  também  produzem  relatos distorcidos,  os  quais,  ainda  que  não  se  tratem  de  mentiras,  têm  o mesmo  efeito  nocivo.  É  certo,  ainda,  que  as  crianças,  assim  como  os adultos,  são  vulneráveis  ao  desenvolvimento  de  falsas  memórias.  Neste caso,  falarão  sem  titubear,  convictas,  pois  o  detentor  da  falsa  memória crê nela como se fosse lembrança real. É  especialmente  relevante  que  estejamos  conscientes  disso  tudo,  pois uma  declaração  “suspeita”  vinda  de  um  pequeno  logo  vira  um  gérmen que  os  adultos  são  capazes  de  transformar  numa  seringueira  de quinhentos anos. O filme A Caça e o livro Caso Escola Base, convidam­ nos  a  refletir  sobre  contraditório,  falsas  memórias,  depoimento  sem dano  e  muitos  outros  temas  relevantes  ao  estudo  interdisciplinar  das Ciências  Criminais.  Além  de  entreter  com  sucesso  o  telespectador  e  o leitor, têm o potencial de despertar a empatia que o dia a dia adormece. REFERÊNCIAS ADRADOS, Isabel. A mentira na criança. Arquivos Brasileiros de Psicologia Aplicada, v. 22, n. 1, p. 41­47, 1970. BARBIRATO, Fábio. A Maldade Infantil. Revista Galileu, entrevista concedida a Guilherme Rosa. Disponível aqui. DURKHEIM,  Émile.  Da  divisão  do  trabalho  social.  2ª  ed.  São  Paulo: Martins Fontes, 2004. GIRARD,  René.  O  bode  expiatório.  Traduzido  por  Ivo  Storniolo.  São Paulo: Paulus, 2004. p. 261. STEIN,  Lilian  Milnitsky  et  al.  Falsas  Memórias.  Porto  Alegre:  Artmed, 2010. RIBEIRO, Alex. Caso Escola Base: Os abusos da Imprensa. São Paulo: Editora Ática, 1995. http://canalcienciascriminais.com.br/artigo/das­telas­do­cinema­a­vida­real­depoimento­infantil­e­falsas­memorias/

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