DAVID HUME E A ILUSÃO DA IDENTIDADE

May 25, 2017 | Autor: Guilherme Bandeira | Categoria: David Hume
Share Embed


Descrição do Produto

GUILHERME VILLELA DE VIANA BANDEIRA

DAVID HUME E A ILUSÃO DA IDENTIDADE

SÃO PAULO

2013

Em seu Tratado, Hume quer estender o método da filosofia experimental a domínios mais importantes. Se a ciência do homem é o comando central que dirige as outras províncias científicas como a lógica, a crítica e a política, sendo estas diretamente dependentes da solidez daquela, o seu próprio fundamento “deve estar na experiência ou observação”1 para descobrirmos o que há de comum e universal na natureza humana. De onde vem tamanha confiança neste método? Há um pouco mais de um século, Lord Bacon havia alcançado grande sucesso utilizando-o na ciência da natureza. Newton levou-o à perfeição e fez com que a filosofia, na Inglaterra de 1739, seja um dos únicos motivos de orgulho nessa ilha de tolerância e liberdade. Por que não aplicá-lo àquela ciência que nos é mais importante, capital administrativa das províncias dos saberes, para alcançar uma “glória ainda maior”2? Um projeto mais ambicioso envolve riscos igualmente elevados e o maior deles está em elaborarmos hipóteses presunçosas que pretendam revelar as qualidades originais e últimas da natureza humana. A que hipóteses quiméricas Hume se refere aqui? Ao longo do Tratado, perceberemos: as velhas ilusões que naturalmente se impunham a todos, do vulgo ao mais requintado filósofo metafísico, mas que nada representam, como substância, essência, eu, alma, que desmoronam diante de nós pela força da clarividência empírica, pelo rigor dos limites da experiência e pela precisão de seus resultados. Mas o que significa submeter-se à autoridade da experiência? Significa não só que todas nossas ideias, ou seja, todas as nossas percepções fracas, são sempre

1

HUME, David. Tratado da Natureza Humana: uma tentativa de introduzir o método experimental de raciocínio nos assuntos morais. Tradução Débora Danowki: 2ed. Rev. e ampliada. –São Paulo: Editora UNESP, 2009. p. 22. 2 Idem, ibidem.

derivadas de nossas impressões, percepções fortes como paixões, sensações e emoções. Quer dizer também que tudo que conhecemos está fadado ao particularismo. Ideias são, portanto, retratos pálidas de nossas impressões sensíveis e remetem sempre a qualidades e quantidades determinadas. Quando nos apoiamos na experiência, ela só nos mostra objetos contíguos, sucessivos, em provável conjunção constante. E isso vale também para as três ideias moribundas da metafísica: Deus, Eu e a Substância. A que impressões sensíveis essas três ideias corresponderiam? Elas resistem ao crivo da experiência? Se não, por que tão frequentemente recorremos a elas? Para Hume, grande parte do problema ocorre por tentarmos salvar a ideia de identidade. Possuímos ideias e impressões particulares de um gosto, um cheiro, um formato. Vejo uma jovem árvore, sinto seu cheiro, a toco e consigo reconhecê-la com considerável precisão meses depois, quando ela já está maior. Por que digo que é a mesma árvore? Não há nada interior à ideia que dela formei que me permita dizer trata-se do mesmo ser. Senti suas propriedades antes, agora tenho novas percepções que são independentes às primeiras. Mas sua identidade ainda continua um mistério: não deixamos de dizer que se trata da mesma árvore. É necessário precisar com que tipo de ilusão estamos lidando quando nos referimos à identidade de algo. O problema aqui se desdobra em dois, pois precisamos lidar tanto com a natureza de nossas ideias abstratas, quanto com a conexão entre frequentemente estabelecemos ideias. Não vemos nem nunca veremos uma ideia abstrata de árvore. Apenas sentimos uma textura, vemos um formato e sentimos o cheiro de um objeto ao qual nos referimos como “árvore”. Concordando com Berkeley, Hume diz que “ideias gerais não passam de ideias particulares que vinculamos a um certo termo, termo este que lhes dá um significado mais extenso e que, quando a ocasião o exige, faz com que

evoquemos outros indivíduos semelhantes a elas”3. É pela vinculação semântica, pelo signo “árvore” pronunciado, que meu amigo, ao ouvir que encontrei uma árvore hoje, entenderá o que eu disse, mesmo que nunca tenha visto a árvore que eu vi. A ideia que ele formará de árvore será invididual, com uma qualidade e quantidade determinadas, ainda que o signo “árvore” atue, em seu raciocínio, como se fosse universal. A mera menção ao signo lingüístico fez com que ele concebesse, em sua imaginação, uma árvore em circunstâncias e proporções particulares. Se a abstração é meramente lingüística, isso torna a questão muito mais interessante. Caso esse amigo me dissesse que encontrou, durante seu passeio, a mesma árvore, poderia eu perguntar: o que você quer dizer com mesma árvore? Trata-se evidentemente de um erro, pois ele terá tido percepções diferentes das minhas, mas esse erro não será um erro lingüístico, entendo o que ele quer dizer. Mas qual erro então? Meu amigo reconheceu alguma semelhança, ainda que imprecisa, entre as árvores que costumeiramente vê em sua vida, ainda que em quantidade e qualidades diferentes, e a árvore que eu disse ter visto. A chave para essa resposta está na relação que estabelecemos entre as diferentes ideias. Precisamos saber como passamos de uma ideia independente à outra, como funciona a lógica das relações. Ou seja, qual é a ação da imaginação que faz passarmos por duas ideias distintas, mas que age de tal forma que faz com que consideremos estarmos diante de um mesmo objeto. A explicação deste processo já está no começo do Tratado. Há princípios universais aos homens que permitem que essa passagem ocorra de forma tão suave que às vezes não percebemos. Princípios ditos de associação (contigüidade, semelhança e causalidade) que são uniformes em

3

Idem, p. 41.

todos os tempos e lugares, possuindo a força de estabelecer relações entre as ideias pela ação da conjunção constante. Claro que imaginação pode separá-las e transpô-las livremente, mas frequentemente somos submetidos, pelo hábito, aos princípios de associação que se impõe com tamanha força e poder de atração, que somos jogados diretamente na ficção da identidade. Hume trata a identidade de um objeto como a relação mais universal de todas, pois é “comum a todo ser cuja existência tenha alguma duração” (p. 38). Não poderia ser diferente: tomada em seu sentido mais estrito, a identidade não passa de uma qualidade de todos os objetos constantes e imutáveis. Somente quando analisamos sua natureza nos damos conta da ficção na qual estamos inseridos e cuja solução pode nos crer em ficções mais ilegítimas ainda, pois possuímos essa estranha propensão de provar a existência de coisas invariáveis e ininterruptas através de conceitos obscuros. Encobrimos a variação pelas ideias de alma, substância e eu, mas por trás deles está um imenso esforço, não só para negar a particularidade das ideias, como também para não reconhecer nossa propensão em criar ilusões. A força do método experimental aqui se mostra pela suposta falta de ambição explicativa, pois apenas reconhece o poder da imaginação em juntar ideias independentes pela repetição constante à partir de princípios básicos encontrados em nossa natureza. O ceticismo está contente em reconhecer que a conexão entre as ideias está apenas dentro de nós mesmos, nada mais do que uma determinação da mente adquirida pelo costume e que nos leva a fazer a transição de um objeto a outro semelhante. Voltemos mais uma vez ao exemplo da árvore. Possuo a ideia de que há uma mesma árvore que enxergo todos os dias. Mas também tenho a ideia de que o que eu chamamos de “árvore” não é mais do que uma coleção de impressões e ideias existindo por meio de uma sucessão de partes conectadas por semelhança,

contigüidade e causalidade. E, por fim, que a ideia abstrata de árvore, como mostrado acima, não pode ser confundida com essas múltiplas impressões variáveis. A rigor, se refletimos sobre esse ato aparentemente banal, o que chamamos de identidade, ou mesma árvore, é, nas palavras de Hume “uma noção de objetos relacionados” [related objects]. Como são “sentidas de maneira quase igual” pela ação de nossa imaginação, tendemos a confundir a identidade com a sucessão de objetos relacionados. Podemos ser muito precisos, e, pela reflexão, separá-las, mas voltamos, pelo costume, a utilizar normalmente a noção de identidade. Ver como Hume trata a questão da identidade é uma boa forma de entender como funciona seu ceticismo levando em conta papel das ilusões na nossa vida prática. Negar as ilusões do senso comum e pensar de maneira exata pode ser extremamente artificial, pois estaremos agindo contra a inclinação de nossa imaginação em estabelecer conexões seguindo princípios naturais de associação. Como diz Hume, “o entendimento, quando age sozinho e de acordo com seus princípios mais gerais, destrói-se a si mesmo, sem deixar subsistir o menor grau de evidência em nenhuma proposição, seja em filosofia, seja na vida comum”4. A natureza é muito forte para sermos pirrônicos. Assim como respiramos e sentimos, precisamos julgar a todo momento, ainda que sempre eivados de imprecisão e sob bases incertas. E, por incrível que pareça, caminho mais “metafísico”, elaborando conceitos como alma, eu e substância, buscando eliminar a descontinuidade, está mais próximo ao senso comum do que de uma atitude crítica da razão. No final das contas, o senso comum não passa de uma metafísica naturalizada. Ambas ilusões, seja as práticas, seja as metafísicas, não podem ser admitidas pelo raciocínio cético de um empirista. Diante deste dilema, na conclusão do Livro 1

4

Idem, p. 300.

do Tratado, Hume se pergunta: “Ora, a questão é: até que ponto devemos ceder a essas ilusões?”. Hume não busca eliminar os erros. Ele fala em ilusões e está preocupado com o grau de crença e não com sua completa eliminação. Este foi o grande deslocamento conceitual de sua filosofia, que substituiu o conceito de erro pelo conceito de delírio ou ilusão. Há crenças, não erradas, mas ilegítimas, exercícios ilegítimos das relações. Como diz Deleuze, “não estamos ameaçados pelo erro, mas, o que é muito pior, estamos imersos no delírio”5. Conversar com um amigo sobre a bela árvore que vi é uma coisa, acreditar em um Deus racionalista garantidor da realidade objetiva é outra. Mas, a rigor, em ambas atividades há uma boa dose de crença. Diante de sua força natural, Hume evita qualquer posição entusiasmada. Podemos fazer uma apologia do senso comum, eliminando qualquer raciocínio sutil ou mais elaborado e acabar com toda ciência e filosofia. Mas, para justificarmos essa máxima, necessitamos de uma metafísica que a suporte, o que é uma evidente contradição. Podemos, também, duvidar de tudo e nunca escapar dos humores melancólicos que podem destruir uma mente em incessante angústia. O que está em jogo aqui é o valor que atribuímos ao cultivo dos raciocínios sutis de uma filosofia experimental. A solução do jovem Hume foi clara e suas supostas falhas estão de acordo com seu projeto geral. Um livro que busca a clareza e precisão, denunciando as ilusões da metafísica e exigindo precisão cética nas disputas filosóficas, pode negligenciar características de estilo, como simplicidade e polidez, que também são importantes à eloqüência própria à filosofia. Deficiências do Tratado, uma obra grande e detalhista, mais próxima ao anatomista científico do que pintor de senso apurado. Mesmo seco e duro, seu resultado é bom pela sua exatidão, pois, afinal, um bom pintor deve ser também um bom anatomista. Mesmo esbarrando 5

DELEUZE, Gilles. A Ilha Deserta : e outros textos. org. David Lapoujade. Trad. Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Iluminuras, 2006. p.

em alguns caminhos tortuosos, temos nesta obra moderna de espírito clássico uma das mais elaboradas defesas desse ceticismo moderado. Por meio dela podemos refinar nosso temperamento reconhecendo o valor do senso comum na condução da vida ordinárias sem, no entanto, cometer seus mesmos erros. Em uma obra que tem o próprio raciocínio como objeto de investigação, clareza e concisão são dois princípios difíceis de conciliar e leitor pode ficar desanimado quando se depara com este monumento repleto de conceitos abstratos. Em sua obra posterior, Hume reconhecerá as deficiências formais de sua obra de juventude e passará a vincular suas reflexões filosóficas por meio de ensaios e diálogos. Em comparação com o Tratado, essas formas são mais apropriadas ao ceticismo e o mais profundo pensamento filosófico pode assumir a mais elegante expressão, sem cansar nem entediar o leitor, o que pode ocorrer no presente trabalho caso ele se estenda mais um pouco.

Referências bibliográficas

DELEUZE, Gilles. A Ilha Deserta : e outros textos. org. David Lapoujade. Trad. Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Iluminuras, 2006.

______________. Empirismo e Subjetividade. Tradução Luiz Orlandi. São Paulo : Editora 34, 1990.

HUME, David. Tratado da Natureza Humana: uma tentativa de introduzir o método experimental de raciocínio nos assuntos morais. Tradução Débora Danowki: 2ed. Rev. e ampliada. –São Paulo: Editora UNESP, 2009.

_____________. Tratise of Human Nature, Indianápolis: Liberty Fund, 1987.

_____________.Investigação sobre o entendimento humano. Organização e tradução Alexandre Amaral Rodrigues. São Paulo: Hedra, 2009.

_____________.A arte de escrever ensaio e outros ensaios (morais, políticos e literários) / Seleção Pedro Paulo Pimenta ; Tradução Márcio Susuki e Pedro Paulo Pimenta – São Paulo : Iluminuras, 2008.

LEBRUN, Gerárd. A Filosofia e sua História. São Paulo: Cosac Naif, 2006.

PRADO JR., BENTO. Alguns ensaios: filosofia, literatura, psicanálise. São Paulo : Paz e Terra, 2000.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.