DE ALDEIAS A FREGUESIAS E VILAS: o processo de dissolução das aldeias indígenas na representação cartográfica do território de São Paulo (1765–1837)

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De aldeias a freguesias e vilas: o processo de dissolução das aldeias indígenas na representação cartográfica do território de São Paulo (1765–1837). José Rogério Beier Doutorando em História Econômica (USP)

Introdução O estabelecimento das primeiras aldeias indígenas no território que posteriormente viria a formar a Capitania de São Paulo deu-se ainda no século XVI, durante os primeiros anos da colonização portuguesa na América. Quando São Paulo de Piratininga foi elevada à categoria de vila, em 1560, grupos de índios Guaianá que habitavam a região onde foi instalado o núcleo piratingano foram transferidos para outras localidades assim que os portugueses começaram a ocupar suas terras1. Segundo o antropólogo John Monteiro, esses índios, “flagelados pela doença e pela guerra”, foram reunidos pelo padre José de Anchieta em três novas aldeias: São Miguel, Itaquaquecetuba e Pinheiros2. No correr dos séculos XVI e XVII, novas aldeias foram sendo estabelecidas quer nos arredores de São Paulo, como Barueri, Nossa Senhora da Escada (atual Guararema), Carapicuíba, Itapecerica e M’Boy (atual Embú), quer um pouco mais adiante, como São João de Peruíbe, no litoral sul paulista, ou São José, no Vale do Paraíba3. Conquanto algumas das aldeias paulistas mencionadas acima tenham sido criadas pelo Padroado Real – Pinheiros, São Miguel, Guarulhos e Barueri, por exemplo – boa parte delas foi estabelecida e administrada por ordens religiosas, sobretudo a dos jesuítas4. Não Cf. José Arouche de Toledo Rendon. “Plano em que Se propoem o Melhoramento da Sorte dos Índios, reduzindo-se a Freguezias as Suas Aldeas, e extinguindo se este nome, e esta antiga Separaçao em que tem vivido a mais de dois Seculos”. In: ARQUIVO DO ESTADO DE SÃO PAULO. Documentos Interessantes para a História e Costumes de São Paulo, v. 95. São Paulo: Unesp; Arquivo do Estado, 1990, p. 92. 2 Em 1580, uma quarta aldeia foi fundada nos arredores de São Paulo para concentrar grupos de índios Maromimi que habitavam a região. A esta aldeia foi dada o nome de Conceição de Guarulhos. [Ver John Manuel Monteiro. “Vida e morte do índio: São Paulo colonial”. In: John Manuel Monteiro; et al. Índios no Estado de São Paulo: resistência e transfiguração. São Paulo: Yankatu, 1984, p. 30]. 3 Convém recordar que essas aldeias eram unidades populacionais multiétnicas fundadas, ou por agentes da administração colonial, ou por membros de ordens religiosas, que aglomeravam populações indígenas “descidas”, ou seja, deslocadas e dessocializadas. [Ver: John Manuel Monteiro. Tupis, Tapuias e historiadores: estudos de história indígena e indigenismo. Campinas, 2001, 235 f. Tese de livre-docência. Depto. De Antropologia. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Universidade Estadual de Campinas, p. 112]. 4 Mesmo que as aldeias estabelecidas pelo Padroado Real contassem, no início, com um representante da administração colonial no encargo das funções temporais da aldeia, a administração religiosa cabia aos jesuítas que, com o passar dos anos, acabaram reunindo tanto o poder temporal quanto o religioso em suas mãos. 1

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raro, essa ordem recebia como herança grandes fazendas de particulares, incluindo as centenas de índios que seus proprietários haviam descido5 ou capturado nas conhecidas expedições pelo interior do continente. Nessas fazendas os jesuítas estabeleciam aldeias de índios que, além de receberem ali sua catequização, tinham sua mão de obra explorada pelos padres para garantir a subsistência da própria aldeia, bem como dos colégios, residências e fazendas jesuíticas de São Paulo. Exemplo de aldeias criadas a partir de doações de particulares são Carapicuíba, M’Boy, Itapecerica e São José6. Não se deve olvidar que os jesuítas tiveram um papel importante na ocupação territorial do interior da América portuguesa. Desde a chegada dos primeiros padres à Bahia, em 1549, a ordem se associou à Coroa portuguesa no papel de catequização dos índios e colonização do território americano. Nesse sentido, se por um lado a criação das primeiras aldeias indígenas atendia ao fim missionário dos inacianos, por outro também ia ao encontro dos interesses da Coroa em povoar os chamados sertões, estendendo a soberania lusa para regiões fronteiriças potencialmente litigiosas com os espanhóis. Mais que isso, a administração colonial via esse cinturão de aldeias nos arredores de São Paulo como uma boa estratégia para defender os primeiros núcleos urbanos que floresciam no interior da então Capitania de São Vicente do ataque de grupos indígenas hostis, dentre outros7. Destarte, conquanto seja lícito apontar que os jesuítas se associaram à Coroa no empreendimento da catequização dos indígenas; que compactuaram com as guerras e escravização dos índios que se recusavam a cooperar e, ainda, que tinham interesses na exploração da mão de obra indígena para garantir a subsistência de seus colégios e fazendas, comercializando eventuais excedentes, não se pode negar que esses religiosos tinham real interesse na catequização dos índios e de cumprir seus ideais missionários, buscando, sempre que possível, preservá-los do contato com grupos de outras etnias ou, sobretudo,

Para uma análise sobre a atuação jesuítica na catequização dos índios nas Capitanias do Sul, veja-se: Renan Amauri Guaranha Rinaldi. Missões, colégios e aldeamentos jesuíticos no Brasil Colônia: ocupação territorial das Capitanias do Sul (1549-1759). 2013. 148 f. Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-Graduação em Urbanismo, Centro de Ciências Exatas, Ambientais e de Tecnologias. Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Campinas, 2013, p. 21-53. 5 Segundo Luiz Felipe de Alencastro, os descimentos eram o “deslocamento forçado dos índios para as proximidades dos enclaves europeus”. [Ver: Luiz Felipe de Alencastro. “Índios, os escravos da terra”. In: O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 119]. 6 A historiadora Dora Shellard Corrêa aponta que a aldeia de Carapicuíba teria resultado de um legado deixado ao Colégio dos Jesuítas, ainda em vida, por Afonso Sardinha e sua mulher, em 1615. Já a de M’Boy teve origem na doação de Fernão Dias Paes e sua mulher, em 1625. Por fim, a aldeia de Itapecerica foi organizada pelos inacianos por volta de 1689, a partir da transferência de índios aldeados em Carapicuíba após o esgotamento do solo desta última. [Ver Dora Shellard Corrêa. O aldeamento de Itapecerica: de fins do século XVII a 1828. São Paulo: Estação Liberdade, 1999, p. 39-42]. 7 Até meados do século XVII apenas quatro vilas haviam sido fundadas no interior da Capitania de São Vicente: São Paulo (1560), Mogi das Cruzes (1611), Santana do Parnaíba (1625) e Taubaté (1645). No entanto, entre essas vilas havia outros núcleos de povoamento que começavam a florescer, como Guaratinguetá, Jacareí, Jundiaí, Itu e Sorocaba, por exemplo. Todas as aldeias indígenas estabelecidas por esta época localizavam-se a bem pouca distância destes núcleos e, portanto, em caso de ataques movidos por grupos hostis, as populações aldeadas eram chamadas a defender as vilas e demais povoados desses ataques.

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com os colonos8. Estes últimos, como se sabe, viam as aldeias indígenas como um grande repositório de mão de obra para o trabalho nas pequenas lavouras da região, no transporte de mercadorias, na orientação dos sertanistas para a penetração do interior do continente e, também, no combate contra os índios inimigos. A Coroa, por sua vez, também tinha seus próprios interesses e, através de diversas legislações, buscou intermediar as tensões que surgiam entre religiosos e colonos, ora atendendo aos interesses de um, ora os de outro. Essas tensões, decorrentes dos interesses díspares dos agentes envolvidos na questão das aldeias indígenas, sua administração e utilização do indígena, acentuaram-se gradualmente no decorrer do século XVII, sobretudo após as primeiras legislações proibindo a escravização dos índios, em meados do século anterior. A oposição entre colonos e jesuítas recrudesceu de tal modo que, em 1640, os inacianos acabaram expulsos da vila de São Paulo, retornando apenas treze anos mais tarde, quando foram chamados de volta às suas atividades de evangelização e ensino, sem manter, no entanto, o monopólio administrativo das aldeias indígenas. A partir da segunda metade do século XVII, como observou Ilana Blaj, há um despovoamento das aldeias indígenas quer em razão da ação dos moradores que, frente à retração do bandeirismo apresador e da proibição das expedições sertanistas em busca dos gentios, recusavam-se a devolver os índios das aldeias; quer em função de ações da Coroa, que também requisitava constantemente por índios aldeados para acompanharem as expedições que partiam em busca de metais9. Deste modo, verifica-se que nos primeiros anos do século XVIII as aldeias já se encontravam praticamente despovoadas, em comparação ao número de indígenas que as habitavam no século XVI e primeiras décadas do XVII.

Política indigenista pombalina Com a ascensão de d. José I ao trono de Portugal, em meados do século XVIII, seu ministro, Sebastião José de Carvalho e Melo, futuro Marquês de Pombal, foram introduzidas mudanças significativas na política indigenista que vinha sendo tocada até então. Tais mudanças foram o primeiro passo de uma série de políticas e práticas que no decorrer de um século, culminou com a assimilação física e social de parte das populações indígenas ao resto da população da América portuguesa. Promulgado inicialmente em 1755 para a Capitania do Grão-Pará e Maranhão, o Diretório dos Índios propunha transformar aldeias indígenas em vilas e lugares com noIlana Blaj destaca que para os jesuítas, “os aldeamentos representariam um fim em si mesmo com a submissão dos indígenas à hierarquia, à ordem e aos valores monástico-estamentais nos quais a fé, a obediência e a honra se sobrepunham à cobiça e ao mercado”. [Ver: Ilana Blaj. A trama das tensões: o processo de mercantilização de São Paulo colonial (1681-1721). São Paulo: Humanitas; Fapesp, p. 144]. 9 Sobre o despovoamento das aldeias a partir de meados do século XVII, vejam-se: Ilana Blaj. A trama das tensões... Op. Cit., p. 144; John Manuel Monteiro. Negros da terra... Op. Cit., p. 204. 8

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mes portugueses e, simultaneamente, converter os índios aldeados em vassalos do Rei. Como destacou Kantor, essa promoção civil e outorga de direitos municipais às aldeias indígenas propunha transformá-las em povoações civis dotando esses núcleos com um Senado da Câmara, juízes e vereadores indígenas. Através da nova legislação o rei concedia a cada aldeia uma sesmaria adjacente à vila e, assim, pela primeira vez o índio adquiria personalidade jurídica10. Em São Paulo, após a restauração da Capitania em 1765, o novo capitão-general esforçou-se para que algumas das antigas aldeias fossem convertidas em freguesias ou vilas, como determinava a legislação11. Desta forma, integradas à malha urbana paulista, pretendia-se que esses núcleos deixassem de ser administrados por diretores ou missionários, admitissem a presença de população não indígena e passassem a contar com equipamentos característicos da estrutura administrativa portuguesa, tais como a Câmara Municipal e o pelourinho, por exemplo. No entanto, como observou Kantor, se por um lado a doação de sesmarias às novas vilas indígenas contribuiu para estender o domínio da administração portuguesa aos sertões, por outro, foi responsável por criar tensão e conflitos fundiários entre as populações indígenas aldeadas e os grandes fazendeiros e posseiros que, a partir de então, temiam perder seus privilégios de ocupação das terras. Com o transcorrer do século XVIII, tais tensões contribuíram para levar o Diretório Pombalino ao fracasso, sendo o mesmo revogado por Carta Régia assinada pela rainha d. Maria I em julho de 179812.

Memórias, planos de civilização e catequese dos índios Logo após a revogação do Diretório dos Índios pela Carta Régia de 1798, intelectuais ligados à administração paulista começaram a elaborar planos, relatos ou memórias com o objetivo de demonstrar os erros das políticas indigenistas anteriores e, sobretudo, estabelecer o que acreditavam se tratar das melhores práticas que o governo deveria dispender no tratamento dos índios aldeados e de suas terras. Em seus textos, embora criticassem e buscassem alternativas à política pombalina, os autores propunham ideias que fomentassem a discussão e orientassem os administradores e/ou responsáveis pela elaboração de uma nova política indigenista, para que estes criassem dispositivos capazes de regular, principalmente, o destino das sesmarias concedidas aos núcleos indígenas e a Cf. Iris Kantor. “Legislação indigenista, reordenamento territorial e auto-representação das elites (17591822)”. In: KOERNER, Andrei (org.). História da justiça penal no Brasil: pesquisas e análises. São Paulo: IBCCRIM, 2006, p. 32-33. 11 Segundo Rendon, d. Luís Antônio de Sousa Botelho Mourão, primeiro capitão-general nomeado para São Paulo após sua restauração, tinha grandes expectativas na elevação das aldeias de São Miguel, Pinheiros e São José à categoria de freguesia ou vila. No entanto, ao cabo de seu governo, apenas a aldeia vale-paraibana acabou elevada a vila, em 1767. [Ver José Arouche de Toledo Rendon. Plano em que Se propoem o Melhoramento da Sorte dos Índios... Op. Cit., p. 92-93]. 12 Cf. Iris Kantor. Legislação indigenista... Op. Cit., p. 34-35. 10

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forma de se administrar as aldeias, isto é, como dispor da mão-de-obra indígena aldeada. Paradoxalmente, pretendiam com seus planos e memórias que se estabelecesse uma nova legislação que aprofundaria o processo de dissolução dos aldeamentos indígenas iniciado com Pombal. Um desses textos foi o Plano em que se propõem o melhoramento da sorte dos índios, reduzindo-se a freguesias suas aldeias, e extinguindo-se este nome e esta antiga separação em que tem vivido a mais de dois séculos, elaborado por José Arouche de Toledo Rendon no âmbito do desmonte da política pombalina, em 1798. Nomeado para o cargo de Diretor Geral das Aldeias da Capitania de São Paulo em aos 20 de agosto de 1798, Rendon tinha como objetivo: [...] fazer-lhes uma visita de inspeção [às aldeias da capitania], examinar os pontos em que não se cumpria o Diretório dado aos Índios do Pará; que artigos eram aplicáveis a estas povoações, e finalmente, que melhoramento poderiam ter, e quais as providências necessárias13?

Para cumprir este objetivo, Rendon realizou visitas aos aldeamentos de São Paulo, seus “pequenos arquivos” e ao arquivo da Câmara Municipal. As anotações realizadas durante essas visitas se transformaram em um “plano geral de civilização e catequese dos índios”, entregue em 22 de dezembro de 1802, ao então governador de São Paulo, Antônio José da Franca e Horta (1802-1811)14. Em seu plano geral de “catequização e civilização”, Rendon informou que no começo do século XIX eram doze as aldeias indígenas em São Paulo, como se pode ver no mapa abaixo.

Cf. José Arouche de Toledo Rendon. “Memória sobre as aldeias de índios da província de S. Paulo, segundo as observações feitas no ano de 1798. – Opinião do autor sobre sua civilização”. In: __________. Obras. Introdução e notas: Paulo Pereira dos Reis. São Paulo: Governo do Estado, 1978, p. 38. 14 Segundo ofício enviado por José Arouche de Toledo Rendon ao novo capitão-general, Antonio José da Franca e Horta, aquele plano já havia sido apresentado a seu antecessor, o governador Antonio Manoel de Mello Castro e Mendonça, às vésperas de sua saída. Por esta razão o antecessor nada pudera resolver sobre o assunto dos aldeamentos indígenas. Agora ele submetia novamente o plano para que Franca e Horta pudesse analisá-lo e decidir o que fazer sobre o assunto. [Ver José Arouche de Toledo Rendon. “Plano em que Se propoem o Melhoramento da Sorte dos Indios, reduzindo-se a Freguezias as Suas Aldeas, e extinguindo se este nome, e esta antiga Separaçao em que tem vivido a mais de dois Seculos”. In: DOCUMENTOS Interessantes Para a História e Costumes de São Paulo: Ofícios do General Horta aos Vice-Reis e Ministros (1802-1807). Vol. 95. São Paulo: Unesp, 1990. p. 91-107]. 13

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Mapa 1: Aldeias indígenas paulista segundo o plano geral de catequização e civilização dos índios, de José Arouche de Toledo Rendon (1802).

Fonte: Mapa elaborado sobre base cartográfica IBGE: Estado de São Paulo (2010).

Cumpre lembrar que embora Rendon relacione as aldeias de Guarulhos (nº. 4) e São José (nº. 11) em seu plano, ambas já haviam sido elevadas à categoria de freguesia e vila, respectivamente15. Quanto às recomendações contidas no plano de Rendon, as mesmas podem ser resumidas em três eixos principais: que se acabasse com as guerras-justas aos indígenas, que fossem extintos os cargos e atividades dos administradores ou diretores de indígenas e, mais importante, que se transformassem as aldeias indígenas em freguesias ou vilas, permitindo que São Paulo se desenvolvesse segundo os parâmetros da economia agroexportadora escravista, tida àquela época como moderna16. Assim, tomando como base as considerações de Rendon, o governador Franca e Horta ordenou, ainda em 1803, que se abolisse o cargo de administrador das aldeias de índios; que fossem recolhidos os livros e demais papéis referentes a cada aldeia; e que se garantisse que os capitães mores e oficiais das ditas aldeias fossem impedidos de ter juris-

John Monteiro informa que os aldeamentos paulistas entraram em decadência e se encontravam bastante despovoados já em meados do século XVII. O principal motivo eram as recorrentes invasões às terras indígenas, que destruía a base econômica das aldeias. A Câmara Municipal de São Paulo, por sua vez, passou a legitimar essas invasões, a partir de 1650, quando começou a aforar terras indígenas a moradores que nelas já haviam se instalado. Assim, no último quartel do século XVII o número da população não indígena de Guarulhos cresceu tanto que o aldeamento foi elevado à condição de freguesia e, em termos funcionais, deixou de existir. [Ver John Manuel Monteiro. “Vida e morte do índio: São Paulo colonial”. In: John Manuel Monteiro; et. al. Índios no Estado de São Paulo: resistência e transfiguração. São Paulo: Yankatu, 1984, p. 40-41]. 16 Cf. Fernanda Sposito. Nem cidadãos, nem brasileiros: indígenas na formação do Estado nacional brasileiro e conflitos na província de São Paulo (1822-1845). São Paulo: Alameda, 2012, p. 60. 15

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dição sobre os índios. Estes últimos, por sua vez, ficariam sujeitos aos oficiais do corpo de ordenanças e deveriam se alistar “na classe do povo”, como os demais. Segundo Franca e Horta, tais medidas visavam restabelecer a “plena liberdade dos índios” que, a partir de então, passariam a ser considerados “como os mais Cidadoens”, podendo viver onde bem entendessem. Mais que isso, Franca e Horta ordenou que se abolisse os nomes de “aldeas e de índios”, isto é, que dali por diante, nenhum documento oficial da administração voltasse a se referir àqueles núcleos e sua população através daquelas expressões17. No entanto, como bem observou Fernanda Sposito, os termos “aldeias” e “índios aldeados” não deixaram de aparecer nos documentos administrativos paulistas18, assim como o processo de dissolução dos aldeamentos ainda se seguiria no decorrer da primeira metade do Oitocentos.

O desmonte da política pombalina e a permanência de práticas indigenistas assimilacionistas Ao analisar os efeitos da revogação do Diretório dos Índios, a historiadora Fernanda Sposito considera que a Carta Régia pretendia “eliminar o ‘degrau’ que os índios tinham que enfrentar para chegar à ‘civilização’, tornando-os desde então iguais em direitos aos outros súditos da Coroa, não necessitando, portanto, serem civilizados a priori para serem súditos da rainha de Portugal19”. Em outras palavras, ao serem igualados em direitos com os demais súditos da Coroa, os índios poderiam ser retirados de suas terras sem que lhes fosse oferecida uma contrapartida, além de não poderem mais permanecer nas terras que antes lhes haviam sido destinadas, como as aldeias, sem contar que também poderiam ser “engajados em grupos de trabalhos obrigatórios20”. Segundo Manuela Carneiro da Cunha, a revogação da política pombalina, em 1798, e a ausência de uma política indigenista de caráter mais geral que a substituísse, marcou a primeira metade do século XIX no que se refere ao tratamento dispensado às populações indígenas21. Neste período é possível verificar a retomada de uma série de práticas empregadas nos séculos anteriores, tais como os descimentos; a extinção do patrimônio fundiário concedido pela legislação através das sesmarias indígenas; o apossamento e/ou o aforamento de terras localizadas em aldeias indígenas; a declaração de guerras justas contra grupos que fossem considerados hostis ou obstaculizassem os interesses, quer da administração local, quer de particulares; a escravização de índios considerados “bravos”. Cf. DOCUMENTOS Interessantes Para a História e Costume de São Paulo. Vol. 55, p. 116-118 e 140-141. Cf. Fernanda Sposito. Nem cidadadãos, nem brasileiros... Op. Cit., p. 160. 19 Idem, p. 59. 20 Idem. Ibidem. 21 Cf. Manuela Carneiro da Cunha. “Política indigenista nos século XIX”. In: __________. Índios no Brasil. São Paulo: Claro Enigma, 2012, p. 65. 17 18

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Embora muitas dessas práticas fossem de encontro às principais diretrizes do Diretório dos Índios, convém ressalvar com a historiadora Maria Regina Celestino de Almeida que elas também possuíam algo em comum com aquela política, isto é, mantinham e acentuavam a orientação “assimilacionista” voltada à dissolução dos aldeamentos indígenas22. Além disso, um aspecto que não pode ser ignorado ao se tratar de temas relacionados à questão indígena, especialmente no final do século XVIII e princípio do XIX, é a questão da propriedade fundiária23. Isso porque, como bem demonstrou a historiadora Maria Luiza Marcílio, o início do Setecentos registra a penetração da economia monetária na área rural paulista. Este aspecto, quando analisado em conjunto com o grande crescimento demográfico verificado naquele século; o desenvolvimento da criação e comércio de gados na Capitania; e o abastecimento crescente de novos mercados, revela uma maior intensificação da produção agrícola. Esta, por sua vez, culminou com o “desenvolvimento da importância da ligação individual das famílias a terra”, ampliando a noção da propriedade de terras que, no final daquele século, já estava se transformando em mercadoria24. É muito reveladora, portanto, a demonstração que esta autora faz de como, nas regiões paulistas em que a economia monetária penetrou precocemente, se deu um processo mais acelerado de valorização e apropriação individual da terra, especialmente na região de Sorocaba, com a criação de gado; no Vale do Paraíba; e no chamado Oeste Paulista, ligados à agricultura de exportação de açúcar e café. Justamente nesses locais se iniciou o processo de cercamento de terras nas paisagens da capitania paulista e, também, de concentração da propriedade fundiária25. Exemplo de como a administração colonial atuou em relação a populações indígenas diante da valorização de terras em uma região onde havia se instalado a agricultura para a exportação, foi o caso da criação da aldeia de Queluz em 1800. Nesta operação, o governo paulista aldeou índios da etnia puri, que viviam dispersos numa área localizada ao norte da capitania, próxima às divisas com Minas Gerais e Rio de Janeiro, no Vale do Paraíba, onde o café já começava a produzir algumas fortunas. A aldeia de São João de Queluz foi estabelecida no termo da vila de Areias e suas terras “foram divididas entre aquelas suficientes para a manutenção dos índios e para o patrimônio da igreja, tendo por limites os ribeirões das Cruzes e Entupido, que ficavam além do rio Paraíba26”. Apenas três décadas depois, em 1835, com a instalação da AssemSegundo Almeida “todas [essas práticas] visavam a um mesmo fim: a ocupação das terras indígenas e a transformação de seus habitantes em cidadãos eficientes e trabalhadores para servirem ao novo Estado”. [Ver Maria Regina Celestino de Almeida. Os índios na História do Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 2010, p. 141142]. 23 Para Manuela Carneiro da Cunha, a questão indígena no século XIX passou a ser mais uma questão de terra do que de mão-de-obra. [Ver: Manuela Carneiro da Cunha. Política indigenista nos século XIX... Op. Cit., p. 56]. 24 Cf. Maria Luiza Marcílio. Crescimento demográfico e evolução agrária paulista... Op. Cit., p. 183. 25 Idem, p. 184-187. 26 Cf. Fernanda Sposito. Nem cidadadãos, nem brasileiros... Op. Cit., p. 164-166. 22

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bleia Legislativa Provincial, os deputados determinaram que as terras dos índios do aldeamento de Queluz fossem “colocadas em hasta pública para quem melhor pudesse dar pelas terras”, justificando tal decisão alegando que os índios não cultivavam as ditas terras e que estas só davam lucros graças à presença da população não indígena que por lá já havia se instalado27. Como se pode imaginar, a regulamentação jurídica das terras no período, apesar de numerosa, não resolvia os diversos problemas, de modo que conflitos e tensões apareciam entre os mais diversos agentes sociais: índios, lavradores pobres, fazendeiros, sesmeiros, grileiros, grandes e pequenos posseiros, dentre outros. Até 1822, as terras devolutas eram dadas em sesmarias pela Coroa ou seus representantes. Como informa a historiadora Raquel Glezer, as dimensões das concessões eram variadas, mas de modo geral, “abrangiam de uma a três léguas, simples ou em quadra28”. No entanto, a partir de 1822 extinguiuse o sistema de concessão de sesmarias na expectativa de que a Assembleia Constituinte decidisse como as terras da Coroa deveriam ser alienadas. Mesmo após ter sido dissolvida a Assembleia e outorgada a Constituição, em 1824, não foi promulgada uma legislação geral que regulasse o estatuto da propriedade da terra, o que só viria a ocorrer com a Lei de Terras, em 185029. A extinção do sistema de concessão de sesmarias, portanto, impulsionou o avanço da ocupação territorial paulista sobre áreas antes ocupadas por populações indígenas. Essa mudança na legislação foi determinante para a dissolução dos núcleos estabelecidos ao redor de São Paulo, uma vez que, a partir de 1822, populações não indígenas poderiam simplesmente invadir, ocupar e apossar-se de terras que pertenciam aos aldeamentos. Em 1829, por exemplo, o aldeamento de Barueri foi invadido pelo capitão Francisco de Castro do Canto e Mello e pelos alferes José Inácio Leite Penteado, Joaquim Teodoro Leite Penteado e Bernardo José Leite Penteado que, em conjunto com seus escravos, entraram nas terras dos índios com espadas e armas de fogo, atearam fogo às plantações locais, às casas dos índios e cercaram as terras para que os moradores originais não mais retornassem, como observou Katiane Verazani30. Os índios expulsos ficaram desabrigados, enquanto os invasores, ainda que as autoridades tenham aberto uma investigação sobre o ocorrido, permaneceram com a posse das terras de fato e de direito, uma vez que anos

Idem, p. 165. Cf. Raquel Glezer. Chão de terra e outros ensaios sobre São Paulo. São Paulo: Alameda, p. 58. 29 Emília Viotti da Costa destaca que entre 1822 e 1850 a única forma legal de aquisição da terra, excetuandose a herança ou a compra, era a posse ou ocupação pura e simples: “as posses resultantes da ocupação aumentaram de forma incontrolável e os posseiros acumularam grandes extensões de terra cujos limites eram vagamente definidos por acidentes geográficos naturais. [Ver: Emília Viotti da Costa. “Política de terras no Brasil e nos Estados Unidos”. In: __________. Da Monarquia à República: momentos decisivos. 9ª ed. São Paulo: Unesp, 2010, p. 178. 30 Cf. Katiane Soares Verazani. Assenhorar-se de terras indígenas: Barueri – sécs. XVI-XIX. São Paulo, 2009, 121 f. Dissertação (Mestrado). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo, p. 92. 27 28

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mais tarde, o Registro Paroquial de 1856, assegurava definitivamente as terras invadidas para a família Penteado31. Além de invasão e apossamento de particulares, também houve transferência de terras indígenas por parte da administração paulista a grupos de trabalhadores estrangeiros que se começava a introduzir na Província para suprir a carência de trabalhadores nas obras públicas. Em 1829, por exemplo, o Conselho Geral da Província aprovou um projeto de lei que pretendia instalar colonos alemães em terras indígenas localizadas nos aldeamentos próximos a então freguesia de Santo Amaro. Segundo este projeto, os colonos alemães deveriam: [...] ser mandados para o Sertão próximo á Freguizia de Santo Amaro, que aponta o Director, ou se para evitar-se maior despeza de transporte, e sustentação pelo tempo indispensável até que formem os seus arranchamentos, e consigão tornar-se independentes pelo seu trabalho, convirá mais, que fiquem nas terras, que estiverem desocupadas no Destricto das Aldêas de Itapecerica, Mboy e Carapecuyba, como já fora deliberado pelo Ex.mo Conselho32 [...].

O trecho selecionado revela como as terras indígenas eram sistematicamente invadidas por populações não índias, fazendo com que a população aldeada que ali vivia se misturasse à população geral de São Paulo. Caso não quisessem esse convívio, restava-lhes como alternativa abandonar suas terras e migrar para outras regiões. Com o tempo, as invasões das terras indígenas e a miscigenação decorrente do contato com a população não índia foi um dos fatores determinantes para que as aldeias fossem convertidas em freguesias ou vilas, como pretendiam a população não índia e as autoridades provinciais. Assim, com a integração de São Paulo ao mercado mundial através, principalmente, da exportação de açúcar, verifica-se um gradual esvaziamento das aldeias que, desde a última década do século XVIII, passam a ser vistas como entraves ao desenvolvimento da capitania, uma vez que suas terras não eram aproveitadas para o aumento da produção agrícola. Ainda que o Diretório dos Índios tenha apresentado resultados “frouxos” na Capitania de São Paulo33, entende-se que ele pode ser tomado como marco inicial de análise do processo de dissolução das aldeias paulistas por ser o primeiro passo de uma política de assimilação dos índios que, como se buscou demonstrar, ganhou impulso nas primeiras décadas do Oitocentos. Concomitantemente, deve-se assinalar que também foi a partir das últimas décadas do século XVIII que se começou a verificar o gradual desaparecimento de referências às aldeias indígenas na documentação textual e cartográfica produzida pela administração paulista. Como se destacou previamente, em 1803 o governador Antônio José da Franca e Horta chegou mesmo a determinar que os documentos oficiais deixassem de utilizar os termos “aldeias” e “índios aldeados”. No caso específico dos mapas, topônimos como “alIdem, p. 93. Cf. DOCUMENTOS Interessantes Para a História e Costumes de São Paulo, vol. 86, p. 218. 33 Cf. John Manuel Monteiro. A memória das aldeias de São Paulo... Op. Cit., p. 13. 31 32

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dea”, “aldeya” ou “ald.” foram sumindo gradualmente, como se passará a destacar a seguir.

Representações cartográficas das aldeias paulistas Antes mesmo da elaboração do plano de Rendon, talvez no primeiro ano da década de 1790, o engenheiro militar João da Costa Ferreira foi encarregado de levantar uma carta náutica do Sul da América portuguesa desde a Ilha de Santa Catarina até as proximidades da Ilha de São Sebastião, em São Paulo. Além da costa paulista, Ferreira também representou a ocupação do interior da Capitania, como demonstra o detalhe da referida carta, destacada a seguir. Mapa 2: [Litoral do Brasil entre as Ilhas de São Sebastião, em São Paulo e Santa Catarina, no estado do mesmo nome], de João da Costa Ferreira (179?).

Fonte: João da Costa Ferreira. [Litoral do Brasil entre as Ilhas de São Sebastião, em São Paulo e Santa Catarina, no estado do mesmo nome]. [179-]. 1 mapa, ms: 72,5 x 56 cm. Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro.

Nessa carta, a maioria dos aldeamentos indígenas paulistas foram representados e identificados com o prefixo “Ald.”, como se destaca no quadro a seguir.

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Quadro 3: Representação das aldeias indígenas paulistas no mapa [Litoral do Brasil entre as Ilhas de São Sebastião, em São Paulo e Santa Catarina, no estado do mesmo nome], de João da Costa Ferreira (179?).

Fonte: João da Costa Ferreira. [Litoral do Brasil entre as Ilhas de São Sebastião, em São Paulo e Santa Catarina, no estado do mesmo nome]. Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.

Nesse manuscrito, praticamente todas as aldeias paulistas ao redor de São Paulo aparecem representadas e identificadas especificamente com as toponímias “aldeya” ou sua abreviação “ald.”. As exceções são as aldeias de Pinheiros, representada, porém, com o mesmo símbolo convencionado para as aldeias; e Itaquaquecetuba, que não foi representada neste mapa. Por essa mesma época, outro mapa produzido para a Capitania de São Paulo, o Mapa Corographico da Capitania de São Paulo, desenhado por Antônio Rodrigues Montesinho em 1791/92, traz referência específica a apenas uma das aldeias indígenas paulistas. Tratase da “aldeia de Escada”, localizada no caminho que ia de São Paulo ao Rio de Janeiro, conforme se destaca a imagem abaixo. Imagem 1: Trecho de Mapa Chorographico da Capitania de São Paulo..., de Antônio Rodrigues Montesinho (1791/92)

Fonte: Antonio Rodrigues Montesinho. Mapa Corographico da Capitania de S. Paulo que por Ordem do Ilustrisimo e Excelentisimo Senhor Bernardo Jozé de Lorena, Governador e Capitão General da mesma Capitania Levantou o Ajudante Engenheiro Antonio Roiz Montezinho, conforme suas observações feitas em 1791 e 1792. 1 mapa, ms: 149 x 163 cm. Mapoteca do Ministério das Relações Exteriores, Rio de Janeiro.

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Já no século XIX, o Mappa da Capitania de São Paulo, elaborado por João da Costa Ferreira, em 1811, e copiado pelo Barão de Eschwege, em 1817, ainda trazia alguns núcleos referenciados com a toponímia “aldea”: tratavam-se dos aldeamentos de São João de Peruíbe e, uma vez mais, Escada, como destaca a figura abaixo. Imagem 2: Detalhe do Mappa da Capitania de São Paulo, de João da Costa Ferreira (1811), copiado por Wilhelm von Eschwege (1817)

Fonte: Wilhelm von Eschwege. Mappa da Capitania de São Paulo ligeiramente copiado do original feito pelo Coronel Engenheiro Snr. João da Costa Ferreira em o anno de 1811, para o uso próprio do Tenente Coronel de Engº Guilherme, Barão de Eschwege. 1817. 1 mapa, ms. Arquivo Público do Estado de São Paulo, São Paulo.

Como se pode observar, outras aldeias, como Pinheiros, M’Boy e Itapecerica, por exemplo, foram representadas apenas com o símbolo convencionado pelo cartógrafo para representar as freguesias/capelas da Capitania, como se detalha na imagem a seguir. Imagem 1: Detalhe da representação de alguns aldeamentos indígenas no Mappa da Capitania de São Paulo, de João da Costa Ferreira (1811)

Fonte: Wilhelm von Eschwege. Mappa da Capitania de São Paulo ligeiramente copiado do original feito pelo Coronel Engenheiro Snr. João da Costa Ferreira em o anno de 1811, para o uso próprio do Tenente Coronel de Engº Guilherme, Barão de Eschwege. 1817. 1 mapa, ms. Arquivo Público do Estado de São Paulo, São Paulo.

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Por fim, em 1837, quando Daniel Pedro Müller conclui a elaboração de seu mapa, verifica-se que o mesmo representa nove das dez aldeias indígenas mencionadas na memória de Rendon34. Diferentemente das cartas anteriores, nenhuma aparece identificada com a toponímia “aldea”, “ald.” ou “aldeya”. A imagem a seguir traz o detalhe da representação das nove aldeias indígenas representadas no mapa de Müller. Imagem 2: Representação e toponímia dos aldeamentos indígenas paulistas no Mappa Chorographico da Província de São Paulo (1841), de Daniel Pedro Müller.

Fonte: Daniel Pedro Müller. Mappa Chorographico da Provincia de São Paulo. Paris: Alexis Orgiazzi, [1841]. 1 mapa, impr.: 105 x 157 cm. Huntington Library, California, Estados Unidos da América.

É importante notar os símbolos utilizados por Daniel Pedro Müller para caracterizar cada aldeia e compará-los com aqueles que o cartógrafo utilizou na representação de outros núcleos urbanos como cidades, vilas e freguesias. Desta forma, vê-se que em todo mapa foram utilizados apenas três símbolos para representar os diferentes núcleos urbanos da Província de São Paulo: Quadro 4: Ícones utilizados por Daniel Pedro Müller para representar os núcleos urbanos no Mappa Chorographico da Província de São Paulo (1841) Para representar a cidade de São Paulo; Para representar as vilas (ex.: São José, Jundiaí, Itu); Para representar as freguesias e capelas curadas (ex.: M’Boi, Itapecerica, Barueri). Fonte: Daniel Pedro Müller. Mappa Chorographico da Provincia de São Paulo. Paris: Alexis Orgiazzi, [1841]. 1 mapa, impr.: 105 x 157 cm. Huntington Library, California, Estados Unidos da América. Carapicuíba é o único aldeamento mencionado no plano de Rendon que não foi representado no mapa de Müller. Como já mencionado anteriormente, Guarulhos e São José não foram considerados como aldeamentos indígenas, pois eram núcleos que já haviam sido elevados à categoria de freguesia e vila mesmo antes da elaboração do plano geral de “civilização e catequese” de Rendon. 34

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Nota-se que todas as aldeias indígenas foram representadas por Daniel Pedro Müller com o mesmo símbolo utilizado para representar as freguesias ou capelas curadas. Além disso, o cartógrafo não utilizou os termos “aldea”, “aldeya” ou “ald.” para identificar esses núcleos urbanos, tal como ocorrera em mapas de períodos anteriores.

Considerações finais Como se buscou demonstrar, o desaparecimento dos termos “aldea”, “aldeya” e “ald.” das representações do território paulista na virada do século XVIII para o XIX, longe de ser uma coincidência, alinhava-se perfeitamente às políticas indigenistas vigentes neste mesmo período, bem como aos desígnios das elites paulistas em relação ao patrimônio territorial atribuído às ditas aldeias e reafirmados a partir da legislação pombalina. Tais desígnios, como se viu, estão muito bem representados na variada produção elaborada por engenheiros militares, cartógrafos, juristas, naturalistas e políticos, tais como Antônio Rodrigues Montesinho (1791-92), José Arouche de Toledo Rendon (1798), João da Costa Ferreira/Wilhelm von Eschwege (1811/17), José Bonifácio de Andrada e Silva (1823) e Daniel Pedro Müller (1837-41), dentre outros. Diretamente ligados ao aparelho de Estado paulista e/ou imperial, esses homens viviam em um contexto já bastante distinto do que marcara a legislação introduzida pelo Diretório dos Índios e, por essa razão, contribuíam com suas obras para que se acabasse de vez com os patrimônios territoriais concedidos às aldeias, bem como com a alteração do modo de se administrar a mão-de-obra indígena, pontos que consideravam os principais entraves ao incremento da produção agrícola e comercial e ao assentamento de populações em vilas recém-criadas. Somente com a completa assimilação dos índios – aldeados e “bravos” – o Império poderia ver ampliada a oferta de mão-de-obra para as lavouras, além de incorporar as terras indígenas ao Estado, tornando possível, simultaneamente, levar a “civilização” e expandir o Império cada vez mais “para dentro”, para utilizarmos a expressão de Ilmar Rohloff de Mattos35. Cabe lembrar ainda que, além de estarem a serviço da Província de São Paulo, todos estes homens estavam muito ligados às questões de seu tempo. Como não poderia deixar de ser, suas produções revelam um alinhamento com as obras elaboradas por outros homens de letras do período, como bem observou Márcia Regina Celestino de Almeida: Os intelectuais responsáveis pela construção das imagens sobre os índios, assim como os viajantes, cujas descrições contribuíam para reforçá-las, comungavam a Cf. Ilmar Rohloff de Mattos. Entre a casa e o Estado. Nação, território e projetos políticos na construção do Estado imperial brasileiro. In: CARBÓ, Eulalia Ribeira; Héctor Mendoza Vargas; Pere Sunyer Martín. La integración del território em uma idea de Estado, México y Brasil, 1821-1946. México: Instituto de Geografía UNAM, 2007, p. 589-608. 35

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ideia de assimilar os índios e transformá-los em eficientes cidadãos do novo império. Seus discursos e representações eram coerentes com a política indigenista do século XIX36.

Assim, diversas obras como livros, retratos e relatos de viagens, dentre outras, criaram uma imagem idealizada do índio que quase nada tinham a ver com os grupos indígenas que viviam nas aldeias e nos sertões. Através de suas obras, esses homens contribuíram para disseminar as práticas assimilacionistas vigentes na primeira metade do Oitocentos, reforçando-as. Tal qual um livro de José de Alencar ou um retrato de Debret, as cartas geográficas produzidas no período podem ser vistas como artefatos que reforçam a imagem de que os índios deveriam ser assimilados e transformados em cidadãos do Império. A carta de Daniel Pedro Müller, por exemplo, na qual já não se observa qualquer referência às antigas aldeias indígenas paulistas, pode ser entendida como um marco da consumação do processo de dissolução desses núcleos, impulsionado em meados do século XVIII com a aplicação da política indigenista pombalina. Este silêncio sobre as aldeias indígenas, somado à representação de vasta porção do território paulista como “Sertão desconhecido37”, demonstra o alinhamento desse cartógrafo ao caldo cultural em que estavam imersos os intelectuais da primeira metade do século XIX, especialmente os membros do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, como o próprio Müller.

Cf. Márcia Regina Celestino de Almeida. Op. Cit., p. 141. Sobre a representação do Oeste Paulista como “Sertão desconhecido” na cartografia paulista, veja-se: José Rogério Beier. “Sertão desconhecido? A representação do 'Oeste paulista' no Mappa Chorographico da Província de São Paulo (1841)”. Revista Tempos Históricos, v. 18, p. 457-490, 2014. 36 37

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