DE CALVINO A BUDA: O \"ESPÍRITO\" DO CAPITALISMO / From Calvin to Buddha: The \"Spirit\" of Capitalism

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DE CALVINO A BUDA : O “ESPÍRITO” DO CAPITALISMO

Antonio Pele PUC-Rio Departamento e Pós graduação em Direito [email protected]

Business is a spiritual game Tony Robbins1 It comes as no surprise that those people who work without ego are extraordinarily successful at what they do. Anybody who is one with what he or she does is building the new earth. Eckhart Tolle2 Descubra os benefícios da meditação para uma vida mais eficiente, tranquila, alegre e dinâmica. Aprenda como lidar com o estresse e com os desafios profissionais e acadêmicos3.

Resumo: Esse estudo pretende analisar a criação e a reformulação atual de um possível “espírito” do capitalismo que forjaria subjetividades em função das novas exigências do neoliberalismo. Tendo em conta as ideias básicas de Weber sobre a contribuição do protestantismo para a aparição desse “espírito”, desenvolvemos a hipótese da construção contemporânea de um ideal de “agente neoliberal” por meio de “técnicas de si”, de inspiração budista. Palavras chave: Weber; capitalismo; neoliberalismo; meditação; técnicas de si; subjetividades.

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ROBBINS, T., Robbins Madanes Training, Disponível em: http://getrmt.com/aimee.html Acesso em 30 de abr. 2015. 2 TOLLE, E., A New Earth. Awakening to Your Life´s Purpose, Penguin, Nova York, 2008, p. 122. 3 “Meditação na PUC”, Propaganda da Vice-Reitoria Comunitária, Coordenação de Atividades Comunitárias e Culturais da PUC-Rio. Disponível em http://aaapucrio.com.br/meditacao-na-puc-rio-5/ Acesso em: 05 de maio 2015.

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Sumário: I. O “Espírito” do capitalismo. II. Predestinação, vocação, ascese. III. A “rígida crosta de aço”. IV. O Agente neoliberal. V. “Follow your heart and your intuition”. VI. “Convoque seu Buda”.

I. O “Espírito” do Capitalismo Para Weber, o “espírito” do capitalismo se refere a uma ética de vida fundada em um princípio de utilidade que designa, particularmente, “aquela disposição que, nas raias de uma profissão, de forma sistemática, ambiciona o ganho”. No entanto, este espírito não se baseia exclusivamente na manifestação de um suposto “racionalismo econômico”, mas deve ser compreendido a partir de uma dimensão bem particular, qual seja “a relação do ser humano com sua vocação profissional, entendida como missão”4. O foco de Weber recai, assim, no âmbito psicológico; pretende identificar como surgiram, a partir da ética protestante, determinados estímulos que fizeram da profissão uma vocação individual. Tais estímulos surgiram fora da estrita utilidade mundana e da pura ambição de lucro5. O capitalismo, assim, conseguiu aparecer e se desenvolver a partir de uma dedicação e uma quase identificação entre o indivíduo e seu trabalho e, dessa interseção, nasceu o espírito do capitalismo. Além disso, Weber, por diversas vezes, sublinha a aparição e a manutenção de elementos irracionais na construção deste “espírito”, em particular, e seu aparente paradoxo com o desenvolvimento do capitalismo em geral. Nesse sentido, gostaria de identificar três momentos em que esta irracionalidade parece apoiar o desenvolvimento ético e econômico do capitalismo. Primeiro, em relação ao capitalismo em geral, Weber indica como este processo é racional, em suas dimensões formal e instrumental, na sua capacidade de gerar ganhos econômicos. Por outro lado, é fundamentalmente irracional em sua incapacidade de atender “aos pontos de vista eudemonista ou mesmo hedonista, ou seja, a felicidade e a utilidade dos indivíduos”. Como o ganho passa a ser considerado como a finalidade da !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 4

Respectivamente WEBER, M., A ética protestante e o “espírito” do capitalismo, op.cit., pp. 45, 57 e 68. ROMOSER, G. K., “Book review: The Protestant Ethic and the Spirit of Capitalism, by Stephen Kalberg”, The Journal of Politics, Vol. 64, No. 4, (Nov. 2002), p. 1242.

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vida, Weber menciona uma “inversão da ordem, por assim dizer, natural das coisas”6. Os indivíduos se tornaram meios de um sistema econômico que nem sequer atende às finalidades humanas e individuais dos mesmos. O autor considera ainda que o “motor” do primeiro processo que descrevíamos acima, a dedicação de si mesmo ao trabalho profissional, representa uma segunda irracionalidade, precisamente se tivermos em conta o “ângulo dos interesses pessoais puramente eudemonistas”7. A terceira irracionalidade, por sua vez, aparece no ponto de partida, na causa “ética” da aparição do espírito do capitalismo. Mais adiante, veremos que esta irracionalidade surge precisamente na consideração da vocação profissional como a única atividade capaz de agradar a Deus. Existem, assim, várias camadas de complementariedades e de jogos entre racionalidades (formal, abstrata e quantitativa) e irracionalidades (material, concreta e qualitativa) que levaram à formação do “espírito” do capitalismo, a base psicológica necessária para o desenvolvimento do sistema capitalista. Esta abordagem é duplamente interessante. Pelo ponto de vista da formação e da evolução do capitalismo, ela sugere a combinação de elementos e forças que podem ser contraditórios entre si. Do ponto de vista epistemológico, Weber apresenta uma abordagem crítica e radical, na medida em que, como indicou Žižek, o papel do pensador crítico consiste em revelar como a alteração e, inclusive, as distorções e falsificações de uma ideia se enraízam e surgem da própria ideia8. Em seguida, analisarei algumas noções oriundas da ética protestante que, segundo Weber, por meio de vários processos de combinações e alterações formaram o “espírito” do capitalismo. II. Predestinação, vocação, ascese Segundo Weber, alguns elementos espirituais e morais inerentes ao protestantismo e, particularmente, ao calvinismo, contribuíram para o desenvolvimento do capitalismo. !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 6

WEBER, M., A ética protestante e o “espírito” do capitalismo, op.cit., pp. 46-47. WEBER, M., op.cit., p. 69. 8 ŽIŽEK, S., An evening with Slavoj Žižek July 2011, Londres, formato áudio, disponível em: https://soundcloud.com/intelligence2/an-evening-with-slavoj-zizek Acesso em: 10 abr. 2015. 7

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Estes elementos educaram os indivíduos ao longo da historia e tornaram suas consciências e condutas compatíveis com as exigências do capitalismo nascente. Weber quis identificar e demostrar como surgiram, a partir de crenças religiosas, os estímulos psicológicos necessários para conformar as condutas individuais e coletivas com as exigências e os pressupostos iniciais do capitalismo emergente. Utiliza, inspirando-se em Goethe, a expressão “afinidades eletivas” para descrever o jogo de influencias recíprocas entre protestantismo e capitalismo, que transforma os protestantes-calvinistas em empresários capitalistas-burgueses e vice-versa9. Para tanto, insiste em três elementos oriundos da ética protestante e que parecem ter contribuído ao “espirito” do capitalismo: a predestinação, a vocação e a ascese. Estes elementos não estão separados e se enriquecem um ao outro, em suas formas e conteúdos. A seguir, analisaremos sucessivamente cada noção tendo em conta sua conexão intrínseca com as outras duas. Conforme a ética protestante, no marco da predestinação, Deus já teria escolhido aqueles e aquelas chamados/as a se juntarem a ele, em detrimento dos/as outros/as excluídos/as de sua graça. Além disso, nenhum tipo de conduta, seja individual ou coletiva, intramundana ou spiritual (penitencia, sacramentos, etc.), poderia alterar ou compreender a escolha divina. O fundamento dogmático do protestantismo é, assim, o principio da sola fide (a fé só), que despertaria “um sentimento de inaudita solidão interior do indivíduo” diante da “absoluta transcendência de Deus”10. Nesta solidão, o protestante se encontra “numa autoinspeção sistemática em que, a cada instante, enfrenta a alternativa: eleito o condenado?”11. Como consequência, a “certitudo salutatis”, no sentido de reconhecer o seu estado de graça (“serei eu um dos eleitos?”) se tornou um dever12. Weber indica que a vontade de “certificar seu estado de graça” é uma questão central para toda religião não sacramental – seja ela o budismo, o jainismo13. Dentro da Reforma - e, segundo Weber, em toda religiosidade prática - a comprovação do estado de graça, se expressa de duas formas. Por um lado, o luteranismo se estruturava a partir de uma “unio mystica” com Deus, ou seja !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 9

WEBER, M., A ética protestante e o “espírito” do capitalismo, trad. de José Marcos Mariani de Macedo, Revisão de Antônio Flávio Pierucci, Companhia das Letras, 14ª reimpressão, São Paulo, 2014, p.126. 10 WEBER, M., op.cit., pp. 95 e 103. 11 WEBER, M., op.cit., p. 105. 12 WEBER, M., op.cit., p. 100. 13 WEBER, M., op.cit., p. 213.

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a partir da procura de uma penetração real com a divindade, mantendo, em nível particular, sentimentos de simplicidade e humildade. Neste caso, o crente se sentia como um “receptáculo” da graça de Deus; a ação do crente nascia da fé, e essa fé se legitimava pela bondade de sua ação. Por outro lado, segundo o calvinismo, a certitudo salutis, não podia depender de sentimentos que são, em si, enganosos. A fé precisava, assim, se comprovar de forma objetiva, como fides efficax. O eleito é consciente de que sua conduta “se assenta numa força que nele habita para a maior glória de Deus e, portanto, desejada por Deus, operada por Deus”14. Neste caso, o crente se sentia como uma “ferramenta da potência divina”. Este estado leva o crente à vida intramundana, único espaço legitimo onde podia comprovar e desenvolver esta potência. Para Weber, esta certeza subjetiva da própria eleição será então conquistada “na luta do dia a dia”, e o “trabalho profissional sem descanso” aparecerá como o meio mais saliente para conseguir esta autoconfiança, tentando discernir e construir “sinais da eleição”15. Em outras palavras, o sucesso em uma profissão não permite obter a graça de Deus, mas se constrói como o estímulo prático suficiente para se livrar da angústia de não ser um eleito de Deus. Como indica Löwy, o anseio de detectar aqueles “sinais de eleição”, com o propósito de perder o medo de não ter a graça divina, introduz um componente relativamente irracional na conduta dos indivíduos, mas suficientemente poderoso para que se dediquem às suas respectivas profissões - trata-se do terceiro nível de “irracionalidade” que indicamos acima. 16 Este anseio será aguçado por meio de outro elemento da ética protestante, que também constitui outro estímulo psicológico decisivo para aquele “espírito” do capitalismo; a vocação (Beruf/calling). Esta noção se manifestaria, no calvinismo, como a expressão intramundana da graça divina. Com efeito, “a todos, sem distinção, a Providência divina pôs à disposição uma vocação (calling) que cada qual deverá reconhecer e na qual deverá trabalhar, e essa vocação não é, como no luteranismo, um destino no qual ele deve se encaixar e com o qual !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 14

WEBER, M., op.cit., p. 104. WEBER, M., op.cit., pp. 101-102 e 104. 16 LÖWY, M., VAN REETH, A., « Max Weber : la cage d’acier du capitalisme », Les Nouveaux Chemins de la Connaissance, Radio France Culture, 03.03.14. Disponível em : http://bit.ly/1DEvQXY Acesso em: 03 abr. 2015. 15

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vai ter que se resignar, mas uma ordem dada por Deus ao indivíduo a fim de que seja operante por sua gloria”17. A Reforma trouxe assim, segundo Weber, uma “ideia nova”; a “valorização do trabalho cotidiano no mundo”, transformando-lhe, inclusive, na maior “autorrealização moral”18. O ideal da vida monástica (como seus imperativos de praecepta e concilia) foi assim substituído por uma ideal de moralidade intramundana. Exprime da melhor forma nossos deveres intramundanos, de maneira que “o trabalho é da vida o fim em si prescrito por Deus”19. Graças ao trabalho, o indivíduo pode consolidar sua vocação e servir diariamente à glória de Deus. O ser humano deve, assim, realizar as tarefas e as responsabilidades que Deus lhe ordena. Quando compreende esta missão (ou vocação), que assume a forma de uma profissão, e que se expressa como uma ordem divina, o ser humano se coloca a serviço de Deus: “ Deus não se contenta com o fato de trabalhar, mas com a obediência nele implícita” 20. A ideia segundo a qual a vocação se exprime em uma profissão determinada, concebida como ordem de Deus, aparece assim como o meio psicológico que permite ao individuo verificar seu estado de graça. Além disso, esta vocação profissional, será construída e estimulada por meio de outra noção fundamental da ética protestante: a ascese. Um ascetismo de tipo secular foi particularmente desenvolvido pelas seitas pietistas e puritanas, reconhecendo no compromisso do trabalho e da profissão um caráter metódico e sistemático. A preguiça, a falta de vontade de trabalhar, aparecem como sintomas culpáveis de ausência do estado de graça21. Também a mendicidade e a incapacidade de se especializar numa profissão fixa eram condenáveis porque, conforme a ética Quaker, por exemplo, Deus exigia não apenas um trabalho em si, mas o trabalho racional no seio de uma profissão22. Como consequência, o ascetismo tornou possível a transformação do trabalho em um “fim absoluto em si mesmo”, numa obrigação moral que poderia ser cumprida somente por meio de um “severo domínio de si”23. A disciplina, a sobriedade e a !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 17

WEBER, M., A ética protestante e o “espírito” do capitalismo, op.cit., p. 145. WEBER, M., , op.cit., p. 72. 19 WEBER, M., op.cit., p. 144. 20 WEBER, M., op.cit., p. 199. 21 WEBER, M., op.cit., p. 144. 22 WEBER, M., op.cit., p. 147. 23 WEBER, M., op.cit., pp. 54 e 55. 18

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capacidade de concentração foram fatores decisivos para a elevação da produtividade do capitalismo nascente. Este ascetismo se construiu como uma das “técnicas de si”, usando a expressão de Foucault, cujo propósito é fazer aparecer algum saber, alguma verdade sobre si mesmo para aceitar sua renúncia. Foucault se inspira e cita precisamente Max Weber que “colocou essa questão: se queremos adotar um comportamento racional e regular sua ação, em função de princípios verdadeiros, a qual parte de si devemos renunciar? De qual ascetismo se paga a razão? A que tipo de ascetismo se deve submeter?24. Existe um ponto de convergência entre Foucault e Weber quando este último sublinha que o ascetismo (protestante) se transformou em um método racional de condução da vida, uma “abordagem do ser humano por completo” com o fim de subtrair o homem dos impulsos irracionais e naturais (status naturae) e de submeter suas ações e consciência à autoinspeção e à ponderação. Por meio deste “domínio de si”, deste autocontrole, o homem se torna capaz de “levar uma vida sempre alerta, consciente, clara (...) eliminar a espontaneidade do gozo impulsivo da vida”25. Este processo ascético aconteceria no seio da atividade profissional, precisamente porque, segundo o calvinismo, este ideal, junto com o outro “estímulo positivo” oriundo do Calvinismo - para Weber, a necessidade da comprovação da fé - não poderia se expressar fora da vida intramundana (num monastério, por exemplo) mas apenas dentro dela26. O ascetismo se tornou, portanto, um “poderoso aliado”, segundo a expressão de Weber, que apoiou a formação inicial do capitalismo. Não apenas ele elevou o senso de responsabilidade e a produtividade, mas permitiu alterar a rotina tradicional das sociedades pré-capitalistas. Assim, na medida em que o trabalho se tornou um fim em si mesmo, originou-se a nova disposição mental “durante o trabalho”, que, para Weber, resolveria

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FOUCAULT, M., « Technologies of the self » (Université du Vermont, outubro, 1982; trad. F. DurantBogaert). In: Hutton (P.H.), Gutman (H.) e Martin (L.H.), ed. Technologies of the Self. A Seminar with Michel Foucault. Anherst: The University of Massachusetts Press, 1988, pp. 16-49. Traduzido por Karla Neves e Wanderson Flor do Nascimento a partir de FOUCAULT, Michel. Dits et écrits. Paris: Gallimard, 1994, Vol. IV, p. 783. Disponível em http://bit.ly/FoucaultWeber Acesso em: 14 abr. 2015. 25 WEBER, M., A ética protestante e o “espírito” do capitalismo, op.cit., pp. 108 e 109. 26 WEBER, M., op.cit., p. 110.

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uma antiga preocupação: “como, com um máximo de comodidade e um mínimo de esforço, ganhar um salário de costume”27. A médio prazo, o ascetismo teve duas consequências notáveis na esfera social e econômica. Por um lado, o empresário burguês passa a poder dispor e explorar “trabalhadores sóbrios, conscientes e extraordinariamente eficientes”. Inclusive, Weber atribui ao “poder da ascese religiosa” uma função na alienação destes trabalhadores, fornecendo-lhes “a reconfortante certeza de que a repartição desigual dos bens deste mundo era obra especial da divina Providência, que, com essas diferenças, do mesmo modo que com a graça restrita {não universalista}, visava a fins por nós desconhecidos”28. Por outro lado, a ambição de riqueza somente era reprovável se levasse ao ócio e à preguiça. Do contrário, se ela “ (...) advém da realização do dever vocacional, ela é, não apenas moralmente lícita, mas até mesmo um mandamento”. Weber sublinha então três elementos inerentes à legitimação de uma profissão vocacional: “a utilidade de uma profissão com o respectivo agrado de Deus se orienta em primeira linha por critérios morais e, em seguida, pela importância que têm para a ‘coletividade’ os bens a serem produzidos nela, mas há um terceiro ponto de vista, o mais importante na prática, naturalmente: a ‘capacidade de dar lucro’, lucro econômico privado. Pois se esse Deus, que o puritano vê operando em todas as circunstancias da vida, indica a um dos seus uma oportunidade de lucro, é que ele tem lá suas intenções ao fazer isso. Logo, o cristão de fé tem que seguir esse chamado e aproveitar a oportunidade”29. O ascetismo racional e calculista atrelou-se perfeitamente à sobriedade própria do self-made-man burguês, nutrindo seu senso de responsabilidade e legitimando seu anseio de riqueza. A ascese frenou “o gozo descontraído das poses” - também por meio de um domínio de si30, estrangulando o consumo com uma “desobstrução da ambição de lucro” e tendo como consequência uma “acumulação de capital mediante coerção ascética à poupança”31. Enriquecer tornava-se, assim, moral e duplamente legítimo: primeiro, porque !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 27

WEBER, M., op.cit., p. 54. WEBER, M., op.cit., p. 161. 29 WEBER, M., op.cit., p. 148. 30 WEBER, M., op.cit., p. 155. 31 WEBER, M., op.cit., p. 157. 28

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poderia ser a consequência de um mandamento divino e, segundo, porque o indivíduo respondia àquele mandamento mediante a realização dos deveres (e não dos direitos) que decorriam deste estado: domínio de si, sobriedade pessoal com proibição de consumos supérfluos e excessivos, perseverando na profissão e reinvestindo os lucros. No entanto, Weber sublinha que os “efeitos de educação” da ascese cristã chegaram à plenitude de sua eficácia quando ultrapassaram sua dimensão religiosa, conectando-se com a virtude utilitária e profissional. Concluído seu o papel formador de consciências, a ascese se transformou na “moralidade intramundana”, dando lugar à “boa consciência” do empresário burguês. Weber descreve esta consciência como “farisaicamente boa”, como um “travesseiro macio” que legitima não somente a vocação para o lucro, mas também a exploração das massas trabalhadoras (com o consentimento daquelas)32. III. “A rígida crosta de aço” Weber apresenta uma dupla abordagem do capitalismo contemporâneo. Primeiro, rompendo com sua neutralidade axiológica, o descreve como uma fatalidade. Assim, é uma “rígida crosta de aço”, tendo Parsons traduzido erroneamente a expressão original “Stahlhartes Gehäuse”, como “jaula de ferro”. Por meio desta alegoria, Weber demonstra sua visão crítica e pessimista sobre o presente e o futuro das sociedades modernas e ocidentais. Com esta imagem, o capitalismo se torna um destino trágico, sem porta de saída, revelando33 que aquela “rígida crosta” foi edificada, mais especificamente, pelo poder “crescente e, por fim, irresistível” que os bens exteriores do mundo passaram a exercer sobre os seres humanos34. Estes bens fazem referência ao ganho, e ao conjunto das forças técnicas e econômicas que determinam “o estilo de vida de todos os indivíduos que nascem dentro dessa engrenagem”. O capitalismo redefiniu não somente a vida dos indivíduos, mas também, e principalmente, a própria natureza humana: entende-se que estes bens não mais se tratem de um “leve manto”, como poderia exigir o protestante, mas de uma “rígida crosta de aço”. Enquanto a imagem equivocada da “jaula” limita-se somente ao !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 32

WEBER, M., A ética protestante e o “espírito” do capitalismo, op.cit., pp. 160-161. LÖWY, M., La Cage d’Acier. Max Weber et le marxisme wébérien, Stock, Paris, 2013, p. 72. 34 WEBER, M., op.cit., p. 165. 33

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sentido de liberdade individual, referindo-se apenas a determinadas potencialidades humanas incapazes de se desenvolver, Weber, por meio da alegoria da “crosta”, se refere a uma reconstituição quase orgânica do ser humano, que não é imposta de fora, mas é parte da sua natureza e traduz sua experiência imediata de existência35. Assim, a rígida crosta não é feita de ferro, elemento natural, mas de aço - material de fabricação humana, composto de ferro e carbono. Trata-se, por fim, de metal rígido e flexível - características semelhantes às do capitalismo contemporâneo. A crosta teria transformado a própria natureza humana, removendo-lhe a liberdade, a inteligência e os sentimentos - características que, para Weber, constituiriam seu ideal humano, renascentista e universalista – tornando o homem um ser passivo e medíocre, figura simbolizada pelo “último homem” de Nietzsche e utilizada por Weber para descrever a atual situação. O segundo ponto que se pode destacar é a criação de uma dinâmica interna do capitalismo, que já não dependeria de um “espírito” religioso e ascético para se desenvolver. Todas as energias dos indivíduos, libertadas da doutrina da predestinação, se voltariam agora para consolidar o capitalismo. Weber nota, assim, que se “o puritano queria ser um profissional, nós devemos sê-lo”. O capitalismo “vitorioso” não precisaria se justificar agora por meio de fundamento metafísico, ético ou religioso, e a “ambição de lucro” passaria a se associar a outros tipos de elementos, estritamente mundanos, como, seguindo o exemplo de Weber, as paixões agonísticas e de carácter “esportivo” nos Estados Unidos. Contudo, quando o autor sublinha que este “espírito” religioso se salvou da crosta, questiona “quem sabe definitivamente?”, deixando clara a possibilidade de retorno deste espírito, sob outras modalidades e condições. Assim, escreve: “ninguém sabe ainda quem no futuro vai viver sob esta crosta e se ao cabo desse desenvolvimento monstro hão de surgir profetas inteiramente novos, ou um vigoroso renascer de velhas ideias e antigos ideais, ou – se nem uma coisa nem outra – o que vai restar não será uma petrificação mecânica, arrestada como uma espécie convulsiva de autossuficiência”36. Mais adiante, veremos que a ética budista parece reintroduzir o espirito ascético e religioso na “rígida !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 35

BAEHR, P., “The Iron Cage and the Shell as Hard as Steel: Parsons, Weber and the Stahlhartes Gehäuse Metaphor in The Protestant Ethic and the Spirit of Capitalism" , History and Theory, Vol. 40, No. 2 May 2001, p. 164. 36 WEBER, M., A ética protestante e o “espírito” do capitalismo, op.cit., p. 166.

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crosta”, ativando antigos ideais e tornando mais legítima e eficiente a máquina capitalista. Ela parece cumprir a formidável tarefa de articular e tornar compatíveis três possíveis tendências (novos profetas, retornos a antigos valores, “petrificação mecânica”) que Weber imaginava para o futuro. Em sua obra O medo à liberdade de 1941, Fromm desenvolvia o argumento weberiano e se perguntava como o ser humano tinha conseguido se convencer a submeterse à maquina econômica que ele mesmo havia construído. Como Weber, Fromm sublinhava a relevância da ética protestante, e de seu ascetismo, na preparação e na formação psicológica desta submissão: na medida em que o ser humano se tornou apenas um meio para alcançar a glória de Deus – que não representava nem amor, nem justiça – ele estaria suficientemente preparado, sentindo-se psicologicamente insignificante, para se tornar um servidor da máquina econômica. A análise de Fromm buscava oferecer uma explicação à última tendência para o futuro, apontada por Weber, ou seja, a autossuficiência dos últimos homens dentro da petrificação mecanizada do capitalismo. Contudo, esta explicação não esclarecia o aparente paradoxo: “como podemos reconciliar o fato dele ter se tornado objetivamente escravo de fins que não eram seus, e, no entanto, subjetivamente se julgou motivado por seu interesse próprio?”37. Para resolver esta aparente contradição, Fromm manteve implicitamente a abordagem weberiana sobre os estímulos psicológicos necessários ao “espírito” do capitalismo, e fez uma distinção entre duas noções: o amor e o egoísmo. O amor genuíno seria aquele relativo à sua própria pessoa, e é oriundo de uma segurança interior. Decorre da capacidade para afirmar “minha própria vida, felicidade, crescimento e liberdade”,38 ou seja, o que Fromm chama de “liberdade positiva” (que corresponde a todas as potencialidades do eu verdadeiro). O egoísmo, ao contrario, seria o resultado da supercompensação para a carência de um amor por si mesmo, entendido como autoestima, oriunda da frustração decorrente da impossibilidade de desenvolver todas as potencialidades inerentes à própria pessoa. Por conseguinte, conclui Fromm, “o egoísmo é

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FROMM, E., O medo à liberdade, trad. de Octavio Alves Velho, Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1980, p. 97. As cursivas são minhas. 38 FROMM, E., O medo à liberdade, op.cit., p. 99.

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a cobiça que se radica na frustração do eu verdadeiro e cujo objeto é o eu social”, entendido como a “função social objetiva do homem na sociedade”39. É por meio deste processo que a função social do ser humano, leia-se; seu trabalho, passa a ser a única dimensão onde ele pode - e deve - exprimir seu egoísmo, considerando que o individuo moderno acredita realizar seus próprios objetivos (ambição de lucro) servindo a interesses alheios e superiores. A abordagem weberiana, desta forma, se prolonga em Fromm: por um lado, a origem (Weber) e o desenvolvimento (Fromm) do capitalismo podem ser explicados a partir de fenômenos psicológicos e individuais - a ascese para Weber, a carência de amor para Fromm. Por outro lado, ambos autores insistem em uma alteração (a “rígida crosta” para Weber, e um “eu enfraquecido, reduzido a um segmento do eu total”, para Fromm) de uma suposta natureza humana original, definida por ideais de liberdade e de sentimentos genuínos. A corrupção e alienação do ser humano pela sociedade não é um tema novo e já foi tratado, como se sabe, por Rousseau no século XVIII. Contudo, convém ter em conta a resposta e a explícita crítica de Berlin às ideias de Fromm, alguns anos mais tarde (1958), em particular, ao seu conceito de liberdade positiva. Segundo Berlin, falar de uma liberdade positiva que se desenvolveria a partir de um suposto “ego verdadeiro” poderia levar a legitimar a intervenção de uma “entidade suprapessoal” que vai controlar e disciplinar os desejos e as paixões dos indivíduos. Em outras palavras, as teorias políticas da autorealização permitiria que os seres humanos fossem manipulados para que atinjam determinados fins40. Entre as entidades suprapessoais, Berlin menciona como exemplos “um Estado, uma classe, uma nação, ou a própria marcha da história”. Contudo, a situação contemporânea mostra que uma outra nova entidade se encarrega de incitar o desenvolvimento do “ego verdadeiro” dos indivíduos; trata-se da esfera econômica, por meio de sua ideologia neoliberal. Assim, e como veremos adiante, o capitalismo atual se baseia, precisamente, em múltiplas incitações para transformar sua existência na realização de sonhos pessoais e na transformação de suas paixões em profissão.

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FROMM, E., O medo à liberdade, op.cit., p. 100. BERLIN, I., “Dois conceitos de liberdade” em Quatro ensaios sobre liberdade, pp. 142-145.

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IV. O agente neoliberal Foucault sublinha que, entre as características do neoliberalismo, encontra-se o retorno do homo oeconomicus, concebido como “empreendedor de si mesmo” (entrepreneur de lui même), ou seja, percebendo-se como o seu próprio capital, seu próprio produtor, sendo ele mesmo a base de seus ingressos. Este retorno implica, segundo Foucault, na reintrodução do “trabalho”, do ponto de vista qualitativo, no campo das análises econômicas, noção que era tratada somente de forma quantitativa pelos economistas “clássicos”41. Foucault tem razão ao falar do “retorno” do trabalho, na medida em que sua vinculação com a economia capitalista foi o tema principal de Weber. Além disso, vimos que Weber estabeleceu uma dupla conexão entre trabalho e capitalismo: primeiro, partiu da premissa segundo a qual o capitalismo se teria se desenvolvido por meio de um processo caracterizado principalmente pela transformação da profissão em uma vocação/missão. Segundo, e para explicar este processo, quis demostrar como as subjetividades inicialmente moldadas pelo protestantismo, foram voltadas para a ascese prática que encontrou, no exercício de uma profissão, o melhor âmbito para se exprimir. Na atualidade, a nível acadêmico e científico, a ausência de um consenso e de abordagens claras sobre o significado político e econômico do neoliberalismo, contrasta com uma variedade de perspectivas que, desde a filosofia crítica, passando pela antropologia e pela sociologia, parecem concordar sobre as principais características do agente neoliberal contemporâneo. Esta constatação poderia, implicitamente, dar razão a Foucault, dado que as teorias neoliberais se interessariam, acima de tudo, pelas condutas dos indivíduos em determinadas circunstancias42, e, assim, pelos tipos de comportamento que eles adotam em função das exigências do mundo laboral.

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FOUCAULT, M., Naissance de la biopolitique, pp. 231-233. “Becker on Ewald on Foucault on Becker”. American Neoliberalism and Michel Foucault’s 1979 Birth of Politics Lectures, Institute For Law and Economics Working Paper No. 614 (2D series). Public Law and Legal Theory Working Papers No. 401, The Law School of The University of Chicago, october 2012, p. 11. Disponível em: http://bit.ly/BeckerFoucault Acesso em: 17 abr. 2015

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Ainda, e trata-se agora do ponto que gostaria de ressaltar nos argumentos seguintes, as abordagens acerca do neoliberalismo, que veremos mais adiante, parecem, para além de certas reconstruções e nuances, manter e desenvolver o marco de pensamento weberiano sobre o “espírito” do capitalismo. Ou seja, partem primeiro das exigências contemporâneas do capitalismo; depois, identificam as novas características que deveriam ser desenvolvidas pelos indivíduos para responder às exigências “neoliberais”; e em terceiro lugar, supõem a necessidade de despertar “estímulos psicológicos” fora da esfera econômica e a partir de âmbitos que não visam explicitamente à ambição de lucro. Uma hipótese parece então se desenhar: as epistemologias que surgem das abordagens contemporâneas sobre o agente neoliberal, continuam se baseando na epistemologia weberiana sobre o capitalismo, Em seu livro, L’homme économique. Essai sur les racines du néolibéralisme (2007), [O homem económico. Ensaio sobre as raízes do neoliberalismo] Christian Laval tem como ponto de partida a ideia segundo a qual o capitalismo desnormalizaria as subjetividades e alteraria o conjunto dos vínculos sociais de acordo com dois princípios: a utilidade e a satisfação dos interesses individuais. O desenvolvimento de um novo tipo de indivíduo ultrapassaria a esfera econômica e se voltaria para conjunto dos relacionamentos sociais. O indivíduo neoliberal surgiria não tanto da economia política, mas das relações sociais com seus valores inerentes. Seria, inclusive, modelado e antecipado por aquelas relações sociais e seria igualmente a “projeção imaginária que desenvolve uma literatura heterogênea muito além da única ciência da economia” 43 . Como Weber, Laval desloca a formação das subjetividades necessárias para o capitalismo da esfera apenas econômica para outros âmbitos que se situam fora desta esfera. Segundo o autor, a antropologia neoliberal seria baseada em uma determinada normatividade, fazendo com que os indivíduos “se governem o máximo possível eles mesmos”, na medida em que cada um seria “capaz de medir por si mesmo o que é mais vantajoso fazer e adquirir”. Além disso, todas as instituições sociais (família, educação, emprego, Estado) tornar-se-iam “agências reguladoras de interesses”, cujo propósito seria de ordem “biopolítica” e de maximizações coletivas. A noção de “interesse” teria passado a ser o critério mais importante na representação de si e na !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 43

LAVAL, Ch., L’homme économique. Essai sur les racines du néolibéralisme, Gallimard, NRF Essais, Paris, 2007, pp. 322-323.

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justificação dos vínculos sociais. Vários ramos das ciências sociais e humanas, para além das teorias econômicas “liberais”, partiriam de uma concepção do ser humano reduzido a uma “máquina de calcular”, cuja conduta seria regulada e antecipada pelos distintos dispositivos atuais44. Este ideal de cálculo coloca o indivíduo diante de uma série de alternativas, obrigando-o a escolher entre as supostas melhores opções possíveis para ser capaz de atingir sua felicidade e de realizar-se a si mesmo. Esta liberdade de escolha, baseada na legitimidade e na primazia do juízo individual, levaria, inclusive a descartar a necessidade de uma vigilância abusiva do poder. Com efeito "a autodisciplina é o segredo do eu que se responsabiliza pela margem de escolha e o âmbito de espontaneidade que o sistema social lhe deixa"45. Numa perspectiva similar, Boaventura de Sousa Santos descreve o princípio de "autonomia" como uma "normatividade apolítica", porque se constitui como a base mesma das relações de poder dominantes na nossa sociedade, forçando os indivíduos a serem autônomos e legitimando a sociedade a abandonar aqueles que fracassam no exercício desta autonomia46. Renata Salecl aprofunda esta abordagem e revela como nossa obsessão pela liberdade de escolha, se torna uma obsessão individual que impede mudanças sociais e politicas relevantes47. O indivíduo econômico contemporâneo seria, assim, uma "empresa de si" com duas características específicas e complementares. Seria, por um lado, o “único gestor de sua vida", capaz de gerir seus prazeres, penas e desenvolver suas competências físicas, psicológicas e emocionais. Por outro lado, seria o "empreendedor de si mesmo": inspirando-se do management, o homo oeconomicus neoliberal, forçando-se para definir seus objetivos pessoais, a partir do seus próprios recursos. De acordo com esta abordagem, o ser humano se consideraria como um ser em permanente construção, que cultivaria sua responsabilidade diante dos riscos que enfrenta, com o objetivo de realizar-se a si mesmo.

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LAVAL, Ch., L’homme économique…, op.cit., pp. 325-326. LAVAL, Ch., L’homme économique…, op.cit., p. 327. 46 BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS, B., Se Deus fosse um activista dos direitos humanos, Almedina, Coimbra, 2013, p. 7 47 SALECL, R., The Tyranny of Choice, Profile Books, London, 2011. 45

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Uma abordagem semelhante a de Laval aparece no trabalho de Ilana Gerhson sobre a noção de "Neoliberal Agency" (2011). A autora também define o neoliberalismo como um projeto que transformaria as organizações político-sociais, as relações humanas, segundo modalidades particulares. Neste sentido, os indivíduos seriam levados a construir o seu "eu" como uma empresa ("self as business"), desenvolvendo a capacidade de distanciarse reflexivamente de si mesmo48.Considerando-se um "conjunto flexível de competências", o individuo poderia então, segundo Gerhson, administrar-se como uma empresa49. A liberdade de escolha se consolida como uma estrutura individual consciente e responsável que pondera as oportunidades, os bens e os serviços disponíveis, e negocia como os outros agentes, percebidos como parceiros ou competidores 50 . Além disso, a capacidade de escolha somente pode adquirir um significado quando se exprime na capacidade de enfrentar riscos (risk taker). Assim, as estratégias neoliberais premiam o sucesso dos sujeitos em função das suas capacidades para gerir as consequências que resultam das “suas” decisões51. Na medida em que seria o neoliberalismo baseado na identificação e no desenvolvimento das diferentes competências dos indivíduos, com o fim de maximizar sua capacidade de escolha, o "expert" aparece, para Gerhson, como o profissional capaz de ajudá-lo a adquirir e desenvolver estas habilidades e competências. Ensina-o, a partir de uma abordagem managerial, a gerir seus " fracassos" pessoais52. Gerhson observa, ainda, que a distribuição dos riscos e das responsabilidades oriundos das alianças entre os diferentes atores, é realizada pelo direito. Este se teria tornado, para e pelo neoliberalismo, no instrumento de regulação das relações sociais. Esta regulação jurídica e normativa teria, inclusive, a vantagem de ignorar as complexidades da organização social. Com efeito, todas as pessoais jurídicas e morais são contempladas num mesmo plano de igualdade como entidades corporativas (commensurate corporate entities), fenômeno que levaria à neutralização da organização social e das diferenças de escala53. Gershon sublinha que este processo de homogeneização dos atores evidenciaria e, simultaneamente, geraria uma !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 48

GERSHON, I., “Neoliberal Agency”, Current Anthropology, Vol. 52, No. 4 (August 2011), p. 539. GERSHON, I., op.cit., p. 546. 50 GERSHON, I., op.cit., p. 540. 51 Ibid 52 GERSHON, I., op.cit., p. 542. 53 GERSHON, I., op.cit., p. 543. 49

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fraqueza estrutural no projeto neoliberal; sua incapacidade para propor e desenvolver orientações morais prioritárias54. Outras abordagens se interessam pelas condições econômicas e sociais que legitimam o desenvolvimento da concepção do ser humano como "empresa de si mesmo". Assim, Maurizio Lazzarato, em La Fabrique de l'Homme endetté. Essai sur la condition néolibérale [A fábrica do homem endividado. Ensaio sobre a condição neoliberal] de 2011, sublinha que esta visão do ser humano se desenvolveu em um contexto de precarização e instabilidade econômicas, caracterizadas pela deflação salarial e por uma economia do endividamento. Os indivíduos devem agora "assumir" os riscos e os custos que as empresas e o Estado tentam passar para a sociedade. Não se trata somente de criarse como uma "empresa individual" afim de se tornar um "empreendedor de si mesmo", mas também, de administrar sua empregabilidade, suas competências, suas dívidas, a redução do seu salário e de seus recursos e a diminuição dos serviços sociais55. Esta situação impõe, segundo Lazzarato, e como defendeu Gershon, uma multiplicação de intervenções especializadas relativas ao "trabalho sobre si" - coaching para os funcionários das categorias sociais superiores, acompanhamento obrigatório e pessoal para os trabalhadores pobres e os desempregados, e expansão das técnicas espirituais e psicológicas de "cuidado de si"56. Para Lazzarato, e desde a crise financeira de 2008, o capitalismo teria alterado suas narrativas épicas e otimistas sobre a sociedade do conhecimento e a criatividade dos empreendedores. Doravante, "a população deve encarregar-se de tudo o que o sistema financeiro, as empresas, e o Estado de bem-estar terceirizam para a sociedade"57. Da mesma maneira que Laval, Sousa Santos, Salecl e Gerhson percebem na “tirania” da liberdade de escolha um dispositivo de controle do indivíduo por ele mesmo, disciplinando e administrando suas competências pessoais, Lazzarato observa que esta liberdade se !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 54

GERSHON, I., op.cit., p. 546. Como exemplo, o sinopse do primeiro episódio do documentário da estação de televisão Arte sobre “As classes medias” (2015), conclui-se com as palavras seguintes: « Fragilizados pela crise, todos concebem estratégias para sair dela” (“Fragilisés par la crise, tous échafaudent des stratégies pour s’en sortir »). Disponível em http://bit.ly/ClasseMoyenne Acesso em: 28 abr. 2015. 56 LAZZARATO, M., La Fabrique de l’Homme endetté. Essais sur la condition néolibérale, Ed. Amsterdam, Paris, 2011, p. 75. 57 Ibid 55

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baseia, igualmente, em uma "colonização do eu freudiano pela economia", vigiando a produtividade de todo agente. A consolidação do homo oeconomicus como "empresa de si" parece desenvolver-se, como insistimos, em um contexto de instabilidade e de precarização do trabalho, do aumento das desigualdades socioeconômicas entre os mais ricos e os mais pobres, e de uma fragmentação do corpo social58. Neste contexto, ser uma "empresa de si" equivale a imporse uma autodisciplina relativa ao desenvolvimento de suas habilidades nas várias esferas da existência 59 , podendo ainda gerar, de forma provisória, um estímulo motivacional necessário, ausente na maioria dos funcionários60. David Graeber comentava, em 2013, com humor e provocação, que a terciarização das economias havia gerado a criação dos "Bullshit jobs" [empregos de merda]. Futuramente, os indivíduos se resignariam com empregos que frustrariam seus sentimentos de realização profissional, oprimindo-lhes com tarefas das quais não compreendem o significado e nem a utilidade61. Esta perda de senso e de tempo foi, por exemplo, comprovada entre os diretores executivos na França. De acordo com um estudo recente, 30% de seu tempo profissional seria dedicado à gestão de informações de tipo "relacional" (por exemplo, e-mails de grupo, seguimento de reuniões) ou seja, uma gestão que não demanda tratamento ou resolução deste tipo de informação. Além disso, esta sobrecarga informacional (ou “Infobesidade”) teria como consequência uma queda de mais de um terço da produtividade desta categoria profissional62. Este contexto poderia fazer eco ao fenômeno de "bioderregulação" descrito por Jonathan Crary, que envolve os indivíduos numa "continuidade constante" de

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Veja por exemplo, CRÉDOC, “L’évolution du bien-être en France depuis 50 ans”, Cahier de Recherche, Déc. 2012 e particularmente as pp. 108 e seg. Disponível em http://bit.ly/CREDOCFrance . Acesso em: 20 abr. 2015 59 Veja como exemplo desta tendência GLEI, J (ed.), Manage your day-to-day: Build your routine, Find your focus & Sharpen your creative mind, Amazon Publishing, 2013. 60 Sobre a pouca motivação profissional dos funcionários e empregados franceses, consultar FRANCE INFO, “Les Français de plus en plus démotivés au travail”, 2014. Disponível em: http://bit.ly/motivationFR Acesso em: 23 abr. 2015. 61 GRAEBER, D., “On the Phenomenon of Bullshit Jobs”, Strike! Magazine, 17.08.13. Disponível em: http://bit.ly/GraeberStrike Acesso em: 29 abr. 2015. 62 SAUVAJOL-RIALLAND, C., Infobésité, Ed. Vuibert, Paris, 2013 e FRANCE INFO, « Un monde d’idées », 03.02.15. Disponível em http://bit.ly/Infobésité Acesso em: 29 abr. 2015.

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solicitações materiais e informacionais63. Assim, o capitalismo atual exigiria dos indivíduos uma feroz disciplina produtiva e, simultaneamente, solicitaria permanentemente sua atenção (internet, aplicativos, televisão) provocando uma queda da produtividade individual e, ainda mais grave, uma erosão das relações humanas e sociais. Neste contexto, a "empresa de si" aparece como uma solução oportuna, na medida em que responsabiliza cada indivíduo pelo tempo que ele dedica a uma atividade (profissional ou não). A “autoadministração permanente” poderia, inclusive, constituir na atualidade uma vivência mais visível do individuo sob (e dentro) a “rígida crosta de aço”. Como indica Crary, nosso trabalho obrigatório de “auto-management” nos impõe uma “uniformidade inelutável” por meio de dispositivos tecnológicos que controlam e estimulam nossas condutas individuais64. Ser uma “empresa de si mesmo”, permite também mitigar e, inclusive, neutralizar, como uma "falsa consciência", o sentimento de se ser uma "máquina" servindo a outros interesses. Tornar-se uma "empresa de si" constitui um dispositivo e um estímulo psicológico que convence os indivíduos a encontrar em uma profissão (atual ou futura) a possibilidade de realizar-se a si mesmo, buscando sua "verdadeira" vocação. V.

“Follow your heart and your intuition”

O objetivo consiste em desmascarar a construção das subjetividades neoliberais que teriam como propósito legítimo e aparente o bem-estar e a autonomia individual, mas cujos resultados poderiam ser, para a maioria dos indivíduos, a frustração e a culpa. Pode-se identificar as estratégias atuais e típicas daqueles e daquelas que se encaminham para esta "empresa de si" e a transformação de seus "sonhos" em profissões. O que gostaria particularmente de ressaltar são as estratégias de resiliência, inventadas por estes atores, que resultam das contradições entre, por um lado, a injunção contemporânea de "tornar-se si mesmo" e realizar-se profissionalmente e, por outro, as dificuldades reais e econômicas. !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 63

LIBÉRATION, “Johnatan Crary: Le capitalisme crée un état d’insomnie généralisé », 20.06.14. Disponível em: http://bit.ly/LibeCrary Acesso em: 28 abr. 2015. 64 CRARY, J., 24/7. Late Capitalism and the Ends of Sleep, VersoBooks, London, 2014, consultado em na sua versão francesa, 24/7. Le Capitalisme à l’assaut du sommeil, trad. de G.Chamayou, Ed. Zones, Paris, pp.57 e 58.

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A primeira estratégia poderia referir-se ao que chamaríamos, de forma certamente resumida, de desenvolvimento de um "espírito de comunidade". A segunda estratégia , ao contrário, parece basear-se no desenvolvimento da própria mente. Adiante, apresentarei ambas tendências: a primeira, referindo-se a novos modos de produção supostamente mais sociais e "colaborativos"; a segunda, à recuperação da meditação budista no seio da empresa neoliberal. Em relação à primeira tendência, partirei de um estudo de 2014, “Public brands and the entrepreneurial ethics” [Marcas públicas e ética empreendedora] de Adam Arvidsson, relativo ao comportamento de alguns trabalhadores independentes (freelancers) na "economia do conhecimento e da informação". Segundo Arvidsson, estes funcionários estariam nada menos do que construindo uma nova ética, mais social e solidária. Esta ética levaria, inclusive, a uma profunda alteração da abordagem estritamente individualista que estrutura a conduta do agente neoliberal. Até então, especialmente neste setor de trabalho, os atores elaboravam estratégias como a criação e a difusão de sua “marca pessoal” (personnal branding). Utilizavam-se de diversas técnicas de marketing para gerir sua identidade e notoriedade na internet, a fim de conseguir um emprego e de se inserir em outros projetos. Arvidsson observa o cinismo latente e inerente a este tipo de comportamento, que exige que cada um se torne si mesmo e cultive suas qualidades próprias, a partir de métodos gerais e abstratos que pretendem condicionar as competências de todos. Cada um deve encontrar e vender sua autenticidade, conformando sua conduta com valores abstratos como "sucesso, confiança, vontade, empatia, compromisso, curiosidade, interesse, criatividade, etc."65. O indivíduo deve, portanto, se destacar e ser diferente, mas, simultaneamente, ser compatível com todos os demais. Para afastar e dissipar a possibilidade do cinismo, o indivíduo busca motivar-se de forma constante, repetindo, por exemplo, mantras de autoajuda (self-help mantras) com o fim de tranquilizar-se sobre suas qualidades pessoais e assegurar-se acerca de seu futuro sucesso. Contudo, segundo Arvidsson, estes freelancers optariam hoje em dia por outra estratégia na elaboração das suas respectivas "marcas pessoais". Este setor da economia seria, !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 65

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ARVIDSSON, A., “Public brands and the entrepreneurial ethics”, ephemera, volume 14(1), 2014, p. 120.

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segundo o autor, cada vez mais instável e precário, exigindo dos atores implicados atitudes empreendedoras diferentes das estratégias clássicas e simplesmente individualistas do “agente neoliberal”. Com efeito, cada um passaria a desenvolver comportamentos de intercâmbio e de partilha na vida profissional e nas redes sociais com o fim de obter uma avaliação positiva por parte de seus pares. Este jogo de reconhecimento mútuo seria o processo por meio do qual os freelancers adquiririam um valor que lhes permitiria ter acesso a projetos lucrativos. Em vez de desenvolver sua “marca pessoal" a partir de um código ético baseado exclusivamente no interesse pessoal, na realização de si e na rentabilidade, estes agentes construiriam, segundo Arvidsson, uma "nova ética do trabalho" assentada em critérios como o respeito, a partilha dos saberes e das competências, e a preocupação em ser e em apresentar-se como um "agente virtuoso". Arvidsson faz, inclusive, referência a uma "entrepreneurial solidarity" subjacente à "neoliberal agency" definida por Gershon (que ele mesmo comenta) e que poderia redirecionar a economia de mercado para um tipo de concorrência mais equilibrada66. Estaríamos presenciando uma "ressocialização" do agente neoliberal por meio de formas embrionárias de solidariedade que seriam, simultaneamente, requeridas e avaliadas pelo mercado. Arvidsson parece, assim, confiar na possibilidade de uma dissociação a médio prazo entre a ética individual e egoísta do agente neoliberal, e a ética comunitária e virtuosa do "empreendedor solidário". Esta última teria uma potencialidade de emancipação que se realizaria por meio do aumento quantitativo e qualitativo dos intercâmbios entre os atores comprometidos neste processo. Contudo, a visão de Arvidsson carrega uma certa ingenuidade, na medida em que parte da premissa de poder "mudar o sistema a partir de dentro". Convém observar que os novos e supostos comportamentos "virtuosos e solidários" que ele descreve não têm como objetivo questionar o desenvolvimento do capitalismo. São somente estratégias que permitem a alguns atores ter acesso a projetos, empregos e recursos cada vez mais escassos e concorridos. O caráter supostamente "subversivo" deste tipo de comportamento parte de uma premissa errada; da existência de um potencial subversivo no seio das práticas "comunitárias" e "virtuosas" que poderiam reformar e se emancipar das condutas neoliberais majoritárias (individualismo, !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 66

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ARVIDSSON, A., “Public brands and the entrepreneurial ethics”, op.cit., p. 122.

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rentabilidade a curto prazo, consumo). Esta visão romântica se dissolve tendo em conta, por exemplo, a seguinte observação de Žižek: “o capitalismo conseguiu se desenvolver por meio da consolidação das democracias ocidentais, liberais e burguesas. Hoje, presenciamos um divórcio entre aqueles dois fenômenos na medida em que o capitalismo se desenvolve com mais força em países como China, Índia e Singapura, que mantêm seus valores tradicionais e seus sistemas autoritários”. Poderíamos tentar aplicar esta observação ao novo comportamento "virtuoso" dos freelancers do mundo ocidental que mencionávamos. A "nova ética" que estaria sendo por eles edificada demonstra, na verdade, que o capitalismo é capaz de se acomodar a diferentes realidades e que exige novos valores e princípios para sua manutenção e expansão. Nesse sentido, é possível destacar três características dos comportamentos daqueles atores descritos por Arvidsson. Em primeiro lugar, a escolha e o desenvolvimento de uma "entrepreneurial solidarity" tem motivos estritamente econômicos; em um contexto de precariedade e instabilidade, ela permitiria uma melhor repartição dos recursos formais e materiais, gerando um sistema supostamente mais cooperativo. Em segundo, esta entrepreneurial solidarity aparece como um dispositivo de resiliência diante esta mesma precariedade; mitiga e reduz a exigibilidade da competência de "risk taker" do agente neoliberal, e compensa esta "perda", sublimando-a por meio de éticas coletivas que tendem para uma ressocialização dos agentes e, inclusive, para sua suposta repolitização. Por isso, na obra L'Âge du faire [A Era do fazer], 2015, Michel Lallement se interessa pelas condutas econômicas e éticas dos hackers e outros makers do setor informático67. A partir de suas observações sobre o chamado "Hacker Space" Noise Bridge de San Francisco, Lallement pretende demostrar que estas comunidades estão realizando "utopias políticas concretas", inspirando-se em ideologias anarquistas e libertárias. Assim, por exemplo, construiriam outras formas de abordar o trabalho, atribuindo-lhe um "valor em si". Com efeito, por meio de uma ética do "fazer" (o make), estes makers rebeldes criam objetos tecnológicos, bens e serviços, sem preocupação com uma rentabilidade imediata. Assumem-se como empreendedores e atores que possuem outra moral e outros objetivos políticos, pretendendo manter uma distância crítica dos imperativos de sucesso pessoal !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 67

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LALLEMENT, M., L’Âge du faire. Hacking, travail, anarchie, Seuil, Paris, 2015.

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