\"De corde tuo, ad cor tuum: A iconografia do Amor Divino sob o olhar franciscano. O caso do Convento de São Francisco da Covilhã\", Congresso Internacional Os Franciscanos no Mundo Luso-Hispânico - História, Arte e Património, Jul. 2012

September 11, 2017 | Autor: Maria Carmo Mendes | Categoria: Art History
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De corde tuo, ad cor tuum: A iconografia do Amor Divino sob o olhar franciscano. O caso do Convento de São Francisco da Covilhã. Maria do Carmo Raminhas Mendes1 IHA-FLUL/FCT [email protected]

RESUMO O uso da imagem durante os séculos XVII e XVIII para orientação das almas rumo a uma existência eterna foi objectivo constante dos mentores da espiritualidade barroca. Instigadora de emoções e devoções, apresentava arquétipos do Bem, modelos de uma existência que se prolongava para lá da finitude humana, reflexos da promessa de vida eterna. Pensar o tecto de uma capela-mor onde a temática do Amor Divino é o âmago cenográfico, numa igreja da Covilhã inscrita num extinto convento da Ordem Franciscana, como um microcosmos onde tal se verificou é perceber as formas que o objecto pictórico assume para cumprir a sua função; é perceber como uma mensagem que visa a comunicação com uma realidade que transcende é apreendida; é perceber como a imagem oferece ao crente o código que lhe permite abrir a porta para a imortalidade. ABSTRACT During the seventeenth and eighteenth centuries, the use of images was the constant purpose of mentors of baroque spirituality to guide souls and lead them to an eternal existence. Cause of emotions and devotions, it introduced exemplary models of Good, mirrors of an existence which stretched beyond the human end, reflexes of the promise of eternal life. To think the ceiling of a church in Covilhã like a microcosm where this had been verified it’s to understand the shapes that the artistic object assumes to pass on its function; it’s to understand how a message, that tends to the communication with a reality that transcends is apprehended; it’s to understand how the image offers to the believer the code which allows him to open the door to immortality. Palavras-chave: Contra-Reforma; Barroco; Pintura; Franciscanos; Coração.

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- Doutoranda do Instituto de História da Arte da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e Bolseira da Fundação para a Ciência e Tecnologia.

NOTA INTRODUTÓRIA Durante a Idade Moderna, Portugal assistiu a determinantes alterações nos campos político, religioso e social. Findo o período conturbado após a Restauração, urgia solidificar a ideia de unidade nacional em torno da militante observância católica pela qual os reinados anteriores à ocupação filipina sempre primaram: todo um país se viu então envolto num imaginário onde a identidade assente numa só fé se imiscuía directamente com os valores tridentinos que, até então, demoraram a efectivar-se nas gentes e nas mentes. O interior do país não foi excepção: para aqui foram nomeados bispos que pautassem não apenas pela defesa do espírito restauracionista, mas também que se destacassem pelo carácter borromiano defendido por Trento: no caso específico da diocese da Guarda, personagens como D. Martim Afonso de Melo, D. Frei Luís da Silva e D. Rodrigo de Moura Teles revelaramse determinantes na disseminação dos valores tridentinos e na proliferação da imagética barroca. Não se pode, neste cenário, descurar o papel dos conventos: na diocese da Guarda existia um número considerável, e destacase a presença da Ordem de São Francisco, que logo nos alvores do século XIII fez fundar dois conventos na diocese – um na Guarda e outro na Covilhã -, alicerçando assim ao longo dos séculos a sua influência na vida da região2.

O CONVENTO DE SÃO FRANCISCO DA COVILHÃ E A CAPELA-MOR O Convento de São Francisco da Covilhã foi elemento decisivo na composição dos contextos histórico, social e religioso da então vila 3. Para além de ter sido alvo de consideráveis doações régias, a população a ele acorria em exemplar devoção e com consideráveis contributos – resumindo nas palavras de Frei Manuel da Esperança, «(…) e por ser este convento de grande autoridade e estimação na villa (…).» [1] (FIG. 1). O facto de estar inscrito num local com forte presença cristã-nova majorou a sua influência, na medida em

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- De ambos, sabe-se que o primeiro a ser fundado terá sido o da Covilhã no ano de 1235, logo seguido pelo da Guarda em 1236, associando-se ambas as fundações à presença lendária dos frades Gualter e Zacarias, enviados por São Francisco à Península. 3 - A Covilhã foi elevada a cidade a 20 de Outubro de 1870, segundo decreto de D. Luís I.

que a conversão das gentes numa só fé era o principal objectivo dos tempos modernos. Nos finais do século XVII, a Covilhã era constituída por treze paróquias4, todas com igreja própria, às que se juntavam a Igreja da Santa Casa da Misericórdia e algumas capelas e ermidas; para além do Convento de São Francisco, existia também o Convento de Santo António, inscrito na Província da Soledade, de frades capuchos5 (FIG. 2). Uma metrópole do interior, que atingiu uma maior projecção nesta altura através das medidas industrialistas tomadas a cabo pelo Conde da Ericeira na dinamização da manufactura dos lanifícios, o que em muito contribuiu para o desenvolvimento da região e para a sua modernização – e que justifica o património artístico que entretanto surgiu e que hoje vislumbramos na capela-mor da Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Covilhã, antigo local de culto do desaparecido Convento de São Francisco da Covilhã (FIG. 3). Classificada como Imóvel de Interesse Público pelo decreto 1/86, DR 2 de 03-01-1986, era esta igreja parte integrante do acima referido convento franciscano, actualmente inexistente6, tendo como orago a Imaculada Conceição7. Tanto este como outros espaços arquitectónicos têm sido referidos em monografias de autores da região [2], mas em nenhuma se faz uma descrição pormenorizada do seu espólio artístico; o primeiro olhar atento para o recheio da capela-mor foi assumido por Vítor Serrão, e publicado no seu livro A Trans-Memória das Imagens. Estudos Iconológicos de Pintura Portuguesa nos Séculos XVI e XVII. No Capítulo VIII, intitulado “Propaganda e dogma na pintura barroca portuguesa: o credo imaculista e o combate à heresia num painel do Convento de N. Sra. da Conceição na Covilhã” [3], o autor principia 4

- A saber: Santa Maria, São Salvador, Santa Maria Madalena, Santa Marinha, São Tiago, São Bartolomeu, São João de Malta, São João de Mártir-in-Colo, São Paulo, São Pedro, São Silvestre, São Martinho e São Vicente. 5 - Fundado em 1533, foi totalmente recuperado e alberga actualmente as instalações da Reitoria da Universidade da Beira Interior. 6 - Em Fevereiro de 1851, após a extinção das Ordens Religiosas, foi todo o conjunto arquitectónico do Convento, incluindo a Igreja e a Cerca, comprados pelo industrial covilhanense José Mendes Veiga, que ofereceu o local de culto à comunidade e montou, no restante espaço, uma fábrica de lanifícios, onde terá instalado o primeiro “engenho” – estruturas apetrechadas de máquinas e movidas por bois – da cidade. Há notícia de um incêndio no local, a 19 de Agosto desse mesmo ano, que terá destruído todo o complexo. 7 - A diocese da Guarda foi a primeira do país a fazer juramento de defesa da Imaculada, no sínodo diocesano de 1634. Data de 1671 a confirmação da eleição da Imaculada Conceição como padroeira da terra lusa pelo papa Clemente X, e sabe-se que o Rei D. Pedro II era também extremamente devoto da causa mariana, aprovando em 1694 a Confraria dos Escravos da Senhora da Conceição, criada na sua igreja em Vila Viçosa.

alertando para o olhar desatento que os estudiosos dedicam ao património artístico covilhanense, destacando a qualidade do mesmo e desta igreja em particular, fazendo neste ponto referência a diversas fontes setecentistas que já na altura elogiavam o seu espólio. A capela-mor, o autor descreve-a «como uma verdadeira jóia de arte sacra do seu tempo» [4] (FIG. 4). O discurso imagético presente neste local é, como salienta o autor, marcado por uma forte ideologia franciscana, orientada segundo os mais rígidos ditames tridentinos. O seu conjunto é formado por um elaborado retábulo de talha Estilo Nacional, ladeado por quatro painéis onde estão representados santos da Ordem Franciscana – à esquerda, São Boaventura e o teólogo Duns Escoto, e à direita São Bernardino de Siena e Santo António de Lisboa – e é encimado por um ciclo de dez pinturas em caixotão que forram o tecto e os flancos do presbitério, sendo estas o objecto do presente estudo [5] (FIG. 5). Embora o capítulo do livro A Trans-Memória das Imagens foque uma das tábuas que ladeia a capela-mor – a do teólogo Duns Escoto -, oferece-nos informações preciosas para a compreensão da temática presente no tecto: o conjunto pictórico da capela-mor, datado pelo autor de finais do século XVII ou alvores do seguinte, assume-se como um cenário bem representativo do pensamento contra-reformista no interior do país, e as pinturas do tecto como reveladoras do nível de erudição deste convento. Fazendo referência o autor à indiscutível influência da estampa, tal veio a verificar-se pela descoberta, para esta investigação, de que as dez tábuas foram directamente inspiradas em dez das cinquenta e cinco gravuras que ilustram o livro Schola Cordis, siue, Aversi a Deo cordis ad eumdem reductio, et instructio8 (FIGS. 6 a 25), da autoria de Benedictus Jacobus van Haeften e com primeira edição em Antuérpia no ano de 1629: um manual de ensinamentos ascéticos direccionados ao coração humano. Esta descoberta veio a revelar-se determinante, como se verificará de seguida, para compreender não apenas a iconografia do conjunto mas principalmente o discurso iconológico subjacente, no âmbito da demanda catequética dos franciscanos covilhanenses.

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- Foi encontrada uma cópia na Biblioteca Pública de Évora, em latim; apresenta-se contudo com apenas uma gravura e em falta está também a folha de rosto.

No início do século XVIII, para além da capela-mor, a igreja apresentava mais dois altares colaterais, hoje inexistentes: um denominado Altar das Chagas, com a imagem do Senhor da devoção, e outro dedicado a Santo António, e duas capelas laterais denominadas por Capela dos Castros (à direita, de frente para a capela-mor) e por Capela dos Cabrais (à esquerda, de frente para a capela-mor), ainda hoje preservadas. Ambas pertencem a famílias de grande renome e influência regional e nacional: os Cabrais, históricos fidalgos de Belmonte, sendo que nesta capela repousam João Fernandes Cabral, alcaide-mor de Belmonte, e sua esposa Joana de Castro, da família dos Castro, covilhanenses nobilitados de grande influência na corte e a cujas gerações foi entregue a alcaidaria-mor da vila, sendo que na chamada Capela dos Castros jazem o marido e o filho de D. Isabel de Castro, respectivamente D. Fernando de Castro e D. Diogo de Castro9. Era na capelamor que eram sepultados os alcaides-mores da vila [6], sendo que o seu patronato estava intimamente ligado a esta família, e posteriormente à linhagem dos Viscondes de Barbacena: pelo casamento de Jorge Furtado de Mendonça, 4º senhor de Barbacena10, com Maria de Vilhena, filha única de Isabel de Castro e Aires Teles de Meneses, alcaide-mor da Covilhã, terá passado o cargo para a Casa de Barbacena, assim como a responsabilidade do patronato da capela-mor do Convento de S. Francisco da Covilhã. Pela datação do programa imagético da capela-mor, era na altura patrono o visconde Jorge Furtado de Castro do Rio e Mendonça, homem piedoso e de grande devoção: um facto de inegável importância, que adquire uma maior dimensão quando a ele se associa a presença na mesma altura de D. Rodrigo de Moura Teles [7] no bispado da Guarda. Futuro Arcebispo de Braga e personagem de destaque no contexto do Barroco português, terá sido na Guarda que a sua missão apostólica e mecenática terá sido moldada de encontro à personalidade borromiana decretada por Trento; sabe-se da sua presença na Covilhã e neste Convento, pelas palavras de Frei Agostinho de Santa Maria: «Quanto á origem, e princípios desta Sagrada Imagem, 9

- Nesta capela jaz também D. Cristovão de Castro, Bispo da Guarda e filho bastardo de D. Rodrigo de Castro, senhor de Monsanto, alcaide-mor da Covilhã e pai de D. Isabel de Castro, filha legítima. 10 - Ao seu filho, Afonso Furtado de Castro Rio e Mendonça, foi por D. Afonso VI concedido o título de 1º Visconde de Barbacena, por carta datada de 19 de Dezembro de 1671.

fazendose por mandado do Illustrissimo Senhor Bispo da Guarda Dom Rodrigo de Moura Telles, ao presente Arcebispo de Braga.» [8] e pela consulta das suas cartas pastorais e de visitação. De espírito reformador e professo jacobeu11 [9], intensa foi a sua actividade pastoral na Guarda, um apostolado vivo ao qual associou párocos, frades e inclusivamente artistas da região. Foi o caso de Manuel Pereira de Brito, pintor natural da freguesia de São Pedro, da então vila de Oliveira do Conde, bispado de Viseu: terá vindo para a Covilhã no último quartel do século XVII e casou-se em segundas núpcias com a covilhanense Maria Valente. Esteve activo entre 1689 e 1720, e com o cunhado Francisco Álvares, escultor da vila de Guimarães, terá formado uma oficina 12. Foi desta que muito provavelmente terão surgido os caixotões e pinturas que hoje vislumbramos no tecto da capela-mor: datadas entre 1699 e 1701, são o resultado deste conjunto de factores que confluíram na escolha das dez gravuras reproduzidas. Desconhece-se de onde terá provindo o livro Schola Cordis, mas certo é que a sua escolha e das imagens não foi fruto do acaso: um apelo à virtude individual como via ao Amor Eterno, através de uma viagem pelos episódios da Paixão de Cristo.

A ESCOLA DO CORAÇÃO, EM DEZ LIÇÕES DE AMOR A estrutura do esquema iconográfico mostra-nos a abrangência do conceito imitatio Christi expresso na figura do coração humano: no livro Schola Cordis efectiva-se um movimento catequético em torno do órgão que já se prolongava desde o imaginário medieval, facto que se comprova pelo número considerável de obras que foram surgindo em torno da temática (TABELA 1). O Schola Cordis foi um manual bastante difundido na Europa, com edições em alemão e castelhano; é composto por quatro livros de teor mais ascético que teológico, e as gravuras são, na primeira edição, da autoria de Boécio Bolswert. 11

- A jacobeia caracteriza-se por ser um movimento profundamente místico que defendia, como única via de perfeição, uma existência beata caracterizada pelo abandono absoluto dos costumes e vivências mundanas consideradas viciosas, doutrina que se procurava difundir por todos os homens. 12 - De toda a pesquisa que foi efectuada, é o único pintor de quem se encontram referências na Covilhã desta altura. A este facto associa-se outro que reforça ainda mais a hipótese da autoria: Manuel Pereira de Brito era irmão da Ordem Terceira de São Francisco, instalada no Convento. Foi neste sepultado, e amortalhado com o hábito franciscano.

Logo no início, van Haeften declara que o seu livro é direccionado ao ser humano enquanto ser total: «Scopus Mihi in hoc Opere non alius fuit; quam Imaginibus, oculos; versibus, aures; ipsis denique Lectionbus, animum & COR oblectare, instruere, & permovere.»13 [10]. Os quatro livros são divididos nas seguintes temáticas, pela ordem que se segue: “Praevia ad Doctrinam Cordis Introductio (trad.: “Introdução Prévia à Doutrina do Coração”), “Aversi Cordis ad Deum Conversio & Directio” (trad.: O Coração Adverso Converge na Direcção de Deus”), “Dei erga Cor humanum beneficia” (trad.: “Deus beneficia o trabalho do Coração humano”) e “Exercitatio Cordis in Christi Passione” (trad.: “Exercício do Coração na Paixão de Cristo”). Das vinte e seis estampas que ilustram o último livro, dez merecem especial destaque: aludindo a episódios específicos da Paixão de Cristo, foi essa selecção a reproduzida no tecto (TABELA 2). Como se poderá verificar pela análise da disposição das tábuas, as gravuras seleccionadas não respeitaram a ordem que consta na fonte. Antevê-se que o objectivo principal seria uma narração alegórica da Paixão de Cristo - recorrendo ao Coração enquanto símbolo universal -, temática esta não apenas cara à comunidade franciscana, mas também ao espírito jacobeu de D. Rodrigo de Moura Teles e ao seu entendimento da existência como um escadório existencial. O recurso à imagem enquanto linguagem universal fez com que esta teologia do Coração se revelasse uma catequese visual brilhante na demanda da conversão das gentes através do sentimento de piedade individual, clarificando o entendimento da vivência do indivíduo enquanto ser religioso, numa visão em que a fé de cada homem se torna numa célula de toda uma religião. O interesse crescente destes tempos na vivência do homo interior expressa-se, no tecto da igreja do Convento de S. Francisco, por Cristo humanado pelo Amor e pelo diálogo entre as personagens do Menino-Anjo e da Alma pelo qual o Coração se efectiva como veículo entre o humano e o sagrado. Este conceito é reforçado se analisadas as tipologias de representação do Coração nos livros de emblemática dos séculos XVI e XVIII que abordam a temática (TABELA 3): atendendo às três tipologias

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- Tradução: «O meu objectivo com este livro não foi outro senão aprazeirar, instruir e mover o olho através das figuras, o ouvido através do verso e a mente e o coração através das lições.».

apresentadas, depreende-se que na primeira o Coração é entendido como morada do divino, alegorizando a alma que recebe Cristo, que se deixa habitar por Ele – este é o tipo de representação que manifesta o interior do indivíduo, que revela uma espiritualidade que olha para dentro e não para fora, que reduz metaforicamente a presença do divino no humano. Na segunda tipologia é representado o Coração enquanto símbolo da revelação do Amor de Deus, purificado pelo fogo ardente do Espírito Santo ou associado à acção purgatória da Paixão de Cristo e da Cruz – simbolizando a alma enquanto lugar da manifestação de Deus. A última tipologia apresentada refere-se por inteiro ao ser humano, enquanto receptáculo de vícios e virtudes: é a que mais claramente o representa na sua totalidade, na sua relação com o mundo, colocando-o no âmago da dicotomia entre matéria e espírito – é nesta uma fórmula instigadora de discursos essencialmente ascéticos, direccionados àqueles que ardentemente procuram a resposta à pergunta “como poderei salvar-me?”. Enquanto que as duas primeiras tipologias são notoriamente de carácter objectivo, esta última personifica o sujeito – o homo interior – consciente da necessidade de alcançar Deus. Foi com este sentido que o programa imagético do tecto da capela-mor da igreja do Convento de São Francisco da Covilhã foi pensado: um discurso que fosse direccionado ao âmago do homem pecador, ao sujeito que se quer converter, que anseia salvar-se; um discurso transmissor de uma boa-nova, que nos ensina a fórmula para salvação da alma. Seguindo a sua leitura somos remetidos, em primeiro lugar, para o episódio no Jardim das Oliveiras, na tábua que se denominou de “Agonia no Getsémani” (FIG. 6) surge uma clara alusão ao episódio do Evangelho de S. Lucas, na figura do Menino-Anjo: «Cheio de angústia, pôs-Se a orar mais instantemente e o suor tornou-se-lhe como grossas gotas de sangue, que caíam na terra.» [11]. Ao invés da terra, o Sangue de Cristo é albergado no Coração dos homens à imagem do sacrifício do Cordeiro Pascal, oferecido aos fiéis em cada Eucaristia. Na segunda tábua, a que se intitulou de “A Flagelação” (FIG. 8), apresenta-nos o Coração que, à imagem de Cristo agrilhoado, se submete ao flagelo, numa alusão ao episódio do Evangelho de São João: «Então Pilatos mandou que levassem Jesus e O açoitassem.» [12]; por sua vez, a terceira tábua intitulada “O Véu de Verónica”

(FIG. 10), não sendo um episódio referido em nenhum dos Evangelhos, instiga um maior dramatismo à caminhada dolorosa de Cristo em direcção ao Calvário, proporcionando-nos uma imagem desse sofrimento o qual, durante a nossa via dolorosa, se reflecte no nosso coração. A quarta tábua, designada por “A Coroação de Espinhos” (FIG. 12), apresenta-nos o Coração coroado de espinhos, à imagem de Jesus no seu suplício: «Revestiram-n’O de um manto púrpura, e cingiram-lhe uma coroa de espinhos, que haviam tecido. Depois começaram a saudá-Lo: “Salvé, ó Rei dos Judeus!”. Batiam-lhe na cabeça com uma cana e, dobrando os joelhos, prostravam-se diante d’Ele.» [13]. A quinta representação, a que se intitulou de “Oferta de Vinho com Mirra a Jesus” (FIG. 14) alude, na sua composição e na imagem do Coração, ao episódio da chegada ao Calvário, que vem referido nos Evangelhos de São Mateus e de São Marcos: «Queriam dar-lhe vinho misturado com mirra, mas provando-o não o quis beber.»14 [14]. A sexta tábua, a que se deu o nome de “Simão de Cirene ajuda Jesus a carregar a Cruz” (FIG. 16), numa clara alusão à passagem do Evangelho de São Lucas alegorizando a Cruz no Coração representado que carrega o peso dos pecados do Mundo: «Quando O iam conduzindo, lançaram mão de um certo Simão de Cirene, que voltava do campo e carregaram-no com a cruz, para a levar atrás de Jesus.» [15]. Na sétima tábua, a que se denominou de “A Crucificação” (FIG. 18) mostra-nos o Coração que se submete aos cravos, à imagem de Cristo: «Quando chegaram ao lugar chamado Calvário, crucificaram-n’O a Ele e aos dois malfeitores, um à direita e outro à esquerda. Jesus dizia “Perdoa-lhes, ó Pai, porque não sabem o que fazem”.» [16]. “A Ressureição” (FIG. 20), nome que se deu à oitava tábua, apresenta-nos a Alma ajoelhada que ergue o Coração no qual figuram as Cinco Chagas de Cristo, imagem que se reflecte num espelho, segurado pelo Menino-Anjo: uma alegoria à Ressurreição de Cristo, pela qual se cumpre a promessa de vida eterna, sendo as Chagas a prova cabal da derrota da morte, pelo Seu sacrifício de Amor: «Jesus veio pôr-se no meio deles e desselhes: “A paz esteja convosco”. Dizendo isto, mostrou-lhes as mãos e o lado. Alegraram-se os discípulos, vendo o Senhor.» [17]. A nona representação, intitulada “A Elevação da Cruz” (FIG. 22), mostra-nos o Coração na Cruz, 14

- Era costume, naqueles tempos, dar-se esta mistura aos condenados à morte, pois inebriava a dor; Cristo, ao optar por não tomar, assumia por completo o Seu sofrimento.

sendo ambos elevados e apoiados pela Alma, numa alusão à remissão dos pecados do mundo pelo madeiro do sofrimento. Por fim, na décima tábua que se intitulou de “A Exposição da Cruz” (FIG. 24) figura a Alma ajoelhada, que segura o Coração assente no chão; o Menino-Anjo, de pé, coloca a Cruz na abertura superior do órgão: efectiva-se aqui a imagem do Cordeiro de Deus, que tira os pecados do mundo. Para além das claras alusões a passagens bíblicas, para que a leitura da mensagem se complete é necessário atentar ao texto do livro Schola Cordis, e muito particularmente ao lemma15 e à subscriptio16 que acompanham a pictura17 de cada gravura. Assim, a gravura nº 40 (FIG. 7), na qual foi inspirada a primeira tábua “Agonia no Getsémani”, apresenta-nos a seguinte legenda: «BALNEVM CORDIS, EX SVDORE SANGVINEO. Multo labore sudatum est, et non ex iuitde eâ nimia rubigo euis (Ezech. 24). Balnea, sanguine Sponsi sudore cruore, COR aegrum hic tibi quae dat paredisus, adi». Tradução: «O RECIPIENTE DO CORAÇÃO CHEIO DE SUOR DE SANGUE. (Jerusalém) é marmita enferrujada, cuja muita ferrugem não lhe pode ser tirada (Ezequiel, 24, 6). Com os banhos do sangue derramado do Esposo, o coração contrito te dará o paraíso». Em cada celebração da Eucaristia, dá-se um ritual de renovação mística onde Cristo é sacrificado e é partilhado connosco o seu Corpo e o seu Sangue; essa partilha deverá ser albergada no nosso coração, tomando-o este como o derradeiro acto de purificação e condição para acedermos à vida eterna. A isto se refere o capítulo 24 do Livro de Ezequiel, que nos fala do início do Cerco de 15

- O lemma envolve a chamada “alma” do emblema, cuja intenção é resumir textualmente o sentido da imagem. Muitos destes motes eram compostos pelos autores em redor de outras obras, mormente os clássicos e a Bíblia. 16 - Na subscriptio temos a junção dos dois elementos anteriores, consistindo em duas partes: uma em que se descreve resumidamente a pictura e outra em que se expressa uma mensagem moral ou de intenção didáctica de teor universal (é, afinal, um pequeno sermão moralizante, através do qual o autor evidencia a sua erudição). 17 - À pictura corresponde a imagem, cifra ou figura, denominada “corpo” do emblema.

Jerusalém, comparando-o a uma marmita enferrujada: «Ai da cidade sanguinária, ai da marmita enferrujada, cuja ferrugem não pode ser tirada (…). Eu queria purificar-te; mas, apesar disso, tu não ficaste purificada da tua impureza (…). Julgar-te-ão segundo o teu comportamento e segundo as tuas acções». A segunda tábua “A Flagelação” teve por base a gravura nº 42 (FIG. 9), com a seguinte legenda: «FULCRUM CORDIS. CHRISTI COLUMNA. Confirmate CORDA vestra (Jacob, 5). Non flores, non poma, meum COR debile poseit, fulciet hec tua me, Christe, columna satis». Tradução: «A FORÇA DE CRISTO ESTÁ NO SEU CORAÇÃO. Fortalecei os vossos corações (Tiago, 5, 8). O meu fraco coração não pede flores nem frutos, mas esta coluna do teu coração, ó Cristo, me basta para me dar força». No texto é descrito que o coração não deverá repousar sobre flores e frutos – os prazeres mundanos da vida – mas sim manter-se inamovível na coluna do sofrimento, como Cristo. São Tiago afirma que deveremos esperar pelo retorno do Messias no final dos tempos com paciência e resignação, fortalecendo o coração no Seu penar: «Tende, também vós, paciência e fortalecei os vossos corações, porque a vinda do Senhor está próxima» [18]. A terceira tábua, a que se associou o nome de “O Véu de Verónica”, teve por base a gravura nº 45 (FIG. 11), com a seguinte legenda: «PICTURA CORDIS EX SINDONE VERONICAE EXPRESSA. Signatũ est supnos lumen vultus tui Domine, dedisti laetitiam in CORDE meo (Psal. 4). Inspice prototypon, tenfige in sindone CORDIS. Dilecti faciem spinea pingat acus».

Tradução: «PINTURA DO CORAÇÃO, BORDADA NA TOALHA DE VERÓNICA. Resplandeça sobre nós, Senhor, a luz da tua face, pois Tu deste alegria ao meu Coração (Salmos, 4, 8). Olha o modelo na toalha do Coração. Que a agulha do espinho pinte a face do teu Amado». Esta representação mostra a imagem de Cristo gravada no coração, assim como terá ficado no véu de Verónica. Mencionando a passagem do Livro dos Salmos, onde é referida a alegria daquele que acredita no Senhor, está dito que: «Derramastes no meu coração mais alegria do que quando abundam para eles o trigo e o vinho» [19], deixando subjacente que esta exortação da confiança em Deus para lá de qualquer bem material leva a que tal sentimento de júbilo seja vivido plenamente pelo coração: ao manifestar a Sua face nele, tornamo-nos habitáculos do Amor de Cristo. A quarta tábua, a que se associou a designação de “A Coroação de Espinhos”, teve na gravura nº 44 (FIG. 13) a sua origem. Na legenda tem inscrito: «SEPIMENTUM CORDIS CORONA SPINEA. Sepiam uiam tuam spinis (Oseae, 2) Ne careat tua spina rosis, COR concolor armet. Horto arcet stygias, seps diadema feras». Tradução: «O BALUARTE DO CORAÇÃO É A COROA DE ESPINHOS. Cercarei o teu coração com espinhos (Oseias, 2, 8). Que aos teus espinhos não lhe faltem rosas, e que o teu coração, de igual modo, afaste do teu jardim os poderes infernais e a serpente se transforme em coroa». Nesta relação, o diálogo simbólico entre a Alma e o Menino-Anjo continua em torno da temática do Coração torturado: aqui, o orgão é colocado no centro de uma coroa de espinhos, numa referência à passagem do Livro de Oseias, que

alude às tentações do corpo e da alma através de uma metáfora a Israel como infiel a Javé: «É assim que a vou seduzir; ao deserto a conduzirei para lhe falar ao coração» [20]. No deserto do silêncio e da solidão, simbolizado pelo espinho na gravura, Deus sela a união mística com Israel: o espinho não será o suplício, mas sim a coroação do coração da Alma imaculada e esposa, qual Israel desposada por Deus. A quinta representação “Oferta de vinho com mirra a Jesus”, cuja fonte foi a gravura nº 46 (FIG. 15), apresenta-nos a legenda: «COR PHIALA CHRISTO SITIENTI. Dabo tibi poculũ ex vino condito (Cant. 8). Respae que lude genus offert potuia fellis. Compuncti CORDIS sed bibe sponse inerũ». Tradução: «O CORAÇÃO É O COPO OFERECIDO A CRISTO SEDENTO. Dar-te-ei a beber dum vinho preparado (Cant. 8, 2). Olha aquele que de joelhos oferece um vaso de fel, bebe dele com um Coração contrito». Referindo o Livro do Cântico dos Cânticos, a passagem diz respeito a um diálogo entre a Esposa e o Esposo, em que a primeira diz que gostaria que o segundo fosse seu irmão para que o pudesse beijar quando quisesse, sem censura de outrem; diz também que o levaria para casa da sua mãe e lhe daria a beber vinho perfumado. Este apelo ao pecado é contraditório ao conteúdo da tábua: a Divina Aliança apenas é selada no momento em que Cristo recusa a anestesia da dor, e a suporta em pleno recusando o vinho perfumado símbolo de tentação. Assim como Cristo, que não desfaleceu perante esta, também o Coração à sua imagem se torna digno de receber o Amor de Deus. À gravura nº 41 (FIG. 17), que deu origem à sexta tábua “Simão de Cirene ajuda Jesus a carregar a Cruz”, é associada a seguinte legenda: «VINCULUM CORDIS EX FUNIBUS CHRISTI. Trahameos in funiculis Adam, et in vinculis charitatis (Oseae, 11).

Crimina, te, duro, fateor, mea, fune ligarunt, Dulcior, astringat COR tibi, funis amor». Tradução: «O QUE PRENDE O CORAÇÃO SÃO OS LAÇOS DE CRISTO. Eu os atrairei com laços humanos, com os vínculos de amor (Oseias, 11, 4). Confesso-te os meus pecados, duro laço que me prendeu; mas um laço de amor mais doce ligue a Ti o meu coração». Aludindo a estampa ao Livro de Oseias: «Segurava-os com laços humanos, com laços de amor, fui para eles como a espuma que acariciava as suas faces e dei-lhes alimento» [21], é entendida a citação ao Amor como via para um exemplo de vida recto. Guiado pelo exemplo de Cristo, que foi o verdadeiro Libertador ao dar a vida por Amor aos homens, deverá ser o Coração “amarrado” com os laços dessa união, que nos salvou de um inevitável destino marcado pela fatal condição humana. A sétima tábua, “A Crucificação”, teve como fonte a gravura nº 47 (FIG. 19), cujo lemma e subscriptio são: «COMPUNCTIO CORDIS CLAVO TIMORIS DEI. Confortavit eùm clavis ixt non moveretur (Isaiae, 41). Hocmihi COR sancti clavo transfige timoris. Pro me qui clavis in cruce fixus eras». Tradução: «O TEMOR DO CORAÇÃO PRODUZIDO COM O CRAVO DO TEMOR A DEUS. Um cravo o fortaleceu para que não se movesse (Isaías, 41, 7). Trespassa o meu Coração com o cravo do santo temor, Tu que por mim estavas cravado na cruz». O capítulo do Livro de Isaías descreve este mesmo temor a Deus como algo que deverá estar sempre presente no nosso coração: «O escultor estimula o ourives, e o que bate com o martelo encoraja o que está na bigorna. Diz da soldadura: “está sólida”, e segura o ídolo com cravos para que não se mova»

[22]. Temos de ter a coragem e a perseverança de ter a «soldadura» sólida e firme, como Cristo na Cruz, que até ao último momento se manteve fiel ao seu Amor pelos homens e ao Pai. A tábua seguinte “A Ressurreição”, que corresponde à oitava representação da linha de leitura, teve origem na gravura nº 54 (FIG. 21), que tem por legenda: «SPECULUM CORDIS IN QUINQUE VULNERIBUS. Inspice et fac fecundum Exemplar quod tibi in monte monstratũ est (Exod., 25). Pro speculo CORDIS, COR aspice dulcis Jesu. Imprimet hoc CORDI, vulnera viva, tuo». Tradução: «O ESPELHO DO CORAÇÃO (ESTÁ) NAS CINCO CHAGAS. Olha e faz segundo o modelo que te foi mostrado no monte (Ex., 25, 40). Como espelho para o teu Coração, olha o Coração do doce Jesus. Imprimirá no teu Coração as chagas vivas». O elemento principal são as Chagas de Cristo, que Este tomou na Cruz: a prova viva da vitória sobre a morte. Aludindo o lemma a uma passagem do Livro do Êxodo, são nesta estabelecidas as regras para a construção da Arca da Aliança, para a mesa e o candelabro: «Construir-me-ão um santuário, para que resida no meio deles» [23]. E a passagem termina com o Senhor dizendo a Moisés: «Toma todas as providências para que o trabalho seja executado segundo o modelo que te mostrei neste monte» [24]. O nosso coração também deverá seguir o modelo de Cristo, a Aliança, e as suas chagas deverão estar impressas nele: se a existência for vivida seguindo uma via piedosa e cristã, aceitando a vida como um percurso de purgação e dor, tal reflectir-se-á na pureza do Coração. A nona e penúltima tábua, intitulada “A Elevação da Cruz”, teve como origem a gravura nº 48 (FIG. 23), com a legenda: «CORDIS IN CRUCE EXPANSIO. In simplicitate CORDIS quaerite ilhũ (Sap. 1).

In cruce, ne rugosa fores, expansus oblivi: Sponsa tuum tendas COR, sit vt absquae plicâ». Tradução: «DILATAÇÃO DO CORAÇÃO NA CRUZ. Buscai-o com simplicidade do Coração (Sab. 1, 1). Distendido na cruz tudo esqueci, para nada de engelhado aparecer fora». Segundo o Livro da Sabedoria, a morte associada à cruz, ao sofrimento, deixa de ter sentido pois foi este o acto último que nos libertou: «Deus não é o autor da morte, a perdição dos vivos não lhe dá nenhuma alegria. Porquanto ele criou tudo para a existência, e todas as criaturas têm em si a salvação» [25]. Este Amor de Deus pelos homens, que O levou a sacrificar o Seu próprio Filho na Cruz, permitiu que o domínio do pecado não prevalecesse sobre a terra. A décima e última tábua, denominada “A Exposição da Cruz”, tem a sua fonte na gravura nº 49 (FIG. 25), que surge acompanhada pela legenda: «CRUCIS IN CORDE PLANTATIO. Plantatio Domino as glorificandũ (Isaiae, 61). Dulce precor tenero CORDI crucis in fere lignum. Faecundâ crescet nobilis arbor hume». Tradução: «PLANTAÇÃO DA CRUZ NO CORAÇÃO. Plantação do Senhor para a sua glória (Isaías, 61, 3). Peço docemente que introduzas no teu coração terno o madeiro da cruz, e a árvore gloriosa crescerá na terra fecunda». Fazendo referência ao Livro de Isaías, no qual se fala dos ungidos pelo Senhor: «O Espírito do Senhor repousa sobre mim, porque o Senhor me ungiu; enviou-me para levar a boa nova aos humildes, curar os corações doloridos, anunciar aos cativos a redenção; e aos prisioneiros a liberdade» [26]. O povo escolhido, à imagem de Cristo, teria de Deus a concretização da aliança eterna ao exaltar a mensagem de salvação: «Com grande alegria eu me rejubilarei no Senhor e o meu coração exultará de alegria no meu Deus, porque me revestiu

com as vestimentas da salvação» [27]. Ao plantarmos a Cruz no nosso coração, é cumprida a aliança que Deus estabeleceu, no início dos tempos, com o Homem. Pela anterior descrição, conclui-se que este conjunto pictórico se distingue de todas as catequeses visuais surgidas na altura na região, não apenas devido a não se limitar “contar uma história” mas acima de tudo porque nele se expressa o cerne da doutrina cristã: o Amor de e a Cristo. Os objectivos de uma encomenda que terão sido pensados até ao pormenor, desde a escolha do livro e das gravuras a reproduzir – sendo que esta última selecção recaiu, sem dúvida, sobre as estampas que mais facilmente permitiam uma leitura visual imediatamente associada aos Passos da Paixão, factor essencial numa sociedade maioritariamente iletrada e marcadamente cristã-nova -, como ao destaque dado ao Coração, enquanto elemento universal, enquanto lugar da fé e habitáculo indissociável da Alma.

BREVES CONSIDERAÇÕES FINAIS O Convento de S. Francisco da Covilhã, lugar de grande erudição, foi nestes tempos pedra basilar do movimento catequético a que se assistiu após 1670 na Covilhã em particular, e que envolveu de uma forma geral toda a diocese da Guarda. A presença do D. Rodrigo no bispado entre 1694 e 1703, um apóstolo dos tempos, aliada à riqueza e exemplar devoção de Jorge Furtado de Castro do Rio e Mendonça, Visconde de Barbacena e patrono da capela-mor e à importância e erudição deste Convento, foram factores que confluíram neste local tornando-o num axis mundi da fé para os covilhanenses, ao materializar neste tecto o discurso próprio de um homem que acreditava que a imperfeita condição humana não deveria ser negada mas ensinada a seguir a via ascética ao encontro da perfeição, pela totalidade do seu ser. É a mensagem de um homem que via no seu semelhante o objecto de amor a quem Deus entregou o Seu Filho, e para Quem era vital fazê-lo voltar. Debruçando-se este estudo sobre uma época marcada por este espírito profundamente religioso, é notável como um objecto pictórico surgido nestes tempos, volvidos cerca de quatro séculos, ainda respira dessa mesma

espiritualidade que marcou o período do Barroco, mostrando-se hoje como a expressão física que, através das mãos de um desconhecido pintor, tomou a forma do pensamento de um homem cuja determinação provocou certamente grandes alterações no modo de ver e sentir o divino, ao ensinar e converter com o objectivo de salvar as almas das quais se considerava pastor, não castigando e incutindo o temor mas unificando o singular no plural com uma mensagem de esperança e de amor, direccionada ao homo interior. Com a sua chegada o sentimento de devoção vivificou-se, porque o exemplo que ele trouxe apresentou o modelo a seguir: Cristo humanado, recorrendo a uma linguagem que aqui se revela universal e intemporal.

REFERÊNCIAS [1] ESPERANÇA, Frei Manuel da, História Seráfica da Ordem dos Frades Menores de S. Francisco na Província de Portugal, Officina Craesbeeckiana, Lisboa, 1656, BNP [microfilmado], vol. I, fl. 425. [2] SILVA, José Aires da, História da Covilhã: 1870 – 1970 Centenário da Cidade, Edição do Autor, Covilhã, 1996, p. 101. [3] SERRÃO, Vítor, A Trans-Memória das Imagens. Estudos Iconológicos de Pintura Portuguesa dos Séculos XVI a XVIII, Cosmos, Lisboa, 2007, pp. 239 a 258. [4] SERRÃO, Vítor, Op. Cit., p. 240. [5] MENDES, Maria do Carmo Raminhas, Pintura Barroca e Emblema: imagética da Escola do Coração no tecto da capela-mor da Igreja de N. Sra. da Conceição, na Covilhã (1675-1725), dissertação para a obtenção do grau de Mestre em Arte, Património e Teoria do Restauro, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Lisboa, 2009. [6] ESPERANÇA, Frei Manuel da, Op. Cit., fl. 428. [7] ALMEIDA, Fortunato, História da Igreja em Portugal, Portucalense Editora, Porto, 1930, vol. II, p. 629.

[8] SANTA MARIA, Frei Agostinho de, Santuário Mariano, Officina de António Pedrozo Galrão, Lisboa, BNP [microfilmado], volume III 1707-1723, fl. 115. [9] AAVV, Dicionário da História Religiosa em Portugal, (direcção de Carlos Moreira Azevedo), Círculo de Leitores, Lisboa, 2000, pp. 5 e 6. [10] HAEFTEN, Benedictus van, Schola Cordis, siue, Aversi à Deo cordis ad eumdem reductio, et instructio, s.e., s.l., s.d., BPE, fl. 10. [11] BÍBLIA SAGRADA, Lc, 22, 44. [12] Op. Cit., Jo, 19, 1. [13] Op. Cit., Ma, 15, 17-18. [14] Op. Cit., Ma, 15, 23. [15] Op. Cit., Lc, 23, 26. [16] Op. Cit., Lc, 23, 33-34. [17] Op. Cit., Jo, 20, 29-30. [18] Op. Cit., Tg, 5, 8. [19] Op. Cit., Sl, 4, 8. [20] Op. Cit., Os, 2, 16. [21] Op. Cit., Os, 11, 4. [22] Op. Cit., Is, 41, 7. [23] Op. Cit., Ex, 25, 8. [24] Op. Cit., Ex, 25, 40. [25] Op. Cit., Sb, 1, 14. [26] Op. Cit., Is, 61, 1. [27] Op. Cit., Is, 61, 1.

Fig. 1- Igreja de N. Sra. da Conceição, local de culto do desaparecido Convento de São Francisco da Covilhã.

Fig. 2 - Localização do Convento de S. Francisco da Covilhã e de Santo António da Covilhã.

Fig. 3 - Capela-mor da Igreja de N. Sra. da Conceição, Covilhã.

Fig. 4 - Vista do programa imagético da capela-mor.

Fig. 5 - O conjunto de dez pinturas em caixotão que figuram no tecto da capela-mor.

Fig. 6 - “Agonia no Getsémani”.

Fig. 7 - Gravura 40.

Fig. 8- “A Flagelação”. Fig. 9 - Gravura 42.

Fig. 10 - “O Véu de Verónica”.

Fig. 11 - Gravura 45.

Fig. 12 - “A Coroação de Espinhos”. Fig. 13 - Gravura 44.

Fig. 14 - “Oferta de vinho com mirra a Jesus”.

Fig. 15 - Gravura 46.

Fig. 16 - “Simão de Cirene ajuda Jesus a carregar a Cruz”.

Fig. 17 - Gravura 41.

Fig. 18 - “A Crucificação”.

Fig. 19 - Gravura 47.

Fig. 20 - “A Ressurreição”.

Fig. 21 - Gravura 54.

Fig. 22 - “A Elevação da Cruz”.

Fig. 23 - Gravura 48.

Fig. 24 - “A Exposição da Cruz”.

Fig. 25 - Gravura 49.

Tabela 1 - Alguns exemplos de literatura emblemática sobre a temática do Amor de Deus.

Autor

Título

Ano

Anton Wierix

Cor Iesu amanti sacrum

1585-86

Amoris Divini Emblemata

1615

Emblemata Sacra

1617

Benedictus van

Schola Cordis, siue, Aversi à

1629

Haeften (1588-

Deo cordis ad eumdem

1648)

reductio, et instructio

Francesco Pona

Cardiomorphoseos sive ex

(1594-1654)

corde desumpta Emblemata

(1552-1624) Otto Vaenius (1556-1629) Daniel Cramer (1568-1637)

Sacra

1645

Tabela 2 - Correspondência entre as representações do tecto, e as dez lições e respectiva localização no livro Schola Cordis.

Disposição das tábuas

SCHOLA CORDIS

1 - “Agonia no Getsémani”

Fl. 664 – Lição I: “BALNEUM CORDIS, EX SUDORE SANGUINEO”

2 - “A Flagelação”

Fl. 680 – Lição III: “FULCRUM CORDIS CHRISTI COLUMNA”

3 - “O Véu de Verónica”

Fl. 705 – Lição VI: “PICTURA CORDIS EX SINDONE VERONICAE EXPRESSA”

4 - “A Coroação de Espinhos”

Fl. 697 – Lição V: “SEPIMENTUM CORDIS CORONA SPINEA”

5 - “Oferta de vinho com mirra a Jesus”

Fl. 713 – Lição VII: “COR PHIALA CHRISTO SITIENTI”

6 - “Simão de Cirene ajuda

Fl. 672 – Lição II: “VINCULUM

Jesus a carregar a Cruz”

CORDIS, EX FUNIBUS CHRISTI”

7 - “A Crucificação”

Fl. 721 – Lição VIII: “COMPUCTIO CORDIS CLAVO TIMORIS DEI”

8 - “A Ressurreição”

Fl. 789 – Lição XXV: “SPECULUM CORDIS IN QUINQUE VULNERIBUS”

9 - “A Elevação da Cruz”

Fl. 734 – Lição IX: “CORDIS IN CRUCE EXPANSIO”

10 - “A Exposição da Cruz”

Fl. 743 – Lição X: “CRUCIS IN CORDE PLANTATIO”

Tabela 3 - Tipologias, características e representações esquemáticas do Coração, em livros de Emblemática dos séculos XVII e XVIII.

Tipologia

Características

Representação esquemática

Coração oco do Representações no interior, com tipo meia-calote.

predominância

da

figura

de

Cristo.

Coração chama, ambos.

com Maciço, sem ou com abertura cruz

ou superior,

de

onde

emanam

chamas, ou onde está inserida uma cruz, ou ambos.

Coração.

Maciço, sem ou com abertura superior, sem decoração interior ou exterior.

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