De Dias Selvagens a Amores Expressos: Corpo e construção narrativa espaço-temporal no cinema de Wong Kar Wai

May 29, 2017 | Autor: Luana Cabral | Categoria: Chinese Cinema, Wong Kar-Wai, Cinema Contemporâneo
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Estudante de graduação do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Espírito Santo; pesquisadora bolsista vinculada ao CNPQ, participante do grupo de pesquisa CIA – Comunicação, Imagem e Afeto, de 2014 a 2015.




Até a data de finalização deste artigo, o filme mais recente lançado por Wong Kar-Wai havia sido O Grande Mestre (Yi dai zong shi), no ano de 2013.
No original, "What is interesting is that it is a cinema that responds to a specific and unprecedent historical situation, what I have called a space of disappearance where "imperialism" and globalism are imbricated with each other. History now goes through strange loops and become difficult to represent in terms of tradicional realism. If real history is becoming more incredible by the day, we will have to resort to the incredible to keep up with"



Assim como Faye é uma atendente de lanchonete em Amores Expressos, Lizhen o é em Dias Selvagens. A repetição é uma marca do cinema de Wong Kar-Wai, principalmente no que diz respeito às características dos personagens, como nome, profissão etc. Isso fica bastante evidente em Amores Expresso pelo espelhamento da narrativa, pela presença de dois policiais, duas aeromoças, entre outros elementos que apontam para esse recurso utilizado pelo cineasta. Nesse caso, especificamente, essa abordagem ganha ares de autorreferencialidade por fazer nossa atenção se voltar sempre para o próprio filme.



No original, "One of the features of new Hong Kong cinema is its sensitivity to spacial issues, in other words, to dislocations and discontinuities, and its adoption of spacial narratives both to underline an to come to terms with these historical anachronisms and achronisms: space as a means of reading the elusiveness of history. We get a better sense of the history of Hong Kong throught its new cinema (and architecture) than is currently available in any history book"




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De Dias Selvagens a Amores Expressos: Corpo e Construção Narrativa Espaço-temporal no Cinema de Wong Kar-Wai

Luana Mendonça Cabral

Universidade Federal do Espírito Santo

Resumo

O presente artigo tem como objetivo analisar a construção narrativa espaço-temporal realizada nos filmes Dias Selvagens (1992) e Amores Expressos (1994), ambos dirigidos pelo cineasta chinês Wong Kar-Wai. Partindo do conceito de interculturalidade, será feita uma análise sobre a utilização da cidade de Hong Kong como paisagem em ambos os filmes, objetivando relacionar as características sócio-políticas e históricas da cidade às obras em questão. Ainda, será discutido o papel da experiência corporal como mediadora da relação entre os personagens e a cidade-paisagem e da forma como essa abordagem contemporânea do corpo no cinema, sobretudo através da mise-en-scène, flerta com diferentes possibilidades estéticas, em especial o cinema narrativo clássico e o cinema de fluxo.
Palavras-chave

Interculturalidade. Cinema Contemporâneo. Corpo. Mise-en-Scène. Wong Kar-Wai
1 Introdução
O ano de 1992 destaca-se na carreira de Wong Kar-Wai por marcar o lançamento do filme Dias Selvagens (Ah fei zing zyun), fator determinante para que o cineasta passasse a receber a atenção da crítica de cinema de seu país – ainda que o filme não tenha atingido o público de forma positiva, resultando num fracasso de bilheteria. A partir de então, Kar-Wai passou a realizar filmes autorais com uma proposta estética característica que ganharam popularidade internacional ao se inserirem no circuito comercial e em alguns dos mais prestigiados festivais de cinema do mundo, como o Festival de Berlim (Alemanha) e o Festival de Cannes (França).
O cineasta, residente em Hong Kong, possui uma expressiva filmografia que, tendo-se iniciado no começo dos anos 90, estendeu-se por toda essa década e adentrou os anos 2010. Entre suas obras, destacam-se filmes como o já citado Dias Selvagens, Amores Expressos (Chung Hing sam lam, 1994), Fallen Angels (Do lok tin sin, 1995) Felizes Juntos (Chun gwong cha sit, 1997) Amor à Flor da Pele (Fa yeung nin wa, 2000), 2046: Os Segredos do Amor (2046, 2004) e Um Beijo Roubado (My Blueberry Nights, 2007), sendo esse último uma coprodução entre Hong Kong, China e França, inteiramente filmado nos Estados Unidos da América e falado em língua inglesa, inclusive contando com a participação de atores mundialmente conhecidos como Jude Law e Rachel Weisz, além da cantora Norah Jones. Esse tipo de projeto foi possível sobretudo em razão do reconhecimento internacional da obra do diretor que, à época, já havia conquistado uma certa fatia do público, principalmente fora do Hong Kong, em razão de suas já mencionadas participações em festivais pelo mundo, que garantiram alguma popularidade aos seus filmes.
Um Beijo Roubado, contudo, não representa o início do flerte com outras culturas que não a da cidade natal Hong Kong dentro do universo fílmico construído por Wong Kar-Wai. Pelo contrário, talvez o filme seja, dentro da obra do cineasta, aquele que menos põe em cheque questões que se referem às identidades culturais dos sujeitos e temas correlatos, por razões às quais não me aprofundarei nesse artigo, mas que dizem respeito, sobretudo, à trama do filme e às suas características estéticas, que não trazem consigo elementos que façam menção tão especificamente a essa temática. Fato é que a presença de elementos referentes a múltiplas nacionalidades ou a uma ideia de mundo globalizado, de um território que já não se delimita pelas barreiras nacionais tampouco pela fronteira entre Ocidente e Oriente é um dos traços mais característicos da obra de Wong Kar-Wai, estando presente, em diferentes níveis de intensidade e formas de atuação, na maior parte de seus filmes. Felizes Juntos, de 1997, trabalha essa questão de forma interessante ao retratar o deslocamento de um casal homossexual chinês que viaja à cidade de Buenos Aires, na Argentina, local que passa a abrigar as tensões no relacionamento dos dois. Ainda, a trilha musical materializa a questão do múltiplo embate cultural, como ressalta Denilson Lopes:
Como no início de Felizes Juntos, de Wong Kar-Wai, onde podemos ver na tomada aérea das cataratas do Iguaçu, na fronteira entre Brasil, Argentina e Paraguai, imagem do desencontro entre os amantes, mas que traduz todo um encantamento, apesar de toda a dor, ao som de Caetano Veloso, cantando em espanhol "Cucurrucurú Paloma", um clássico da música popular mexicana, composto por Tomáz Méndez. Mais uma vez temos um interessante encontro entre Ásia e América Latina através da circulação da música Latino-americana, desde a segunda metade do século passado, seja via filmes Hollywoodianos, seja pela presença de cantores filipinos em Xangai, o mais importante centro cultural da China nas décadas de 1930 e 1940, como também podemos ver na obra de Stanley Kwan.[…] Esses trânsitos, especialmente entre América Latina e Ásia, representam a gênese de um interessante caso de interculturalidade, desconstrutor de purismos nacionais, definido mais pelos processos midiáticos do que por grandes fluxos migratórios, diásporas (cf. Canclini, 2000, p. 79), que exigem, certamente, melhor estudo. (LOPES, 2010, p. 103)

Tais trocas culturais, definidas nas palavras do autor como "processos midiáticos", vão desde as referências aos produtos globalmente comercializados e consumidos na contemporaneidade, sendo o mais emblemático deles a Coca-Cola, com sua logomarca presente em filmes como Dias Selvagens e Amores Expressos, passando pelas trilhas sonoras de filmes como Felizes Juntos, citada por Lopes, e também de Amor à Flor da Pele e Amores Expressos, das quais destaco, respectivamente, a presença do bolero Quizás, Quizás, Quizás, cantado em espanhol por Nat King Cole, e da balada California Dreaming, interpretada pelo grupo norte-americano The Mamas and The Papas.
O conceito de interculturalidade, apontado pelo autor, se apresenta como uma chave interessante para discutirmos a presença dos trânsitos entre culturas e países diferentes, que provocam a junção de elementos culturais e paisagísticos característicos de lugares - no sentido estritamente geográfico do termo -, separados. O cinema dito intercultural questiona o pertencimento a uma cultura, a uma comunidade (MOURA, 2010, p. 44), o que se alinha ao tipo de construção narrativa e estética presente nos filmes de Kar-Wai, muito em razão das narrativas centradas na questão dos deslocamentos, cujos personagens, suas respectivas identidades enquanto sujeitos, estão diretamente ligadas a uma busca pela desterritorialização (Fei em Amores Expressos), pela mudança de país ou de cidade (o casal de Felizes Juntos), ou pela atitude cínica em relação ao presente resultante da necessidade de ir de encontro a um passado traumático (Yuddy em Dias Selvagens).
Para além de tudo o que foi explicitado até aqui, existe a complexa questão da identidade cultural de Hong Kong, cidade onde Wong Kar-Wai viveu boa parte de sua vida e a qual utilizou como paisagem e personagem em muitos de seus filmes. Durante a Guerra do Ópio, Hong Kong, anteriormente parte do Império Chinês, foi ocupada pelo Reino Unido. Após o estabelecimento da República da China, no ano de 1912, a região voltou a ser administrada pelos chineses. Contudo, na ocasião da guerra sino-japonesa, durante a década de 30, os ingleses voltaram a dominar a região e assim se seguiu até 1997 quando, após 156 anos de colonização inglesa, Hong Kong voltou a ser administrada pela China.
Hoje, Hong Kong é uma Cidade-Estado que funciona como Região Administrativa Especial (RAE) da República Popular da China, governada pela máxima de "um país, dois sistemas". Assim, sua constituição sócio-econômica, arquitetônica, política e cultural apresenta características que a diferem do restante da China, em razão de seu passado colonial que moldou, sobretudo, a economia e a cultura da região, e também da forma como é atualmente administrada, que é, apesar dos recentes esforços para uma reaproximação com a China, caracterizada por uma autonomia concedida à região que dá continuidade ao tipo de administração e de desenvolvimento instituído durante a época da colonização inglesa. Todos esses fatores, somados a uma forte e desenvolvida economia capitalista e neoliberal fazem dela um lugar onde "o Ocidente encontra o Oriente", aberto para a influência cultural, econômica e midiática do Ocidente.
Em seu artigo "Like a Postcolonial Culture: Hong Kong Re-imagined", no qual aborda a questão dos estudos culturais já no contexto do período pós-colonial, John Nguyet Erni fala sobre o modo como escrever sobre Hong Kong requer uma articulação triangular entre o nacionalismo chinês, o colonialismo britânico e o globalismo (ERNI, 1997, p. 391). No caso do cinema, segundo Ackbar Abbas, a situação política e histórica de Hong Kong tem influência direta na obra de cineastas atuantes, sobretudo, a partir dos anos 80, como Stanley Kwan, John Woo e o próprio Wong Kar-Wai. Ele afirma:
O que é interessante é que é um cinema que responde a uma situação histórica específica e sem precedentes, o que chamei de espaço de desaparecimento, onde "imperialismo" e "globalismo" estão imbrincados um com o outro. A história agora passa por estranhos movimentos e se torna difícil de representar nos termos do realismo tradicional. Se a história real está se tornando mais incrível dia após dia, nós teremos que lançar mão do incrível para acompanhá-la. (ABBAS, 2002, p.16, tradução nossa)
Dessa forma, o autor propõe a existência de um tipo de cinema - ainda que comercial e bastante popular, inclusive fora da China - que se utilize das características estéticas próprias da linguagem cinematográfica para tecer um comentário acerca da história do lugar ao qual sua identidade está ligada, sem a necessidade de apresentar essas questões na trama ou no discurso de seus filmes, problematizando o visual para intervir em tais debates políticos, e não abordando-os diretamente. (ABBAS, 2002, p. 4X).
No caso de Wong Kar-Wai, uma interessante chave para entender a forma como a história política, econômica e cultural de Hong Kong tem influência na realização de seus filmes é a construção de espacialidades e temporalidades que atuam como recursos narrativos, impulsionando não apenas a trama do filme mas também seus aspectos plásticos, visuais, e sua sonoridade (as trilhas sonoras, citadas anteriormente, tem papel crucial nessa construção) Destacam-se, nesse quesito, Dias Selvagens e Amores Expressos, dois filmes pertencentes à fase inicial da carreira do cineasta, já citados anteriormente neste artigo. No primeiro, cuja trama é ambientada na Hong Kong dos anos 60, há uma minuciosa construção espaço-temporal realizada através de detalhes nos figurinos e objetos de cena, e também em um uso coreografado das possibilidades de mise-en-scène que, principalmente, comenta sobre a arquitetura e a paisagem da cidade àquela época e impulsiona dramaturgicamente o filme, visto que a movimentação dos personagens em cena, sobretudo a interação entre os corpos uns dos outros, se dá como produto da própria interação entre os personagens e o espaço. Já no segundo é representada uma Hong Kong contemporânea, retratada por meio de elipses e suspensões temporais que garantem, através de uma montagem ágil e dinâmica, um ritmo peculiar ao filme, que remete à própria velocidade do mundo contemporâneo.
Observa-se, assim, um ponto em comum entre os dois filmes: a presença da cidade de Hong Kong enquanto paisagem, com seus espaços, suas características, formas, cores e demais elementos plásticos, interfere na maneira como a trama se desenvolve e, sobretudo, na forma como os personagens atuam e se relacionam entre si, para além da forma como interagem com o espaço. A interculturalidade, nesse sentido, e também tendo em vista a própria história política, econômica e cultural do local, se apresenta como um elemento atrelado à identidade da cidade de Hong Kong e que é representada esteticamente por Wong Kar-Wai nos dois filmes aqui estudados, sobretudo em sua trilha musical e, pontualmente, em objetos e elementos diegéticos (como citado anteriormente, as logos de marcas multinacionais como a Coca-Cola e, em menor escala, outras imagens de marcas famosas que se referem a um mundo globalizado). Ainda, os dois filmes tratam de questões ligadas à busca pela identidade através dos deslocamentos, das viagens e dos encontros; da busca por uma mudança na paisagem e no tempo - se a personagem Faye, em Amores Expressos, sonha em ir viajar para a Califórnia, numa perspectiva ligada ao futuro, ao que está porvir, o personagem Yuddy, em Dias Selvagens, não quer apenas seguir em frente, mas também e principalmente voltar ao passado (sua mãe) para "curar" as feridas do presente.
Identificada a presença de tais similaridades em ambos os filmes faz-se necessário, também, estabelecer as diferenças existentes entre eles. Aqui, proponho que nos concentremos numa questão estética, sobretudo relativa ao modo como o realizador pensa a mise-en-scène nos dois filmes e que, por esse motivo, se relaciona diretamente com o modo como o corpo e o espaço são representados em ambos. Observa-se, ao colocar-se os dois filmes em comparação, que Dias Selvagens desenvolve sua trama em sequências de longa ou média duração, dramatizadas e quase totalmente narrativas, ao passo que a trama em Amores Expressos desenvolve-se sobretudo nas relações de ritmo e temporalidade estabelecidas pela montagem, como os cortes secos e as elipses, que são recursos utilizados frequentemente ao longo do filme, além da técnica de congelamento da imagem utilizada em sua fotografia, que garante um aspecto de velocidade aumentada às imagens, como se o fluxo contínuo fosse incapturável pela câmera ou pelo que ela representa – nossos olhos, nossa visão -, tamanha a sua rapidez, sua efemeridade. É possível, a partir disso, compreender Dias Selvagens como uma experiência cinematográfica que se aproxima mais do que convencionou-se chamar por cinema narrativo clássico, sobretudo ao filão denominado melodrama e, na contramão, analisar Amores Expressos como uma narrativa mais fluida, menos dependente das noções de plano e mise-en-scène do que de um desejo de sensorialidade expresso por meio de imagens bidimensionais em movimento e de sons.
Dito isso, pretendo aqui realizar uma investigação acerca da forma como o cineasta Wong Kar-Wai, em Dias Selvagens e Amores Expressos, dois filmes pertencentes à fase inicial de sua filmografia, desenvolve esteticamente a relação entre os corpos e a cidade de Hong Kong, buscando compreender as maneiras como esses elementos afetam uma ao outro através dessa interação, que pode ser pacífica, amena, ou um embate. Sobrepondo os tempos e os espaços e aglutinando, muitas vezes em um único plano, passado, presente e alguma ideia ou desejo de futuro, o realizador tece, no mínimo, um comentário acerca da cidade na qual realiza seus filmes e das relações que nela se estabelecem, o que já seria, por si só, algo passível de estudo e reflexão. Porém, é a maneira como Kar-Wai se utiliza de elementos formais da linguagem cinematográfica para construir não menos que um universo fílmico próprio e autoral, mas não desvinculado da realidade, e que, mais tarde, seria incorporado ao seu modo de fazer filmes, estando presente quase que na totalidade de suas obras posteriores, que torna a reflexão acerca do trabalho do cineasta, sobretudo dos dois filmes aqui estudados, necessária.


2 Manipulação espaço-temporal: a construção narrativa e a (re)construção de Hong Kong
Vemos um homem que veste trajes de policial. Ele está na rua, algumas pessoas se movimentam à sua volta. Enquanto ele caminha em direção a uma lanchonete, ouvimos uma música alta, sem ter clara noção de onde ela está vindo (se faz parte da diegese do filme ou não). Apenas quando ele adentra a lanchonete a origem do som fica clara: a atendente está ouvindo California Dreaming, da banda The Mamas and the Papas, enquanto trabalha. A jovem e o policial iniciam, então, um breve diálogo, dificultado pelo volume alto da música. Apenas quando ele chama a moça para mais perto de si os dois conseguem fazer-se entender, no momento em que um plano das faces de ambos muito próximas invade a tela, ao mesmo tempo em que o volume da música é reduzido consideravelmente. O policial, então, sai de cena, e a atendente permanece atrás do balcão, enquanto a música, novamente em volume alto, continua a tocar. Por meio de um corte duro, suavizado pelo movimento da câmera e da personagem, somos transportados para um outro dia, permanecendo no mesmo local – a mudança de tempo é perceptível, principalmente, pela troca de roupa da jovem. Ela trabalha ouvindo a música e dançando, enquanto o policial está do lado de fora. O dono da lanchonete desliga a música e, em seguida, o policial entra no estabelecimento. Os dois iniciam um diálogo e a cena passa a se concentrar nisso, desviando da conversa apenas para mostrar a atendente, ao fundo, tornando a ligar o rádio e a dançar. O policial, então, vai embora, e a atendente observa sua saída.
Através de mais uma elipse temporal, somos transportados para outro dia. O policial está do lado de fora da lanchonete, fazendo suas anotações. A música já não toca mais. Ele entra na lanchonete e vai até o balcão, onde o dono do estabelecimento está, para fazer seu pedido. Vemos a ação pelo ponto de vista de alguém que presumivelmente está atrás do balcão contemplando, assim, as costas do senhor e o rosto do policial. A atendente, então, surge, também de costas, nesse mesmo quadro. Sua presença não é estranha somente ao espectador: os dois outros personagens olham-na e param de falar até que ela, desconcertada, vai para outra parte da lanchonete. A câmera acompanha o deslocamento da atendente e permanece com ela atrás de um vidro, de onde vemos a imagem do policial encostado no balcão ser sobreposta pela da própria jovem, que limpa o vidro com a ajuda de um pano. Em dado momento, a junção do primeiro plano (ela) e do segundo plano (ele) é tão coreografa que temos a impressão de que a jovem desliza suas mãos sobre a superfície do corpo do policial. É realizado um outro corte duro, dessa vez suavizado por um raccord de movimento realizado por meio da continuidade do gesto da garota, que limpa um outro setor da lanchonete. Voltamos a olhar por detrás do balcão. A atendente permanece limpando ao passo que o policial toma seu café, servido num copo de plástico estampado com a logo da Coca-Cola.
A sequência, pertencente ao filme Amores Expressos, marca uma divisão na narrativa fílmica, quando o policial 233 é "substituído" pelo policial 633 e a história, então, abandona os protagonistas da primeira parte e passa a se concentrar na relação entre a garçonete Faye e o policial 633. Em poucos minutos, três dias (representados pelas idas do policial à lanchonete, que somam três encontros com a moça) são narrados através de elipses temporais realizadas, sobretudo, por meio de uma articulação entre fotografia e montagem: os cortes duros são atenuados pelo raccord de movimento estabelecido pela manipulação da câmera na mão, que reconfigura os quadros por meio do emprego de diferentes angulações, fazendo com que o espectador perca, momentaneamente, o referencial de tempo e espaço; e pela mise-en-scène, através da continuidade de gestos e ações dos personagens que ligam uma cena à outra, conferindo fluidez e movimento às imagens. A trilha musical, exaustivamente repetida em volume alto, por vezes até mais alto do que a voz dos personagens, ajuda a estabelecer esse fluxo de continuidade. Sua importância, contudo, vai muito além de uma questão rítmica: A entrada de Faye em cena se dá, primeiramente, pela entrada da canção California Dreaming na trilha sonora do filme, posto que é ela o principal marco da personagem, relacionado à sua pulsão de viajar e se deslocar, e diretamente ligada à sua curiosidade específica em relação ao estado norte-americano da Califórnia.
Faye é uma personagem emblemática do filme por representar a necessidade de um deslocamento, de transitar. Ela realiza trabalhos temporários com o objetivo de juntar dinheiro para viajar. O modo como a personagem é filmada também se relaciona a essa característica: um dos únicos momentos no qual a vemos parada, sem se movimentar, é quando a jovem adormece na casa do policial 633. Na maior parte das cenas, Faye anda de um lugar para o outro, geralmente apressada. Ainda, mesmo que fixo em um local, seu corpo está em constante movimento, traduzindo uma certa ansiedade, inquietação, ou necessidade de movimentação, de exteriorizar uma energia contida dentro de si. Na trama, ela abandona o emprego como atendente de lanchonete para se tornar aeromoça (não fica claro, porém, se é algo temporário ou permanente). Temos, aí, a confirmação dramática das inclinações de Faye, visto que a profissão por ela escolhida lhe permitirá viajar e transitar por vários lugares diferentes, estando em um constante estado de deslocamento, uma vez que passará a maior parte de seu tempo dentro de um avião, que é um meio de transporte, ou seja, uma estrutura que, em seu uso funcional, não possui um lugar fixo e trata justamente de viabilizar os deslocamentos.
Hudson Moura entende o cinema intercultural não como "um dado fixo que pede uma análise, mas um processo, uma comunicação, uma correlação: a análise ela mesma." (MOURA, 2010, p. 49, apud ABDALLAH-PRETCEILLE, 2002). Apesar disso, podemos estabelecer ao menos uma característica definidora desse cinema que é o fato de que os filmes ditos interculturais sempre falarem sobre a relação entre duas ou mais culturas que interagem entre si. Estendendo essa definição a uma análise da paisagem sonora do filme, é possível compreender a presença de California Dreaming na trilha sonora de Amores Expressos como sendo também um recurso midiático que remete à ideia de interculturalidade, primeiramente por conectar Faye a um outro lugar e a uma outra cultura, e também por ser produto de uma cultura nacional estrangeira (no caso, norte-americana) ou, em última análise, de uma cultura globalizada. A infiltração de um produto cultural dessa natureza no universo de uma personagem que, apesar da vontade e da necessidade de transitar pelos lugares, não é necessariamente cosmopolita, dá pistas sobre uma certa abertura – ainda que não institucional, ao menos ideológica -, à cultura de outras localidades ou a uma cultural global. A logo da Coca-Cola, que aparece no final da sequência descrita, também remete a essa ideia de globalização e interculturalidade, por ser uma marca ocidental, norte-americana, que possui representatividade em praticamente todo o território capitalista.
A presença desta imagem também é bastante evidente na sequência de abertura de Dias Selvagens, na qual vemos um encontro entre Yuddy, protagonista do filme, e uma das duas mulheres com as quais se envolve romanticamente ao longo da história. Su Lizhen é uma jovem séria e de poucas palavras – total oposto do outro par de Yuddy, a extrovertida dançarina Mimi -, que trabalha como atendente de lanchonete numa central de esportes em Hong Kong: é nesse espaço que vemos a logo da famosa marca, estampada não só na embalagem de seu próprio produto, mas também em publicidades espalhadas pelo estabelecimento. Inicialmente, vemos o primeiro contato entre os dois personagens, já sendo apresentados à frieza do comportamento de Yuddy. Após a entrada dos créditos iniciais, vemos mais dois encontros, em dias diferentes, entre os dois personagens, que deixam explícitas as investidas afetivas constantes do rapaz para com a garota. Ao final da cena, pela narração em off da própria Su Lizhen, a narrativa nos é antecipada e ficamos sabendo que, a partir daquele dia, os encontros tornaram-se constantes e os dois passaram a se relacionar sexualmente.
Já nessa sequência, é possível observar pequenos detalhes que nos afastam da contemporaneidade, remetendo a uma atmosfera sessentista, carregada de nostalgia. Os recursos utilizados para isso, além da trilha sonora (que será utilizada ainda mais enfaticamente ao longo do filme), se concentram nos detalhes das vestimentas e da aparência dos personagens, como penteados e cortes de cabelo, e nos objetos de cena que aparecem recorrentemente, como telefones, relógios, entre outros, todos característicos de uma outra época, de um certo passado. Além disso, é dado um tratamento à imagem, filtrada por tons de sépia que, ainda que sejam bastante sutis, remetem à utilização de película ou mesmo ao ato de olhar uma fotografia já envelhecida. São maneiras de se definir a história por meio do estilo e da imagem (ABBAS, 1997, p. 53), tornando a presença do passado e o diálogo com essa temporalidade já perdida algo material e plástico, e não apenas um discurso.
Em ambos os filmes, a inscrição dos personagens nos espaços cênicos e a interação entre esses dois elementos da linguagem fílmica são utilizados para construir uma narrativa diretamente relacionada às espacialidades e temporalidades específicas de cada um. A forma como os personagens se deslocam e se movimentam pelos espaços diz muito sobre a organização social e arquitetônica de Hong Kong em cada uma dessas duas épocas. Abbas enfatiza a importância desse tipo de concepção espacial dentro do contexto do novo cinema de Hong Kong:
Uma das características do novo cinema de Hong Kong é sua sensibilidade às questões espaciais, em outras palavras, aos deslocamentos e às descontinuidades, e sua adoção de narrativas espaciais tanto para enfatizar quanto para entrar em acordo com esses anacronismos e acronismos históricos: o espaço como um meio de ler a indefinição da história. Nós podemos ter uma melhor ideia da história de Hong Kong através de seu novo cinema (e arquitetura) do que consultando o que geralmente está disponível em qualquer livro de história. (ABBAS, 1997, p. 27, tradução nossa)

No caso de Dias Selvagens, a reconstrução de uma Hong Kong sessentista perpassa toda a realização do filme em termos de mise-en-scène. Nas cenas internas, principalmente as que se passam dentro do prédio ou do apartamento de Yuddy, o tamanho reduzido dos espaços privados, que é uma característica das construções da cidade, é descrito pela proximidade dos personagens, que aparecem juntos, por vezes excessivamente próximos, na maior parte dos planos. A recorrência de close ups que eliminam os espaços "livres" dos enquadramentos e privilegiam o rosto dos personagens, contribui para a sensação de sufocamento e de falta de espaço. Isso fica evidente na sequência em que Yuddy leva Mimi ao seu apartamento pela primeira vez, na qual os personagens quase sempre aparecem juntos nos planos, ainda que estejam em cômodos distintos, ressaltando a pouca distância entre os espaços e as dimensões limitadas do apartamento. Nela também são enfatizadas as características de verticalização e o estreitamento das construções, sobretudo em um momento no qual um personagem escala o prédio de Yuddy e percebemos a proximidade entre os apartamentos, já que ele se equilibra entre eles para chegar até lá, e já no fim da sequência, quando Mimi dança no estreito corredor do prédio de seu amante, plano no qual a falta de espaço horizontal fica evidente. Vale aqui mencionar que, posteriormente, Wong Kar-Wai mergulharia ainda mais em seu próprio estilo, sobretudo nos filmes Amor à Flor da Pele (Fa Yeung Nin Wa, 2000) e 2046: Os segredos do amor (2046, 2004), levando esse tipo de construção espacial, que busca um resgate da memória e da identidade por meio da arquitetura e da reconstrução dos espaços, ao seu ápice estético.
Em Amores Expressos, o recorte temporal contemporâneo é também traduzido através de relações de espaço e mise-en-scène mas, nesse caso, se adequando às características de Hong Kong já nos anos 1990. A questão do espaço continua a ser trabalhada, com ênfase na própria cidade e no caos urbano. A temática do trânsito e dos deslocamentos é abordada também visualmente: os personagens passam boa parte do filme se movimentando pela cidade, indo de um local para o outro e, inclusive, alguns dos encontros que impulsionam narrativa se dão por meio de colisões literais, físicas: choques de corpos que se dão materialmente na tela. Assim como em Dias Selvagens, somos apresentados às características da cidade pelo movimento dos personagens, seja acompanhando seus constantes deslocamentos, seja através da maneira confusa e errante como se comportam. São os desencontros e os encontros que não resultam positivamente que se tornam importantes para a narrativa e para as motivações dos próprios personagens.
É fundamental ressaltar que o que aqui chamamos de interculturalidade possui poucas semelhanças com o conceito pós-estruturalista de multiculturalismo, que traz uma perspectiva descolonizada das representações, sobretudo das relações de poder entre comunidades (SOHAT e STAM, 2006, p. 26). Perpassa de maneira potente o conceito de interculturalidade a própria tensão entre as culturas postas em choque, que não necessariamente irão se fundir em algo maior e "multicultural", mas que, ao se encontrarem, sempre realizarão um choque, conforme discorre Hudson Moura:
O cinema intercultural não pode ser entendido simplesmente como multicultural ou como pluralista (cultura, religião, política), pois ele atribui uma tensão que se deixa perceber pela imposição do prefixo "inter". Isso significa que o intercultural determina sempre uma fronteira e uma tensão do 'entre' duas ou mais culturas (ou, em termos cinematográficos, 'entre' planos). Essas culturas não são amalgamadas ou juntadas num num discurso uniforme e homogêneo, como poderíamos caracterizar o hibridismo e o multiculturalismo. Num discurso heterogêneo e único no seu gênero, interculturalidade é colocar em relação duas ou várias culturas e identidade. Ela pode ser também aquela que não compartilha. Isto é, um processo que marca uma tensão dos diferentes, o que pode ser mesmo da ordem do intransponível e gerar a incompreensão. (Moura, 2000, p. 49)

De fato, a partir da análise dos filmes Dias Selvagens e Amores Expressos é possível observar que os elementos anteriormente citados nesse texto que possuem algum tipo de referência cultural de alguma forma desterritorializada – a saber, as trilhas sonoras latino-americanas, os bens de consumo importados dos EUA, entre outros - não se conciliam no discurso fílmico de modo a traduzirem, a partir da sua junção, a síntese advinda de uma relação intercultural. Diferentemente disso, a atmosfera de ambos os filmes permanece permeada por essa tensão entre culturas que, apesar de se relacionarem, não formam uma terceira identidade a partir de seu encontro mas, no máximo, são aglomeradas como partes constituintes da identidade de um local (no caso, Hong Kong) e dos sujeitos que o habitam.


3 Do cinema de fluxo à narrativa clássica: diálogos entre o corpo e a cidade
Como já foi dito anteriormente, a cidade enquanto paisagem espaço-temporal tem grande importância para a totalidade da experiência cinematográfica proporcionada por Dias Selvagens e Amores Expressos. Cabe aqui enfatizar, a partir desses exemplos, a forma como o novo cinema de Hong Kong descobriu a própria cidade como um de seus temas principais (ABBAS, 1997, p. 23) e, a partir disso, observar que uma das formas pelas quais essa paisagem se torna parte da narrativa é através do corpos dos personagens nela inseridos, que são afetados por suas características e também interagem com ela, modificando-a. O corpo torna-se, dessa forma, uma instância mediadora da relação entre o sujeito, o personagem, e ao espaço da cidade. Analisemos, como exemplo, uma sequência do filme Dias Selvagens, que se desenvolve em espaços bastante explorados durante todo o filme, que é o apartamento do personagem principal e, em menor escala, o espaço que compreende as dependências de seu prédio.
É noite e Mimi e Yuddy estão na cama. Enquanto ela dança sensualmente sobre o colo do rapaz, os dois cantarolam uma música. Então, um homem entra por uma janela, que está em segundo plano, no fundo do quadro. Mimi leva um susto e grita, mas logo se acalma após os dois perceberem que se trata de uma amigo de Yuddy, o qual se aproxima da janela para falar com o rapaz, enquanto a moça permanece na cama. Assim que o rapaz decide ir embora e Yuddy se afasta, Mimi se aproxima da janela para observá-lo. Ele desce se apoiando nas janelas e tubos localizados na parte exterior do prédio de Yuddy e dos outros prédios em volta. O corte é realizado e, a partir dele, é feita uma elipse temporal: estamos o mesmo apartamento, com os personagens da cena anterior, mas num momento distinto da noite. Yuddy está deitado na cama, com um ventilador de chão posicionado em sua direção, enquanto Mimi lava o rosto na pia do banheiro. Como o espaço é pequeno, conseguimos ver os dois no mesmo quadro - ou, melhor dizendo, vemos os dois no mesmo quadro para que entendamos que o espaço é pequeno. Ouvimos um barulho de tic-tac constante, que parece preencher todo o espaço da cena. Mimi, então, se aproxima de Yuddy e senta na mesa ao lado da cama onde ele está e, assim, os dois estão novamente juntos no mesmo quadro. Ela vai até a geladeira, muito próxima do quarto, e em seguida se dirige até a cama. Enquanto conversam, Mimi e Yuddy começam um jogo de provocações corporais, no qual o afeto se mistura com a agressividade por meio de mordidas, beliscões e carícias, entre outras provocações.
A sequência termina com Mimi saindo do apartamento e chegando ao hall do prédio. Ela desce as escadas e se depara com um rapaz, enquanto uma música toca no rádio. O rapaz, então, questiona a moça sobre sua ocupação, sobre o que ela faz para viver. A resposta de Mimi vem em formato de dança, acompanhando o ritmo da música que está a tocar no hall do prédio. Ao terminar sua performance, diz seu nome para o rapaz e vai embora. Temos, então, um close no rosto dele, que traduz o êxtase do rapaz em relação ao que acabou de acontecer.
Nessa sequência, o contato físico entre os dois personagens é quase uma batalha: os corpos estão constantemente sendo postos à prova pela interação bruta e provocativa com o corpo do parceiro ou por fatores externos, como a presença do ventilador que age sobre os corpos dos personagens, presente não apenas nesse trecho, mas em outros momentos do filme. Ainda, eles não só respondem a essas interações, mas também a impulsos internos, como no momento ao final da sequência quando a personagem dança no corredor do prédio: ela poderia expressar-se verbalmente, uma vez que lhe foi feita uma pergunta clara e objetiva, mas prefere deixar que seu corpo e seu movimento respondam à dúvida do rapaz.
Mais uma vez, Hong Kong é construída em tempo, espaço e detalhes. A arquitetura da época reverbera pela estrutura do apartamento e é ajudada por uma mise-en-scène que denuncia as limitações de espaço: o caminho coreografado dos personagens e a "dança" de seus movimentos, até mesmo a dança propriamente dita realizada por Mimi no final da sequência, dependem do formato e das limitações desses espaços internos para serem realizados. Em última análise, é como se a relação entre corpo e espaço fosse impreterivelmente pautada pelos limites estabelecidos pelos objetos e pelas formas dos espaços e relação ao corpo dos personagens. É como se a figura humana, especificamente do corpo humano, ainda que dotada do poder da ação, estivesse condicionada pela paisagem no grau zero de sua inserção na mesma. Estar na cidade, ao menos nesse caso, é estar sob sua influência direta, ainda que o inverso dessa relação, ou seja, a ação do corpo sobre o espaço, também exista.
Os dois filmes, apesar das semelhanças já mencionadas, são diferentes quanto ao ritmo e ao tempo de seus acontecimentos, sobretudo em razão do trabalho de montagem, realizado a partir de duas abordagens distintas. Em ambos os casos, o tempo é um tema de extrema importância – o uso constante de relógios como objeto de cena de destaque em diversos planos é uma pista disso -, mas que é tratado de maneira diferente em cada um deles. No primeiro, o tempo é um universo a ser explorado, uma presença notável e quase materializada através dos silêncios duros e constantes, muitas vezes preenchidos pelo tic-tac insistente de um relógio. A organização do filme em blocos de cena mais extensos, nos quais a duração é crucial para a dramaturgia, para a encenação e a mise-en-scène, garante ao filme um ritmo mais lento e pausado, como se devêssemos habitá-lo, adentrá-lo, e não apenas observá-lo; como se o cinema fosse uma experiência que expressa outra experiência (ELSAESSER, HAGENER, 2010, p. 119).
Em Amores Expressos, a relação estabelecida entre o filme e o espectador é outra: já não é mais interessante que se habite as cenas, mas sim que se deixe levar por um fluxo de imagens que se sobrepõem à própria narrativa e se colocam antes dela. O tempo, que é explorado em Dias Selvagens, é nele suprimido, e isso se traduz na imagem total do filme. A relação com as luzes, cores e movimentos é anterior ao envolvimento com a própria narrativa e, aliado a isso, o ritmo da montagem não permite que seja construída a atmosfera necessária para que se adentre a dramaturgia da mesma forma como ocorre em Dias Selvagens. Isso não quer dizer, entretanto, que o filme de 1994 seja inferior ao anterior em termos de encenação. Como afirma Jacques Aumont, "a encenação faz-se tanto na montagem e na planificação como na filmagem" (2001, p. 71). Ainda, não significa que a experiência na qual se constitui Dias Selvagens se resuma a uma lógica narrativa restrita que serve à trama do filme. Existem transbordamentos afetivos e sensoriais que a própria mise-en-scène trata de transparecer. Percebemos isso, por exemplo, nas cenas em que Yuddy e Mimi estão juntos, nas quais a própria experimentação de seus corpos – o toque, o olhar, a transpiração e a respiração ofegante constituem-se em gestos que agem diretamente sobre os sentidos do espectador e são evidenciados pela forma como os corpos dos personagens interagem e se movem, e também pela expansão temporal realizada para que se adentre aquela atmosfera mais profundamente. Conforme Jacques Aumont afirma:
A encenação no cinema não é uma técnica: graças à restrição benéfica do quadro, torna-se uma força (ou, noutras passagens de seu texto, uma energia). Tudo se passa como se passa como se o quadro, ao condicionar a encenação, ao clarificá-la, ao torná-la definitiva, se tornasse uma espécie de lente que foca sua energia. (AUMONT, 2008, p. 89)

É justamente no que diz respeito à encenação ou, para usar um termo caro aos estudos de cinema, à mise-en-scène, que os dois filmes se diferem. Ambos os filmes, como já foi mencionado, tratam da relação entre corpo e paisagem através dos aspectos formais de sua linguagem. Além disso, ambos possuem tramas com início, desenvolvimento e desfecho e, sobretudo, tratam de narrar um ou vários acontecimentos, o que os caracteriza como filmes narrativos – ainda que cada um ao seu modo, por meio, cada qual, de uma maneira específica de narrar (AUMONT, 2009, p. 109). É, pois, a mise-en-scène, aquilo que Luís Carlos Oliveira Júnior trata como um dos elementos mais importantes da linguagem cinematográfica e, ao mesmo tempo, um dos mais difíceis de se definir (2012, p. 23), que marca a diferença entre a proposta de Dias Selvagens e Amores Expressos, conforme discutiremos a seguir.
Já foi dito anteriormente que Dias Selvagens possui um ritmo mais lento do que Amores Expressos estabelecido, sobretudo, pela montagem e pela duração de seus planos. Para além disso, a constituição própria desses planos, ou seja, a organização dos elementos diegéticos dentro do quadro, que também compreende as movimentações e coreografias dos mesmos, remete a uma forma de encenação que narra a partir das relações de poder entre os objetos dentro do plano – o que está em primeiro ou segundo plano, os close-ups, os planos conjuntos etc - obedecendo, assim, às prerrogativas do cinema narrativo clássico. Sobretudo, o que mais aproxima a maneira como Kar-Wai concebe a ideia de mise-en-scène para esse filme especificamente é o fato de que tudo está nela é dramaticamente importante: trata-se, essencialmente, dos elementos que se traz à cena e da importância que se dá a cada um deles, a partir da forma como são organizados. Dessa forma, a eficácia narrativa, assim como a própria contemplação da cena, se apresentam como questões centrais para esse determinado uso da mise-en-sc ne (OLIVEIRA JR, 2013, p. 41).
Já em Amores Expressos a organização dos elementos no plano se dá de forma mais aberta e dinâmica, muito em razão da quebra de uma relação de contemplação, no cinema comumente exigida pela ação do plano sobre o espectador, e que já não se faz tão presente aqui, em razão, sobretudo, da velocidade com que as imagens se colocam, que dificulta o estabelecimento de uma relação desse tipo. Embora algumas cenas possuam uma decupagem, por assim dizer, que mais se aproxima da narrativa clássica, boa parte do filme se desenvolve a partir de imagens imprecisas, rápidas, confusas e, sobretudo, que ganham seu sentido apenas a partir da imagem total do filme, "do fluxo de sensações visualmente proporcionado" (OLIVEIRA JR, 2013, p. 53).
Em artigo intitulado "Que plano é esse?", publicado na revista Cahiers du Cinema em 2002, Jean-Marc Lalanne faz referência a um artigo escrito pelo crítico de cinema Stéphane Bouquet para a mesma publicação, no qual ele lançava o conceito de "cinema de fluxo", que seria adotado, posteriormente, por diversos outros críticos e teóricos de cinema. Lalanne faz um apanhado das características gerais observadas nesse conjunto recente de filmes que apresentam similaridades estéticas:
Um fluxo esticado, contínuo, um escorrer de imagens na qual se abismam todos os instrumentos clássicos mantidos pela própria definição da mise-en-scène: o quadro como composição pictural, o raccord como agente de significação, a montagem como sistema retórico, a elipse como condição da narrativa. (Lallane, 2002, p. 26, tradução de Ruy Gardnier)

A aproximação entre a percepção estética de Amores Expressos e o conjunto de elementos característicos do cinema de fluxo descrito acima é inevitável, ainda que o filme em muito pouco se assemelhe a outras obras comumente identificadas como representantes dessa estética, sobretudo as obras de cineastas como Hou Hsiao Hsien, Claire Dennis e Apitchatpong Weerasethakul. Talvez o elemento que torne mais evidente o diálogo entre o filme e o cinema de fluxo seja justamente o uso da montagem enquanto sistema retórico, que exprime a partir de si próprio o significado do filme, e também a concepção da elipse e do raccord como condição de existência da narrativa uma vez que, como foi dito anteriormente, a construção espaço-temporal em Amores Expressos se dá, sobretudo, em razão da utilização conjunta e combinada desses dois recursos da linguagem cinematográfica. Ao final, o que permanece no espectador, como produto de toda a experiência, traduz-se mais como uma imagem, uma sensação, do que como um significado.

No lugar da densidade psicológica, enxertam-se blocos de afetos, fragmentos de vida sem significados fechados, uma primazia do sensorial e do corpóreo em detrimento da psicologia e do discurso. Filmes sem clímax, sem oscilação dramática, marcando uma certa indiferença ao tempo à passagem dos fatos. Mais importante que o encadeamento das ações é a invenção de uma "nova rítmica do olhar", é criar a sensação mais que o sentido. (OLIVEIRA JR, 2013, p. 147).

A partir disso, é possível estabelecer a predominância de pelo menos uma abordagem estética, no que diz respeito à mise-en-scène, em cada um dos filmes estudados: se Dias Selvagens aproxima-se daquilo que chamamos de cinema narrativo clássico, Amores Expressos caminha na direção oposta, aproximando-se de uma estética contemporânea, presente sobretudo em filmes realizados a partir dos anos 90, cunhada pela crítica como "cinema de fluxo" ou, ainda, "estética do fluxo". Vale ressaltar que tais definições são utilizadas como ponto de partida de uma tentativa de compreender a linguagem desses filmes e o efeito que exercem sobre o espectador, mas que as mesmas não são e não devem ser aplicadas, de forma alguma, para limitá-los.


4 Conclusões
Em ambos os filmes, são construídas narrativas e atmosferas que traduzem, estética e discursivamente, um determinado recorte espaço-temporal da China – a cidade de Hong Kong nos anos 60, moderna, e já nos anos 90, contemporânea. Esse recorte, muito embora construído minuciosamente através de recursos formais e narrativos, não se pretende uma fiel reconstrução do passado ou um retrato irretocável e realista do presente: é expressão de uma visão bastante específica de um lugar e de seus tempos, que tenta traduzir em linguagem e estilo as várias camadas políticas e históricas do lugar ao qual se pertence, bem como da multiplicidade de "lugares" que o constituem.
A interculturalidade, nesse contexto, é expressa no novo cinema de Hong Kong, sobretudo na obra de Wong Kar-Wai, em razão das questões políticas e econômicas que moldaram a sociedade e a cultura da cidade-Estado, colônia histórica da Inglaterra aberta ao ocidente cultural e economicamente de uma forma não vista na maior parte dos países orientais. Um dos aspectos interessantes desse movimento de representação de Hong Kong em sua nova cinematografia é a tradução da visão dos próprios cineastas sobre seu lugar realizada através da linguagem do cinema, sendo que em boa parte deles a trama do filme não busca discorrer sobre aspectos políticos da cidade; é na própria forma do filme e em sua realização – fotografia, arte, mise-en-scène – que a discussão sobre esses temas é levantada, sempre carregada pelos aspectos autorais da visão do cineasta.
Observando o fato de serem Dias Selvagens e Amores Expressos obras quase inaugurais da filmografia do cineasta, é possível notar como seus temas, sobretudo a representação e a (re)construção de Hong Kong, estão presentes desde o início de seus trabalhos. Ao longo do tempo, a forma como essas questões são impressas nos filmes se aprimora e torna-se parte fundamental do estilo característico de Wong Kar-Wai. Não à toa, seus filmes mais celebrados pela crítica e pelo público são os que se apropriam dessa abordagem política do local e inscrevem-na em sua própria forma. Em destaque, citemos Amor à Flor da Pele e 2046: Os segredos do amor, realizados já durante os anos 2000, que possuem a marca autoral do cineasta de forma intensa, unindo a forma ao discurso dos filmes de maneira quase indissociável.
Além disso, a forma como o cineasta se utiliza de diferentes regimes estéticos da imagem para construir suas narrativas, aqui comentada através da análise da relação entre Amores Expressos e Dias Selvagens com o cinema de fluxo e o cinema clássico, respectivamente, permanece como uma questão cara ao seu cinema, que flerta com diferentes gêneros e estilos, desde a Wuxia, gênero de origem chinesa que mistura fantasia ao universo da artes marciais, até o melodrama clássico, de acordo especificamente com a proposta de cada obra. Seu estilo, já consolidado, torna-se autorreferencial ao propor um diálogo entre toda a sua obra em conjunto; Wong Kar-Wai constrói algo que ultrapassa a forma e se comunica com o espectador através de uma linguagem própria e independente, que serve aos seus filmes e apenas a eles; cinema autoral, de fato.


Referências Bibliográficas
AUMONT, Jacques. O Cinema e a Encenação. Lisboa: Edições Texto e Grafia, 2008.
________________ et al. A Estética do filme. Campinas, SP: Papirus, 1995.
ABBAS, Ackbar. Hong Kong: Culture and the politics of disappearance. Londres: University of Minesota Press, 1997.
ELSAESSER, Thomas; HAGENER, Malte. Film Theory. Nova York: Taylor & Francis, 2010.
ERNI, John Nguyet. Like a Postcolonial Culture: Hong Kong re-imagined. In: Cultural Studies 15. 2001. p. 389-418.
LALLANE, Jean Marc. "C'est quoi ce plan?". In: Cahiérs du Cinema, n. 569, junho de 2002. Paris: 2002, pp.26-27.
LOPES, Denilson. Paisagens transculturais. In: FRANÇA, Vera; LOPES, Denilson. Cinema, Globalização e Interculturalidade. Unochapecó: Argos, 2010.
MOURA, Hudson. O cinema intercultural na era da globalização. In: FRANÇA, Vera; LOPES, Denilson. Cinema, Globalização e Interculturalidade. Unochapecó: Argos, 2010.
OLIVEIRA JR, Luis Carlos. A Mise-en-Scène no Cinema: do clássico ao cinema de fluxo. Campinas: Papirus, 2013.
SHOHAT, Ella e STAM, Robert. Crítica da imagem eurocêntrica: Multiculturalismo e representação. São Paulo: Cosac Naify, 2006.

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