\"De Eva a Santa, a dessualização da mulher no BRasil\", in Recordar Foucault

July 18, 2017 | Autor: Margareth Rago | Categoria: Gender and Sexuality, Michel Foucault
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• Ao Leitor sem Medo - Hobbes escrevendo contra o seu tempo - Renato Janine Ribeiro • Crime, Violência e Poder - Paulo Sérgio Pinheiro (org.)

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Elegia Erótica Romana - Paul Veyne Escritos Indignados - Paulo Sérgio Pinh~iro Literatura como Missão - Nicolau Sevcenko Nietzsche Hoje? - Scarlett Marton (org.) A Ordem Médica - Jean Clavreul Passeios ao Léu - Gérard Lebrun Pornéia - Aline Rousselle Repressão Sexual - Essa nossa (deslconhecida - Marilena Chauí Sade, Meu Próximo - Pierre Klossowski Terra Sem Mal - O profetismo tupi-guarani - Hé/(me C/astres

Recordar Foucault Os textos do Colóquio Foucault

Coleção Primeiros Passos • O que é Poder -

Gérard Lebrun

Coleção Tudo é Hist6ria • A Etiqueta no Antigo Regime -

Renato Janine Ribeiro

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f Copyright © dos Autores Capa: João Baptista da Costa Aguiar Revisão: José W. S. Moraes Lenilda Soares Mârcia Copola

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Editora Brasiliansa S.A. R. General Jardim, 160 01223 - São Paulo - SP Fone (011) 231-1422 ~

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Apresentação - Renato Janine Ribeiro. . . . . . . . . . . . .. . 7 Transgredir a finitude - GérardLebrun' .. . ; :0_. . • •• • • • 9 O discurso diferente-RenatoJanine Ribeiro . ... ; ... 24· Foucaultleitor de Nietzsche - Scarlett Marton ........ 36 Nas origens da História da Loucura: uma retificação e seus limites - Pie"e Macherey ..................... 47 A corporeidade outra -José Carlos de Paula Carvalho .. 72 Uma arqueologia inacabada: Foucault e a psicanãlise RenatoMezan ... ;'........................... 94 A loucura antes da história -JoãoA. Frayze-Pereira . . .. 126 História e doença: a partitura oculta (A lepra em São Paulo, 1904-1940) ....,.italoA. Tronca .............. 136 , O Alienista de Machado,de Assis: a loucura e a hipérbole -Luiz Dantas ... _... :' .... _. : .. '... ': ..... '. '.. '. '. '144 .. A vinha e a rosa: sexualidade e simbolismo em Tristão e Isolda -Hilário FrancoJr. ..................... 153_ Charles Baudelaire: o discurso em desordem - Nicolau Sevcenko . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 186 O lugar das instituições na sociedade disciplinar - Salma TannusMuchail .......... _................... 196 Genealogia e política - Antonius Jack Vargas Escobar .. 209 De Eva a Santa, a dessexualização da mulher no BrasilL. Margareth Rago ........................... 219 O castigo exemplar dos escravos no Brasil colonial SilviaHunoldLara ............................ 229 0 ••

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rf Foucault: levantamento bibliográfico de artigos e periódicos - Márcia C. Sampaio Ferraz, Vera Lúcia Junqueira, Márcia N. dos Reis Carvalho e Eunice do Vale 239

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Michel Foucault faleceu em junho de 1984. Estava em plena produção intelectual, e sua morte foi muito sentida inclusive no Brasil, onde, das vezes em que esteve, deixou amigos, admiradores e idéias. Em São Paulo, especialmente, lecionou duas vezes no Departamento de Filosofia da USP, uma em 1965, na rua Maria Antônia, outra em 1975, já na Cidade Universitária - interrompendo este segundo curso em protesto contra atos de repressão policial. Também deu conferências, acorridas, no Rio de Janeiro. Para lembrá-lo, O Departamento de Filosofia da USP promoveu um Col6quio sobre a sua obra e os seus temas, de 15 a 20 de abril de 1985, com O apoio da FAPESP e da Brasiliense Produções Culturais. Este volume publica parte dos trabalhos apresentados ao Col6quio Foucault, que teve a participação de quarenta pesquisadores, comunicando-se seus interesses, discutindo suas inquietações. Recordar Foucault, para n6s, não é porém pagar uma dívida da instituição com O visitante: é marcar a nossa proximidade de um pensamento que não nos proporcionou apenas conhecimentos, infundiu-nos, também, inquietações - que são a consciência de nossos desconhecimentos. Não é esta uma velha obsessão filos6fica, a de saber-se que não se sabe? De S6crates a Hobbes, a Merleau-Ponty, entre tantos outros, a paixão de conhecer esteve ligada a uma depuração, a um desprendimento; a douta ignorância, os elogios da curiosidade e dafilosofia marcam uma ascese - que é um processo de vida.

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APRESENTAÇÃO

Este moto perpetuo da curiosidade, que consiste em desfazer as figuras que se construiu, desfazê-las com tanto rigor quanto se pôs em edificá-las, é um dos sentidos fortes, para n6s, do que é pensar. Há, certamente, muitos estilos de pensamento e filosofia; neste proprio livro aparecem vários, distintos; mas a cercania que temos de Foucault está neste amor a um pensamento que, como o de Heidegger (O que significa pensar?), jamais se reduziu à mera razão, a um trabalho de obra que nunca restringiu a descoberta em favor da exposição, neste amor, enfim, à descoberta que faz e desfaz. Pudéssemos n6s, antes de passarmos às falas sobre Foucault, fazer nossas as frases dele, perto de morrer, na bela página em que resume o que entendeu por filosofia:

Transgredir a tinitude Gérard Lebrun*

O motivo que me impulsionou [a escrever este livro] foi muito simples. Para alguns, espero, este motivo poderá ser suficiente por ele mesmo. É a curiosidade - em todo caso, a única espécie de curiosidade que vale a pena ser praticada com um pouco de obstinação: não aquela que procura assimilar o que convém conhecer. mas a que permite separar-se de si mesmo. De que

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oucauit descreve em várias ocasiões, e sob vários enfoques, a grande ruptura que ocorre na cultura ocidental ao passar-se do século XVIII para o XIX, quando desaparecem os saberes da "Representação" (Gramática Geral, História Natural, Análise das Riquezas). Durante a "idade da representação", era óbvio que conhecer consistia em reconstituir o encadeamento das naturezas simples, ou o encaixamento das espécies naturais. Também era óbvio que a ordem das coisas, já por seu princípio, era passível de desdobrar-se num quadro. Conhecer era ver, "no sentido de perceber". E, mercê do bom uso do Método, esse saber não passava, em todos os domínios, da contínua supressão da distância - aliás puramente aparente - entre a representação e o ser. Ora, é essa aliança que se rompe quando emergem, desligados da Representação, es· tes objetos novos que são a Vida (para a biologia), a linguagem (para a filologia), o trabalho (para a economia política), e se dissolve "o campo homogêneo das representações ordenadas" . 1 Tudo então se modifica, a começar pelo sentido do conhecimento-visão: ver será "conservar, da experiência, a maior

valeria a obstinação do saber se ele assegurasse apenas a aquisição dos conhecimentos e não, de certa maneira, e tanto quanto possível, o descaminho daquele que conhece? Existem momentos na vida onde a questão de saber se se pode pensar

diferentemente do que se pensa, e perceber diferentemente do que se vê, é indispensável para se continuar a olhar ou a refletir. (... ) O "ensaio" - que é necessário entender como experiência modificadora de si no jogo da verdade, e não como apropriação simplificadora de outrem para fins de comunicação - é o corpo vivo da filosofia, se, pelo menos, ela for ainda hoje o que era outrora, ou seja, uma "ascese", um exerclcio de

si, no pensamento. (O uso dos prazeres, trad. Maria Thereza Albuquerque, Rio de Janeiro, Graal, 1984, p. 13) Renato Janine Ribeiro Organizador do Colóquio Foucault i

Este é o momento de agradecer: à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, pelo auxilio que proporcionou ao Colóquio; a Marilena Chaui, pelo impulso; a Jorge Coli, que se deu ao trabalho de transcrever, pelo telefone internacional, a comunicação de Luiz Dantas, para que chegasse a tempo; a Djalma lsidoro de Mello, a Scarlett Marton, aos funcionârios do Departamento de Filosofia da USP e a todos os que apoiaram o Col6quio, trazendo-lhe os seus textos e idéias, a sua curiosidade ou a sua atenção.

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(*) Da Universidade de São Paulo. (1) Les mots et les choses, Paris, Gallimard, 1966, p. 255. (As citações são traduzidas do francês, diretamente; damos, porém, 'quando possrvel, a página da tradução disponivel em português - neste caso, As palavras e as coisas, Lisboa, Portugâlia Editora, 1968, pp. 318-319 - N.T.)

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opacidade corporal" possível, e "penetrá-Ia com um olhar que nunca lhe traz mais que a sua própria claridade". 2 O ser humano, portanto, deixa de ser esse embaixador do Verbo Divino que detinha o poder de fazer desdobrar-se a mathésis ou a ordem taxionômica. Submetido "à Vida, à Vontade, à Palavra", o ser humano - transformado em homem - agora somente poderá praticar o "Conhece-te a ti mesmo" mediante recurso a saberes que não mais dependem de sua clara consciência, e que ameaçam o seu estatuto de Sujeito. Assim sendo, esses novos saberes encerraram o ser humano numa finitude muito diferente da que fora delineada pela ontoteologia. 3 Relativamente ao saber divino, a finitude clássica designava tudo o que tolhia o acesso do homem à verdade. Qual era o meio excelente de reconhecê-Ia? Os erros dos sentidos e da imaginação. Vejo o Sol a duzentos passos, o bastão quebrado dentro d'água, a Lua maior no horizonte do que no zênite: nostrae naturae infirmitas... Contudo, quando a Vida, a Linguagem e o Trabalho se tomam, na sua própria opacidade, objetos de saber, é uma outra idéia de finitude que se impõe. Para marcar esta nova Finitude, já não é mais preciso meditar na dependência da substância criada relativamente ao Criador, ou na fragilidade do "junco pensante" perante um universo que pode esmagá-lo a qualquer momento. Não é mais preciso, sequer, confrontar as condições de meu conhecimento com a Idéia de um "entendimento intuitivo". Estamos postos, agora, diante de um Faktum que escapara ao pensamento clássico: a saber, que o ser humano somente se pode pôr como sujeito e como indivíduo porque já está "aprisionado" num elemento estranho, investido por algo que lhe é Outro. - Por certo, o classicismo podia falar de "meu lugar limitado no universo, (de) todos os marcos que medem o meu conhecimento e a minha liberdade" - mas não chegava a reconhecer esta alienação constitutiva, inextirpável. Ê verdade que a Terceira Meditação me recorda que "não sou o autor de meu nascimento e de minha existência". Mas, no âmago desta existência, ainda há enorme lista das

coisas de que não sou autor: a língua que falo, a sexualidade que me coube, as relações de produção que me tomam, etc. Ora, nestes temas, o pensamento clássico apenas poderia identificar outras tantas formas de minha posição de inferioridade perante o infinito - sinais suplementares de uma situação humilhante, é certo, porém ainda assim invejável na ordem da Criação. Nada, em todo caso, que indique que algo contesta, ameaça o pensamento no seu próprio interior. Uma tal eventualidade cuida Descartes de descartar desde o início: "Nunca se pode excluir que o homem enlouqueça, porém o pensamento, enquanto exercício da soberania de um sujeito que atende ao dever de perceber o que é verdadeiro, não pode ser insensato". 4 - Será preciso aguardar o homem da episteme moderna - ou melhor, "a figura nova" que recebeu "esse velho nome" 5 - para que a Finitude não seja mais pensada como um território cujos limites posso traçar, mas sim entrevista como a própria sombra do homem, como uma opacidade origmária que nenhum exercício da consciência de si jamais poderá dissipar. Ê desta "experiência" que brota a analítica moderna da Finitude: "(o homem), desde que pensa, desvenda-se a seus próprios olhos apenas sob a forma de um ser que já é - numa espessura necessariamente subjacente, numa irredutível anterioridade - um vivo, um instrumento de produção, um veículo para palavras que a ele preexistem". ' Assim nasce o "Cogito moderno", a respeito do qual disse Merieau-Ponty que "ele não define a existência do sujeito pelo pensamento que tem este de existir, nem converte a certeza do mundo em certeza do pensamento do mundo" . Um cogito, portanto, que constata a impossibilidade de igualar-se, um dia, o Eu penso ao Eu sou - e que Foucault analisa, pastichando Descartes. - Quando Descartes pretendia determinar, de maneira apoditica, "qual eu sou eu, eu que eu reconheci ser", ele procedia por exclusões: "Não sou, absolutamente, esta reunião de membros ... não sou, absolutamente, um ar sutil e penetrante ... não sou, absolutamente, um vento, um sopro ... ". O sujeito moderno certamente tam-

(2) Naissance de la clinique, Paris, PUF, 1963, p. IX. Nascimento da cllnica, Rio de Janeiro, Editora Forense-Universitãria, 19n, p. XII. 13) Naissance de la clinique, p. 200; Les mots et les choses, pp. 3Zl e segs. Nascimento da clinica, p. 228; As palavras e 8S coisas, pp. 411 e segs.

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(4) Histoire de /a folie à /,âge classique, Paris, Gallimard, 2~ ed., 1972, p. 58; História da/oucura, São Paulo, Perspectiva, 1978, p. 47. (5) Lesmotsetleschoses, p. 333; Aspa/avrss8as coisas, p. 419. (6) Lesmotsetleschoses, p. 324; Aspalavraseas coisas, p. 408 .

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bém poderia praticar a mesma exclusão indefinida: "Poderei eu dizer que sou esta linguagem que falo ... ? Poderei eu dizer que sou esta vida que sinto no fundo de mim ... ?". 7 Não, não posso. E no entanto, por estranhos que me sejam estes elementos, não resido neles como um piloto em seu navio. "Tanto faz eu dizer que sou, ou que não sou, tudo isto." Por isso, é preciso reformular a questão cartesiana, e perguntar: "Que devo ser eu, eu que penso e que sou o meu pensamento, para eu ser o que eu não penso, para que meu pensamento seja o, que eu não sou?". 8

sem fim, entre a descrição e a fundação. Praticamente não nos reserva surpresas, pois jã estamos previamente assegurados de "descobrir no homem o fundamento do conhecimento, a definição de seus limites e, para concluir, a verdade de toda a verdade". 10 Mais ainda: esse discurso nos mantém num novo sono dogmãtico, que só acabarã quando se tiver a coragem de reconhecer que o homem não passa do nome de um dispositivo da episteme moderna, e quando se tiver "suspendido ... o preconceito antropológico sob todas as suas formas", para "tornar a interrogar os limites do pensamento". Nietzsche, acrescenta Foucault, foi quem deu o sinal para isso. - Sartre parece constituir o principal alvo dessa pãgina. Mas Foucault visa, para além dele, toda a analítica da finitude isto é, a fenomenologia e sua derivação existencialista. Depois de analisar a sua dialética com uma minúcia que o leitor desprevenido confundirã com simpatia, declara-nos sem mais cerimônias que toda essa filosofia é estéril, e que o seu esgotamento bem poderã marcar, de uma vez por todas, a falência de todo um estilo de pensamento. Hã, porém, em pelo menos uma outra passagem de As palavras e as coisas, a abertura de um enfoque algo diferente sobre a fenomenologia. A analítica da finitude - é o que diz Foucault - mostra "como o pensamento pode escapar de si mesmo", e às vezes acontece que ela questione o ser do homem, "nessa dimensão' pela qual o pensamento se dírige ao impensado e se articula nele". Incorreríamos, portanto, em equívoco, se levãssemos demasiado a sério o projeto oficial de Husserl. A fenomenologia não é "a retomada de uma velha destinação racional do Ocidente" . 11 Ela também foi uma filosofia da "era do homem", de modo que não hã o que estranhar se, "apesar de principiar por uma redução ao Cogito, ela sempre foi levada a questões, à questão ontológica". Não hã o que estranhar se a fenomenologia, transgredindo-se a si mesmo, foi levada a "pensar o impensado", esse Outro absoluto do homem, que o pensamento do século XIX evocou de maneira intermitente. - A fenomenologia, por sinal, não é uma exceção. Outras anãlises de Foucault nos dão a entender que a

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Contudo, é hora de recordar que Foucault não estã falando aqui, em seu próprio nome: contenta-se em designar um lugar, em seu mapa arqueológico, à "Finitude moderna" - e, muitas vezes, dã a palavra a Merleau-Ponty, esse incansãvel crítico do "pensamento que sobrevoa". Como poderia o pensamento, perguntava Merleau-Ponty, elidir o seu enraizamentono corpo, na linguagem, na infância? A menos que vã viver em Sírius, ele terã de reconhecer que "o espírito é o outro lado do corpo", que ,"o mundo sensível é mais velho que o universo do pensamento". Este tema Foucault retoma quando vai descrever o "Cogito moderno": "Como pode o homem ser o sujeito de uma linguagem que se formou sem ele, desde milênios, e cujo sistema lhe escapa ... ?". 9 Vale a pena repetir: Foucault fala aqui como arqueólogo, e descreve a forma de Finitude que devia necessariamente corresponder à "era do homem" . Da mesma maneira, mutatis mutandis, que a Fenomenologia do Espírito descrevia "a consciência infeliz" ou "a Aufkliirung" . Acontece, porém, que o arqueólogo se desfaça de sua neutralidade e emita um juízo - severo - sobre a analítica da finitude. Pois este discurso gira no vazio. O seu combate contra o cientismo e o positivismo jã de nada serve: "A verdadeira contestação ao positivismo não estã num retorno ao vivido ... ". O retorno ao vivido fica aprisionado num vaivém (7) Les mots et Iss choses, p. 335; As palavras e as coisas, p. 422.

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(S) Los mots et les choses, pp. 335-336; As palavras e as coisas, p. 422. {9l Les mots et les choses, p. 334; As palavras e as coisas, pp. 420-421.

(10) Les mots et les choses, p. 352; As palavras e as coisas, p. 444. (11) Les motsetles choses, p. 336; As palavras ees coisas, p. 423. '0. 0

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Em poucos anos - os que são marcados pelos nomes de Tuke e Pinel-, o internamento muda de função. Deixa de constituir uma simples medida de proteção social. Desde então, os loucos não serão mais misturados com os debochados, os pródigos e os blasfemos: de elementos a-sociais, convertem-se em doentes, objeto de observações e cuidados clínicos. Sem dúvida, o asilo continua sendo um recinto de exclusão, e o louco não é um paciente qualquer. Se voltou a ser nosso irmão, é também uma razão expulsa de si mesma, devolvida à "inocência animal", embora conserve - o que é pior - as aparências da razão. Pois esses insensatos raciocinam e respeitam o princípio de contradição. Quem se toma por Napoleão nega ser Luís XIV. Aquele que pensa ter um corpo de vidro evita' esbarrar em objetos duros ... A essa razão naturalizada, é preciso dar um estatuto - e foi com este fim que se inventou a psicologia: "O que era doença dependerã, agora, do orgânico; e o que pertencia à desrazão, à transcendência de seu discurso, serã nivelado no psicológico". IJ O nascimento da psicologia marca portanto, a um só tempo, o abandono da noção de Desrazão (que a partir de então se terá por obscurantista) e o reconhecimento do fato de que a "doença mental" é, porém, alguma coisa que ultrapassa os processos orgânicos - de que o tratamento no asilo não se pode reduzir à ducha fria, ao chicote ou aos sedativos. Ê preciso falar com os doentes, ter a paciência de desemaranhar suas ilusões, tentar devolvê-los à sua essência de "sujeitos responsáveis". Se o psiquiatra não é um médico como os outros, é portanto porque sua tarefa consiste, na verdade, em exorcizar por novos meios a antiga Desrazão. Como explicar, então, o inesperado banimento desse conceito? Ê nesse ponto que encontramos, pela primeira vez na obra de Foucault, o grande corte que separa a era da Representação e a era do homem. A Desrazão era um conceito típico da Representação. Do louco ela fazia um homem cegado, apartado da verdade - mais um insensato no sentido bíblico do que um doente. Com a "loucura" medicalizada, tudo serã bem diferente. Nela, o homem não perde mais o acesso à Verdade, o contato com o Verbo Divino: estes traços já não per-

episteme moderna por mais de uma vez esteve a ponto de superar a figura de finitude, ainda aconchegante, por ela mesma constituída, e que ela própria nos convida a problematizar a base da qual trabalhava.

* * * Em que consiste exatamente o carãter insatisfatório da "Finitude Moderna" descrita pelos filósofos? Por que precisa ser suspensa essa estrutura? - Uma passagem de Diferença e Repetição, de Deleuze, pode esclarecer esse aspecto da leitura que Foucault faz do século XIX. Os filósofos, diz Deleuze, e em particular os do século XIX, muitas vezes tentaram ampliar a imagem do qUe eles (comodamente) chamavam de "negativo", de modo a não mais o reduzirem ao erro por distração, tão caro a Platão (vejo Teeteto, e digo-lhe "Bom-dia, Teeteto"). Mas não foram por essa via tanto' quanto deviam. Se tivessem meditado sobre Flaubert, por exemplo, compreenderiam que uma noção como a da burrice "é objeto de uma questão transcendental: como é possível a burrice". 12 Como é que o indivíduo é tomado por "uma animalidade distintivamente humana?" Não se ousou enfrentar esse tipo de questões. Mas tais questões tampouco foi possível escamotear por completo. - Ora, não é justamente essa situação ambígua que vemos descrita, em algumas pãginas de Foucault? Pãginas que merecem ter a nossa atenção, pois nos previnem contra a tentação de reduzir sua obra a uma alegre e ligeira demolição de saberes ingênuos e farisaicos. Não hã dúvida de que Foucault, do começo ao fim, é esse demolidor. Mas serã ele apenas isso? Tomemos o exemplo de um saber que ele jamais isenta de sua severidade: a psicologia, nascida no século XIX, da forma como aparece na Hist6ria da loucura. Serã que a psicologia apenas cumpre uma tarefa de oblitera· ção e recalcamento? Não apontarã, mesmo sem o saber, para a idéia de uma outra "finitude" _ que, esta, jã não seria considerada dominãvel? Um dos momentos decisivos da Hist6ria da loucura é o do apagamento, no final do século XVIII, da noção de Desrazão.

(13) Histoire de /a folie, pp. 359-360; História da loucura, p. 337.

(12) Gilles Deleuze, Différence et répétition, Paris, PUF, 1968, pp. 194-

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tencem, como sabemos, à "finitude moderna". O que lhe sucede é outra coisa: ele se afasta de sua essência (de ser razoãvel e de cidadão). Não hã dúvida de que a fronteira entre o alienado e o são de espírito continua nitidamente traçada, mas a divisão jã não se efetua segundo o mesmo critério. É que, agora, "o ser humano não se caracteriza por uma certa relação com a verdade, mas detém como seu bem próprio, a um tempo exposto e escondido, uma verdade".14 E o que mais importa, para o saber do século XIX, é que essa verdade apenas esteja ocultada, e que fazê-la reaparecer dependa da arte do terapeuta. Essa nova percepção que se tem do insensato aparece com toda a clareza no texto da Enciclopédia de Hegel a respeito da loucura (§ 408). O louco deixou que o "gênio mau" da particularidade triunfasse dentro dele, mas não perdeu a razão. Os loucos continuam sendo sittliche Wesen, essências morais, continuam tendo consciência do Bem e do Mal - e é por isso que o seu lugar é no asilo, não na prisão (nada têm a ver com os perversos, cujo "único delirio é o do vício", como dizia Royer-Collard acerca de Sade). O terapeuta, acrescenta Hegel, pode assim apoiar-se no que hã de "racional" no doente para devolvê-lo a seu besseres Selbst, ao melhor de si mesmo. O louco é um ser reintegrãvel na razão. Essas pãginas contrastam com as que a Fenomenologia do espírito consagra ao Sobrinho de Rameau (Foucault referese a elas). O louco, medicalizado por Pinel, não submete mais o homem racional à prova que o Sobrinho impunha à "consciência honesta" da Aufkliirung. O discurso de desrazão do Sobrinho era a "perversão de todos os conceitos e de todas as realidades" a que se apega a "consciência honesta", era a encenação cruel de suas contradições. Em Hegel, é este o momento em que a dialética se alia com a Desrazão contra o Entendimento. Mas tal momento serã de curta duração. E o elogio de Pinel, na Enciclopédia, mostra o quanto Hegel aprecia que o asilo moderno tenha transformado a Desrazão numa doença em princípio curãvel - o quanto estã satisfeito de ver neutralizada mais essa figura da "Finitude". - Hegel constitui um bom exemplo da maneira como saberes e filosofias

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tornaram inofensiva a questão da loucura, preferindo relegar ao esquecimento a risada do Sobrinho e o que nele, segundo Foucault, se anunciava: "que o homem é remetido sem cessar da razão à verdade não verdadeira do imediato". - Este é o primeiro aspecto pelo qual a razão esclarecida assume a tutela da loucura. Mas quem sabe ler entre as linhas pode interpretar de outro modo a "experiência" da loucura tal como foi constituída pelo começo do século XIX. Não serã, a fronteira que separa o louco do são de espírito, mais indecisa do que parece à primeira vista? Podemos até nos perguntar se, nessa episteme que postula que "o ser humano deve poder, pelo menos teoricamente, tornar-se transparente por inteiro ao conhecimento objetivo", não seria a loucura "a primeira figura de objetivação do homem". 15 Desde que os loucos são tidos por seres racionais em potência, o ser racional é considerado como um candidato à loucura. De resto, ele precisa do louco para conhecer melhor, por contraste, a sua essência, e determinar o perfil de sua normalidade. Assim, diz Foucault, libertando o louco de suas cadeias, Pinel "acorrentou ao louco o homem e sua verdade. Desde esse dia, o homem tem acesso a si mesmo enquanto ser verdadeiro; mas este ser verdadeiro somente lhe é dado sob a forma da alienação ... o homem, hoje em dia, só tem verdade pelo enigma do louco que ele é e não é" . 16 Foucault pretenderã apenas debochar, aqui, do objetivismo das ciências humanas? É pouco provãvel, pois o objetivo da arqueologia não é diretamente polêmico. O arqueólogo propõe-se remontar até as condições de possibilidade de uma "experiência" (da loucura, da clínica). E o Nascimento da clínica precisa: "Este livro não é escrito em favor de uma medicina e contra outra, ou contra a medicina, em favor de uma não-medicina. Aqui, como em outros lugares, trata-se de um estudo estrutural que procura decifrar, na espessura do histórico, as condições da própria história". 17 - Lendo esta pãsina de Foucault, parece-nos que a superação da "finitude moderna" estava incluída na própria cultura que a elaborava. - Não diremos que esse tema foi recalcado ou censurado por

b 114) Histoire de la fOlie, pp. 548-549; Hist6ria da loucura, p. 522. ~

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115) Histoire dela folie, p. 481; Hist6ria da loucura, pp. 456-457. 116) Histoire dela fo/ie, p'. 548; Hist6ria da loucura, pp. 521-522. (17) Nsissance de la clinique, p. XV; Nascimento da cllnics, p. XVIII.

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tal cultura (assim retomaríamos aos pressupostos da exegese, que faziam horror a Foucault). Antes diremos, para seguir a metodologia do autor, que esse tema constitui uma linha de "regularidade" legivel nessa "formação discursiva". Tomemos um outro exemplo. Um dos traços característicos do século XIX é o privilégio epistemológico que se concede ao patológico. "Não foi por acaso.que o século XIX preferiu perguntar à patologia da memória, da vontade e da pessoa o que era a verdade da lembrança, do querer e do indivíduo." 18 Esse tema já aparecia nas aulas de Foucault, entre 1953 e 1955: será por acaso que a psicologia dos testes e a psicologia da criança nascem do estudo das crianças anormais? de onde vem a noção de idade mental, se não for da patologia? de onde vem a pedagogia moderna, se não for da intenção de integrar na escola as crianças retardadas? - Não, não foi por acaso que o desaparecimento da Desrazão transformou a função do patológico, deixando este de constituir o mero "negativo" da normalidade. O doente mental tomou-se um documento vivo, uma mina de informações. Ele é irredutivelmente o meu Outro, mas é decifrando este Outro que eu tenho as melhores oportunidades de aprender quem eu sou. Eis o esboço de uma figura de Finitude que não mais se poderá desdobrar sob o olhar de um Sujeito. - Relendo o fim da Hist6ria da loucura, quase ousaríamos dizer que ocorre como que um "progresso epistemológico", do ponto de vista do arque6logo, ao passar-se da era clássica à idade da psiquiatria. Na "loucura" moderna, "o homem não é mais considerado numa espécie de retiro absoluto perante a verdade; ele é a sua verdade e o contrário de sua verdade; ele é ele mesmo e outra coisa que não si mesmo ... " . E o mesmo tom reaparece na página de As palavras e as coisas que retoma e resume esse tema: "nossa consciência ... vê surgir o que, perigosamente, está o mais próximo de nós ... ; a finitude, a partir da qual somos e pensamos e sabemos, aparece subitamente à nossa frente - existência a um só tempo real e impossível, pensamento que não podemos pensar, objeto para nosso saber, mas que sempre se furta dele" .19 - Contudo, uma coisa é a "expe-

(18) Histoire dela folie, p. 481; História da/aucura, p. 457.

(19)- Les mots et les choses, p. 387; As palavras e as coisas, p. 487.

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riência" que aparece, outra coisa são OS discursos dos psicólogos, médicos e filósofos que vivem nessa "experiência". Eles preferem representar, a seus olhos e aos nossos, o louco como um ser racional diminuído, quando na verdade o louco, por obra deles, tomou-se aquele cuja presença me faz sentir (ou deveria fazer-me sentir) a minha fragilidade de vemünftiges Wesen, de ser racional. Os saberes esquivaram aquilo mesmo que se anunciava nas suas práticas, nos seus métodos. Ê o que Foucault afirma com toda a clareza no final da Hist6ria da loucura. A psicologia, desde que nasceu, esteve "na encruzilhada": ou enfrentar a escura verdade do homem e "terminar filosofando a marteladas", ou então tentar, interminavelmente, submeter o homem a um "conhecimento verdadeiro", travando ao mesmo tempo uma polêmica, não menos interminável, com as Analíticas da Finitude. Escolheu-se esta última via, a da facilidade. Ajeitando-se de modo a poder. sempre recuperar - quer pelo conhecimento objetivo, quer pelo retomo ao vivido - o sentido dos conteúdos da Fínitude, o pensamento moderno pecou por excesso de timidez . Já a medicina não teve tais pudores. E talvez seja nestas páginas, que descrevem a irrupção da anatomia patológica no saber médico, que melhor se pode perceber o que Foucault esperava de uma radicalização da Finitude. Desde Bichat, a doença não é mais compreendida como uma "contranatureza", como uma desrazão orgânica, como o foi na era clássica. Também neste domínio a divisão "ser/não-ser" vê-se posta em xeque. Percebe-se que a degeneração dos órgãos não somente obedece a leis, mas que ela é o avesso do funcionamento do organismo - que "a morte não se insinua apenas sob a forma do acidente possível; ela forma, com a vida, com os seus movimentos e o seu tempo, a trama única que a um só tempo a constitui e a destrói". '" Essa túnica de Nesso, como poderíamos considerá-la como "negativo"? A doença não é desvio: é também uma análise, epistemologicamente preciosa, dos sistemas de tecidos, de seus diversos graus de resistência e fragilidade. E a própria morte não se reduz a "uma noite em que a vida se apaga": 21 é, antes de mais nada, a melhor fonte

(20) Naissance de la clinique, p. 159; Nascimento da cllnica, p. 180. (21) Naissance de la clinique, p. 146; Nascimento da cllnica, p. 165.

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de informações para o médico. "A partir de agora, é do alto da morte que se podem ver e'analisar as dependências orgânicas e as seqüências patológicas". 22 O que foi denominado o "vitalismo" de Bichat consistiu portanto, acima de tudo, no reconhecer "a ligação fundamental entre a vida e a morte". "Foi quando a morte se tornou o a priori concreto da experiência médica que a doença pôde desligar-se da contranatureza e tomar corpo no corpo vivo dos individuos".23 Foi nessa nova problematização que nasceu o conhecimento objetivo do individuo vivo, assim como, acrescenta Foucault, "da experiência da desrazão nasceram todas as psicologias e a própria possibilidade da psicologia". Em muitas regiões os novos saberes transferem, sigilosamente, a verdade do ser humano para uma alteridade indissolúvel - que, no limite, dissolve o homem. Eles abrem "uma enorme sombra" que as analiticas da finitude tentam dissipar - porém em vão. "Esta sombra que vem de baixo é como um mar que se tentasse beber." 24

* * * Valia, pois, a pena mostrar como a episteme do século XIX conseguiu, em tantos pontos, transformar numa Alteridade positiva o que até então fora relegado ao "negativo". É verdade que esses saberes, ao mesmo tempo, fundavam a "finitude moderna", na qual residiu a maior parte das filosofias desde a de Kant, e que continua sendo (por quanto tempo ainda?) a nossa morada. Mas a obra de tais saberes é bem mais instrutiva do que o discurso dos filósofos que só muito raramente consegue pôr-nos perante a alteridade que estã no âmago -de nós mesmos. Enquanto a psicopatologia, a medicina, a economia politica pelo menos foram capazes de nos deixar entrever essa Alteridade não dominãvel, os filósofos se preocuparam mais foi com nos orientar na finitude, e com nos persuadir de que, nela, ainda permaneciamos bei Hause. 2S Os filósofos, mesmo quando parecem enfrentar grandes riscos, continuam munidos de um fio de Ariadne; as verdades de fato 1221 Naissance de la clinique, p. 145; Nascimento da cllnica, p. 166.

1231 Naissance de la clinique, p. 198; Nascimento da cllnica, p.

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(24) Les mots st /6S choses, p. 224; As palavras e as coisas, p. 280.

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com que deparam podem, sempre, ser transformadas em verdades de razão. É por isso que, dessa finitude moderna, arrumada com tanta engenhosidade, era necessário sair. Não para propor outra coisa: simplesmente para viajar com toda-a liberdade. Era preciso cortar as amarras. E é a partir disto que adquire sentido a noção - à primeira vista tão estranha - de "era do homem": positivistas, fenomenólogos, marxistas, vocês não sabem que vivem num mesmo e único território; eu, porém, fui mais adiante. Parece que Foucault deve ter percebido desde cedo a urgência dessa transgressão - que o levou a cortar as pontes com a fenomenologia e, no mesmo gesto, a afastar de si todo o discurso filosófico. Esta é apenas - não resta dúvida - uma dentre as abordagens possíveis da obra de Foucault. Importa, porém, ver a que tipo de colocações ela força o leitor. Em primeiro lugar, deve-se admitir que é vão procurar por uma filosofia de Foucault - o que significaria reinseri-Io num tipo de discurso que ele pretendeu, de forma sistemãtica, subverter. Deve-se admitir que não teria nenhum interesse recolocã-Io à força na vizinhança dessas analiticas da Finitude cujo iminente falecimento As palavras e as coisas anunciam, nem tampouco forçã-Io para dentro do recinto, da clausura, da Metafísica - em suma, fazer aqui o mesmo tipo de exegese a que Heidegger submeteu a obra de Nietzsche. - Mas, em segundo lugar, também se deve admitir que seria grave equívoco reduzir a obra de Foucault a uma metodologia da história ou das ciências humanas, e confiná-Ia na arqueologia. A arqueologia foi um dos métodos de que ele se'valeu - o que lhe permitiu analisar "as formas mesmas da problematização", como diz no Uso dos prazeres, ao distingui-Ia do método genealógico. A arqueologia não dã a chave de seu projeto, mas sim a medida de sua desconfiança face aos "discursos sérios", que ele pretendia retirar de circuito de uma vez por todas. Não é a arqueologia que pode explicar, por exemplo, por que a sua investigação terminou por focalizar-se na questão do sujeito mas sim a velha paixão que o animava contra as analíticas da Finitude. Citando Veyne: "O método de Foucault tem provavelmente, como ponto de partida, uma reação contra a onda fenomenológica que, na França, se produziu logo após a Libertação [em 1944). O problema de Foucault talvez tenha sido o seguinte: como conseguir mais do que pode uma filosofia da

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consciência sem, com isso, cair nas aporias do marxismo?". 26 Essa curiosidade vinha de mais longe: de uma vontade de transgredir, que devemos tomar todo o cuidado para não confundir - nem em Foucault nem em Nietzsche - com um furor de destruir. Convém relermos o diâlogo entre o arqueólogo e o filósofo, que fecha a Arqueologia do saber. - Você precisou recuar em todas as frentes diante dos vãrios estruturalismos, diz o arqueólogo - e, agora, você lhes propõe um acordo amigável. Reconhece as conquistas deles mas, em troca, pede que reconheçam a seriedade das suas problemáticas - o seu direito a indagar sobre a origem, a esboçar uma teleologia da história, a instaurar os seus a priori materiais ... Ora, o arqueólogo recusa-se a firmar esse acordo com um pensamento que se empenha - diz - em "ocultar a crise na qual já faz muito tempo que estamos e cuja amplidão só vai crescendo", crise em que se joga o destino do sujeito transcendental sob todas as suas formas, o questionamento do ser do homem, "enfim e acima de tudo, a questão do sujeito"." Nessas condições, é impossivel um compromisso, um meio-termo. É ne: cessário escolher. Ou ficamos nessa "finitude", que permite a continuação das exegeses, das investigações constitutivas e das dialéticas. Ou então salmos dela, isto é, invertemos o procedimento dos filósofos: recusamo-nos a utilizar todos os conceitos-chave repetidos pelas analíticas da Finitude (consciência, indivíduo, sujeito) e vamos procurar a verdadeira identidade (ou melhor, as verdadeiras identidades) dessas personagens por demais familiares - perguntar quais são as modificações teóricas, as práticas, os dispositivos que as produziram sob tal forma, em tal época, em tal área determinada. Já não nos contentaremos, neste caso, com perguntar de maneira vaga: como é que o homem é sujeito na vida? como é sujeito de uma linguagem mais antiga do que ele? O que os filósofos chamam, tão laconicamente, de Sujeito ou "homem" resulta de milhares e milhares de trabalhos que divergem ou se entrecruzam. São esses trabalhos que precisamos reconstituir -

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(Tradução de Renato Janine Ribeiro)

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(281 Hubert Dreyfus e Paul Rabinow, Michel Foucault. Un parcours philosophique au·delà de I'objectivité et de la subjectivité, Paris, Gallimard, 1984,

(26) Paul Veyne, "Foucault révolutionne l'histoire". in Comment on

écritl'histoire. Paris, Seuil, 1978, p. 383; trad. bras., in Como se escreve B história. Foucault revoluciona B história, Brasflia, Editora da Universidade de BrasPia, 1982, p. 179. (271 Archéologie du &avoir, Paris, Gallimard, 1969, p. 266.

p. 298 (trad. francesa do original americano: Michel FoUC8UIt. Beyond structura/ism and hermeneutics, Chicago, University cf Chicago Press, 1982). (291 Dreyfus e Rabinow, pp. 296-298. ~.

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mediante estudos precisos, exame de arquivos, anâlise de práticas. Perguntando, por exemplo: como, no Ocidente, numa época tal, o homem foi feito sujeito individual? ou se fez sujeito de uma "sexualidade"? É nisso que vai dar a transgressão da "finitude" boazinha e sem surpresas, na qual estávamos contidos: na possibilidade de irmos escavar, fuçar em toda parte, até mesmo zombando daqueles que nos peçam documentos de identidade - na possibilidade de fazer o Sujeito, tornado "sujeito", explodir em mil estilhaços. O objetivo de minhas pesquisas nos últimos vinte anos, escrevia F oucault em 1983, foi o de "produzir uma história dos diferentes modos de subjetivação do ser humano em nossa cultura". E esse estudo das modalidades de transformação "dos seres humanos em sujeitos" dividiu-se em três eixos: 1?) a transformação do sujeito em objeto de saber: "objetivação do sujeito falante sob a forma de Gramática Geral, de filologia, de lingüística ... ou ainda, a objetivação do mero fato. de ser vivo, sob a forma de História Natural ou de biologia"; 2?) produção do sujeito individual para fins políticos, sob a égide da divisão normal/patológico (louco/são de espirito, criminoso/homem de bem ... ); 3?) "a maneira pela qual um ser humano se transforma em sujeito ... a maneira pela qual o homem aprendeu a se reconhecer como sujeito de uma sexualidade". ia E Foucault acrescenta: "Não é portanto o poder, porém o sujeito, que constitui o tema geral de minhas investigações".29 - Eu quis apenas indicar um enfoque possivel, que permitiria tornar essa frase menos desconcertante.

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camelo; 1) et coetera; m) que acabam de quebrar a bilha; n) que de longe parecem moscas'. No deslumbramento desta taxinomia, o que alcançamos imediatamente, o que, por meio do apólogo, nos é indicado como o encanto exótico de um outro pensamento é o limite do nosso: a pura impossibilidade de pensar isto". 2 Nenhuma outra obra de Foucault exibe igual fascinação pelo literário/artístico: o prefácio e o livro nascem de Borges, o capo 1 trata de Velázquez, o capo 3 abre-se com D. Quixote. Estamos, talvez, em pleno exotismo: não apenas porque, via Borges, Foucault cita uma fantástica enciclopédia chinesa; mas porque suas três referências vêm do mundo hispânico dessas Espanhas que, no imaginário francês, representam desde muito tempo uma relação diferente, desmedida, com as paixões. A idade clássica de que Foucault vai tratar em As palavras, abre-se, assim, sob invocações espanholas: interessante maneira de recusar a tradicional ruptura classicismo/ barroco, de nomear como idade clássica algo que não é o classicismo do moi hafssable. No entanto, que são Borges, Velázquez, o Quixote nas análises do Foucault? Se procuramos ver o que, de cada um deles, resta no texto, parece ser pouco: servem a seduzir a atenção, a pontuar o discurso, a ressaltar algo que, adiante, será trabalhado conceitualmente. Exemplar é a conclusão do capo 1, que é fazer o balanço das Meninas de Velázquez (o que explica que muitos leitores de As palavras façam a economia desse capitulo, indo "direto aos conceitos"), como exemplar é, também, a moral que se extrai de Borges. Pensa-se com Borges, com Velázquez; mas o conceito depois explicita, aclara o que primeiro se viu sob a forma da figura. Da questão borgiana da impossibilidade de pensar - que Borges igu8J.mente elabora na sua Busca de Averrois e nos Tradutores das Mil e uma Noites'3- chega-se ao problema file

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181 Carl von Clausewitz, De la guerre 11832-341, livro 111, capo 9, pp. 207-208 da trad. francesa; Paris, Minuit, 1970.

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ele pensar o poder. Da mesma forma, a surpresa, que mais cabe na batalha que na guerra, que para Clausewitz se restringe à tática sem jamais se ampliar à estratégia, poderá marcar o discurso foucaultiano. Entenderemos melhor a surpresa referindo-nos ao c1ausewitziano Mao Tse-tung. Nos anos 30, tendo que enfrentar exércitos do Kuomintang muito superiores ao seu, formulou uma linha de combate para o Exército Vermelho: estrategicamente, estamos na proporção de um para cada dez inimigos; não podemos aceitar uma guerra frontal; só travaremos batalha quando - na dimensão tática, portanto - formos vários contra um. É claro que isso se enquadra numa estratégia mais ampla, a da guerra revolucionária, Mas, pontualmente, trata-se de fazer um uso intensivo da surpresa - princípio muito mais importante nessa guerra de guerrilhas do que na tradicional. Ora, se este é o sentido tático da surpresa, que papel ela terá no discurso de Foucault? A surpresa é arma da minoria; modo de intervir contra um inimigo superior, num ponto seu que é fraco; modo de inverter, pontualmente, a relação de forças, convertendo a inferioridade global em superioridade local. Um discurso minoritário não é o que tematiza, ou defende, as minorias - raciais, sexuais, religiosas; é o que se recusa a globalizar, a totalizar o pensamento _ que nega matrizes, como a hegeliana. É essa natureza do discurso foucaultiano, essa sua tenção, que fOIja a sua tensão; são as surpresas, os inesperados, a aparente arbitrariedade dos recortes e ênfases, que dão ao discurso o seu suspense. , Se voltamos agora a Borges e Velázquez, vemos que ambos abrem, em As palavras, janelas de imaginário ao pensador. Cavam, no seu roteiro, o inesperado. Liberando-o dos hábitos de uma razão preguiçosa, que se satisfaz com filiações e totalidades, a literatura e a pintura fazem-no meditar o pouco pensado ou o não-pensável de uma época - temas que serão constantes em Foucault. Mas o importante não é a citação de Borges, nem a análise de Velázquez: é que o próprio Foucault arme seu discurso de recursos literários, para pô-lo a serviço do pensar. Da mesma forma que em seus livros, também nas aulas do College de France ele contava histórias exemplares; estas até tinham um timing exato: como muitos ouvintes gravavam a aula, Foucault aproveitava o momento em que trocavam a fita de lado (aos 4S minutos de fala) para

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o DISCURSO DIFERENTE

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um interlúdio, uma anedota significativa - que é claro, todos tentavam também gravar; a própria pausa excitava o discurso_ As historietas, imagens e metáforas, o talvez, a surpresa e o suspense - todos esses elementos literários, em vez de interromperem ou degradarem o discurso, sustentam-no, dão-lhe gume_ Ao contrário de uma tradição filosófica forte, que desconsiderou o literário como forma de conhecimento, Foucault incorporou-o no seu próprio texto, como indutor de pensamento. Foucault assim segue, mais e mais, a lição de Borges: desconcertar os hábitos de nossa razão para fazer-nos pensar. Em A vontade de saber, por exemplo, afirma: "Afinal de contas, somos a única civilização em que certos prepostos recebem retribuição para escutar cada qual fazer confidência sobre seu sexo: como se o desejo de falar e o interesse que disso se espera tivessem ultrapassado amplamente as possibilidades da escuta, alguns chegam até a colocar suas orelhas em locação" (p. 13). Da afirmação de fato, peremptória (somos a única civilização... ), salta, não para uma explicação, mas para outro registro, hipotético, talvez ficcional: como se. E, se não pensarmos a ficção como mentira, mas como acréscimo ou invenção, tratar-se-á mesmo de ficção - porque a frase vale, antes de mais nada, pelo bene trovato. Foucault não irá argumentar, demonstrar; é verdade que o. faz tantas vezes, e que seu discurso se escora sempre em rigorosa freqüentação dos textos, em sólida informação histórica; mas há ditos, dos mais salientes, que seria inútil e dispensável justificar (como esse), porque captam de imediato a adesão do leitor - ou não. Se a captam é pelo bene trovato, a trouvaille, o achado: pelo engenho. E a que monta o achado? É uma forma de invenção; não é tanto uma explicação, um simulacro teórico que dê conta dos objetos, que os reduza - é a constituição de um novo discurso, que com os anteriores dialoga, que a eles se agrega, com sua forma nova e distinta. Este discurso diferente, que não quer a prova de verdade, tem o seu muito de literário - se pensarmos a literatura, mais uma vez, com Jorge Luís Borges. De quem cito, para concluir, Una rosa amarilla: "Então aconteceu a revelação. Marino viu a rosa, como Adão pôde vê-Ia no Paraíso, e sentiu que ela estava em sua eternidade e não em suas palavras, e que podemos mencionar ou aludir porém não expressar, e que os altos e soberbos vo-

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lumes que formavam num ângulo da sala uma penumbra de ouro não eram (como sua vaidade sonhara) um espelho do mundo, mas sim uma coisa mais acrescentada ao mundo". 9

(9) Bhacedor, Buenos Aires, 1965, pp. 31-32.

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de a priori constituídos no tempo" 3 - o que se poderia aplicar a seu próprio pensamento. Não se trata aqui, portanto, de analisar de que maneira seu trabalho se teria inspirado nas idéias de Nietzsche nem de indagar em que medida seu projeto teria sido por elas influenciado. O que pretendemos é investigar que leitura Foucault faz de Nietzsche. Para tanto, contamos examinar dois textos especificos que tratam diretamente do filósofo: "Nietzsche, Marx, Freud", comunicação no Colóquio Nietzsche realizado em Royaumont em 1964, e "Nietzsche, a genealogia, a história", artigo no volume em Hommage à Jean Hyppolite, de 1971. Refazendo o percurso desses textos, esperamos mostrar, num primeiro momento, como algumas idéias de Nietzsche são iluminadas pela perspectiva foucaultiana, para depois inquirir se não chegam a opor-lhe certa resistência. Na comunicação de 64, Foucault aproxima Marx, Nietzsche e Freud, fazendo ver que no século XIX eles teriam inaugurado uma nova hermenêutica: em vez de multiplicarem os signos, modificaram sua natureza e criaram outra possibilidade de interpretá-los. Se na hermenêutica do século XVI os signos se dispunham de modo homogêneo em espaço homogêneo, remetendo-se uns aos outros, no século XIX aparecem de modo muito mais diferenciado, segundo a dimensão da profundidade, entendida como exterioridade. Se antes o que dava lugar à interpretação era a semelhança, que enquanto tal só podia ser limitada, agora a interpretação torna-se tarefa infinita. Nessa medida, a filosofia de Nietzsche - que é o que nos interessa - seria "uma espécie de filologia sempre em suspenso, uma filologia sem termo, que se desenrolaria sempre mais, uma filologia que nunca estaria fixada de forma absoluta". 4 Essa idéia, aliás, aparece em outros textos. No prefácio ao Nascimento da clínica, Foucault afirma que Nietzsche, filólogo, comprova que à existência da linguagem se vinculam a possibilidade e necessidade de uma critica. 5 Em As palavras e as coisas, declara que Nietzsche, filólogo, foi o primeiro a apro-

Foucault leitor de Nietzsche Scarlett Marton*

As referências de Foucault a Nietzsche estão presentes ao longo de sua obra, desde A hist6ria da loucura até os cursos proferidos no CoUege de France em 1976 - sem mencionar artigos e entrevistas. I As marcas que a leitura do filósofo deixou em seu pensamento são, sem dúvida, perceptiveis: desinteresse por uma obra sistemática, primado da relação sobre o objeto, papel relevante da interpretação, importância dos procedimentos estratégicos e até mesmo absorção da noção de genealogia. Seu próprio método teria surgido, de acordo com2 Paul Veyne, da meditação sobre alguns textos de Nietzsche. Foucault, porém, adverte: "A história do saber só pode ser feita a partir do que lhe foi contemporâneo e não, é claro, em termos de influência recíproca, mas em termos de condições e (*) Da Universidade Federal de São Carlos. (1) Dentre eles: a "Resposta ao Circulo de Epistemologia" publicada nos Cahiers pau! I'Ana/yse, n? 9, verão de 1968; "Conversa sobre a prisão: o livro e seu método", no Magazine Littéraire, n? 101, junho de 1975, e "Ques-

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F:~ucault sobre a geografia", em Hérodote. n? 1, 1976.

(3) Les mots et les choses, Paris, Gallimard, 1966, p. 221. (4) "Nietzsche, Freud, Marx", in Nietzsche, Cahiers de Royaumont Philosophie, n? VI, Paris, Minuit, 1967, p. 188. (5) Naissance dela clinique, Paris, PU F, 2~ ed., 1972, prefácio, p. XII.

(2) "Foucault révolutionne J'histoire" in Gomment on écrit I'histoíre,

Paris, Seuil, 1978, p. 240, nota 11. Veyne refere-se ao parágrafO 11 da Primeira Dissertação de Para a genealogia da moral e aOS aforismos 70 e 604 da edição canônica da Vontade de potência. <

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ximar a tarefa filosófica de uma reflexão radical sobre a linguagem. 6 E, ao tratar da renovação das técnicas de interpretação no século XIX, sustenta que a filologia se tornou a forma moderna da crítica e recorre, para ilustrar essa tese, à análise de uma passagem do Crepúsculo dos idolos: "Temo que não nos desvencilharemos de Deus, porque ainda acreditamos na gramática ... ". 7 Deus estaria antes num aquém da 8 linguagem do que num além do saber. Em Royaumont, Foucault vê a interpretação como tarefa infinita e liga seu caráter sempre inacabado a dois outros princípios: se ela não pode acabar, é porque não há nada a ser interpretado (todo interpretandum já é um interpretans); e, como ela não acaba, acha-se obrigada a voltar-se sobre si mesma (toda interpretação é levada a interpretar-se). Assim, para Nietzsche, as palavras não passariam de interpretações; estas apareceriam como signos ao buscarem justificar-se, e os signos, ao tentarem recobri-Ias, nada mais seriam do que máscaras. Foucault encararia, desse ponto de vista, a análise etimológica do termo agathos - presente no quarto e quinto parágrafos da Primeira Dissertação de Para a genealogia da moral - onde Nietzsche mostra como esse termo nasce do conceito de "nobre", no sentido de posição social. E provavelmente leria, ainda nessa perspectiva, a afirmação do segundo parágrafo da mesma Dissertação: "O direito dos senhores, de dar nomes, vai tão longe, que se poderia permitir-se captar a origem da linguagem mesma como exteriorização de potência dos dominantes: eles dizem, 'isto é isto e isto', eles selam cada coisa e acontecimento com um som e, com isso, como que tomam posse dele". Finalmente, duas conseqüências decorrem do princípio de a interpretação ter de voltar-se sobre si mesma: ela não tem um termo de vencimento como os signos, mas seu tempo é circular; e não se ocupa mais com o significado, mas indaga

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quem interpretou. Em Nietzsche, diz Foucault, "o princípio da interpretação nada mais é do que o intérprete". ' Nessa direção, leria provavelmente o aforismo 45 de Humano, demasiado humano, no qual o filósofo afirma que bem e mal têm uma dupla pré-histórica: em primeiro lugar, "na alma das raças e castas dominantes" e, em segundo, "na alma dos oprimidos, dos impotentes". Bem e mal não indicariam um significado, mas imporiam interpretações, e lidar com elas importaria perguntar quem as colocou. Portanto, no entender de Foucault, o caráter inovador do pensamento nietzschiano residiria no fato de ter inaugurado uma nova hermenêutica. Nietzsche não se empenharia em tratar dos significados nem se preocuparia em falar do mundo, mas se dedicaria a interpretar interpretações. E, ao fazêlo, partiria sempre da pergunta por quem interpretou. Nessa medida, sua filosofia seria antes de mais nada filologia sem ponto de chegada. Abrindo o espaço filológico-filosófico com a questão: quem fala? ligaria a possibilidade e necessidade de uma crítica com a reflexão radical sobre a linguagem. Por ora, deixemos em suspenso essas colocações e passemos ao exame do texto de 71, para adiante retomá-las. Em "Nietzsche, a genealogia, a história", Foucault recupera, ainda que rapidamente, a questão da interpretação, ligando-a desta vez à idéia de genealogia. Com isso, é levado a referir-se necessariamente ao que chamamos, em Nietzsche, de teoria das forças. Nesse artigo, a genealogia nietzschiana é entendida como análise da proveniência e história das emergências. Proveniência e emergências constituiriam seu objeto. A proveniência (Herkunft) não funda, não aponta para uma continuidade, não é uma categoria da semelhança. Perguntarse pela proveniência de um indivíduo, de um sentimento ou de uma idéia, não é descobrir suas características genéricas para assimilá-lo a outros, nem mostrar que nele o passado ainda está vivo no presente, muito menos encontrar o que pôde fundá-lo; mas sim buscar suas marcas diferenciais, repertoriar desvios e acidentes de percurso, apontar heterogeneidades sob o que se imagina conforme a si mesmo. A emergência (Entstehung), por sua vez, não se confunde com o termo final de .um processo, mas constitui "princípio e lei singular de uma

(6) Lesmotsetleschoses, p. 316. O) Crepúsculo dos ídolos, a "razão" na filosofia,

§ 5. Utilizamos a edição das obras de Nietzsche organizada por G. ColIi e M. Montinari, Berlim, Walter de Gruyter & Co., diferentes datas conforme os volumes. Sempre que

possível, recorremos à tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho para o volume Nietzsche _ Obras Incompletas, da coleção "Os Pensadores", São Paulo, Abril Cultural, 2~ ed., 1978.

(8l Cf. Lesmotsetleschoses, p. 311.

(9) "Nietzsche, Freud, Marx", p. 191.

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mente repetida." 11 Portanto, a existência de regras possibilita a inversão de uma relação de forças, viabiliza que sejam dominados os que dominam. Ao apossarem· se de sistemas de regras estabelecidos, as forças impõem-lhes uma nova direção. Desse ponto de vista, seria possível entender, por exemplo, a tese nietzschiana da transvaloração de todos os valores, transvaloração que já se verificaria, num primeiro momento, com o advento do cristianismo, Seria ainda possível compreender a afirmação do parágrafo 195 de Para alem de Bem e Mal: "Nessa inversão dos valores (que emprega a palavra 'pobre' como sinônimo de 'santo' e 'amigo') reside a importância do povo judeu: com ele começa a revolta dos escravos na moral" . De acordo com Foucault, sistemas de regras, como valores morais, conceitos metafísicos (inclusive a idéia de liberdade), procedimentos lógicos e até a própria linguagem, não têm um significado originário, mas são vazios, feitos para serem utilizados. Estão à mercê de forças, que deles se apossam, imprimindo-lhes em cada inversão de relação, em cada processo de dominação, um novo sentido, E assim se acha outra vez cercada a questão da interpretação. "Interpretar", afirma Foucault, "é apoderar-se, violenta ou sub-repticiamente, de um sistema de regras, que não tem em si uma significação es· sencial, e impor-lhe uma direção, curvá-lo a uma vontade nova, fazê·lo entrar num outro jogo e submetê-lo a regras secundárias." 12 Nesse ponto, reencontramos o texto de 64. Tanto lá como aqui, em Nietzsche, palavras - e também conceitos, lógica, valores - não indicariam significados, mas imporiam inter· pretações, Em interpretá-Ias, consistiria a tarefa genealógica. Enquanto história das emergências de diferentes interpretações, a genealogia deveria colocar·se a pergunta por quem interpreta em cada nova emergência, a pergunta por quem se apodera dos sistemas de regras em cada novo estado de forças. Ora, a partir dessa colocação, alguns problemas podem ser levantados, Nietzsche insiste, repetidas vezes, que das forças só se pode dizer que se efetivam, Na Primeira Dissertação de Para a genealogia da moral, parágrafo 13, declara: "um quantum de força corresponde ao mesmo quantum de im-

aparição". 10 No indagar sobre a emergência de um órgão ou de um costume, não se trata de explicá-los pelos antecedentes que os teriam tornado possíveis, mas de mostrar o ponto de seu surgimento; não cabe compreendê-los a partir dos fins a que se destinariam, mas detectar um certo estado de forças em que aparecem. Nessa perspectiva, seria possível considerar, por exemplo, a genealogia dos conceitos "bem" e "mal". A análise de sua proveniência mostraria que não existem em si, idênticos a si mesmos; ao contrário, comportam marcas diferenciais, traduzem acidentes e desvios de percurso, denunciam heterogeneidades. A história de suas emergências revelaria que, em vez de constituírem termos finais de um processo, surgem em certos estados de forças. Seria possível ainda ler a exigência mesma que Nietzsche se impõe no prefácio a Para a genealogia da moral, parágrafo 6: "Precisamos de uma crítica dos valores morais, devemos começar por colocar em questão o valor mesmo desses valores, isto supõe o conhecimento das condições e circunstâncias de seu nascimento, de seu desenvolvimento, de sua modificação (a moral como conseqüência, sintoma, máscara, tartufaria, doença, mal-entendido, mas também como causa, remédio, stimulans, empecilho ou veneno), enfim, um conhecimento tal como nunca existiu até o presente e como nem mesmo se desejou". Segundo Foucault, a emergência diz respeito à entrada em cena de forças. Ao irromperem, lutando umas contra as outras, é sempre uma mesma peça que se apresenta: a que envolve dominantes e dominados. Assim como do domínio de classes por outras classes surge·a idéia de liberdade, e do domínio das coisas pelos homens aparece a lógica, do domínio de homens por outros homens vai nascer a diferenciação dos valores. Com esses processos de dominação, estabelecem-se sistemas de regras; contudo, ao contrário do que se poderia supor, eles não visam a suprimir a guerra e instaurar a paz. "A regra", afirma Foucault, "é o prazer calculado do combate, é o sangue prometido. Permite relançar sem cessar o jogo da dominação, põe em cena uma violência meticulosa·

(10) "Nietzsche, la gênêalogie. I'histoire", ;n Hommage à Jean Hyppolite, Paris, PUF, 1971, p. 154.

(11) Idem, ibidem, p. 157. (12) Idem, ibidem, p. 158.

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que envolve dominantes e dominados. Dos processos de dominação, nascem a idéia de liberdade, a lógica e a diferenciação dos valores; com esses processos, estabelecem-se, pois, sistemas de regras. Em cada inversão de relação, em cada nova dominação, as forças apoderam-se dos sistemas de regras e lhes imprimem nova direção. Assim emergem interpretações diferentes. "Então", afirma Foucault, "o vir-a-ser da humanidade é uma série de interpretações. E a genealogia deve ser a sua história: história das morais, dos ideais, dos conceitos metafísicos, história do conceito de liberdade ou da vida ascética, como emergências de interpretações diferentes. Trata-se de fazê-las aparecer como acontecimentos no teatro dos procedimen tos. " 15 Seria, por certo, descabido perguntar se essas forças que impõem novas interpretações - interpretações que constituem o vir-a-ser da humanidade - seriam sociais, culturais ou políticas. Mas importa notar que atuam na esfera humana - e, aparentemente, apenas nela. Contudo, num fragmento póstumo de junho/julho de 1885, Nietzsche afirma - de maneira cristalina - que na força reside a relação entre o orgânico e o inorgânico. 16 Nesse momento, ao introduzir sua teoria das forças, é a passagem da matéria inerte à vida o que pretende resolver. E num outro póstumo declara: "E sabeis o que é para mim o 'mundo'? Devo mostrá-lo a vós em meu espelho? Este mundo - uma monstruosidade de força, sem início, sem fim, uma firme, brônzea grandeza de força, que não se torna maior, nem menor, que não se consome, mas apenas se transmuda, inalteravelmetne grande em seu todo, uma economia sem despesas e perdas, mas também sem acréscimo, ou rendimentos, cercada de 'nada' como de seu limite, nada de evanescente, de desperdiçado, nada de infinitamente extenso, mas como força determinada posta em um determinado espaço, e não em um espaço que em alguma parte estivesse 'vazio', mas antes como força por toda parte, como jogo de forças e ondas de força, ao mesmo tempo um e múltiplo, aqui acumulando-se e ao mesmo tempo ali minguando, um· mar de forças tempestuando e ondulando em si próprias, eter-

pulso, vontade, efetivação - ou melhor, nada mais é do que precisamente esse impulso, essa vontade, essa efetivação e só pode parecer de outro modo por causa da sedução da linguagem (e dos erros fundamentais da razão nela sedimentados), que compreende - equivocando-se - toda efetivação como condicionada por algo que se efetiva, por um 'sujeito'''. Ressalta-se a impossibilidade de distinguir a força de suas manifestações. Não tem sentido, portanto, dizer que produz efeitos; isso equivaleria a apreendê-la como causa de algo que não se confunde com ela. A força - isso sim - efetiva-se, melhor ainda, é um efetivar-se. Tampouco faz sentido dizer que repousa sobre algo que lhe permite manifestar-se nem que se desencadeia a partir de algo que a impulsiona. "Não existe nenhum substrato", diz Nietzsche, "não existe nenhum 'ser' sob o fazer, o efetivar-se, o vir-a-ser; 'o autor' é simplesmente acrescentado à ação - a ação é tudo." I3 Associar as idéias de substrato e sujeito à de força, antes de mais nada, torna flagrante um equívoco: o de não se compreender a força enquanto efetivar-se. Ao colocar a questão de quem interpreta, Foucault não estaria pressupondo a existência de algo anterior à própria interpretação? Na pergunta por quem interpretou não ressurgiria insidiosamente a idéia mesma de sujeito? No intérprete, não se acharia ela sub-repticiamente reinserida? Convém lembrar a frase taxativa de Nietzsche num fragmento póstumo: "Não se deve perguntar 'quem pois interpreta?'''. 14 Contudo, à nossa objeção, seria possível responder que as interpretações surgem do próprio efetivar-se das forças. Exercendo-se, as forças se estariam apoderando de sistemas de regras e lhes impondo direções. A pergunta pelo intérprete se confundiria então com a pergunta pelas forças que dominam num dado momento. Outro problema, porém, deve ser resolvido. Resta saber o que são forças, no entender de Foucault. Nos textos que examinamos, não se encontra resposta clara a esse propósito. Como vimos, a emergência diz respeito à entrada em cena de forças, que lutam umas contra as outras, apresentando a peça

(13) Para a genealogia da moral, Primeira Dissertação, 1141 211511. outono de 1885/outono de 1886.

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1151 "Nietzsche, la généalogie, I'histoire", p. 156. 1161 361221, junho/julho de 1885.

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namente mudando, eternamente recorrentes". 17 No limite, pode-se dizer que, para Nietzsche, as forças estão em toda parte, tudo - inclusive natureza e vida - é constituído por forças agindo e resistindo umas em relação às outras. Ora, ao desconsiderar o caráter cosmológico da teoria das forças, F oucault não estaria reduzindo sua amplitude e minimizando sua importância? Ao afirmar que, com a entrada em cena das forças, é sempre a mesma peça envolvendo dominantes e dominados que se desenrola, não as estaria enredando nas malhas do antropomorfismo? Ao colocar que se apoderam de sistemas de regras estabelecidos, não lhes estaria atribuindo uma intencionalidade que não comportam? Uma última questão - esta entre parênteses - não seria justamente a negligência pelas preocupações cosmológicas de Nietzsche que levaria Foucault a considerá-lo como filósofo do poder? 18 Talvez fosse possível contornar esse problema, sustentando-se que a questão central do texto de 71 reside nas relações entre a genealogia e a história. Na medida em que se dedica a mostrar que valores, conceitos, procedimentos lógicos, palavras- todos "humanos, demasiado humanos" - não passam de interpretações, não precisaria apontar que as forças se exercem em toda parte, inclusive no mundo inorgânico. Por outro lado, a tarefa genealógica consistiria, segundo Foucault, em interpretar as interpretações. Ao genealogista, caberia investigar que forças dominam num dado momento, impondo uma nova direção a sistemas de regras estabelecidos. Mas, para levar a cabo sua tarefa, necessita de um critério que lhe permita distinguir essas forças. Moral, metafísica, lógica e linguagem devem ser submetidas a um exame; são interpretações a serem interpretadas ou, em termos mais precisamente nietzschianos, avaliações a serem avaliadas. Ora, o critério

que permite avaliar as avaliações e interpretar as interpreta-O ções não deve, por sua vez, prestar-se a interpretações nem a avaliações. E o único critério que se impõe por si mesmo é, no entender de Nietzsche, a vida. "Seria preciso", diz ele, "ter uma posição fora da vida e, por outro lado, conhecê-Ia tão bem quanto um, quanto muitos, quanto todos, que a viveram, para poder em geral tocar o problema do valor da vida: razões bastantes para se compreender que este problema é um problema inacessível a nós. Se falamos de valores, falamos sob a inspiração, sob a ótica da vida: a vida mesma nos coage a instituir valores; a vida mesma valora através de nós, quando instituímos valores ... " 19 O procedimento genealógico encontra seu critério numa tese cosmológica: a vida concebida como uma pluralidade de forças, agindo e resistindo umas em relação às outras. Em última análise, pode-se dizer que a genealogia repousa numa cosmologia. Assim. ao examinar os conceitos "bem" e "mal", não basta apontar que surgem em diferentes estados de forças no caso da moral dos nobres e no da moral dos escravos; ao examinar a transvaloração dos valores operada com o advento do cristianismo, não basta mostrar que se deu com a inversão de uma relação de forças. É preciso ainda diagnosticar se essas forças contribuem para a expansão ou para a degenerescência da vida. Sem dúvtda, a filosofia de Nietzsche é filologia na medida em que, em vez de revelar um significado originário escondido nas palavras, conceitos e valores, encara-os como interpretações ou avaliações. Mas abriga também uma cosmologia que fornece o critério para interpretá-Ias e avaliá-Ias. Se, por vezes, o pensamento de Nietzsche parece oferecer resistências à leitura de Foucault, é provável que essa leitura não se dê a conhecer nos textos que tratam diretamente do filósofo. Talvez Foucault encare Nietzsche menos como objeto de análise do que como instrumento; talvez se relacione com ele menos como o comentador com seu interpretandum do que como o pensador com sua caixa de ferramentas. Seus momentos de silêncio em relação ao filósofo podem ser mais reveladores do queaqueles em que dele fala. "Hoje"" diz Foucault em 1975, "fico mudo quando se trata de Nietzsche. No tempo

1171 38 1121. junho/julho de 1885. (18) Na "Conversa sobre a prisão: o livro e seu método", Foucault afir· ma: "Nietzsche é aquele que ofereceu como alvo essencial, digamos, ao dis· curso filosófico, a relação de poder; enquanto para Marx era a relação de produção. Nietzsche é o filósofo do poder, mas que chegou a pensar o poder sem

se encerrar no interior de uma teoria política". Publicada inicialmente no Magazine Littéraire, n? 101, de junho de 1975, essa entrevista, feita por J. J. Brochier, foi retomada com o título "Les jeux du pouvoir" no livro organizado por Dominique Grisoni, Politiques de la Philosophie, Paris, Bernard Grasset, 1976, p.173.

(19) Crepúsculo dos Id%s. moral como contranatureza, § 5.

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em que era professor, dei freqüentemente cursos sobre ele, mas não mais o faria hoje. ( ... ) A presença de Nietzsche é cada vez mais importante. Mas me cansa a atenção que lhe é dada para fazer sobre ele os mesmos comentários que se fizeram ou se fariam sobre Hegel ou Mallarmé. Quanto a mim, os autores de que gosto, eu os utilizo. O único sinal de reconhecimento que se pode ter para com um pensamento como o de Nietzsche, é precisamente utilizá-lo, deformá-lo, fazê-lo, ranger. Que os comentadores digam se se é ou não fiel, isto não tem nenhum interesse." 20

Nas origens da História da Loucura: uma retificação e seus limites Pierre Macherey*

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História da loucura é publicada em 1961: trata-se da primeira obra teórica importante de Foucault, e do ponto de partida efetivo de todas as suas investigações posteriores. Em 1962, as Presses Universitaires de France reeditam, sob um novo título (Maladie mentale et psychologie, ou Doença mental e psicologia), e numa versão consideravelmente modificada, um livrinho que Foucault havia publicado em 1954, na coleção "Initiation philosophique", dirigida por Jean Lacroix - Maladie mentale et personalité (ou Doença mental e personalidade). Se queremos fazer a arqueologia do pensamento de Foucault, é a este último livro que devemos remontar, para conhecer o estado inicial de suas reflexões sobre a doença mental e a loucura. A comparação das duas versões desse texto, a de 54 e a de 62, revela-se rica em ensinamentos: permite medir o caminho que Foucault precisou percorrer antes de ingressar na via, completamente original, que iria seguir por mais de duas décadas, até a História da sexualidade de 1984; especialmente, mediante essa retificação teórica de um texto primitivo, efetuada à luz das descobertas expostas entrementes na História da loucura, tal comparação ressalta os caracteres específicos da nova problemática, a partir da qual essas jescobertas se tornaram possíveis; finalmente, também per(20) "Les jeux du pouvoir", in Politiques de la Philosophie, pp. 173-174.

(*) Da Universidade de Paris I.

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o primeiro capítulo do livro, nas duas versões, retoma e desenvolve esses temas da introdução_ Explica como o conceito de doença mental, previamente definido da perspectiva de uma patologia geral ou "metapatologia" comum à medicina orgânica e à medicina mental, dela se separou, sob a capa de um estudo propriamente psicológico dos fenômenos da loucura - estudo este que revela os seus caracteres específicos, irredutíveis aos modelos explicativos utilizados no contexto de uma patologia orgânica_ O texto de Maladie mentale et personnalité reafirma então a necessidade de liberar a noção de doença mental dos postulados abusivos que a impedem de aceder a um rigor científico: "A patologia mental deve desvencilhar-se de todos os postulados abstratos de uma metapsicologia: a unidade assegurada por esta, entre as diversas formas de doença, é apenas factícia; é o homem real que porta a sua unidade de fato" (p_ 16)_ Essa última fórmula, que faz pensar em Politzer, cuja inspiração está presente em Foucault quando escreve o seu primeiro livro, em 54, é manifestamente ambígua: à essência abstrata da doença, ela contrapõe uma verdade efetiva e concreta do homem, que constitui a imagem daquela no espelho_ Ê por isso que o texto de 62 substitui essa passagem pela seguinte redação: "Quer dizer que ela remete a um fato histórico ao qual já começamos a escapar" (idem); pois o "sujeito" da doença mental não é essa natureza autêntica ou objetiva, persistindo por trás das interpretações factícias que a dissimulam, porém um ser histórico, de quem nada afirma que ele seja o próprio doente; e a unidade deste sujeito depende de condições em perpétua transformação, que excluem toda permanência sua. Ê por isso que dar conta da especificidade da vida mental não é "procurar as formas concretas que ela pode tomar na vida concreta de um indivíduo" (p. 17), como dizia o texto da primeira edição, mas, na versão corrigida, "procurar' as formas concretas que a psicologia pôde atribuir-lhe" (idem) - e isto no sentido de uma atribuição histórica, que deve ser estudada fora de qualquer referência a um fundamento real, quer este seja dado na existência singular de um indivíduo ou numa essência humana abstrata pensada em geral. Para tanto já não basta "determinar as condições que possibilitaram esses diversos aspectos (da patologia mental) e recompor o conjunto do sistema causal que as fundou" (Maladie mentale et personnalité, p. 17); é preciso "de-

mite ver dentro de que limites continua contida, no começo dos anos 60, a interpretação que Foucault propõe para as práticas e saberes do homem, que, até o fim de sua obra, constituirão o objeto de seu estudo_ Comecemos considerando a introdução geral do livro embora ela sofra, em 1962, apenas correções superficiais_ Nela se formula a questão geral à qual remeterão todas as análises futuras: sob que condições se veio a falar de "doença mental", e a enunciar discursos a seu respeito, que assumiram a forma de saberes? Na primeira versão desta obra, Foucault propunha-se a confrontar essa representação com "uma reflexão sobre o próprio homem" (p_ 2), fórmula que ele assim reescreveu: "Uma certa relação, historicamente situada, do homem com o homem louco e com o homem autêntico" (idem)_ Dessa maneira se anunciam duas idéias que se reencontram em todo o restante do livro de 62, e que também delimitam o cam po teórico da História da loucura: primeiro, que só há reflexão sobre a realidade humana se for historicamente situada, e que é apenas na história que tal reflexão poderá encontrar bases efetivas; segundo, que a loucura - que, em sua essência, é diferente da doença mental - mantém uma relação fundamental com a verdade_ Teremos que nos interrogar, na seqüência, se essas duas idéias se conciliam, e em que medida prefiguram as mudanças posteriores das posições de Foucault_ Assinalemos ainda que, no começo de Maladie mentale et personnalité, Foucault assim caracterizava a orientação polêmica de sua investigação: "Mostrar de que postulados a medicina mental deve libertar-se, para tornar-se rigorosamente científica" (p_ 2), enquanto, em Maladie mentale et psychologie, ele a define da maneira seguinte: "Mostrar de que (elementos) prévios a medicina mental deve conscientizar-se, para alcançar um novo rigor" (idem) _ Pois, se a patologia mental acede a formas de rigor historicamente situadas e diversificadas, que constituem os seus elementos "prévios", tornou-se claro para Foucault, em 62, que a economia de seu discurso não depende de "postulados" teóricos, quer estes possuam valor científico, ou não: assim, ela jamais poderá liberar-se por completo desses fatores prévios, para aceder ao estatuto objetivo de ciência, mas apenas tomar consciência deles, mediante uma reflexão histórica sobre suas próprias condições de possibilidade_

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apresentam o que possui valor apenas descritivo como se fosse uma explicação, como se revelasse o sentido e a origem da doença: elas evidenciam muito bem o que é contraditório na noção de doença mental, porém não são capazes de reinserir essa contradição no sistema estrutural de suas condições, que

terminar as condições que possibilitaram esse estranho estatuto da loucura, doença mental irredutível a qualquer doença" (Ma/adie menta/e et psych%gie, idem): devolver ao conceito de doença mental a sua dimensão histórica e social é arrancar o seu objeto do encadeamento mecânico a que o submete sua inserção num sistema causal- é procurar, ao invés, pensá-lo em relação com os seus pressupostos e as suas condições, isto é, com os seus elementos "prévios". Assim se compreende por que Foucault, que na primeira versão de seu texto se propunha a reconduzir a doença mental às suas "condições reais" (p. 17), toma um caminho diferente na versão corrigida, encarando a "psicopatologia como um fato de civilização·' (idem - trata-se das últimas linhas desse capítulo introdutório): não se pretende mais explicar a própria doença, porém referir os discursos e as práticas de que ela trata às condições que os constituem historicamente, fora de qualquer determinação real, que remeteria a uma significação objetiva ou positiva. A seqüência do livro desenvolve-se em duas partes, das quais a primeira expõe - é o seu título - "as dimensões psicológicas da doença". Ela mostra como as diversas abordagens psicológicas da doença mental tenderam a destacá-la, pouco a pouco, de uma representação essencialista ou naturalista, interpretando-a quer como um fato de evolução (do ponto de vista jacksoniano, exposto e criticado no capítulo segundo, "A doença e a evolução"), quer como um momento na história do indivíduo (do ponto de vista da psicanálise, analisado no capítulo terceiro, "A doença mental e a história individual"), quer ainda como sentido oferecido a uma compreensão existencial (do ponto de vista fenomenológico, apresentado no capítulo quarto, "A doença e a existência"). Na segunda versão do livro, o texto dessa "primeira parte é reproduzido com alterações insignificantes. Em 62, Foucault continua pensando que a psicologia, ao propor uma descrição da doença mental que não se funda apenas na representação negativa de deficiências, como faz a patologia orgânica, e ao ressaltar a representação de conflitos (entre a existência passada e a existência presente do indivíduo, entre o seu mundo interior e o mundo exterior, etc.), caracterizou a doença mental com o que ele agora chama "um novo rigor" (p. 2). Mas logo se chega ao limite dessas interpretações psicológicas, que

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são "históricas" mais do que propriamente "reais"; isso por-

que permanecem atadas ao pressuposto de uma existência humana dada, da qual pretendem expressar as leis. É por isso que, na segunda parte do livro, a questão do sentido e alcance dessa noção de doença mental será transposta para um terreno completamente diferente. Vejamos, nas últimas linhas do capítulo quarto de seu livro, como Foucault articula essa nova investigação com as descrições anteriores: "Mas talvez aqui toquemos num dos )Jaradoxos da doença mental, que obrigam a empreender novas formas de análise: se essa subjetividade do insensato é a um só tempo vocação e entrega ao mundo, não será ao próprio mundo que deveremos perguntar qual o segredo dessa subjetividade enigmática (2." edição: o segredo do seu enigmático estatuto)? Depois de explorarmos as dimensões interiores, 1 não seremos levados, forçosamente, a considerar as suas condições exteriores e objetivas? (2." edição: Não há, na doença, todo um núcleo de significações que depende do domínio em que ela apareceu - e, para começar, o simples fato de que nesse domínio ela é circunscrita como doença?)" (p. 69). Esta nova redação das três últimas linhas da primeira parte do livro mostra que a aparente permanência de seu texto oculta, na verdade, um deslocamento de significação: pois a caracterização da psicologia, em termos que o segundo livro reproduz idênticos, desemboca agora numa nova ordem de problemas. As formulações utilizadas em Ma/adie menta/e et personnalité podiam sugerir a necessidade de ir mais longe que as diversas psicologias no sentido da reconstituição de uma realidade humana, explicada concretamente a partir de suas "condições exteriores e objetivas", mantendo assim a ilusão de que o conceito de doença mental remeteria a um conteúdo real, seu único problema estando em oferecer, deste, uma interpretação

(1) No original de Foucault está "exteriores" - o que não passa, certamente, de um erro de impressão.

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mistificada. Maladie mentale et psychologie. ao contrário. deporta a atenção para uma questão nova: a noção de doença só remete a um sentido na medida em que se encontra identificada como tal num determinado contexto histórico, ou no interior de um sistema de condições que objetiva o seu conteúdo; quer dizer, portanto, que essa objetivação não depende de uma prévia objetividade; não se deve interrogá-la sobre o seu fundamento real, porém sobre a sua "constituição histórica", e é precisamente isto que vai constituir o assunto da segunda parte do livro, na nova edição de 1962. Estas considerações permitem-nos propor uma explicação para a mudança do título do conjunto da obra. Empenhando-se em medir a relação da doença mental com a personalidade, como fez no seu texto de 54, Foucault ingressava numa via explicativa que investigaria as condições da doença mental e de seu conceito do lado da existência pessoal do doente, e da situação geral que determina tal existência. O novo título do livro publicado em 62 indica outra orientação: não se trata mais de estudar a relação que a doença mantém, realmente, com a personalidade '- mas de examinar a sua relação, histórica e discursiva, com uma "psicologia", que delimita o campo epistemológico em cujo interior torna-se pensável o seu conceito, e que remete a um estudo positivo, pelo menos aparentemente. Na perspectiva assim definida, não é mais possível falar em doença mental, em personalidade. em psicologia, como se estas noções correspondessem a conteúdos objetivos, cujos contornos pudessem ser circunscritos e isolados, sem se levar previamente em conta o sistema histórico das condições a partir do qual elas adquirem sentido umas correlativamente às outras. Esse deslocamento é confirmado pela nova redação das primeiras linhas da segunda parte do livro. Retomando os três capítulos anteriores para precisar-lhes o alcance, Foucault es, crevera, em 54: "As análises que precedem determinaram as coordenadas mediante as quais se pode situar o patológico no interior da personalidade" (p. 71); em 62, é esta a sua formulação: .. As análises que precedem fixaram as coordenadas mediante as quais as psicologias podem situar o fato patológico" (idem). Isto quer dizer que não existe - como o primeiro texto podia fazer pensar - fato patológico em si, portanto tampouco existe relação real de determinação entre a doença mental e

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a personalidade; ao contrário: a própria personalidade do fato psicológico somente pode ser pensada a partir de uma psicologia que a inscreve em sua perspectiva. A questão essencial é, então, a de saber quais são as relações entre doença mental e psicologia, sem se passar pela referência intermediária a uma "personalidade", cuja estrutura íntima a psicologia pretenderia enunciar e da qual pretenderia dar uma explicação positiva. As modificações introduzidas na segunda parte do livro são muito importantes. O assunto nela tratado ressalta, se confrontado com a primeira parte: até aqui, somente foram expostas as formas de manifestação da doença mental, do ponto de vista das diversas psicologias que, a pretexto de a explicarem, não fizeram mais que descrevê-la; agora se trata de proceder ao estudo das condições da doença. No fim do capítulo quinto, Foucault escreve que devemos interrogar a doença mental sobre as suas "reais origens" (p. 89), em vez de nos atermos às "explicações míticas" que surgem imediatamente da sua simples observação, ou do que se dá, aparentemente, como tal. Ora, tais origens reais da doença não se encontram na personalidade do doente, ou nas formas de existência que lhes são impostas; estas últimas são objeto de uma investigação na qual a análise psicológica ainda teria cabimento, e até acederia a um rigor científico; mas aquelas coincidem com as condições históricas que possibilitam, a um só tempo, o fato patológico e a sua interpretação, sem que entre o primeiro e a segunda possa estabelecer-se relação alguma de precedência ou determinação. Em Maladie mentale et personnalité, essa investigação está concentrada sob o título "As condições da doença" (p. 71), expressão ambígua porque deixa vislumbrar a possibilidade de uma explicação objetiva da doença, nas medida em que esta corresponde a uin dado real que pode ser reportado, positivamente, a suas condições. Para vencer essa ambigüidade, talvez bastasse escrever o título de maneira um pouco diferente: As condições da "doença"; as aspas acrescentadas à palavra doença mostrariam claramente que as condições de que depende o seu objeto determinam, ao mesmo tempo e conjuntamente, o fato e a representação que dele se dá, sem que esses dois aspectos possam ser cindidos, e sem que um possa ser posto face ao outro como sendo o princípio de sua realidade. Na versão modificada de "

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ao ponto de vista global da explicação sociológica. Mas ela estranha, no texto de 62, que de modo geral parece despojado de qualquer referência positivista. É que, nesse intervalo, a fórmula mudou de significado: rompendo com "a ilusão cul, tural" (p. 75) da qual procede o sociologismo, ela agora manifesta o que vincula o fato patológico ao sistema em cujo interior ele é representado, sob a forma de uma relação positiva de determinação. "As análises de nossos psicólogos e sociólogos, que fazem do doente um desviante e procuram a origem do mórbido no anormal, são portanto, antes de mais nada, uma projeção de temas culturais. Na realidade, uma sociedade exprime-se positivamente nas doenças mentais que os seus membros manifestam" (p. 75). Na realidade, positivamente: essas palavras não significam mais, porém, que exista uma realidade efetiva do patológico, acessível a uma explicação positiva, mas sim que a inserção da doença num contexto cultural e social, longe de implicar uma desrealização e uma denegação de seu conceito, é justamente o que constitui a sua realidade "positiva" - em condições que, evidentemente, não são mais as de uma natureza, são as de uma história. O limite do sociologismo e do culturalismo está em que eles fornecem, da doença, uma definição que é comum a todas as formas de sociedade e cultura. Será preciso inverter os termos de uma tal análise: a doença não é reconhecida como tal por ser afastamento relativamente a uma norma; mas afasta-se de uma norma porque é identificada como forma patológica, em condições que ainda resta elucidar, face às quais as normas coletivas devem ser pensadas não como causas porém como efeitos, não como realidades em si - é nisso que reside a ilusão culturalista - mas como fenômenos. Assim descartada a perspectiva de uma sociologia culturalista, será então necessário responder a duas questões: "Como veio a nossa cultura a atribuir à doença o sentido do desvio, e ao doente o estatuto que o exclui? E como é que apesar disso - a nossa sociedade se exprime nessas formas mórbidas nas quais se recusa a reconhecer?" (p. 75). Com efeito, se a doença é presa num dispositivo de exclusão, isto não se dá no contexto da cultura ou da sociedade consideradas em geral, mas no de um certo tipo de cultura e de sociedade, que assim lhe designa a forma de sua manifestação. É isso o que Foucault tem em mente, quando escreve que uma socie-

seu livro, Foucault exprimiu essa idéia dando, a esta segunda parte, o título de "Loucura e cultura". Comecemos considerando a introdução dessa nova parte. Se as psicologias, escreve Foucault, "mostraram as formas pelas quais aparece a doença, elas não puderam demonstrar as condições por que ela aparece" (p. 71). E o texto assim prossegue: "Certamente, é nelas (= nas formas) que a doença se manifesta, é nelas que se desvendam as suas modalidades, as suas formas de expressão, o seu estilo - mas é em outro lugar que o fato patológico (2." edição: o desvio patológico) tem as suas raízes" (idem). Com efeito, do ponto de vista deste "outro lugar" no qual se encontram as origens reais da doença, quer dizer, do ponto de vista deste sistema em cujo interior ela é inseparável de sua imagem, não se deve mais falar em "fato patológico" - como se este existisse em si mesmo, por realidade própria - mas em "desvio patológico": esta última expressão designa o patológico como afastamento face a uma norma que é ao mesmo tempo norma de existência e norma de avaliação, a partir da qual a doença coincide exatamente com a sua imagem, tal como é construída historicamente, em condições que são tanto objetivas quanto subjetivas. A seqüência desse texto introdutório não sofreu modificações. Precisamos, porém, dedicar-lhe alguma atenção, nem que seja apenas porque, inseridas em um novo contexto, as mesmas análises adquirem sentido e alcance diferentes. Nessas páginas, Foucault considera as interpretações "sociológicas" ou "culturalistas" da doença mental, que permitem justamente relativizar a noção desta, ao reimergirem-na no sistema das representações coletivas. Ora, essas interpretações, que efetivamente apresentam o fato patológico como desvio perante uma norma ("a doença situa-se entre as virtualidades que servem de margem à realidade cultural de um grupo social" - p. 73), sofrem, segundo Foucault - que em 62 mantém essa sua posição crítica -, do inconveniente de caracterizarem-no apenas negativamente: o patológico é então pensado como defeito ou falta face a uma norma. E "isso é certamente perder de vista o que há de positivo e real na doença, tal como ela se apresenta na sociedade" (p. 74). No texto de 54, percorrido por todas as sortes de reminiscências de uma epistemologia realista, essa frase não surpreende: remete à idéia de que existe um conteúdo específico do fato patológico, escapando ,

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dade "se exprime positivamente" nas formas patológicas que ela própria isola, ainda que, e talvez porque, ela se recuse a reconhecer-se nelas. Mas essa idéia de expressão, veremos, não significa exatamente a mesma coisa em Maladie mentale et personnalité e em Maladie mentale et psychologie. Com efeito. no livro de 54, o capítulo quinto intitula-se "O sentido histórico da alienação mental", e no de 62, "A constituição histórica da doença mental". Falar em "sentido histórico" da alienação é mostrar como uma sociedade "se exprime" através das formas mórbidas às quais ela impõe os seus modos de reconhecimento: porém esse "sentido" e essa "expressão" devem entender-se então, não segundo a orientação de uma hermenêutica das mentalidades - via que está completamente excluída -, mas na perspectiva materialista de uma explicação da superestrutura pela infra-estrutura, bastante próxima do Marx de A Ideologia Alemã, que define a ideologia como "linguagem da vida social". Essa perspectiva, que caracteriza Maladie mentale et personnalité, remete ao pressuposto de uma epistemologia realista, explicando o fato patológico relativamente às condições reais que o determinam como "alienação", no quadro de uma sociedade também alienada; dir-se-á então que esta sociedade projeta sua alienação em modos de comportamento que ela impõe a alguns de seus membros, assim modelando a sua personalidade. A verdade da alienação reside, pois, nas relações sociais que os homens mantêm entre si na sua existência que, de qualquer forma, quer esteja situada na categoria do normal ou na do patológico, sempre é perturbada pelos conflitos materiais que lhes determinam as formas. Quando, em 1962, Foucault orienta sua investigação para o estudo da "constituição histórica da doença mental", ele se afasta dessa concepção de uma alienação original porque coletiva, que daria conta a priori de todas as formas de exclusão social e, por isso mesmo, determinaria quais "as condições da doença": pois a alienação não deve ser pensada como causa, mas como efeito; este depende de uma "constituição histórica" que não se reduz a uma relação real de determinação, a qual pressuporia, na materialidade primitiva de seu princípio (a estrutura social), o conteúdo do que se pretende explicar. Se há alienação num certo tipo de sociedade, não é em virtude de uma essência alienada dele. preexistente a suas manifestações e apenas se reproduzindo nes-

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tas últimas: mas a materialidade do fato patológico só é objeto de conscientização e avaliação porque é construída historicamente, em outras palavras, porque é produto de um processo cuja realidade nada permite divisar de início, posto que ele vai efetuando suas condições mediante um encadeamento de acontecimentos imprevisíveis, numa seqüência que ainda precisamos reconstituir. No primeiro parágrafo desse capítulo quinto, o texto de 54 propõe uma gênese das formas modernas de alienação partindo dessas formas originais que são o energúmeno dos gnigos, o cativado dos latinos e o demoníaco dos cristãos. "A forma primitiva da alienação certamente se encontra na possessão que, desde a Antigüidade, foi vista como - principal sinal da loucura - a transformação do homem num ou tro que não ele" (p. 76). Seguindo as transformações dessas formas primitivas, deve ser possível mostrar o sentido histórico da alienação, representada em primeiro lugar como irrupção do inumano na existência humana, depois progressivamente integrada no universo dos homens, até o momento em que vai encontrar lugar nesse sistema contraditório, combinando exclusão e inclusão" característico da sociedade burguesa, que se impõe na Europa durante os últimos anos do século XVIII. Ora, o livro publicado em 62 renega tal concepção de uma evolução contínua, que leva da possessão à doença mental gradualmente tornando mais preciso um conceito de alienação, cujo sentido apenas se desenvolveria progressivamente no correr da história, em vez de se constituir efetivamente nela e através dela. Adotar este último ponto de vista - o de uma constituição histórica - é fazer aparecer, ao contrário de uma evolução contínua, a sucessão de rupturas que, pela acumulação de seus efeitos, terminarão produzindo, nas condições específicas de uma determinada cultura, o conceito moderno de doença mental. Vejamos como se inicia, na sua nova versão, o capítulo quinto: "Foi em data relativamente recente que o Ocidente concedeu, à loucura, um estatuto de doença mental. Já se disse, já se disse demais que o louco fora considerado, até o surgimento de uma medicina positiva, como um possesso" (p. 76). Ora, isto é precisamente o que o próprio Foucault afirmara na redação primitiva de seu livro, quando pressupunha uma espécie de permanência da alienação através da história, que a exporia sob diversas formas. Mas agora a his. r.

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Aqui devemos abrir um parêntese: imediatamente depois de denunciar essa ilusão retrospectiva do saber positivo, que anexa ao domínio da doença mental todas as espécies de formas anteriores, reunidas sob a noção geral de alienação, Foucault fala do "confisco" das diversas experiências de loucura que é efetuado no conceito mesmo de doença (Maladie mentale et psychologie, p. 78). Ora, esse termo confisco evoca duas coisas ao mesmo tempo: por um lado indica o processo de abstração que reduz figuras históricas originais, incomparáveis devido à irredutibilidade das condições de que dependem, a uma única representação, o que implica privilegiar indevidamente uma delas para fazê-la o modelo pelo qual todas as demais devem ser, uniformemente, medidas; mas, por outro lado, também sugere a livre disseminação dessas experiências singulares, arbitrariamente contidas dentro dos limites de um discurso mítico que ofusca a sua movente realidade. Pode-se pensar que aqui se esboça um novo realismo, que não mais seria um realismo da ciência, porém um realismo da experiência, agora promovida ao estatuto de uma forma originária e verdadeira, atravessando livremente a história, a qual seria apenas o lugar ocasional de sua manifestação: tratar-seia, então; de um realismo da loucura, como objeto, não de um saber, mas de uma experiência. Efetivamente, toda a História da loucura, cuja grande sombra se desenha sobre o texto de },'ialadie mentale et psychologie, está obcecada por esse pressuposto de uma experiência fundamental da loucura, representada pela trindade algo mística de Nerval, Roussel e Artaud - experiência essencial que escaparia aos limites de uma constituição histórica. Essa "procura de fontes ontológicas escondi das" , para retomar uma expressão de Dreyfus e Rabinow,2 caracteriza perfeitamente o sistema interpretativo adotado por Foucault no começo dos anos 60, no momento em que inicia a sua grande empresa de uma genealogia das formas da experiência humana: é precisamente esse pressuposto que ele reporá em questão, de maneira mais ou menos nítida, nos seus trabalhos posteriores. Vimos de abordar a análise de um conceito que está no centro de todo o pensamento de Foucault: é o de experiência,

tória não dá apenas um sentido, ou sentidos, à alienação ela governa a sua "constituição", no curso de um movimento descontínuo que não está previamente orientado pela referência a uma forma comum de alienação que fixaria, de antemão, o ritmo constante de seu percurso. Observemos que logicamente, com essa mudança de orientação, também deveria desaparecer a alusão a um "Ocidente" igualmente mítico, que remete à mesma ilusão de uma permanência e de um "sentido" .

Propor o problema da constituição histórica da doença mental é, portanto, desistir de procurar por trás desta a base objetiva da qual ela seria a manifestação. Foucault escreve, em Maladie mentale et psychologie: "Todas as histórias da psiquiatria, até este dia, quiseram mostrar no louco da Idade Média e da Renascença um doente ignorado, preso no interior da rede fechada de significações religiosas e mágicas. Teria então sido necessário esperar a objetividade de um olhar médico, finalmente científico, para descobrir a deterioração da natureza onde antes somente se decifravam perversões sobrenaturais" (p. 76). A leitura recorrente da história projeta até nas formas primitivas, que lhe atribui, essa verdade final que corresponde apenas, em última análise, ao ponto de vista limitado a partir do qual ela age, como se houvesse uma única loucura que primeiro foi ignorada como possessão, para depois ser conhecida, e reconhecida, como doença mental. Com efeito, uma epistemologia realista somente afirma a existência substancial do objeto ao qual se aplica um conhecimento para lhe conferir a perenidade de direito de um saber único, que atravessa a história inteira, sem que o seu movimento a modifique no fundo: mas essa representação do saber e de seu objeto está presa, por sua vez, a uma conjuntura histórica .- a mesma que dará à luz, no século XIX, o discurso da medicina positiva -, e não pode furtar-se às suas condições; a continuidade que tal representação supõe não possui nenhum fundamento real, porém depende da singularidade de um ponto de vista e de um momento, precisamente aquele em que a noção de doença mental, até então não apenas ignorada mas também impensável porque predominava um outro contexto, aparece dentro de um sistema de práticas e de discursos que lhe confere o seu valor exclusivo de verdade.

(2) Michel Foucault, un parcours philosophique, Paris, trad. francesa, Gallimard. 1984. p. 29.

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que aparece no final do primeiro parágrafo do capítulo quinto, em Maladie mentale et psychologie. Aí ele intervém como alternativa para a representação de um fato positivo, que estaria na base da noção de doença mental. Aquilo que, na recorrência de um saber que eterniza o seu discurso projetando-o sobre o passado, aparece de maneira contínua e permanente como alienação, corresponde na verdade a experiências diversificadas e incomparáveis: estas não se engatam umas nas outras a partir de uma essência in diferenciada, da qual elas seriam as sucessivas expressões .- mas se articulam umas com as outras, e de certa forma se engrenam, no curso desse lento trabalho de constituição histórica que não está predestinado pelo pressuposto de um sentido preestabelecido, porém sempre ultrapassa as suas formas atuais, sem depender de normas impostas por uma racionalização preconcebida, já que, ao contrário, vai constantemente engendrando os critérios de sua própria racionalização. Deste ponto de vista, a principal contribuição do texto de 62 consiste no fato de que se intercala, entre as considerações sobre as figuras antigas da possessão e as que são dedicadas à medicalização do fenômeno da alienação, uma análise (pp. 80-82) da experiência clássica da loucura, retomando de forma muito resumida o essencial das descobertas longamente pormenorizadas em outro texto: na História da loucura. "Na metade do século XVII, brusca mudança: o mundo da loucura vai tornar-se o mundo da exclusão." (Maladie mentale et psychologie, p. 80) A nova "experiência", nascida dessa mutação, ordena-se à volta de uma instituição sem precedentes, cujas funções são da competência da polícia, não da medicina: o Hospital Geral. A estrutura de separação que então se instaura remete a uma patologia social que confunde numa mesma categoria, encerrando-os também num só lugar, o louco, o pobre, o velho, o licencioso, o revoltado, concentrados todos nessa figura única e monótona do desviante, que a sociedade expulsa para as suas margens, para não mais precisar reconhecer-se na imagem invertida de si mesma que lhe é enviada pelo excluído. "Essas casas não têm nenhuma significação médica; ninguém nelas ingressa para ser cuidado; nelas se entra porque não mais se pode ou deve fazer parte da sociedade. O internamento a que se submete o louco, com tantos

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outros, na época clássica não diz respeito às relações da loucura com a doença, mas às relações da sociedade consigo mesma, com o que ela reconhece e o que não reconhece na conduta dos indivíduos." (p. 81) É então que a loucura, ao lado dos outros casos que afeta a mesma sentença de internação, é percebida e vivida como ausência de obra, porque é pensada em função de uma relação essencial com a ociosidade e a preguiça, o que permitirá justificar que ela seja cortada do mundo útil da produção. Quer dizer, o sistema de internamento precede a constituição da loucura enquanto doença mental, servindo de objeto a um saber positivo: a experiência médica da loucura, que surgirá mais tarde, dar-se-á tendo como pressuposto essa exclusão, cuja estrutura ela transporá do hospital para o asilo, sem modificar as suas duas características fundamentais: a reclusão do silêncio e a condenação moral. A relação entre a doença mental e a loucura não é, portanto, a que o saber positivo representa, em virtude da ilusão recorrente que o caracteriza: a experiência médica da loucura como doença mental não está, absolutamente, prefigurada no gesto clássico de exclusão; ao contrário: este, que precede aquela no trabalho histórico de constituí-la, impõe-lhe os seus próprios modelos de representação. Quer ainda dizer que, quando a medicina substituir a polícia, não será para gradualmente se aproximar de uma verdade natural da loucura, porém para prosseguir, sob outras condições, o movimento de elaboração que culmina em suas formas atuais. De tudo isto se deveria concluir, ao que parece, que não existe experiência originária da loucura, apenas uma sucessão descontínua de experiências que nada permitia anteriormente predizer que, em virtude de uma lógica preestabelecida dos fatos, fosse ordenar-se segundo um sentido ou outro: da mesma forma Foucault mostrará, em suas últimas obras, que não há tampouco uma experiência intemporal, imemorial, da sexualidade, cujo fundo essencial seria revelado ou mascarado por alternâncias de licença e de repressão; tudo o que há são dispositivos conjunturais do sujeito desejante, que organizam sucessivamente as suas experiências no correr de uma história que continua aberta, porque não está submetida ao pressuposto de teologia alguma, seja esta racional ou não. Não é seguro, porém, que a História da loucura esteja completamente liberta do peso dessas origens: ainda voltaremos a este ponto.

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Com base nesta análise, e no fato novo que ela avança, a interpretação das formas modernas de internamento, em instituições médicas que se apresentam como a implantação de um saber do homem, interpretação esta já esboçada no texto de 54, assume no de 62 um significado inteiramente distinto_ Com efeito, o que mostra Foucault no seu primeiro livro? Que a libertação dos loucos no final do século XVIII, no momento em que a ideologia burguesa humanista lança descrédito sobre a instituição do Hospital Geral, devido a seu caráter carcerário excessivamente manifesto, e decide suprimi-lo, não passa de uma aparência enganosa, pois coincide com as novas práticas da medicina asilar que, afundando um pouco mais a loucura em seu estatuto de alienação, implicam, na verdade, privar o indivíduo de sua humanidade e de sua personalidade. 3 Encetando em 54 uma investigação sobre as "condições da doença" (era este, como recordamos, o título da segunda parte de Maladie mentale et personnalité), Foucault prometia responder à pergunta: "Como veio a nossa cultura a atribuir à doença o sentido do desvio, e ao doente o estatuo que o exclui?" (p. 75). Mas, nesse momento, como falta a Foucault o elo intermediário que tal explicação requer, isto é, a experiência clássica do internamento, ele só pode dar à questão assim formulada uma resposta indicativa, sustentada na interpretação do fenômeno geral da alienação. Esta interpretação se apóia na análise das contradições da ideologia burguesa que, ao mesmo tempo que reintegra a loucura na humanidade, propondo fazer o seu estudo positivo dentro do contexto global das ciências do homem, cujo programa ela então define, também espolia o louco de sua natureza de homem, lançando sobre ele uma "interdição" que o priva dos direitos fundamentais que, na mesma época, estavam sendo anexados à essência humana. "O doente mental, no século XIX, é aquele que perdeu o uso das liberdades que a revolução burguesa lhe conferiu." (Maladie mentale et personnalité, p. 80) Há conflito, então, entre a representação ideal de uma

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humanidade abstrata e as práticas reais da sociedade concreta: essa contradição abre, na sociedade burguesa, um espaço onde cabe uma alienação, e por isso constitui esta própria sociedade enquanto sociedade alienada. "O destino do doente é fixado, desde então, por mais de um século: ele é alienado. E essa alienação marca todas as suas relações sociais, todas as suas experiências, as suas condições de existência todas; não pode mais se reconhecer na sua própria vontade, porque lhe supõem uma vontade que ele não conhece; nos outros somente encontra estranhos, porque para eles ele próprio é um estranho. A alienação é portanto, para o doente, muito mais que um estatuto jurídico: é uma experiência real; ela necessariamente se inscreve no fato patológico." (idem) Há assim uma experiência da alienação, que não é apenas a do louco enquanto indivíduo, mas pertence a todo o conjunto da sociedade em cujo interior ele é reconhecido como doente. O saber da loucura, tal como se desenvolve no discurso da patologia médica, nada faz então além de exprimir, a posteriori, uma estrutura das relações sociais das quais ele constitui, de certa forma, o reflexo. A doença remete à experiência social, e não natural, da desumanização. Ê por isso que Foucault pode concluir assim a sua análise: "Pode-se supor que, no dia em que o doente não mais sofrer a sorte da alienação, será possível encarar a dialética da doença de uma perspectiva que se conserve humana" (Maladie mentale et personnalité, p. 83). Devolver ao indivíduo a sua personalidade, o que somente se pode fazer no contexto de uma sociedade também ela desalienada ("no dia em que"), é o mesmo que suprimir a forma da alienação, para substituí-la pela "dialética da doença". No texto de 62, porém, essa teoria da alienação social está apagada por completo; em seu lugar, encontra-se uma análise das modalidades pelas quais, no final do século XVIII, o internamento foi, não suprimido, mas convertido, transformado de prática policial em prática médica: foi então que os asilos se viram reservados aos doentes mentais, sobre os quais se rebatem as antigas práticas da reclusão. Essa transformação se efetua na forma mítica de um duplo advento: o do humanismo e o da cientificidade positiva. Mas a natureza humana que dessa maneira é revelada não passa de uma essência fictícia: o médico de asilo, ao invés de voltar a uma experiência natural do fato patológico, despojada do preconceito de

(3) Mantivemos o termo hospital para o lugar onde se internavam, na era clássica, todos os "desviantes", e aSilo para a concentração, mais mo-

derna, dos alienados. Mas esses significados não passam de uma convenção, que adotamos para não nos afastar das traduções habituais - porque os dois termos, em português, se distinguem muito menos que em francês. (N. T.)

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uma avaliação social, aplica à doença mental o veredicto coletivo que a condena; ele é "o agente das sínteses morais" (p. 85). A percepção da loucura enquanto doença faz-se, portanto. contra o fundo de um espaço social de exclusão, que assimila a anomalia à falta. Ê nessas condições que se reconhece, pela primeira vez, a especificidade da doença mental, por intermédio do discurso da psicologia que então se separa, definitivamente, do da fisiologia orgânica. "No novo mundo asilar, neste mundo da moral que castiga, a loucura tornou-se um fato que diz respeito à essência da alma humana, à sua culpa e liberdade; a partir de agora, ela se inscreve no elemento da interioridade; e assim, pela primeira vez no mundo ocidental, a loucura receberá estatuto, estrutura e significação psicológicos. Mas esta psicologização .não passa de conseqüência de uma operação mais surda, situada em nível mais profundo - uma operação que produz a inserção da loucura no sistema dos valores e das repressões morais" (Maladie menlU/e el psychologie. p. 86). Ê que a constituição desse saber não depende da suposta natureza de seu objeto, porém do sistema global de avaliação em cujo interior este é identificado e, precisamente, reconhecido como objeto: esse sistema, que se instaura nos começos do século XIX, define as condições de uma nova experiência da loucura, cujo estilo e postura geral são completamente inéditos face às suas experiências anteriores. T,to inéditos que, conforme já se observou, a alusão ao "mundo ocidental", e à sua aparente homogeneidade ou permanência. parece com isso perder pertinência. A última parte do capítulo sobre "A constituição histórica da doença mental", no livro de 62, está dedicada a mostrar como a psicologia foi produzida pela estrutura asilar, no interior da qual a loucura tornou-se doença mental. Relativamente à interpretação mais corrente, com efeito, a relação da doença mental com a psicologia deve ser invertida - como acabamos de ver. "O homem somente se tornou uma 'espécie psicologizável' a partir do momento em que sua relação com a loucura autorizou uma psicologia, isto é, a partir do momento em que a sua relação com a loucura foi definida pela dimensão interior da atribuição moral e da culpa." (Maladie mentale et psychologie, p. 88). Tal relação, Foucault não afirma mais que seja contraditória, 'apenas que é "ambígua" - porque ássenta na confusão, historicamente instituída, entre de,

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terminações que são estranhas uma à outra de início, e cuja coincidência não se deve nem a um fundamento natural nem a uma justificação racional. "Toda a estrutura epistemológica da psicologia contemporânea enraíza-se nesse acontecimento que é quase contemporâneo da Revolução [Francesa), e que se refere à relação do homem consigo mesmo" (idem). O discurso da psicologia haure a sua legitimidade de um acontecimento que lhe comunica sua necessidade, e do qual ele apenas fornece uma representação artificialmente objetivada, no tipo do homo psychologicus que é também, e inseparavelmente, o paciente 4 do internamento. Ê portanto a experiência da loucura que permite compreender a empresa da psicologia, mais do que a própria psicologia permitira compreender a loucura. Podemos, porém, perguntar-nos se aqui não se esboça uma nova ficção, uma nova utopia, exatamente simétrica da que aparecia no texto de 54 quando evocava a eventualidade de uma sociedade desalienada porque definitivamente expurgada de todas as suas contradições ("no dia em que"): a utopia de um outro saber do homem, saber nu, saber autêntico, saber verdadeiro, saber despsicologizado porque despatologizado, tal como o revelam as grandes noites da tragédia. "Nunca a psicologia poderá dizer a verdade sobre a loucura, pois é a loucura que detém a verdade da psicologia ... Levada até a sua raiz, a psicologia da loucura não acarretaria a dominação da doença mental e portanto a possibilidade de que esta desapareça, mas a destruição da própria psicologia, e a reatualização dessa relação essencial, não psicológica porque não moralizável, que é a relação da razão com a desrazão." (p. 89) Essa "relação essencial" do homem consigo mesmo põe em jogo uma outra espécie de verdade, que não depende mais de nenhuma espécie de determinação positiva: é por isso que essa verdade constitui uma norma de avaliação absoluta. Ê precisamente este o tema retomado no capítulo sexto de Maladie mentale et psychologie, que tem por título "A loucura, estrutura global". Eis o seu programa: "Será necessário, um dia, tentar fazer um estudo da loucura como estrutura global - da loucura liberada e (4) Sujet, no original: termo que em francês tem os sentidos de sujeito (o mais usual na obra de Foucault), mas também o de súdito, em política, e de paciente (de um médico, etc.). (N. T.) I

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desalienada, de certa forma restituída à sua linguagem de origem" (p. 90). Mas esta evocação, cuja linha fulgurante também atravessa muitas páginas da História da loucura, não se apoiará num novo mito, um mito tão primordial que não pode ser objeto de nenhum exame, de nenhuma avaliação, já que ele próprio não depende de nenhuma "condição"? Mito este que é o da loucura essencial, persistindo em sua natureza originária, aquém dos sistemas institucionais e discursivos que lhe alteram a verdade primeira, ou a "confiscam", segundo uma expressão que já conientamos. Um tal mito ocupa o lugar que cabia, no texto publicado em 54, ao de uma essência humana desalienada: como se a referência a Nietzsche e a Heidegger, implícita por todo o texto de Maladie mentale et psychologie, substituísse a referência ao jovem Marx, que por sua vez obsedava o texto de Maladie mentale et personnalité. Essa representação de uma relação primitiva do homem consigo mesmo, precedendo todas as suas experiências históricas e relativizando-as ao medi-las segundo a sua própria verdade fundamental, constitui de certa forma o impensado teórico a partir do qual Foucault escreve, no começo dos anos 60, a História da loucura. Desta maneira se percebe dentro de que limites inscreve-se a retificação a que Foucault submete, em 62, o seu texto de 54: deslocando-se a idéia de uma verdade psicológica da doença mental para a de uma verdade ontológica da loucura, não se toca no pressuposto de uma natureza do homem, embora esta venha situar-se mais como evocação poética do que como saber positivo. Assim se compreende que, no seu livro de 62, Foucault tenha conservado as páginas que serviam de conclusão ao capítulo quinto do de 54 (pp. 84-87), transportando-as apenas para o final desse capítulo sexto que trata de "A loucura, estrutura global". Por que essa transposição? Porque, remetendo para a conclusão essas considerações sobre as condições históricas e sociais do internamento, considerações que por sinal, devido à sua inserção num novo contexto, adquiriam um significado sensivelmente diferente, Foucault podia eliminar aquilo que, sob o título "A psicologia do conflito", constituía o conteúdo do capítulo sexto de Maladie mentale et personnalité. A supressão pura e simples desse capítulo é, certamente, a razão essencial para ter Foucault refeito tanto a sua obra, por ocasião da reedição: pois está claro que nada, nem

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em seu conteúdo, nem no pormenor de suas formulações, correspondia mais à concepção que Foucault desenvolvera das relações entre a doença mental e a psicologia, após. seus trabalhos sobre a história da loucura. Com efeito, este capítulo sexto do livro de 54, escorado em dados e conceitos devidos à psicofisiologia pavloviana, cede lugar, ao lado de uma análise do condicionamento social exposta sob a rubrica geral de "Alienação", a um estudo propriamente psicológico dos comportamentos reconhecidos, devido justamente a esse condicionamento, como patológicos: trata-se então de mostrar como as formas coletivas de alienação repercutem nas condutas individuais, para imprimir a umas um caráter de normalidade, enquanto reservam a outras a posição catastrófica de comportamentos desviantes, punidos nessa qualidade por um diagnóstico médico. Isso implica que a doença mental subordinase a duas espécies de condições: condições gerais, comuns aos comportamentos sãos e aos identificados como patológicos; e condições específicas à personalidade do indivíduo, nível este em que se efetua a censura do normal e do anormal. Uma tal análise requer dois pressupostos. Por um lado, posicionando as investigações da psicologia - melhor dizendo, do que Foucault chamava um pouco adiante, em seu livro de 54, "a verdadeira psicologia" (p. 110), isto é, uma psicologia finalmente liberta dos pressupostos que lhe impõe a alienação da sociedade - nas margens da explicação histórico-social, com o fim de mostrar como a contradição geral da sociedade pode ser interiorizada por consciências individuais sob o modo do conflito, a sua análise conserva-se na perspectiva de um realismo psicológico: ele enraíza na consciência os fenômenos da doença mental, e ainda mais os enraíza na medida em que reduz essa consciência a um conjunto de processos, solidamente psíquicos e orgânicos, cujo mecanismo, regido por determinismos objetivos, assim acede a uma espécie de necessidade material. Por outro lado, o exame desses processos, fazendo ver que todas as condutas estão submetidas às mesmas leis, a partir da relação fundamental da excitação e da inibição, faz que dependam de uma fisiologia geral que é também, pelas mesmas razões, uma patologia: a doença, submetida aos mesmos princípios de explicação que os comportamentos normais, apresenta-se então como um fenômeno de adaptação, isto é, como o sistema mais ou menos coordenado das respostas aos

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p. 103). E, mais adiante: "Tentar definir a doença a partir de uma distinção entre o normal e o anormal é inverter os termos do problema; é fazer de uma conseqüência uma condição, com o fim certamente implicito de ocultar que a alienação é a verdadeira condição da doença" (idem, p. 105). Ao contrário, porém, no seu livro de 62 Foucault mostra que o conceito de doença mental só tem sentido contra o fundo desse procedimento de exclusão, cujas origens ou razões não se devem procurar numa forma qualquer de saber positivo, procedimento este que, antes mesmo de reconhecê-la e descrevê-la como alienação, instala entre a doença e as demais formas da existência humana uma intransponível fronteira, uma separação que já basta para conferir aos fenômenos patológicos a sua realidade de objetos oferecidos ao saber. Ê verdade que, ao mesmo tempo, Foucault está transferindo da alienação para a loucura esse caráter de fato objetivo, do qual a doença mental é, mais que sintoma ou manifestação, substituto - porque, nas condições de uma experiência histórica, ela consegue ofuscar quase por completo a sua natureza primordial. Mas também, conforme acabamos de dizer, não está mais em questão propor-se, a qualquer nível que seja, uma explicação psicológica da doença: pois fica evídente que psicologia alguma jamais conseguirá dar conta do fenômeno cujas condições de surgimento ela precisa, justamente, fazer esquecer. Entre as duas versões sucessivas da mesma obra, de Maladie mentale et personnalité a Maladie mentale et psychologie, ocorre, pois, uma verdadeira inversão de perspéctiva. Ê essa inversão que nos permite precisar as condições nas quais, rompendo com suas orientações anteriores, Foucault ingressou na sua primeira grande construção teórica, a Hist6ria da loucura. Uma inversão, porém, é um movimento que de certa forma conserva, porque também supõe uma permanência. Impondo às suas análises anteriores da doença mental uma retificação decisiva, Foucault tornou possível um trabalho de investigação histórica liberto dos a priori que lhe vinham de um dogma explicativo preestabelecido, e especialmente do pressuposto teleológico de que há um sentido na história: compreende-se que posteriormente, por ter ele próprio experimentado isso e em si mesmo, Foucault tenha desconfiado de tudo o que provinha do "materialismo dialético" como da própria peste. Mas significa isso que ele tenha· conseguido, com

estímulos provenientes de um meio externo, no qual, em última instância, se encontram as causas dos conflitos dos quais ela não passa de uma mànifestação. "Há doença quando o conflito, em vez de trazer uma diferenciação na resposta, provoca uma reação difusa de defesa; em outras palavras, quando o indivíduo não pode dominar, no nível de suas reações, as contradições do seu meio, quando a dialética psicológica do indivíduo não pode se reencontrar na dialética de suas condições de existência." (Maladie mentale et personnalité, p. 1(2) A alienação é aparência no nível do indivíduo porque é realidade no das condições da existência coletiva: e era preciso nada menos do que uma psicologia materialista e dialética, para confirmar e precisar essa objetivação dos fenômenos patológicos, cujo caráter efetivo assim se vê deslocado do indivíduo para o seu meio, no qual se encontra o fundamento real deles. "A alienação, com esse novo conteúdo, não é mais uma aberração psicológica - ela é definida por um momento histórico: somente ele a possibilita." Mas, está evidente, Foucault não pode continuar raciocinando dessa forma depois de escrever a Hist6ria da loucura. Antes de mais nada, porque uma tal explicação objetiva restitui a uma psicologia a função de dar conta da doença mental, ao passo que se evídenciou, entrementes, que ela apenas legitima a posteriori as práticas das quais depende o seu discurso. Além disso, e acima de tudo, porque, ao mesmo tempo que refere os fenômenos patológicos ao momento histórico que os possibilita, essa explicação priva-os dos caracteres que, num contexto histórico muito preciso, permitem reconhecê-los como patológicos antes mesmo de serem identificados como "fatos". Tornou-se essencial para Foucault, em 62, evidenciar que o alienado não é apenas um desadaptado, isto é, um rejeito dos mecanismos de adaptação, dos quais, por sinal, já não se sabe muito bem se dependem de um estudo psicológico ou sociológico. Pois, na verdade, o alienado é coisa totalmente diferente: produto de um regime institucional, em cujo interior há lugar para o doente exatamente porque já não há nenhum para o louco. Foucault concluía, em seu primeiro texto, que a anormalidade era efeito da alienação, sendo esta o princípio objetivo a partir do qual a doença pode ser explicada: "Portanto não é porque alguém é doente que é alienado, mas é doente porque alienado" (Maladie mentale et personnalité,

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esse gesto único de ruptura, estabelecer definitivamente a nova base teórica sobre a qual assentar o estudo de uma história devolvida a suas exatas condições e a suas origens autênticas? Nada é menos certo. E, para nos convencermos de que essa retificação não tem mais que o valor limitado, e não definitivamente fundador ou instaurador, de um ato discursivo inscrito no movimento de conjunto de um dispositivo de conhecimento do qual a Hist6ria da loucura constitui apenas o primeiro passo, basta lermos a conclusão de Maladie mentale et psychologie: pois nessas páginas aparecem de maneira evidente o caráter heurístico e também os limites da nova problemática que Foucault definiu no começo dos anos 60, e que devia servir de ponto de partida, mas somente de ponto de partida, para suas investigações futuras. Nelas se esboça uma interpretação da história como processo de ocultação da verdade, cuja inspiração é evidentemente heideggeriana: se não existe verdade psicológica da loucura - o homo psychologicus não passando de uma tardia invenção da nossa cultura -, é porque a própria loucura, em sua verdade essencial e intemporal, rasga a história com seus relâmpagos que, embora intermitentes (Hiilderlin, Nietzsche, Artaud ... ), não deixam de ser os sinais indiscutíveis de sua inalterável permanência. A história da loucura não é, pois, a loucura como história, ou a loucura enquanto depende de urna constituição histórica que a produz sob a forma de suas diversas experiências, mas é essa história que aconteceu à loucura, porque lhe foi feita, história a cujo respeito surge uma suspeita, a de sua inautenticidade, e também surge uma esperança, a de que assim como foi feita igualmente possa ser desfeita, de modo que reapareça - finalmente - aquela verdade primeira da qual ela apenas manifesta a ausência. "Há uma boa razão para que a psicologia jamais possa dominar a loucura, é que a psicologia somente foi possível em nosso mundo uma vez dominada a loucura e excluída esta do drama." (Maladie mentale et psychologie, p. 103) A loucura dominada ou confiscada é, no fundo, a loucura desnaturada ao mesmo tempo que socializada. A questão que nasce da leitura das grandes obras posteriores de Foucault, da arqueologia do saber que está em As palavras e as coisas até a Hist6ria da sexualidade, consiste em saber se elas conservam essa mesma divisão entre história e verdade, que em última análise, remete a uma distinção abstrata entre a

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ordem da natureza e a da cultura, ou se, ao invés disso, elas também não introduzem, por sua vez, novas retificações nesta problemática. (Tradução de Renato Janine Ribeiro)

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sentido técnico que lhe é dado por Schilder, em A imagem do corpo: estudo das forças construtivas da psyche, e a imagem da sociedade. Mary Dougias diz que é mais interessante e mais correto, no processo da dinâmica psico-sociológica, falarmos em imagem social do corpo. Por este caminho, a autora desenvolve análises belíssimas, mostrando como podemos ler claramente as extremidades e os limites do corpo como sendo as extremidades e os limites que a sociedade impõe e se impõe. Para exemplificar, ela fornece um material que, desde o Levitico, estende-se às populações nilóticas. Mostra como tudo o que sai do corpo - aquilo que Bataille chama de excrémentiel 3 - as secreções, é considerado perigoso porque todos os orifícios representam a região de um limite, de um limite entre o permitido, que é o que estaria nas visceras, e o proibido, que é o que sai das visceras e "vai fora". É um conceito que retomarei adiante, que Bataille já havia exposto chamando-o de "heterologia" . 4 Nesse sentido, Mary Douglas mostra todos aqueles rituais de purificação e aqueles rituais que procuram impedir também o contato com todas essas "matérias". De um certo modo, a novidade que há no texto de Mary Douglas é a de um material etnográfico ampliado, porque Reich já . afirmara algo parecido quando tentou, com Vera Schmidt,S introduzir as reformas educacionais numa linha de revisão freudiana; propunha que os professores da área da pré-escola, na interação com as crianças, "liberassem" a manipulação da oralidade e da analidade, ou seja, "liberassem" o contato com essas matérias impuras. Vocês sabem que tanto Reich quanto Vera Schmidt foram muito perseguidos e que a reforma na União Soviética gorou ... Não há, então, tanta novidade assim em termos de colocação teórica do problema... Mas a grande vantagem do texto de Mary Douglas é mostrar todo esse material etnográfico comparado, não se limitando, portanto, à cultura judaico-cristã - que era fundamentalmente aquela que Reich trabalhara - e mostrando que a imagem do próprio corpo é a imagem que a sociedade constrói do corpo, de

A corporeidade outra José Carlos de Paula Carvalho*

I sto não vai chegar a ser uma conferência ou uma palestra, porque há pouco tempo disponivel para o que eu gostaria de transmitir detalhadamente para vocês_ Seguem-se, então, apenas algumas indicações, e quem estiver interessado poderá depois me procurar - na Faculdade de Educação - ou eventualmente consultar o meu trabalho,' onde desenvolvo, funmentalmente em sua última parte, tudo o que será aqui somente esbOÇado. Meu trabalho começou com a orientação de Victor KnolJ, depois se encaminhou para a França, com a orientação de Gilbert Durand, no "Centre de Recherches sur l'lmaginaire". e finalmente se deslocou para cá, com a orientação de Ruy Coelho e Liana Trindade, que atualmente é minha orientadora. Partiu, dentre outros pretextos, do seguinte: o problema que me preocupava era fundamentalmente este - no campo da antropologia, Mary Douglas, no livro Pureza e perigo, 2 estabelece uma relação muito interessante entre a formação -tanto psicológica quanto social - da imagem do corpo. no

(3) Bourke, J. G. Les rites scatologiques, trad. D. laporte, prefáCio de S. Fraud, Paris, PUF, 1981. (4) Bataille, G., "Qossier hétérologie", in Oeuvres complêtes 1/: Écrits posthumes, 1922-1940, Paris, Gallimard, 1970. (5) Reich, W. e Schmidt, V., Psicanálise e educação, trad. D. lagoeiro e J. Vicente, Lisboa, Ed. J. Bragança, 1975.

(') Da Faculdade de Educação da USP. (1) Paula Carvalho, J. C. de, "Energia, símbolo e magia: uma contribuição à antropologia do Imaginário" (Tese de Doutoramento em Antropologia Social, FFLCHUSP, 1985), cf. 2~ parte, capo 11, pp. 764-927. (2) Douglas, M., Pureza e perigo, trad. M. S. Leite e Z. Z. Pinto, São Paulo, Perspectiva, s. d., cf. caps. 6 a 8.

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mantém a interdição. Em outras palavras, violando-se a lei, tem-se a impressão de que se está "contestando" ... na realidade se é vítima de uma estratégia que Bourdin 8 chamara de "transgressão em circuito fechado". Isto vai me levar a um parêntese para um problema muito sério, qual seja, o de todos os movimentos "contraculturais", os movimentos da linha "anti", como os chamo. Teria que haver toda uma releitura dos movimentos contraculturais ou movimentos "anti" - e é o que pretendi numa das partes daquele trabalho 9 - para propor uma "meta", ou seja, quebrar o circuito da transgressão fechada e da lei. De qualquer forma, Mary Douglas tem a vantagem de colocar isso de modo incisivo. Depois, ela escreveu uma série de ensaios coleta dos sob o nome de Símbolos naturais, 10 onde há dois artigos, um que se chama "Os dois corpos" e outro que se chama "A ordem do simbólico controlada"; ali ela vai retomar o problema do que chama "dois corpos", e esboçar uma tentativa de ruptura com o fechamento desse "universo", tanto em direção a uma valorização da corporeidade quanto em direção a uma valorização do imaginário. Mary Douglas vai partir do estudo do culto de possessão feito por Raymond Firth, sobretudo do "transe", mostrando o corpo-estertor por excelência e, dentro dos cultos de possessão, qual seria o momento mais importante em que o corpo, escapando às regras que seriam as da banalidade cotidiana, poderia encontrar um outro espaço, mas sem ter ainda entrado nele, porque este outro espaço também está sujeito à regulação, à regulação pelos rituais de iniciação. Então, onde haveria este espaço intermediário ou, como Winnicott 11 - que ela não cita - chama, essa "transicionalidade", que me define um "espaço potencial"? Diz ela que R. Firth considera três tipos de transe: a "possessão pelo espírito", a "possessão mediúnica", o "xamanismo" e, diz ela, há um quarto tipo a

modo que, reversivamente - dizem até os detratores de Mary Douglas -, poderíamos ver isso de modo mecanicista, e poderíamos ler a sociedade pelo corpo e ler o corpo através da sociedade. De qualquer forma, o que fica é uma articulação entre sociedade e corporeidade. Mas o mais interessante é que O problema, que persiste como uma interrogação, é o da imagem, ou seja, como se articula o corpo próprio com a sociedade como um organismo. Ê através de um repertório de imagens - e aí entra algo que Mary Douglas não tematiza especificamente, e que é o imaginário -, do imaginário, seja concebido como Castoriadis 6 o concebe, como um magma social de significações das quais serão extraídas apenas algumas, selecionadas por um repertório cultural, seja de um imaginário também concebido no sentido tanto de uma "fantasmática", ou seja, de uma imagem que, por ser proibida, é denegada e, por ser denegada, se transforma num fantasma - uma fantasmática quase no sentido lacaniano -, ou então mesmo de uma "fantástica", 1 que seria a imagem feliz de que Bachelard nos fala. Assim, o imaginário seria exatamente o instrumento, o repertório mediador dessa articulação. No texto de Mary Douglas fica muito claro que não existe um "corpo próprio", próprio no sentido de haver uma autenticidade na relação com o corpo, a não ser com o corpo que a sociedade me construiu e que a sociedade impede. Não obstante, Mary Douglas volta a insistir no problema dos limites porque é a partir daí que vai aparecer o problema da definição dos interditos e das transgressões. E isto é um problema, porque como toda a antropologia funcionalista - ainda que "heterodoxa" - está baseada no velho pressuposto "clássico" das "definições correlativas", ou seja, define-se uma coisa pela outra, realmente não se tem saída nem por um lado nem por outro ... Assim, aqui acaba havendo uma definição correlativa entre interdito e transgressão, quer dizer, o instrumento que proíbe é o próprio instrumento que permite a violação e o próprio ato da violação é um ato que

(81 Bourdin, A., "Les lieux de I'anomie", in J. Duvignaud (ed.), Socio-

logie de/a connaissance, Paris, Payot, 1982. (9) Paula Carvalho, J. C. de. "Energia ... ", cf. 2~ parte, capo 11,2.5 e 6. (10) Douglas, M., Natura/ symbo/s: exp/orations in cosm%gy, Nova Iorque, Vintage Books, 1973, cf. caps. 5 e 9 (hã trad. esp. Alianza Editorial). (11) Winnicott, D. W., "Objets transitionnels et phénomênes transitionels", in D. W. Winnicott, Jeu et rea/ité: I'espace potentie/, trad. CI. Monod et J. Pontalis, Paris, Gallimard, 1971.

(6) Castoriadis, C., "L'irnaginaire social et I'institution" in L 'institution I

imaginaire dela société, Paris. Seuil, 1975 (há trad. bras. Paz e Terra). (7) Paula Carvalho, J. C. de, "Imaginário e Organização (1): notas de leitura", in Revista de Administração de Empresas, da Fundação Getúlio Vargas, São Paulo, n? 3/85 (no prelo),

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considerar, por onde se poderia abrir um vetor para o imaginãrio e a corporeidade. Na possessão pelo espirito, o transe se reduz praticamente a quase nada. Lembremos que Bastide 12 já havia mostrado, aqui no Brasil, que a possessão e o transe realmenre não são essa "liberação" do corpo, como os antropólogos que vinham pesquisar - numa espécie de "ilusão mana", parafraseando Lévi-Strauss, querendo encontrar um corpo de que não dispunham mais na própria cultura - imaginavam encontrar nos rituais de possessão. Bastide 13 dizia que ainda não tinha sido feito um estudo dessa gramática dos gestos. E realmente há uma gramática dos gestos 14 por uma razão muito simples: porque a possessão pelo santo de cabeça, ou então pelo capanga, pelo "de costas", acontece dentro de um espaço social definido, que é o terreiro, e acontece mais ainda dentro de rituais de iniciação, que são todo um repertório de normas e regras sociais. Então Mary Douglas sugere que na possessão pelo espirito não ocorre intensamente o tran-

articulariam, posteriomente, as produções imaginárias. Ele cita como importantes a arte, a magia, a religião e o mito. O "espaço potencial" em termos de· ontogênese, ou seja, de formação da personalidade básica da criança, ou ainda, de transição do princípio do prazer para o princípio da realidade, está ligado exatamente a esse espaço em potencial, está ligado à formação destas produções imaginárias. A tendência da sociedade é posteriormente não liberar, no púbere ou no adolescente, ou mesmo no adulto, esse espaço lúdico, de jogo, mas,

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ao contrário, tentar "eliciar" esse espaço de "lazer" de um

modo tal que as potencialidades se transformem em fantasmas no sentido kleinillno. 15 E, a partir de Winnicott relido, diríamos que a finalidade de toda a terapia seria transformar esta fantasmática em fantástica, ou seja, estas produções imaginárias infelizes e perseguidas pelos interditos no momento em que transgridem os interditos, em que ultrapassam o limiar da consciência permitida, em imagens felizes que poderiam nutrir imagens de outros mundos. Nesse sentido, então, é que no transe poderíamos testar a emergência do "espaço potencial", dessa região fronteiriça, dessa região de limites, dessa região de emergência das produções imaginárias. Na possessão pelo espirito isso não acontece. Na possessão mediúnica isso também não acontece porque há, diz Mary Douglas, uma "escola de médiuns", como há até hoje nas federações. Não posso entrar, infelizmente, em maiores detalhes aqui. Onde começa a acontecer aquela emergência, diz ela, é no xamanismo; aqui o xamã se põe numa relação heróica com o espirito: não é o espirito que desce, é o xamã que sai para enfrentar o espirito. Não se trata, assim, de

se; o "transe" seria exatamente esse momento "transicional"

em que se deixa um universo de regras, mas em que não se entrou ainda num outro universo de regras, em que se deixa um espaço social, como Winnicott chama (esse espaço social que Winnicott diz ser regido pelo principio de realidade), mas não se entrou ainda num outro espaço social. .. que também é regido pelo principio de realidade como "terreiro", só que esse é regido de modo "lúdico". Por que nisso entra sobretudo ludismo? E aqui abro um novo parêntese. Winnicott diz que é muito difícil num processo de ontogênese, ou seja, de formação da personalidade, a criança aceitar o princípio de realidade, comutando o principio do prazer. Ele afirma que a estratégia para isso consiste em preservar uma região "fronteiriça", que seria onde se desenvolveria fundamentalmente o espaço do jogo; sobre o espaço do jogo se

"incorporar" nem de "exorcizar", mas sim de "adorcizar",

ou seja, de domesticar o espirito, tornando-o um súcubo, assimilando-o. 16 No xamanismo já há uma ação maior, e as técnicas corporais do xamanismo estão menos sujeitas à codifi-

(12) Bastide, R" "Discipline et spontanêité dans les transes afro-amêri-

caines", in Le rêve, la transe et la folie (2~ parte), Paris, Flammarion, 1972.

__ , Le sacré sauvage et autres essais, Paris, Payot, 1975. (13) Bastide, R" "Prolégomenes à I'études des cultes de possession", in Le rêve ... ". (14) Eibl-Eibesfeldt, 1., "Das nichtverbale Ausdrucksverhalten: die Kõrpersprache", in Kindlers Enzyklopadie (Der Menschl, Sonderdruck (enviado

(15) Isaaes, S., "Nature et fonctÍon du phantasme", in M. Klein et alii, Développements dela psychanalyse, Paris, PU F, 1966. (16) Heuseh, L. de, "Pour une approche"structuraliste de la pensée magico-religieuse bantoue" e "Possession et chamanisme", in L. de Heuseh, Pourquoi I'épouser et autres essais, Paris, Gallimard, 1971. - - , "Introduction à une ritologie générale", in E. Morin/P. Palmarini, L 'Unité de I'homme: 3. pour une anthropologie fondamentale", Paris, Seuil,

pelo autor, s. d. I.

Calame-Griaule, G" "Pour une étude des gestes narratifs", in Langages et cultures africaines: essais d'ethnolinguistique, Paris, F. Maspéro, 1977.

1974 (há Irad. bras. EDUSP).

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a falar so.bre isso. do. que o.s so.ciólo.go.s ... Esse texto. me incito.u, de certo. medo., a tentar analisar o. que ele chamo.u de "técnicas de co.rpo.". Cerne essas técnicas do. co.rpo. pedem traduzir uma "co.rporeidade própria" eu traduzir um co.rpo. Outro. _ cem O maiúsculo., cerne Lacan dizia -, escapando. de certo. medo. à regulação. so.cial do. co.rpo.? Ora, to.do.s sabem que isso. aco.ntece dentro. do.s quadres de uma iniciação.; e, se aco.ntece no.s quadres de uma iniciação., aco.ntece dentro. do.s quadros de uma regulação. so.cial. O mesmo. se pode dizer do levantamento. fenomenológico. de Eliade. Não. o.bstante, o. texto. de Mauss abre espaço. para se estudar aspecto.s que ho.je em dia eu tenderia a chamar de "biótico.s" - que significa a "física vital" e a "física social" da corpo.reidade - , para acabar cem a briga entre o.s biólo.go.s e o.s so.ciólogo.s, so.bretudo após o. mal-entendido. da socio.bio.lo.gia. Seria isto. po.ssível? É aqui que, per uma o.utra linha, entra Fo.ucault. Eu tinha o.utro. trabalho. paralelo.; era meu projeto. o.riginal de Doctorat d'État so.bre Bataille (que li per muito. tempo.). Em Bataille temes um centramento. so.bre a idéia de transgressão.; e a co.rpo.reidadeem Bataille apresenta-se de um medo. to.talmente éclaté ... Fo.ucault co.menta Bataille: é o. Préface à la transgression, texto. este difícil, ho.je, de se enco.ntrar. Mas um grupo. francês de pesquisa temática, chamado. "Inco.nsciente e Cultura", co.mpo.sto. per D. Anzieu, R. Kaes e o.utro.s, publico.u uma o.bra que se chama justamente O interdito e a transgressão, 19 co.ntendo. excerto.s - irifelizmente! - daquele trabalho. de Fo.ucault. '" Em Fo.ucault há algo. muito. interessante. Per um lado., na História da sexualidade 21 ele estuda o. "bio.po.der". O bio.po.der seriam exatamente aquelas técnicas de regulação. so.cial, de no.rmalização. eu, se vocês preferirem, de manipulação. da co.rpo.reidade vísando. fundamentalmente ao. co.nceito. de espécie e ao. co.rpo. dócil. É evídente que isso. aco.ntece na ótica do. Vigiar e punir, eu seja, na ·do. "Pano.ptico.n" eu das técnicas de co.nfissão..

cação. do. que as técnicas do.s culto.s de po.ssessão.. Mas Mary Do.uglas diz que há um quarto. tipo. que R. Firth não. co.nsidero.u, e que seria o. caso. em que o. espírito. vem; o. indivíduo. não. está co.nsciente nem inco.nsciente, o. indivíduo. eu o. grupo. não procuram exercer uma ação. so.bre o. espírito., o. indivíduo. se terna um "canal" (no. sentido. da teo.ria da info.rmação.). . Mary Do.uglas analisa cases muito. significativo.s entre o.s din' kas, o.s bo.squímano.s e o.s antilhano.s; e mestra que neste quarto. caso. - "o. culto. po.sitivo.do. transe" e a "o.rganização. social zero." - nós po.deremo.s ter certa liberação.. Mas a pergunta ainda persiste em Mary Do.uglas: no. xamanismo. já havia uma relativização. do.s código.s culturais que regulamentam a relação. cem a co.rpo.reidade; se nesse quarto. caso. a regulamentação. é ainda mais fro.uxa e, po.rtanto., na expressão dela, a efervescência religio.sa é ainda maio.r, cerne ficaria a imagem social do. co.rpo.-grupo.? Esse é um pro.blema que me apareceu inicialmente. Assim, já intro.duzi uma parte do. que queria indicar para vocês via antro.po.lo.gia, eu seja, através das o.bras de Mary Do.uglas e de Reger Bastide sobre o.s culto.s "afro.s". Mas depo.is disso. me lembrei de o.utro. pente de partida, não. semente para to.do.s o.s antro.pólo.go.s, mas para muito.s filóso.fo.s, que é o. velho. Marcel Mauss. Num estudo. tão. famo.so. quanto. inexplo.rado., chamado. "As técnicas do. co.rpo.", 17 ele faz uma afirmação. que, de certa fo.rma, perturba o.s so.ciólogo.s. Mauss o.bservara, desde o.s trabalhes de Granet e Maspéro. so.bre as técnicas so.mato.-psíquicas do. tao.ísmo. - cerne Eliade evidenciaria amplamente 18 - , que há estado.s místico.s pro.vocado.s pelo. "saber do co.rpo." que jamais fo.ram estudado.s aqui, mas que o. fo.ram cem perfeição., desde muito. tempo., na China e na Índia. Mauss pro.põe que seja feito. um estudo. sócio.-psico.-bio.lógico. da mística, e "penso. que há necessariamente meio.s bio.lógico.s de entrar em co.municação. cem Deus" . É interessante no.tar que o.s texto.s que mencio.nam esse trecho. de Mauss não. co.ntinuem na citação., o.nde diz que o.s so.ciólo.go.s teriam muito. a aprender cem o.s biólo.go.s, que teriam mais

(19) Foucault, M., "Préface à la transgression" (extraits). in R. Kaes e D. Anzieu (dir.), L'interditetla transgression, Paris, Dunot, 1983. (20) Foucault, M., idem, in Critique, n? 195-196, a90.-set. 1963, 75. (21) Foucault, M., Histoire de la sexualité, 1,2 e 3, Paris, Gallimard, 1976·1984.

(17) Mauss, M., "Les techniques du corps", in M. Mauss, Sociologie et anthropologie, Paris, PUF, 1968 (hã trad. bras. EDUSP). (18) Eliade, M., Le yoga: immortalité et liberté, Paris, Payot, 1972, cf.

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Interessava-me saber se em Foucault haveria também a tematização de um corpo Outro, que funcionasse como contraponto ao "biopoder". Para isso, tinha indicações no Prefácio sobre Bataille. Mas eu não conseguia juntar as coisas, até que deparei com o livro de Dreyfus e Rabinow, Michel Foucault, beyond structuralism and hermeneutics. Eu trabalhava no início da minha tese com a noção de paradigma; mostrei como por trás de toda essa colocação havia um "paradigma", no caso, o "paradigma clássico" (Durand) ou "paradigma simplificador-disjuntor" (Morin). Estava preocupado se haveria um paradigma por trás de uma outra visão do corpo ou da corporeidade; e há o caso de Foucault, que situa muito bem tal paradigma (os epistemas "clássicos"). Em Kuhn-Collingwood, 22 o paradigma é um conjunto de mecanismos de normalização no campo da ciência, e Foucault descreve um conjunto de mecanismos de normalizações sociais; pode-se aproximar muito claramente a idéia de paradigma, e a idéia de epistemas, sem o "sentido mutacional" ainda ... Fica a questão de um paradigma "outro", dotado de caráter "mutacional". 23 Encontrei no texto de Dreyfus e Rabinow o seguinte: "Entretanto fica em suspenso uma questão, se considerarmos a análise que Foucault faz dos efeitos nocivos da norlllalização: outros paradigmas, que definissem tipos diferentes de sociedades, poderiam ser vislumbrados? Não encontramos tematização explicita em Foucault nem, a fortiori, generalização sobre a função essencial que os paradigmas desempenham como elementos unificadores de práticas dispersas, acentuando-as e dando uma orientação às estratégias que aí estão implícitas. Seria, entretanto, uma interessante descoberta .. , saber se houve no passado, ou se no futuro poderia haver, ou se ainda há potencialmente paradigmas que enfoquem problemas importantes de nossa cultura, sem decidir de antemão, de modo normalizador, sobre as respostas consideradas como adequadas"." Quer dizer que a questão ficava em aberto em Foucault. (22) Prado Coelho, E"

1982, cf. capo 11. 1 a 4.

Eu retomei, de certo modo, a investigação do Prefácio à transgressão, onde Foucault analisa a "heterologia" em Bataille e, em Maurice Blanchot, o que se chama de "principio de contestação". Ambos desembocani naquilo que Foucault chama de "uma filosofia da afirmação não-positiva". E aqui estaria o germe de um paradigma outro. Não posso entrar em detalhes e vou dar só algumas linhas do texto de Foucault, que vai me poupar, aqui, uma ampla exposição. A "heterologia" de Bataille consiste exatamente na valorização do que "está fora". Heterologia significa, em Bataille, a valorização do "fora". O "fora" e o ato de "passar fora" é heterologia como escatologia num duplo sentido: de ir além do fim, de exceder (passar fora, além, ex-) e de escatologia no sentido de "matéria excremencial", como acontece no discurso literário e econômico de Bataille; seria, então, um ato do fluxo do excesso, o fluxo do excesso transgressor que se manifesta como êxtase, como heterotexto, como excrémentiel, etc. Em última análise, a heterologia de Bataille capta a noção de transgressão por várias vias, dentre as quais a mais conhecida de todas é o erotismo que, em Bataille, tem um sentido místico muito especial. 25 De qualquer modo, acontece aqui uma valorização do "fora", ou seja, uma valorização do que está para lá do limite. Mas há uns textos de Bataille meio "perigosos", onde ele ameaça cair na tal da "definição correlativa", sobretudo porque nós sabemos que na época em que Bataille escrevia ele escreveu os primeiros artigos sobre etnologia -, fazia parte do famoso "Collêge de Sociologie", 26 que reunia Leiris, Caillois, Klossowski, dentre outros, ou seja, do início da "so-. ciologia do sagrado", e que estava inspirado pelas noções durkheimianas, das separações entre o sagrado e o profano. Então, de certo modo, Bataille acaba definindo a transgressão pelo interdito e o interdito pela transgressão. Se nós fizermos



(25) 8ataille, G" L'érotisme, Paris, Minuit, 1957. __ , "L'histoire de I'érotisme", in Oeuvres completes, VIII, Paris, Gal~ limard, 1976. __ , "La part maudite, I. Ia consomation", in Oeuvres completes, VII, Paris, Gatlimard, 1976. __ , "La part maudite, 111. Ia souveraineté", in Oeuvres completes, VIII. Paris, Gallimard. 1976. (26) Hollier, O., Le College de Sociologie (1937~1939)T textes presentés, Paris, Gallimard, 1979.

Os universos da crítica, Edições 70, Lisboa,

(23) Balandier, G" $ens et puissance. Paris, PUF, 1981, cf.

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1~ parte,

cap.ll.

(24) Dreyfus, H. e Rabinow, P., Michel Foucault, un parcours philosophique, trad. F. Durand-Bogaert, Paris, Gallimard, 1984, p. 284.

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transgressão não prescinde do interdito: Bataille fala numa relação de Aufhebung e Derrida fala em relevement, pois "a trangressão não é a negação do interdito mas, superando-o, completa-o", diz Bataille. Há, pois, uma relação econômica: se o interdito institui o. trabalho, só pode fazê-lo denegando a gratuidade, entretanto, estocando-a como part maudite. A transgressão libera a part maudite (esse excesso e esse fluxo de excesso e violência), sendo, portanto, da ordem do dispêndio e da dilapidação, da abundância e do consumo desenfreado, do luxo e da festa. Apart maudite é a "reserva de violência" incontornável e que explode na a-estruturalidade como práticas transgressivo-transgressoras. Desta "negatividade", que é uma afirmação "não-positiva", Foucault diz que a transgressão é um gesto que concerne o limite; lá, na tenuidade do traçado fronteiriço, é que se manifesta o relâmpago de sua passagem, mas talvez também a totalidade de sua trajetória, a própria origem. O marco que ela cruza bem poderia ser todo o seu espaço. O jogo dos limites e da transgressão parece regido por uma obstinação simples: a transgressão atravessa e incessantemente recomeça a atravessar uma fronteira que, imediatamente, se fecha num fluxo de pouca memória, assim novamente recuando ao horizonte do inabordável. Mas este jogo põe em jogo mais que esses elementos; situa-os numa incerteza, em certezas logo invertidas, onde o pensamento se encontra em dificuldades com o querer apreendê·las. Ao limite e à transgressão, reciprocamente, se devem a densidade de seu ser: a inexistência de um limite que não pudesse absolutamente ser franqueado; a reversiva vaidade de uma transgressão que não atravessasse senão um limite de ilusão ou de sombra. Mas terá o limite uma existência verdadeira, sem o gesto que, gloriosamente, o cruza negando-o? O que seria depois, e o que teria sido antes? E a transgressão não se esgota na totalidade do seu ser no instante em que atravessa o limite, não existindo noutro lugar senão nesse ponto de tempo? Ora, esse ponto, essa estranha encruzilhada de seres que, fora dele, não existem, mas, ao contrário, nele comutamse totalmente naquilo que são, não é também tudo aquilo que, por todos os lados, transborda? Ele opera como que uma glorificação daquilo que exclui; o limite abre violentamente sobre o ilimitado, freqüentemente achando-se arrastado pelo conteúdo que rejeita, assim realizado por meio dessa plenitude

um exame dos três discursos de Bataille, poderemos ver que realmente há o perigo desse tipo vicioso e viciado de discurso. Mas, por outro lado, nós sabemos, sobretudo pela obra literária e pelo que há nos ensaios daquilo que ele chama de "antropologia mítica", 27 que há uma transgressão possível, que há um corpo Outro que emerge, ainda que seja através da violência e do excesso, que portanto contesta a sociedade, porque ontologicamente tem que ser, porque ontologicamente é assim. E Foucault vai mostrar que em Blanchot encontramos uma formulação mais precisa, naquilo que Blanchot chama de "o princípio da contestação". O princípio da contestação seria o princípio dos limites, ou seja, a contestação nunca pára porque, no momento em que parar, o limite já se torna uma norma. Então, a contestação deve se articular de um modo tal que ela não seja "anti" ou que ela não seja tético-posicional, mas que vá conduzindo de limites em limites para o que Blanchot chama de "Limite" e que corresponderia, mais ou menos, àquilo que nebulosamente Heidegger chama de "a dobra do Ser". Segue-se o texto de Foucauit, que sintetiza isso e que abre, a meu ver, exatamente o que ele chama de uma "filosofia da afirmação não-positiva", que está implícita na dialógica da transgressão, mas que foi deformada por todas as correntes que se empenharam em transformar experiências vividas, ou que grupos transformaram em praxeologias revolucionárias. Bataille dissera: "Aquilo que a lei proíbe não é um domínio onde o homem nada teria a fazer. O domínio do interdito é o domínio trágico, ou melhor, é o domínio sagrado. É verdade, a humanidade o exclui, mas para magnificá-lo. O interdito diviniza aquilo a que ele veda o acesso. O interdito subordina esse acesso à expiação, à morte, mas nem por isso deixa a interdição de ser um convite, ao mesmo tempo que um obstáculo".28 Pela transgressão em Bataille, instaura-se o excesso e o desfrute, o consumo e a morte. Por isso há uma relação de complementaridade entre o interdito e a transgressão: o interdito repudia a violência, mas pede à transgressão que a libere. Tais movimentos não são exteriores entre si e, nessa relação, a (27) Bataille. G., "Dossier de I'oeil pinéal", in Oeuvres completes, 11,

Paris, Gallimard, 1970. (28) Bataille, G., "La littérature et le mal", in Oeuvres completes, IX, Paris, Gallimard, 1979, p. 190.

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rituais de inversão e de rebelião, ou seja, nas sociedades tradicionais onde há uma necessidade de se manter a ordem - e esta ordem deve ser a ordem de uma mentalidade, ou seja, de uma memória longa - nós precisamos contar com momentos em que seja possível uma explosão manipulada das forças dominadas. Então são elaborados os rituais de inversão, por exemplo, rituais de inversão de papéis, rituais de inversão dos valores - estes são celebrados em festas - e rituais de rebelião, que chegam mesmo a rituais de violência, como a morte dos reis nas sociedades africanas. Acontece que estas reflexões dos antropólogos já tinham sido feitas por Leiris - que junto com Bataille fazia .parte do Collêge de, Sociologie - para a sociedade urbano-industrial; mais recentemente, ele escreveu um artigo muito interessante mostrando como o 1968 francês podia ser um grande ritual de rebelião, sugerindo como todos os movimentos de contestação na linha do "anti", da afirmação positiva, poderiam ser vítimas dessas técnicas sociais de controle, ou de manipulação em circuito fechado pelos rituais de rebelião - idéia que, de certa forma, Marialice Foracchi já tinha lançado em seu livro O estudante e as transformações na sociedade brasileira. Esta corporeidade outra só conseguirá se manifestar se nós conseguirmos descobrir ou liberar, seja a "palavra instituinte", como prefere Guattari, J3 seja o espaço do desejo, ou seja, o espaço do potencial. De qualquer forma, os olhos devem se voltar para aqueles fenômenos, para aquilo que um etnólogo chamou de "fenômenos a-estruturais", E sobre esse assunto Duvignaud'" tem um texto muito bonito, "O dom do nada", onde mostra, por exemplo, como na sociedade urbano-

estrangeira que o invadia até o âmago. A transgressão leva o limite até o limite de seu ser; condu-lo ao despertar sobre sua iminente desaparição, a reencontrar-se no que exclui (mais exatamente, talvez, a se reconhecer aí pela primeira vez), a experienciar sua verdade positiva no próprio movimento de sua perda" . 29 E por aí ele continua. O interessante é o texto que se segue, onde Foucault marca que esta transgressão, que inicialmente se definiria correlativamente em relação aos interditos, pode, de um certo modo, ir além dos limites, se nós entendermos o princípio de contestação, tal como o entendeu Blanchot, por exemplo, na "Experiência do infinito". Seguese um pequeno trecho: "Esta filosofia da afirmação não-positiva, istoé, da provação do limite (e, Foucault marca bem, não é o ato de provar um limite, mas o de sermos provados na nossa estrutura experiencial interna pelo limite e, portanto, pelas nossas potencialidades), é a que Blanchot definiu por meio do princípio de contestação. Não se trata aí de uma negação generalizada, mas de uma afirmação que não afirma nada: em plena ruptura de transitividade. A contestação não é o esforço do pensamento por negar existências e valores, é o gesto que reconduz cada um deles aos seus limites e, por aí, ao Limite onde se dá a decisão ontológica: contestar é ir até ao âmago vazio, onde o ser atinge seu limite e onde o limite define o ser. Lá, no limite transgredido, ressoa o sim da contestação".3O Este texto de Foucault - de que faço uma exegese de cerca de doze páginas JI - a meu ver seria todo um projeto de pesquisa. E o que isso teria a ver com a corporeidade? Ora, em Batai1le, e aqui vou ficar meio dogmático, nós temos um corpo Outro. Em Blanchot, através da idéia de contestação, há a possibilidade de conter os limites pela transgressão sem sermos vítimas do circuito de uma" definição correlativa" ou de uma "transgressão em circuito fechado", daquilo que os antropólogos identificaram muito bem nas soCiedades tradicionais como os "rituais de inversão" e OS "rituais de rebelião" . Especificamente Turner e Gluckman 32 estudaram estes

__ , Dramas, fields and metaphors; symbolic action in human society, Londres, Cornell University Press, 1975. Gluckman, M., Order and rebel/íon;n tribal Africa, Londres, Cohen and

West, 1963, __ , Politícs, law and ritual in tribal society, Chicago, Aldine Publ.

Co" 1965,

(29) Foucault, M., Préfaceà/a transgression, pp. 95-96.

1331 Guanari, F., "Ellugar dei significante en la institución", in L. Forte led.) La otra locura: mapa antológico de la psiquiatrfa alternativa, Barcelona, Tusquests,1976. 1341 Duvignaud, J., Le don du rien: essai d'anthropologie de la fête, Paris, Stock, 1977.

(301 Foucault, M., idem, p. 97. (311 Paula Carvalho, J. C. de, op. cit., 2~ parte, capo 11,2.4, pp. 871 e segs . (32) Turner, V" /I processo rituale: struttura e antistruttura, trad. N. Greppi Collu, Brescia, Morcelliana, 1972 (há trad. bras. Ed Vozes).

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industrial há um fluxo de excesso que explode em situações sociais que as pessoas normalmente desconsideram por preconceito. A sua análise começa exatamente por um ritual de umbanda em Fortaleza. Depois passa a analisar, por exemplo, o simbolismo; analisa o fenômeno do riso, o fenômeno da festa; faz uma espécie de elenco de fenômenos sociais abandonados pelos sociólogos - que estão muito preocupados com a banalidade cotidiana, mas não com uma sociologia da vida cotidiana,3S ou da cotidianidade... -, mostrando como, nestes fenômenos abandonados, nós podemos ter o aparecimento de uma a-estruturalidade. Essa a-estruturalidade permitiria exatamente o aparecimento dos "objetos transicionais", pois que normalmente as pessoas vivem atrás dos "objetos institucionais". 36 Estes introduzem a normalização de que Foucault e Kuhn falam, ao passo que nos fenômenos a-estruturais teríamos a possibilidade do aparecimento de "objetos transicionais". A análise que Duvignaud faz da incorporação em umbanda é belíssima, sobretudo porque eu tive a possibilidade de observar muito, de viver e de experimentar isso. É uma coisa realmente fantástica que escapa um pouco àquele "deslumbramento" em que fica um Lapassade, por exemplo, quando entra em contato com a macumba e escreve um livro horroroso, aproximando macumba e contracultura negra, ou Morin que diz "mas não é que realmente existe espirito!". O livro de Duvignaud não tem este caráter ainda de choque sobre quem não sofreu aquilo que Leiris chama de dépaysement. Duvignaud, depois, escreveu um livro ainda mais interessante, porque ele diz que nestes fenômenos a-estruturais nós lidamos com os estados de consciência outros e que só poderemos ter uma apreensão disso por uma via compreensiva, ou seja, por uma via empática, por uma via hermenêutica. Ora, estes estados de consciência outros significam que ao lado da reflexividade deve haver um outro estado de consciência, esse registro que Merleau-Ponty e Husserl chamaram de "pré-reflexi-

vidade". Nas técnicas orientais, Eliade e Corbin falaram em "transreflexividade" . Prosseguindo a investigação, Duvignaud escreve um livro muito bonito que se chama A anomia - heresia e subversão. 37 Neste texto ele diz que tais fenômenos não são assim tão fluidos quanto possam parecer e não dependem tanto do olho do investigador. É claro, isso é muito importante, nós temos que detectar estes fenômenos a-estruturais e estudar, temos que detectar estes momentos transicionais, temos que experienciar isto de um modo vivido para compreender e sentir. Todos os fenômenos se referem via corporeidade, isto é um pressuposto. Mas nós chegamos mesmo a ter o que ele chama de "personalidades anômicas". É um conceito que partiu da investigação sobre a sociOlogia do teatro, os "papéis anômicos" no teatro. Duvignaud foi um dos primeiros a investigar a sociologia do teatro na França, para lá levando experiências de bioenergética do living theatre; ele diz que estas personalidades anômicas seriam exatamente aquelas cujos papéis são anômicos, ou seja, não há papéis, são aquelas que improvisam e que "vivem deixando se surpreender". É uma frase do dr. Pethô Sandor. Mas, ele diz, nós não precisamos chegar ao movimento contemporâneo da contracultura para encontrar isso; e ele vai analisar exatamente as duas grandes explosões: a explosão do surrealismo - não na linha de Breton, mas na de Bataille e Artaud - e o que ele chama de la rêverie anarchiste, ou seja, o movimento anarquista. Vai mostrar como temos movimentos sociais e portanto uma dinâmica social, e temos personalidades, isto é, uma dinâmica psicossocial. Vai mostrar como o conceito de personalidade anômica permite detectar uma dinâmica psico-sociológica de uma corporeidade outra ou de uma outra vivência do corpo. Não vou me alongar, apenas dizer as três linhas em que tentei encaminhar meu trabalho, as três linhas dessa corporeidade outra; como seria compreensivel esta corporeidade outra? Porque, é preciso dizer, há muito preconceito. Enquanto se fala em Lacan, Guattari, tudo bem; quando se fala em movimento contracultural, já começa a não ficar muito bem; quando se começa a falar em paradigma mutacional, cujo método talvez seja anárquico,

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(35) Maffesoli, M., La conquête du présent: pau! une sociologie de la vie quotidienne, Paris, PUF, 1979. ' __ , L'ombre de Dionysos: contribution à une sociologie de /'org;e, Paris, Méridiens/ Anthropos, 1982. __ (org. " "Violence et transgression", Paris, Anthropos, 1979. (36) Guattari, F" Psychana/yse et transversalité: essais d'analyse institutionnelle, Paris, F. Maspéro, 1974, cf. capo "Le groupe et la personne".

1973. (37) Duvignaud, J., L'anomie: hérésie et subversion, Paris, Anthropos,

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mundus imaginalis, porque vê que desde a partida de Avicena e Ibn' Arabi, ou seja, desde o averroísmo latino, ficamos presos a um dualismo das idéias ou do mundo inteligível e do mundo sensível, e perdemos a noção do meio. Essa dimensão do imaginário, do mundus imaginalis, é o laeus - o local das experiências proféticas, visionárias, etc. Em árabe, há uma palavra para dizer isso. Quando os árabes falam em mi'râj, nós com a nossa tendência redutiva, entendemos "miragem". Não, mi'rfV significa exatamente o protótipo da experiência extático-visionária que o profeta Maomé teve, quer dizer, nós cruzam'os com mundus imaginalis de repente. Esta ·idéia de mundus imaginalis como mundos intermediários significa que eles têm um tempo outro, um espaço outro, uma configuração outra, uma corporeidade completamente outra. Se nós, com a nossa mentalidade científica, quiséssemos lembrar alguma coisa em termos científicos, poderíamos recordar Lupasco,40 que fala dos "antimundos" ou dos "mundos paralelos". Nas experiências microfísicas de Bohm, 41 isto seria exatamente o que ele chama de implicate arder, ou seja, uma realidade que está aquém das divisões do sujeito-objeto. É o que a "holografia" revela, na neuro-psico-fisiologia de Pribram. 42 Em MacLean e Laborit há o triunic brain, com registros que funcionam completamente segundo outras vastas categorias. Estes foram alguns dados científicos que eu usei para esclarecer estes "mundos imaginários" de modo a ficarem mais acessíveis à nossa positividade. Isso seria o numinoso. É a isso que Jung constantemente se refere quando fala do arquétipo como "noumeno" e "sincronicidade"; o arquétipo se refere à uma esfera "psicóide" ou "nomenal". É a isso que Jung se refere quando fala em sincronicidade, este outro registro e este outro ou outros mundos. E haveria técnicas que poderiam detectar ou apreender o funcionamento desta corporeidade outra inserida no mundo instituído?

como Feyerabend ou Morin o pensam, as coisas já começam a entrar em atrito com os objetos institucionais pelos quais nós vivemos. E as coisas se tornam ainda mais complicadas quando se envolve uma vivência, no sentido em que Jung define "vivência", que é uma experiência simbólica realmente vivida em profundidade, e sem senões, do sagrado? - não -, do religioso? _ não - , do mágico? - não -, o nome que Jung deu a isso é "numinoso", que é uma expressão que vem do famoso texto de Otto. J8 Numinoso seria a palavra! Mágicoreligioso já capta um magma pré-reflexivo que incomoda um pouco mais. Essa idéia de magma e de imaginário também causou fricções. O numinoso captaria um aquém do pré-reflexivo e um além do transreflexivo. Esta idéia é muito difícil de ser sintetizada. Só posso dar a indicação. É a idéia do "ima· ginal", que foi forjada pelo primeiro tradutor de Heidegger na França, um filósofo que depois se tornou especialista em filosofia iraniana, Henri Corbin. Corbin mostrou que o grande dilema que vivemos no Ocidente é que desde o triunfo do averroísmo latino, pelo qual nós perdemos Avicena, Ibn'Arabi, nós perdemos a dimensão do Anjo. A idéia de imaginai em árabe seria âlam al'mithal, que Corbin 39 traduziu por mundus imaginalis para evitar duas coisas: primeiro, porque o nome "imaginário", tal como nós o entendemos, iria no sentido de um mau-imaginário, quer dizer, um imaginário fantasioso cujo peso ontológico não seria mais que mera fantasia. Segundo, não seria um imaginário ligado à consciência reflexiva, mas a outros tipos de consciência. Então formou o termo (38) atto, R., Le sacré: I'élement non-rationnel dans l'idée du divin et ses rélations avec le rationnel, trad. A. Jundt, Paris, Payot, 1969. De Martino, E" "Mito, scienze relig'lose et c'lviltà moderna", in E. de Martino, Furare, simbolo, vaIare, Milão, Feltrinelli, 1980. (39) Corbin, H" "Mundus imaginalis ou I'imaginaire et I'imaginal", in Face de Dieu, face de I'homme: herméneutique et Souffsme, Paris, Flamma-

rion, 1983. __ , "pour une charte de I'lmaginal", in H. Corbin, Corps spi,;tuel et terre céleste: de I'Iran mazdéen à I'Iran shl'ite, Paris, Buchet Chastel, 1979. Durand, G., "Homo proximi Orientis: science de l'homme et ls1am spirituel", in G. Durand, Science de I'homme et tradition: le nouvel esprit anthropologique, Paris, Berg International, 1979. __ , "La reconquête de l'lmaginal", in Cahiers de I'Herne (H. Corbin),

(40) Lupasco, S., Les trois matieres, Paris, Julliard, 1960. (41) Bohm, D., Who/enessandtheimp/icateorder, Londres, Routledge

and K. Paul, 1980. (42) Colloque de Cordoue: "Science et conscience, les deux lectures de

CI. Jambet (éd.l, Paris, Éd. de I'Herne, 1981. Jambet, CI., La logique des Orientaux: Henri Corbin et la science des

j'Univers", Paris, France Culture-Stock, 1980.

formes, Paris, Seu'll, 1983.



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Uma noção que eu usei, moi corporel imaginaire, nas técnicas de Fretigny e Virei, 43 mostra como poderemos ter a existência de um outro corpo. Faz uma distinção entre o esquema do corpo ou a imagem do corpo, a imagem social do corpo, o corpo psíquico e o moi corporel imaginaire, que seria o corpo sutil. Há as investigações de Tart sobre os estados alterados de consciência. As técnicas do A. S. C. (estados alterados de consciência) 44 foram usadas de modo muito feliz por Lapassade. Lapassade 4S tem um livro muito interessante que se chama Ensaio sobre o transe: perspectivas para um materialismo histérico. Histérico e não histórico, porque a histeria é valorizada como símbolo da experiência transicional, que é exatamente o protótipo da a-estruturalidade e da neotenia neg-entrópica. Lapassade utilizou, para analisar o transe, que é a presença desta corporeidade outra, as técnicas dos estados alterados de consciência. Só que ele diz que no termo de Tart "alterados" já vai o pressuposto da normalização; assim ele prefere substituí-lo por "consciência éclatée, autre, défoncée". O importante é que Lapassade liga essas experiências de transe com a tipologia de sociedades, desde a sociedade tradicional até a urbano-industrial, e vê o sentido especifico de transe em cada tipo. Diz que a histeria, que seria a forma moderna do transe, acabou no divã ..... A tecnologia de Tart, dos estados alterados de consciência, diz ele, já é uma espécie de indução pelo centro, pela centralidade institucional e institucionalizadora de uma idéia de normalidade ou de padrão, a partir da qual haveria um desvio, e o que ele quer é dar todo o peso ontológico a isso, mostrando que não se trata de uma afirmação positiva antitético-posicional, mas de um totalmente outro, como Otto fala, e como a experiência de Rimbaudjá tinha mostrado.

Por fim, uma segunda experiência: eu tive oportunidade de,r com um grupo conduzir uma série de investigações em terreiros de umbanda, o lugar segundo a perspectiva de Tart, para verificar eSSes "estados". Lá pode-se ver claramente o conflito institucional, não, como se tem tendência a colocar, entre as federações e os terreiros, mas entre a figura do paide-santo, que é o iniciador, que dispõe de uma autoridade legal e normalizadora e reguladora e redutiva, e a experiência carismática do filho-de-santo, que tende a viver e a seguir as orientações de seus guias, de frente e de costas. Pode-se ver claramente este conflito institucional no interior do terreiro, e mais, pode-se ver até em termos individuais de polarização, como no estudo muito bonito de Monique Augras, O duplo e a metamorfose. 47 Mostra-se a polaridade entre o santo de cabeça, que representaria de um certo modo o fluxo em direção à ordem, e o capanga, ou protetor de costas, que seria o Exu. Liana Trindade mostrou Exu como um trickster, transgressor em direção à desordem, e "individualizador" da vivência mítica ... Então, se não há esta polarização, podemos ver o conflito de objeto institucional, de objeto transicional, inclusive ao nível do próprio filho-de-santo. E daí toda a ideologia montada, e a medida em que é ou não consciente. Mindell e Solie " desenvolvem uma perspectiva interessante nesse sentido, que é a primeira formulação junguiana a respeito da experiência simbólica do corpo. E deve-se destacar isto por duas razões: porque se costuma dizer, primeiro, que a teoria de Jung não trata do social e, segundo, que Jung desenvolveu uma postura ascético-mística na expressão do corpo. Ambas as afirmações são falsas, porque, na Dialética do eu e o inconsciente. as duas primeiras partes são postas como programas de uma psicologia social. O meu inspirador, Gilbert

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(47) Augras, M., O duplo e a metamorfose, Petrópolis, Vozes, 1983. (48) Trindade, L. M. S., "Exu: símbolo e função" (Tese de doutora-

(43) Frétigny, R. e VireI, A., L 'Imagerie menta/e: introduction à I'onirothérapie, Genebra, Éd. du Mont-Blanc. 1968. (441 Tart, Ch., States of consciousness, Nova Iorque, E. P. Dutton, 1965. (45) Lapassade, G., Essa; sur la transe: le matérialisme hystérique /.,

mento em Antropologia Social - FFLCHUSP, 1980, no prelo nos Cadernos do CER/FFLCHUSP, 19851. (49) Mindell, A. , Dreambody: the body's role ;n revealing the Self, S. Sternback (ed.), Santa Mônica, Sigo Press, 1982. Solié, P" Médécines initiatiques: aux sources des psychothérapies, Pa. ris, Epi, 1976. Psychanalyseetimaginal, Paris, Imago, 1980. Mythanalysejungienne, Paris, Les Editions ESF, 1981.

Paris. J. P. Dêlarge. 1976. (46) Hillman, J., Le mythe de la psychanalyse, trad. Ph. Midriammos, Paris, Imago, 19n. __ , Re-visioning psychology, Nova Iorque, Harper Colophon Books, 1975.

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Durand,50 escreveu um artigo muito interessante, onde mostra exatamente estes aspectos sociais dos arquétipos. E, por outro lado, Jung tem um texto belíssimo na Introdução à essência da mitologia, onde fala que os arquétipos se formam ao nível das vísceras, porque, como está na Bíblia, o espírito fala por gemidos. Na tese de doutoramento de Jung, ao estudar os fenômenos mediúnicos, ele já mostrava esta ancoragem biótica. Esta corporeidade outra foi trabalhada por Mindell e Solié, que desenvolvem a idéia do "corpo onírico", fazendo uma investigação belíssima desde as experiências mais institucionalizadoras e normalizadoras do Extremo Oriente até as da contracultura, passando pela psiquiatria, pela psicanálise freudiana e pelas "medicinas iniciaticas", mostrando como o corpo onírico ou esta corporeidade outra foi sempre objeto de uma redução visada, tentando-se bloquear, como diz Jung, a experiência simbólica vivida, vivenciada, desta corporeidade outra. É isso que eu queria indicar para vocês ... E concluir: 1) por que "corporeidade ima(r)ginal"? Porque as "margens", mostrou-o H. Desroches, costumam girar na ótica e na estratégia induzidas pela centralidade; devem ser comutadas pela e na vivência do "imaginaI"; 2) por que - e qual - um paradigma "outro"? Por que a imagem social do corpo e a vivência do corpo como imagem socializada - sua teoria, sobretudo - movem-se na esfera do normalizador paradigma "clássico" (ou analítico-simplificador-disjuntor, diz Morin), ao passo que o acesso, em termos de cognição compreensiva, à "corpo-

reidade ima(r)ginal", contraponto que é ao "biopoder", nos é dado pelo "paradigma hOlográfico", que Durand chama de ratio hermetica e Morin, de "hipercomplexidade". (Transcrito da gravação por Marina Appenzeller, COm revisão do autor)

(501 Durand, G., Les structures anthropologiques de l'imaginaire: introduction à I'archétypologiegénérale, Paris, Bordas, 1969. _ _ , L 'imagination symbolique, Paris, PU F, 1964 (há trad. argent. Amorrortu),

__ , Science de I'homme et tradition:

te "nouvel esprit anthropologi-

que", Paris, Berg International, 1979.

_._ , Figures mythiques et visages de I'oeuvre: de la mythocritique à la mythanalyse, Paris, Berg International, 1979. __ , L'âme tigrée: les pluriels de psyché, Paris, Oenoel/Gonthier, 1980. __ , La foi du cordonnier, paris, Denoel, 1984. __ , "La cité et les divisions du Royaume: vers uns sociologie des profondeurs", in ErânosJahrbuch, 45 (Einheit und Verschiedenheit), Leiden, E. J. Brill, 1976.

__ , Mito, símbolo e mitodologia, trad. H. Godinho e V. Jabouille, Lisboa, Editorial Presença, 1982.

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perfurou saberes e instituições com o ardor da toupeira critica de que falava Marx, e a melhor homenagem que se lhe pode prestar é escavar seus textos com a mesma pertinâcia e com a mesma paixão com que ele se dedicou a abrir túneis no solo de nossa cultura. Um destes percursos possíveis pela obra foucaultiana seguiria o fio vermelho de suas referências à psicanâlise. Numerosas, elas pontilham quase todos os seus livros, longas umas, breves outras, severas, irônicas ou respeitosas, marginais por vezes à trama do argumento ou, ao contrârio, no centro de suas preocupações. Ê-me impossível, neste momento, efetuar um tal trabalho; penso, contudo, que ele mostraria não apenas que "a sombra da psicanâlise acompanhou Foucault duunte os trinta anos. de sua produção, mas ainda que um dos eixos em torno dos quais se ordena seu pensamento consiste num confronto e numa interrogação permanentes quanto ao sentido dela e quanto ao lugar que ocupa no pensamento ocidental. Lugar, aliâs, múltiplo: a cada meandro do percurso de Foucault, ela se aloja em outro espaço, configura-se em outras redes de relações, desenha outros perfis de significação. Para o psicanalista, esta profusão de posições atribuídas à sua disciplina e à sua prâtica tem a principio efeitos desconcertantes. Ãs incertezas que constituem seu pão cotidiano, à dura e apaixonante tarefa de procurar captar algo de um objeto por definição fugidio - o inconsciente, seu e dos outros - à dúvida erigida em método quanto ao sentido do que escuta, do que pensa e do que sente, vem-se somar o questionamento insistente de Foucault quanto à sua identidade. Identidade problemâtica entre todas, porque o psicanalista não pode deixar de aplicar a si mesmo e à gênese de suas idéias OS mesmos princípios que o guiam na escuta de seus pacientes: ao fazê-lo, puxa constantemente o tapete de sob seus próprios pés, de onde a curiosa sensação de vertigem que muitas vezes se apodera dele. Ora, FoucauIt o questiona mas não é isto o inquietante, jâ que, questionar-se, ele o faz muitas vezes por dia. O inquietante é o que este questionamento venha a cada vez de outro lugar: ora é a consistência epistemológica da psicanâlise que é posta em xeque, ora sua inserção no social, ora a existência mesma dos objetos que estuda, ora o sentido e o alcance das teorias que a especificam. Sob o prisma de Foucault, nossa disciplina se refrata em mil

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Uma arqueologia inacabada: Foucault e a psicanálise

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mostra que ele se deslocou para fora do cotidiano da classe, cuja situação percebe como insuportável. Deste modo o militante, por oposição ao operário "alienado", não tem mais lugar nesta sociedade, pois ela o torna inumano. Afirmar a humanidade é afirmar uma outra sociedade, revoltar-se contra os valores dominantes e a exploração, deixar ou sonhar em deixar de ser operário, invocar a revolução. Como diz nosso articulista: "Nessas occasiões quizera possuir o poder de penetrar no mais recondito daquellas almas insensiveis, e dentro dellas gritar, como o jaguar de minha terra faz tremer o seio verde das florestas: homens! mulheres! Ã Revolta!" . A trajetória de Octávio Brandão é também um exemplo deste deslocamento de que estamos tratando. Nascido em uma. pequena cidade do interior nordestino, filho de um "pequenoburguês urbano empobrecido, prático de farmácia em Viçosa" ," Brandão entrou na "vida pela porta da pobreza. E foi pobre, a vida inteira. O pai não podia comprar leite. O filho precisava de alimentos fortes. No entanto, bebia café ralo. Não teve leite na infância. Comia feijão com farinha de mandioca e uma carne grosseira, o charque ou ceará. Nenhum legume, exceto jerimum. Fruta, apenas banana, quando era possível comprar. Vestia uma roupa ordinária de algodão. Era a pobreza em tudo" (p. 48). Formado pela Escola de Farmácia do Recife, a partir de 1915 abre um estabelecimento onde "trabalhava como farmacêutico, prático e enfermeiro, das 7 da manhã às 10 da noite", ao mesmo tempo que se dedica tanto à ciência quanto à literatura. Faz uma excursão pelo interior de Alagoas observando sua composição mineralógica, formação geológica, e fósseis. A partir dessa expedição escreve o livro Canais e lagoas, que é "um poema telúrico. Hino de amor à beleza e à grandeza da terra brasileira e alagoana" (p.92). Neste período Brandão lê Darwin, Haeckel, Humboldt e Martius, Hartt e Branner, Euclides da Cunha, Ratzel e Karl Ritter, Jean Brunhes e Elisé Reclus, os livros do Rig-Veda, Êsquilo, Sófocles e Eurípedes, Lucrécio e Virgílio, Shakespea-

re e Byron, Goethe, Heine e Nietzsche, Lermontov e Tolstoi. Perseguido em Alagoas, vai para o Rio de Janeiro, onde milita no movimento operário anarquista, para em "15 de outubro de 1922" dar o terceiro passo libertador de sua vida: "torneime um combatente do Partido Comunista do Brasil, soldado do povo brasileiro e da sua classe operária" (p. 232). Passa a ler a literatura marxista. Em 1924 escreve Agrarismo e industrialismo (p. 295), "a primeira tentativa de interpretação dessa realidade (a brasileira) do ponto de vista de Marx, Engels e Lenin" (p. 287) e que inspira as teses do 2? Congresso do PCB escritas por Astrojildo. Nesse texto encontramos: "Applicando a dialectica marxista à revolta de 1924, veremos

o seguinte:

"Affirmação: Bernardes, o grande burguez agrario, a grande propriedade rural. "Negação: Isidoro, o pequeno burguez, atraz do qual manobra o grande burguez industrial. "Negação da negação: a revolução proletaria, que affirmará Bernardes e affirmará Isidoro, que negará Bernardes e negará Isidoro. e que, por isso, fundirá os contrários, produ-

zindo o que, há millenios, o grego Heraclito chamava: uma harmonia. ( ... ) ( ... ) "Dentro da Harmonia Proletaria desapparecerão as classes e, por conseguinte, a guerra de classes. Dentro do fulgor da revolução proletaria, Hernardes e Isidoro, isto é, os burguezes agrarios e os burguezes itijIustriaes estarão em estado de aufgehobene Momente. Por outras palavras: a revolução

proletaria é a Aufhebung de Bernardes e Isidoro, isto é, a negação, a conservação e a elevação do agrarismo e do industrialismo" .16

A aplicação que Brandão faz da dialética à revolta de 1924 significa menos insuficiência teórica, e mais como é constituída uma relação quase selvagem com a cultura, isto é, uma

(15) Brandão, O., Combates e batalhas: memórias, São Paulo, AlfaOmega, 1978. As próximas citações desse livro não serão feitas em rodapé, mas no próprio texto, indicando-se apenas o número da página.

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217

(16) Fritz Mayer (pseud. de Brandão, O. l, Agrarismo e industrialismo.

Ensaio marxista-Ieninista sobre a revolta de S. Paulo e a guerra de classes no Brasil, Buenos Aires, 1926 (o local de pUblicação visava somente a desp:star a polícia; na verdade, o livro foi impresso no Rio de Janeiro).

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De Eva a Santa, a dessexualização da mulher no Brasil *

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1873, o dr. F. Ferraz de Macedo apresenta na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro a tese de doutoramento "Da prostituição", na qual constrói uma história geral da "mais antiga das profissões". A segunda parte de seu trabalho é dedicada à análise da situação da prostituição na cidade do Rio de Janeiro no período. Desta,co o capítulo em que elabora um mapa cIassificatório das prostitutas cariocas, mapa este dividido em dois grandes itens: a prostituição pública e a clandestina. A partir deste "mapa c1assificativo", como ele denominava, o saber médico caracterizava as prostitutas catalogadas nos vários itens e subitens desta zoologia das subespécies. As mulheres do I? gênero da 1 ~ classe, por exemplo, as prostitutas trabalhadoras, como as floristas, modistas, costureiras, vendedoras de charutos eram definidas como pessoas com traços comuns como o tipo de roupa, a habitação, os costumes, "as horas de trânsito, o modo de se renderem, o modo de expressão (voz, estilo, termos, gestos, etc.)". As do 2? gênero da primeira classe - as prostitutas "ociosas" -, por sua vez, se caracterizariam pelo viver isola(*) o presente trabalho resume algumas das colocações desenvolvidas na dissertação de mestrado "Sem fé, sem lei, sem rei. Liberalismo e experiência anarquista na República", UNICAMP, 1984. (**) Do Departamento de História da UNICAMP.

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(continuação)

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floristas, costureiras,

práticas antifísicas

vendedoras

1? gênero das prostitutas 'trabalhadoras'

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de charutos, figurantes de teatro,

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ou prostituição

etc.

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2? gênero das prostitutas

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reunidas em hotéis aristocráticos. I



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classe das fáceis

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reformadas ou gastas,

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isoladas em casas aristocráticas

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220 DE EVA A SANTA, A DESSEXUALlZAÇÁO DA MULHER NO BRASIL

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das em casas aristocráticas, compondo-se em grande número por mulheres fornecidas pelos teatros. Já as da 3~ classe, das facílimas, seriam "marafonas que cuidam das paredes dos quartos com quadros e imagens de diversos santos! A sala tem por mobília um sofá, algumas cadeiras, às vezes aparadores enfeitados e uma mesa redonda no centro". As reformadas ou gastas viviam em casas "de mais grosseiro aspecto e mais despidas de adornos; a alcova nua, ( ... ) e a cozinha apenas consta de um fogareiro de ferro e algumas panelas. Geralmente as donas destas casas são pretas, pardas livres ou libertas, mas todas gastas na idade e no vicio ( ... )". Entretanto, as mais degradantes das meretrizes em seu mapa classificativo estavam entre as do 3? gênero da 3~ classe: ou seja, as que habitavam zungus, "habitação sombria, verdadeiro antro de paredes enegrecidas pela fumaça dos fogareiros e nauseabundos cachimbos dos freqüentadores e habitantes ( ... )". O trabalho continua descrevendo minuciosamente a personalidade das mulheres "da vida", assinalando seus principais traços físicos, intelectuais e morais, gostos, hábitos, formas de lazer, esmiuçando seu cotidiano, descrevendo suas habitações e os tipos de clientes que cada espécie recebia. A prostituição se torna objeto de conhecimento científico. Alguns anos depois, o delegado de polícia Pádua Fleury esboça o primeiro projeto de regulamentação da prostituição na cidade de São Paulo, considerando-o problema tanto da (1) Macedo, F. Ferraz de, "Da prostituição", tese de doutoramento apresentada à Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, 1873.

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Nesse sentido, a partir dos discursos médico-sanitarista, criminológico, dos filantropos, dos positivistas, da Igreja, de setores da burguesia industrial e, em alguns momentos, do próprio movimento operário, elabora-se e difunde-se no país um novo ideal de feminilidade, que define tanto a figura da "rainha do lar" quanto a da mulher pública e que implica a total dessexualização de ambas_ A figura da mãe, associada à Virgem Maria, santificada, pura, ingênua, trabalhadora, preocupada com a saúde dos filhos e do marido, toda sacrifício, é assimilada à estátua de pedra ou mármore, frigida, imaculada, sem corpo e sem sexo. A prostituta, mulher de má vida, extravagante, cheirando a perfumes exóticos e violentos, vestida escandalosamente, egoísta, gulosa e sobretudo preguiçosa, também é dessexualizada na medida em que sua atividade deve corresponder ao exercício de uma profissão, isto é, de um trabalho, e, portanto, deve ser realizado produtivamente, mas sem prazer. No discurso do poder, prazer e trabalho constituem categorias antitéticas e excludentes. Ao contrário, a mulher honesta, destinada à carreira exclusiva da maternidade, deve ser isenta de desejo, não desfrutando de qualquer prazer orgástico na relação sexual. Além de confinar-se no estreito espaço da vida doméstica, a mulher esposa-dona-de-casa-mãe-de-família deveria aceitar o enclausuramento representado por um modelo normativo rigido, autoritário e dessexualizante. A ciência médica e posteriormente a psiquiatria procurarão mostrar cientificamente, confirmando as opiniões dos positivistas, que o homem tem um desejo sexual mais acentuado do que ela por sua própria constituição biológica, o que, por sua vez, justifica a procura da prostituta pelo marido que respeita a esposa mas, ao mesmo tempo, deve afirmar sua virilidade. O retrato da mulher pública construído pelo discurso médico-sanitarista coloca-a num campo oposto ao da mulher honesta, laboriosa e fiel. A prostituta aparece, então, como a negação dos valores dominantes, como pária da sociedade que ameaça subverter a boa ordem de um mundo masculino. Seu objetivo principal, afinal, é a satisfação do prazer, é dar vazão aos seus instintos animalescos, incontroláveis e perversos, ca-

polícia, quanto da municipalidade e da Junta de Higiene, E, em 1896, é decretado o Regulamento Provisório da Polícia de Costumes, de autoria de Cândido Motta, visando a disciplinar as práticas sexuais extraconjugais e a conter a audácia crescente das meretrizes_ 2 A construção do rigido estereótipo da prostituta, símbolo do mal, dos pecados e vícios, associada à imagem de Eva, mulher sedutora responsável pela queda do homem, cujas práticas devem ser rigorosamente controladas a partir da própria domesticação das sexualidades insubmissas, inscreve-se num conjunto de dispositivos estratégicos de moralização da sociedade brasileira, entre final do século XIX e início do XX_ O contraponto desta figura maculada, por sua vez, reforça a possibilidade de valorização, de promoção e de imposição de um novo modelo de feminilidade: a mulher esposa-dona-decasa-mãe-de-família, vigilante, ordeira, higiênica, responsável pelos membros da família, porém dessexualizada: a "rainha do lar" _3 Promover uma nova representação simbólica da mulher, casta e pura, em oposição à imagem sombria, estigmatizada e degenerada da prostituta, constituiu peça fundamental da estratégia burguesa de redefinição das relações intrafamiliares, tanto nos meios sociais privilegiados quanto nos mais desfavorecidos. No contexto de integração do proletariado emergente ao universo dos valores burgueses, a construção de uma nova identidade da mulher constituiu uma brecha pela qual os dominantes procuraram penetrar no interior da habitação e da própria vida dos pobres e gerir seu cotidiano nos mínimos detalhes. Num momento histórico em que as mulheres, ricas ou pobres, invadem o cenário social, participando cada vez mais intensamente das solicitações de trabalho e lazer, de uma nova vida urbana, chama a atenção a emergência de todo um discurso altamente moralista, que, partindo de vários pontos do social, designa o espaço da vida privada como o campo privilegiado de atuação da mulher. (2) Motta, Cândido, "Prostituição, Polícia de Costumes, Lenocínio", relatório apresentado ao Chefe de Polícia de São Paulo, SP, 1897. {31 Rago, Luzia Margareth, "Sem fé, sem lei, sem rei. Liberalismo e experiência anarquista na República", dissertação de mestrado, UN1CAMP,

1984. capo 11. <

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racíensticos dos seres "inferiores", ainda não totalmente "ci-

224 DE EVA A SANTA, A DESSEXUALIZAÇÃO DA MULHER NO BRASIL

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vilizados" e que se deixam arrastar facilmente ao jugo das paixões, Como a criança ou o selvagem, a mulher pobre que se prostitui necessita dos cuidados dos poderes públicos e da interferência dos especialistas na condução de sua vida, Imatura, ela é uma pessoa desorientada, que se perdeu na vida e que jamais conseguiria reintegrar-se à sociedade sem ajuda exterior, Conclusão paradoxal, já que não sendo criminosa que deve arrepender-se e voltar à normalidade, a prostituta "numa cidade, numa vila, em qualquer lugar de certo movimento' é uma necessidade vital, torna-se uma válvula de segurança social, com especialidade, coibindo vícios no elemento púbere varonil e mantendo um certo e determinado equilíbrio na ação popular da localidade", segundo o dr, Simões da Silva,', Os sanitaristas brasileiros retomam o perfil da prostituta delineado minuciosamente pelo médico francês Alexandre Parent-Duchâtelet, responsável pela higiene pública e pelos esgotos da cidade de Paris, Herdeiro da tradição agostiniana, ele identifica a prostituição às imundícies do submundo e reflete a nova obsessão com os miasmas, germes, lixos, doenças e com a miséria social que apavora as classes dominantes, Sua principal obra, La prostitution à Paris au XIXe siecle, publicada pela primeira vez em 1836, tem enorme repercussão entre os especialistas das práticas sexuais condenáveis, por muitas décadas, tendo sido reeditada várias vezes, Seguindo seus passos, os médicos sanitaristas brasileiros invadem o submundo da prostituição, classificando as mulheres "decaídas", diagnosticando suas doenças, investigando seus hábitos, origem social, costumes, idades, procurando acumular todo um conhecimento sobre a mulher pública e fundar o estereótipo da prostituta, a partir do qual ela será situada para fora do campo da moralidade sexual e social, Nos laboratórios de estudo e pesquisa em que vão sendo transformados os bordéis, as "casas alegres", os hospitais e prisões de "perdidas", elaboram-se simultaneamente técnicas de saber e estratégias de poder destinadas a enclausurar e a domesticar as práticas sexuais extraconjugais,

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Em nome da , higiene pública, da saúde da população, da preservação da raça, estuda-se e medicaliza-se a sexualidade feminina, discute-se o problema da prostituição e estabelecem-se os padrões de comportamento da mulher casta e da vagabunda, Através de estatísticas realizadas com o apoio da polícia de costumes, esses estudos procuram mostrar que a grande maioria delas provém das classes sociais inferiores, especialmente "das não-casadas das classes proletárias", segundo o dr, J, B. Leme, das que exercem ou exerciam as profissões de costureiras, floristas, sempre sorridentes para agradar ao freguês, domésticas, operárias e artistas de teatro. 5 O perfil da meretriz, elaborado por Parent-Duchâtelet e retomado pela literatura prostitucional no Brasil, distingue como principal característica de sua personalidade a preguiça, isto é, a aversão ao trabalho e a perseguição desenfreada do prazer. A prostituta é aquela que, segundo J. B. Leme, "tem um andar, um sorriso, um olhar, uma atitude que lhe são próprios; é preguiçosa, mentirosa, depravada, extremamente simpática ao álcool, despreocupada do futuro, e muitas vezes destituída de senso moral". 6 Antítese da esposa honesta, a mulher da vida tem um "apetite sexual exaltado, ( ... ) inato e incontido, que leva a precocidades, por vezes fantásticas, na prática de perversões ou mesmo do coito". Ela é burra e ignorante: "Limitadíssimos são os seus recursos intelectuais, raríssimas mulheres poderiam sustentar uma conversação em que seja necessário o manejo do raciocínio ou pequena contribuição lógica". 7 Leviana, volúvel, inconstante, irregular, adora o movimento, a turbulência e a agitação: "Poucas há que persistem num mesmo domicílio durante o espaço de um ano". Instável física e espiritualmente: "Variáveis de opinião, incapazes de seguir um assunto até ao fim,levianas, exaltadas, irritáveis, e muitas vezes insolentes". Gulosa e incontrolável, a puta é aquela que adora os excessos: de álcool, de fumo, de sexo. Suas atividades, quando sozinha, são fúteis e banais: "Entregam-se ( ... ) ao sono, a conversações fúteis ou de um alcance limitado unicamente às virtudes, vícios ou defeitos das I

(4) Silva, Simões da, Fiscalização da prostituição em favor da infância, memória apresentada ao 1? Congresso Brasileiro de Proteção à Infância, ago.se!. 1922, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1924.

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(5) Leme, J. B., O problema venéreo 1926 p 74 (61 Idem, ibidem. . '" (7) Macedo, F. Ferraz de, op. cit·., p. 96.

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226DE EVA A SANTA, A DESSEXUALIZAÇAO DA MULHER NO BRASIL

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colegas e de seus amantes ou freqüentadores; outras vezes, fumam, jogam, brincam, berram, cantam, dançam e concluem paramentando-se".' As aristocráticas acordam tarde e passam o dia enfeitando-se, passeiam de carro ou ficam na janela. Sempre usam nomes falsos; adoram plantas e animais. Mas chegam a ter boas qualidades: "O sentimento de caridade não só para as colegas como para o próximo é uma das virtudes mais salientes das prostitutas". Socorrem-se nos momentos de infortúnio, são carinhosas com as pessoas carentes, mas "nunca essa virtude é nelas fixa" . 9 Quanto aos amantes, eles podem ser de vários tipos, desde o rapaz de família abastada que busca aventuras e quer dar vazão aos seus desejos libidinosos até os "persistentes", "rufiões" que são sustentados pelas mulheres e, na verdade, apenas lhes fazem companhia para irem ao teatro, aos bares, aos bailes e às compras. Estes costumam bater nas amantes, não amam, só exploram e amontoam-se nos bares, bilhares e cafés. Também os gigolôs se tornam objeto de preocupação médica e policial no final do século XIX, a partir da constituição do mercado de trabalho livre no Brasil. 1O No final da década de trinta, em conferência realizada na sede da Sociedade Brasileira de Criminologia, o delegado Anésio Frota Aguiar distinguirá "três classes de proxenetas": o "judeu", principalmente o polaco, que "explora o lenocínio como se estivesse à testa de um negócio" e para o qual a mulher é exclusivamente uma mercadoria; o caften do tipo "apache", "em cuja classe predomina o elemento latino" - não mantém comércio, vive e age isoladamente e domina sua vitima pelo terror, usando a "navalha dentada" como principal instrumento de coação; e o caften argentino: "é o tipo do gigolô. Conquista a mulher pelo lado afetivo. Procura o caminho do seu coração. Depois, explora-a" .11

Os criminalistas procurarão demonstrar, através da antropologia criminal, que as prostitutas, assim como os crimi181 Idem, p. 48. 191 Idem, p. 151. (10) Bresciani, M. Stella, "Liberalismo: ideologia e controle social". tese de doutoramento, São Paulo, 1976. (11) Aguiar Anésio Frota, O lenocínio como problema social no Brasil, Rio de Janeiro, 1940, p. 19. I

nosos e anarql\Ístas, possuem uma configuração do cérebro diferente e alguns sinais orgânicos que as distinguem das mulheres normais. Apoiando-se em Cesare Lombroso, para quem as prostitutas se caracterizam pela fraca capacidade craniana e por mandíbulas bem mais pesadas que as mulheres honestas, a teoria da prostituição inata e hereditária ganha cada vez maior número de adeptos e informa as práticas de disciplinarização, de vigilância e controle exercidas pela policia de costumes. Daí toda a tentativa de enclausuramento das práticas amorosas extraconjugais em espaços fechados, isolados e regulamentados pelas autoridades públicas. Segundo o projeto regulamentarista, as casas de tolerância e os bordéis deveriam ser registrados na policia e vigiados tanto pelos médicos quanto pela administração pública. O bordel, nesse sentido, deve realizar o ideal do anticortiço: deve ser o contrário do que representa a casa de prostituição clandestina, refletindo à sua maneira a intimidade conjugal burguesa. Por isso, a policia de costumes proibia nesses estabelecimentos qualquer prática de sexo grupal ou homossexual, muito embora estas interdições nem sempre fossem cumpridas. Além de confinar as prostitutas dentro de espaços especiais, vigiados e marginalizados, os regulamentaristas, influenciados pela teoria biológica do meio ambiente, defendiam que os bordéis e casas de tolerância estivessem localizados em bairros separados, longe das igrejas, escolas, internatos, casas residenciais, etc. As prostitutas deveriam ter poucas permissões de circulação, de entrada e saída, e ainda deveriam, fichadas na policia, receber a visita das autoridades sanitárias a domicílio várias vezes por semana, tendo em vista "neutralizar a propagação da sífilis, o eterno flagelo da mocidade, o terrível inimigo da sanidade da raça" (Cândido Motta). Deveriam ser portadoras de uma carteira sanitária de identificação pela qual seriam constrangidas a passar por exames periódicos, a exemplo do que se praticava na França ou Inglaterra. A carteira de identificação conteria seus dados pessorus, idade, nome real, profissão anterior, naturalidade, estado civil, moléstias presentes ou passadas, constituindo-se em importante meio de informação sobre a vida da mulher e, portanto, em instrumento policial de controle. Desde os finais do século XIX, a policia procurava organizar o exercício da prostituição, definindo normas disciplinares de adestramento

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228DE EVA A SANTA. A DESSEXUALIZAÇÃO DA MULHER NO BRASIL

das meretrizes, transformadas também elas em trabalhadoras úteis. Estas normas previam toda uma redefinição do espaço interno do bordel: utilização de cortinas e persianas, horários de aparecer najanela, interdição de jogos, bailes, festas barulhentas, impedimento de circulação nos lugares públicos com roupas decotadas e indecorosas, recato nos teatros e divertimentos públicos, etc. Evidenciavam, deste modo, uma clara intenção de tomar os espaÇos das sexualidades condenáveis absolutamente transparentes ao poder.

o castigo exemplar dos escravos no Brasil colonial

* * * No jogo de agenciamento e transformação das relações intrafamiliares, a mulher, operária ou burguesa, constitui uma figura privilegiada de investimento do poder. Desodorizar a cidade, eliminar miasmas, germes e lixos passa pela higienização dos papéis sociais, pela desaglomeração dos bandos de pobres, pelo enc1ausuramento dos "desviantes", pela disciplinarização da prostituição, segundo um imaginário que progressivamente identifica o perigo biológico, a ameaça de propagação das epidemias à invasão do cenário social pelas massas de pobres, vagabundos, "gatunos e inválidos". A valorização do papel da mãe e de um novo ideal de feminilidade, difundido pela sociedade burguesa desde meados do século XIX e, nos meios operários, nos inícios do século no Brasil, tem o objetivo de convencer as mulheres de que elas amam naturalmente seus filhos, de que nasceram para procriar, de que o amor materno é uma vocação inata, pura e sagrada, e de que seu espaço natural resume-se ao lar. Tudo o mais inscreve-se no campo da anormalidade e recebe o estigma da culpabilidade. Entre a Santa Maria e a Eva, a mulher não teve nenhum espaço permitido. Ora, a construção da "rainha do lar" implicou a total desvalorização pessoal, sexual, profissional e política da mulher, em todos os momentos de sua vida. Da mesma forma, a construção de seu contraponto, a figura maculada, profana, corrupta e degradada da puta, associada ao charme da maçã e à sedução de Eva, deveria aparecer como ameaça constante a todas aquelas cujos comportamentos desviassem mesmo que minimamente dos estabelecidos por uma rígida moralidade social.

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Silvia Hunold Lara

Esta comunicação tem dois objetivos principais. O primeiro é apresentar alguns aspectos de uma pesquisa mais ampla, sobre a relação entre senhores e escravos no Brasil setecentista, que estão relacionados com temas estudados e analisados por Foucault. Em segundo lugar, pretendemos levantar algumas questões referentes ao contato entre este "universo foucaultiano" e certas inquietações que permeiam a tarefa do historiador. Assim sendo, decidimos concentrar nossa exposição em tomo da análise de um documento, que serve, então, como ponto de convergência para nossas observações. Trata-se de uma carta, escrita em 1761 pelo juiz da Alfândega do Rio de Janeiro a Francisco Xavier de Mello Furtado, pedindo instruções para melhor solucionar um problema. Conta ele que "os homens que trabalham nesta Alfândega ... são pretos ... totalmente faltos de notícia e ignorantes do crime em que incorrem pelas Leis e disposições do Foral cometendo, como sucede, alguns furtos dentro dela, os quais como sempre são coisas de tênue valor ... ". O pequeno valor destes furtos impedia, segundo o juiz, a aplicação da "última pena da lei" e ele, então, procedendo "conforme o merecimento da culpa", prendia os escravos delituosos. Tal prática resultava em danos e prejuízos para os senhores daqueles escravos, pela" demora na prisão, falta de seus serviços e mais despesas", apesar de não terem "concorrido com a mais leve circunstância para o delito". Diante deste dilema, pedia o juiz .~'-

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da Alfândega que o rei determinasse um castigo que bastasse para "punir semelhantes furtos, sendo logo executado na mesma Alfândega, tanto que forem achados cúmplices neles, e isto para temor e emenda perante os mais escravos trabalhadores, e entregues aos mesmos senhores com a pena que a V_ . " 1 M . parecer Justa.. . . A legislação da época sobre furtos determinava que os furtos de valor inferior a 400 réis fossem punidos com açoites públicos com baraço e pregão ou outra menor pena corporal, segundo a quantidade e qualidade do furto e do ladrão. No caso de ser um escravo a furtar valia inferior a 400 réis, a pena se restringia ao açoite público, com baraço e pregão, sem possibilidade de comutação.' A ser aplicada esta lei, o escravo delituoso deveria ser preso, deslocado para a cadeia à espera da elaboração judicial da culpa, escritura do pregão e execução da pena. E o senhor teria que arcar com as despesas do processo, da carceragem e execução da pena, além de se ver privado do trabalho daquele escravo. A carta analisada parece indicar que o próprio juiz da Alfândega, dado o "tênue valor" dos furtos. prendia ele mesmo o escravo, na própria Alfândega. Ainda que as custas e o tempo da punição diminuíssem, ainda assim, o senhor tinha motivos de queíxas ... Mas não era apenas o "prejuízo e dano" dos senhores que parecia preocupar o juiz da Alfândega. Pedia ele um castigo bastante específico, que punisse os furtos, que fosse prontamente executado, dentro da Alfândega, que inspirasse temor e exemplos aos demais escravos e que não interrompesse a exploração senhorial do trabalho escravo. Além disso, esta especificidade trazia implicito o objetivo de ensinar aos "pretos (1l Cf. "Aviso de 20 de outubro de 1761 remetendo, para se informar, cópia de uma carta do Juiz da Alfândega em que pedia se lhe determinasse o castigo que se devia dar aos pretos que trabalhavam na mesma Alfândega e fossem compreendidos em alguns furtos dentro dela" e " Provisão de 7 de maio de 1763 mandando informar sobre pedir o Juiz da Alfândega do Rio de Janeiro que se determinasse castigo que bastasse para punir alguns furtos de tênue valor que faziam dentro da dita Alfândega os homens pretos que nela trabaIhavam", Arquivo Nacional, Rio de Janeiro, Códice 952, vol. 41, fls. 160-162, e vol. 42, fls. 46-48, respectivamente. (2l Código Philippino ou Ordenações e Leis do Reino de Portugal recopiladas por mandado d'B Rey D. Philippe I (10031, ed. Candido Mendes de Almeida, 14~ ed., Rio de Janeiro, Typ. do Instituto Philomathico, 1870. Livro V, Título LX, "Dos furtos e dos que trazem artiffcios para abrir portas", pp. 12071208.

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... faltos de notícia-e ignorantes do crime em que incorrem" que surrupiar coisas, ainda que de "tênue valor", é um ato criminoso previsto por lei e, enquanto tal, passível de punição. Ora, tais características ultrapassam de muito o aspecto puramente punitivo e repressivo de um castigo para escravos delituosos . Antes de mais nada, é bom lembrarmos que a preocupação com o castigo dos escravos não foi exclusiva deste juiz da Alfândega. Desde o século XVII encontramos diversos documentos que fazem referência explicita ao assunto. O Título XCV do Livro V das Ordenações Filipinas reconhecia o direito senhorial de prender e encarcerar seu escravo "pelo castigar e emendar de más manhas e costumes".' Os açoites, freqüentemente empregados na punição de diversos delitos, eram sancionados tanto pela Lei como pela tradição e pelo costume.' Na segunda metade do século XVII, a Coroa portuguesa expediu diversas cartas régias ao governador do Rio de Janeiro lembrando que os senhores podiam castigar seus escravos, mas de forma moderada, condenando os abusos e crueldades. 5 A moderação e a preservação de preceitos humanitários e cristãos na prática do castigo aparece explicitada em vários outros textos, como os de Jorge Benci, Antoni!, Manoel Ribeiro Rocha e Azeredo Coutinho: necessário para domar sua rudeza, prevenir rebeldias e disciplinar os escravos, o castigo físico deveria ser justo, corretivo, parcelado e educativo; estes autores recomendavam o uso de açoites (desde que não passassem de 40 por dia), de ferros (correntes e grilhões) e do

(3) Código Phílippino ... , livro V, Título XCV, "Dos que fazem cárcere privado", pp. 1245-1246. (4) Cf. A. Perdigão Malheiro, A escravidão no Brasil. Ensaio histórico, jurldico, social (18661, Petrópolis, Vozes/lNL, vol.l, p. 41. 1976. (5) Cf., entre outros: "Carta Régia de 20 de março de 1688 providen-

ciando a respeito do excesso com que alguns senhores castigavam sellS escravos"; "Carta Régia de 23 de março de 1688 mandando processar sumariamente aqueles senhores que desmoderassem no castigo dos escravos"; "Carta Régia de 23 de fevereiro de 1689 declarando que ficassem sem efeito as ordens remetidas em 1688 a respeito da punição dos senhores que castigavam imoderadamente os escravos, e mandando observar o que as leis dispunham em comum sobre a matéria" e "Carta Régia de 7 de fevereiro de 1698 ordenando que o Governador evitasse, empregando meios eficazes e prudentes, que os senhores de escravos os castigassem rigorosamente, por ser este procedimento inhumano e ofensivo à natureza e às leis", Arquivo Nacional, Rio de Janeiro, CÓdice 952, vol. 4, fls. 168 e 172; vol. 5, f!. 29, e vol. 9, fI. 37, respectivamente.

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tronco, condenando qualquer prática de mutilação, suplício ou morte dos escravos.' Até mesmo alguns escravos que chegaram a querelar contra a crueldade de seus senhores admitiram este castigo moderado e humano, como "o que se costuma dar a um filhó livre para (sua) educação ... ".' Moderado, regrado e controlado, o castigo físico dos escravos nunca foi realmente questionado no mundo colonial. Objetou-se contra os excessos, abusos e crueldades, mas sem que se chegasse a propor sua abolição. Incontestado, servindo para educar, dominar e organizar o trabalho, o castigo físico impunha-se, então, como necessário ao governo dos senhores sobre seus escravos. Mas cremos não ser ainda esta "moderação" o que preocupava o juiz da Alfândega do Rio de Janeiro. Ele pedia que o castigo dos escravos fosse essencialmente um castigo exemplar, executado dentro da própria Alfândega. Não um castigo exemplar público, que punisse os furtos dos escravos como qualquer outro furto, executado pelos funcionários da Justiça Real e cuja exemplaridade estivesse dirigida à população (à multidão, à plebe) como um todo. Mas, sim, um castigo que fosse executado por aquele que controla o trabalho, no local de trabalho e cuja exemplaridade estivesse voltada para aqueles escravos que aí trabalhassem, e exclusivamente para eles. Um castigo que punisse e ensinasse o escravo que o sofria que ele não deveria roubar, que notificasse e instruísse todos os escravos da Alfândega sobre o que é roubar e que tal ato era passível de punição, e que prevenisse a repetição de uma ação, transformada em delito, por atentar diretamente contra a exploração do trabalho. Assim, o castigo exemplar dos escravos, (6) Jorge Benei, Economia cristã dos senhores no governo dos escravos (1795), São Paulo, Grijalbo, 19n; André João Antonil, Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas (1711 I, ed. A. Mansuy, Paris, IHEAL, 1968; Manoel Ribeiro Rocha, Ethiope resgatado, empenhado, sustentado, corregido, instruído elíbertado, Lisboa, Oficina Patriarcal de Francisco Luis Ameno, 1758, eJ. J. da Cunha Azeredo Coutinho, "Análise sobre a Justiça do Comércio do Resgate dos Escravos da Costa da África, novamente revista e acrescentada por seu autor" (1808), in Sergio Buarque de Holanda (org.), Obras econômicas de J. J. da Cunha Azeredo Coutinho, São Paulo, Cia. Ed. Nacional, 1966, pp. 231-307. (7) Cf. "Autos cíveis de libelo entre partes. Clara, Luiza e sua filha Francisca - Autoras - contra (Amaro Giesteira Passos) - Réu (1799)", Arquivo do Cartório do Segundo Ofício da Cidade de Campos, Rio de Janeiro, maço 96.

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exercício de reativação do poder senhorial e produção de um certo trabalhador, submetido a uma exploração particular, era, também, a comunicação exemplar da lei e da dominação. Uma lei e um poder que deixavam de ser registrados apenas com papel e tinta, pelos senhores e para os senhores, para serem inscritos no corpo dos escravos. Para além das marcas corporais que traduziam o ato de poder envolvido na escravização e diziam da qualidade e propriedade do africano tornado mercadoria, juntavam-se agora inscrições que sinalizavam a transformação do escravizado num trabalhador a ser explorado compulsoriamente. 8 Cenas descritas por autores diferentes, qualificadas e repudiadas como atrozes, mas também mencionadas como freqüentes, marcavam outros momentos em que a linguagem da dominação era impressa. As surras iniciais, dadas quando o escravo chegava ao engenho, deixavam cicatrizes que impunham ao escravo que ele se reconhecesse como tal e assumisse a sua condição de submissão." As marcas dos castigos para os que se rebelavam funcionavam como reafirmação do poder senhorial e novas inscrições da lei: o escravo que fugia, por exemplo, quando preso recebia um novo carimbo, a letra "F" que lhe era marcada na espádua." Ao longo do século XVIII, o chicote se tomava, cada vez mais, um instrumento de castigo exclusivo para os escravos, o que significa também que os castigos retomavam sempre estes rituais, com o fim pedagógico de reafirmação das regras da dominação senhorial. Esse texto, impresso no corpo dos escravos, era passível de uma dupla leitura, já que o ato da inscrição era tanto a afirmação senhorial da dominação quanto o aprendizado escravo da submissão. Sua leitura constituía-se no ato senhorial (8) Para uma descrição de época sobre o tráfico de escravos, cf. Luís Antonio de Oliveira Mendes, Memória a respeito dos escravos e tráfico da escravatura entre a costa d'África e o Brasil (1793), Porto, Escorpião, 1977. (9) "Nas fazendas, engenhos e lavras minerais, ainda hoje há homens tão inhumanos que o primeiro procedimento que têm com os escravos e a primeira hospedagem que lhe fazem, logo que comprados aparecem na sua presença, é mandá-los açoitar rigorosamente, sem mais causa que a vontade própria de o fazer assim, disto mesmo se jactam aos mais, como inculcandolhe, que só eles nasceram para competentemente dominar escravos, e serem deles temidos, e respeitados ... " Manoel Ribeiro Rocha, op. cit., p. 188. (10) Alvará de 3 de março de 1741, em que se determinou que os negros que se achassem em quilombos se marcassem com fogo em uma espádua. Código PhJlippino ... , Livro IV - Aditamentos, pp. 1045-1047.

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de identificação do objeto submetido e, pelo escravo, na memória inesquecível da sua qualidade de ser dominado. Não apenas os carimbos do traficante e da propriedade senhorial identificavam o escravo. A quantidade de cicatrizes provindas dos açoites, as marcas das peias ou dos troncos identificavam também a sua qualidade, o grau da sua submissão. Muitas cicatrizes de chicote diziam de um escravo insubmisso, fujão ou que precisava ser sempre "corrigido"; cutiladas de faca podiam revelar brigas, etc. Ao mesmo tempo, defeitos físicos, marcas deixadas por antigas doenças, acidentes de trabalho ajudavam a identificar aquele escravo (de um determinado senhor) que tinha fugido, entre tantos Manuéis Angolas, Antônios Crioulos, Domingos Benguelas, etc. Lidas pelos escravos, estas marcas corporais eram um obstáculo ao esquecimento de sua condição de escravo. Ao serem impressos de modo exemplar, estes signos atingiam também algo mais profundo do que a pele e o corpo: a marca exemplar imprimia na "alma" escrava o medo da rebelião, a inexorabilidade da dominação senhorial a que estavam submetidos." Esse caráter pedagógico e disciplinador do castigo exemplar dos escravos na época colonial era um dos aspectos (essencial, mas não único) daquilo que Jorge Benci chamou, em 1705, de "economia cristã dos senhores no governo dos escravos", ou que Ribeiro Rocha denominou, em 1758, "teologia rural" dos possuidores de escravos." Uma análise mais detalhada da "economia" do poder senhorial sobre seus escravos

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revela que o castigo físico não é o único dispositivo de poder nela incluído. Esta mecânica do poder senhorial não se exercia apenas pelo castigo, mas se estendia também para o controle da alimentação e do vestuário, da sexualidade, das práticas religiosas, e até mesmo da quantidade do trabalho, reunindo amor e violência física, afeto e exploração pessoa!. 13 Como se pode observar, estamos até agora seguindo, grosso modo, uma análise que caminha paralela à análise foucaultiana do suplício pena!." É bem verdade que Foucault trabalhou com o suplício penal, com o ritual das "mil mortes" que marca e ostenta suas vitimas, transformadas em suporte e arauto da própria condenação; que reconstitui a soberania lesada (fazendo funcionar a dissimetria entre o súdito que ousou violar a lei e o soberano todo-poderoso que faz valer a sua força), que aterroriza (tornando sensível a todos, sobre o corpo do condenado, a presença encolerizada do soberano) e que \;eativa o poder (ostentando num cerimonial judicial e militar o triunfo da justiça do rei e a glória do poder que pune). Nós, no caso do castigo exemplar dos escravos da Alfândega colonial, deixamos o nível do macrocosmo social (da relação entre o soberano e seus súditos) para entrar no microcosmo da relação entre senhores e escravos, no interior da Alfândega do Rio de Janeiro, no interior de uma unidade produtiva. Esse deslocamento nos permite observar, em primeiro lugar, um conflito de poderes, entre a Justiça metropolitana (que pretende punir os furtos de uma forma) e os interesses específicos dos senhores de escravos. Também há concepções diferentes a respeito das práticas judiciais e punitivas, do tipo de castigo físico a ser ministrado aos escravos, etc. Uma análise mais detalhada pode revelar diferenças e nuanças na concepção de "castigo moderado" nos discursos dos padres setecentistas, da Coroa e dos próprios senhores.

(11) Darwin, ao visitar o interior do Brasil no início do século XIX, registrou uma cena muito significativa a este respeito: "Aconteceu que, certo dia,

atravessando um ferry em companhia de um negro que era excessivamente estúpido, a fim de ser compreendido, passei a falar alto e a gesticular. Devo, em algum momento, ter-lhe passadO a mão próximo ao rosto, pois, julgando talvez que eu estivesse irado e fosse batê-lo, deixou penderem os braços, com a fisionomia transfigurada pelo terror, e os olhos semicerrados, na atitude de quem espera uma bofetada da qual não' pretende esquivar-se. Nunca me hei de .esquecer da vergonha, surpresa e repulsa que senti ao ver um homem tão musculoso ter medo até de aparar um golpe, num movimento instintivo". Charles R. Darwin, Viagem de um naturalista ao redor do mundo (1839), trad. Rio de Janeiro, Companhia Brasil Editora, 1937, p. 44-45. (12) Jorge Benci, op. cit., e Manoel Ribeiro Rocha, op. cit., p. 190. A expressão é igualmente encontrada em Vilhena: "A falta de governo econômico dos senhores é a causa primeira donde provêm todos estes males, não s6 aos escravos, como aos mesmos senhores que em breve tempo os ·perdem, consumidos de trabalhe, fome e açoites". Luis dos Santos Vilhena, Recopi-

fação de noticias soteropofitanas e braslficas contidas em XX cartas (1802),

Bahia, Imprensa Oficial do Estado, 1921, p. 189. (13) A análise de todos os aspectos envolvidos no exercício do poder senhorial vai além dos limites desta comunicação. Deixamos para fazê-lo posteriormente. Por ora bastam apenas estas indicações e as referências contidas na nota 6. (14) Cf. Michel Foucault, Vigiar e punir. Nascimento da prisão, trad. Petrópolis, Vozes, 19n, especialmente a primeira parte, pp. 11-65.

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Em segundo lugar, esse deslocamento traz a análise dos dispositivos de poder (na linguagem foucaultiana) para a proximidade com uma relação de produção: o castigo exemplar dos escravos não é apenas exercício do poder senhorial, de reafirmação da dominação, mas deve cuidar também da reprodução de uma relação que é uma relação de exploração direta do trabalho. A exemplaridade do castigo não só marca no corpo dos escravos a sua submissão, a sua condição de escravo e reafirma o poder e a lei dos senhores em geral, mas também o poder e a dominação daquele senhor específico sobre aqueles escravos específicos e que ao mesmo tempo disciplina e produz um trabalhador particular, no local de uma produção particular. Ainda que, especificamente em Vigiar e punir, Foucault retome passagens do trabalho de Rusche e Kirchheimer, afirmando que o investimento político do corpo está ligado à sua utilização econômica, que o corpo só é útil se é ao mesmo tempo corpo produtivo e corpo submisso,!5 ainda que men· cione "um certo número de amplos processos históricos no interior dos quais" a formação da sociedade disciplinar teve lugar 16 e que na sua análise relacione a prisão com as escolas, quartéis, hospitais e as fábricas; ainda assim, cremos que, em Foucault, a relação entre estes "amplos processos históricos" e a análise da microfisica do poder, posta em jogo pelos aparelhos e instituições, é problemática. Acontece que a análise foucaultiana se preocupou com pessoas que estavam fora dos circuitos do trabalho produtivo: os loucos, os doentes, os prisioneiros, etc., pessoas para as quais o trabalho tinha uma função mais simbólica e de adestramento (ou disciplinar) que uma função produtiva. 17 Por outro lado, Foucault chegou a reconhecer trabalhar no interior de um "certo horizonte geral definido e codificado por Marx", ao mesmo tempo que adotou uma série de "precauções metodológicas" e combateu certas leituras do marxismo." Sua contribuição é, sem dúvida alguma, extremamente importante para nós, historiadores, ao

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(15) Michel Foucault, op. cit., pp. 27-28.

(16) Idem, p. 191.

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romper com certas noções de verdade, ao tratar da multiplicidade de sujeitos, da pulverização, densidade e difusão do poder. Por isso mesmo, esse deslocamento a que nos referimos, essa proximidade com a relação de produção mais importante na vida colonial que aparece em nosso trabalho, permite-nos indagar (para além da análise das estratégias e dos dispositivos de poder senhorial de que o castigo exemplar dos escravos faz parte) a respeito da conexão entre estas estratégias e dispositivos e a reprodução da exploração do trabalho, O castigo dos escravos é exemplar também porque o poder senhorial tem uma preocupação com o seu futuro, Não apenas se preocupa em punir um crime cometido no passado, mas prevenir rebeliões, conservar e manter os escravos, enquanto escravos, continuamente, Esta relação com a continuidade, com a reprodução da exploração escravista, efetivada por cada senhor no interior das unidades de produção, é que tem a ver \ com o conflito mencionado pelo juiz da Alfândega (e não só por ele, mas também por outros textos coloniais") entre os interesses senhoriais e os da Coroa na punição exemplar dos escravos que cometem furtos. A distribuição do poder no mundo colonial, suas diversas estratégias e mecanismos e os conflitos entre as várias instâncias de controle da massa escrava convergem, ainda que contraditoriamente, para a manutenção da exploração escravista, Finalmente, uma última observação: o castigo dos escravos deve ser entendido também como luta, Não apenas a luta do carrasco contra o condenado, do rei contra o súdito, mas como uma luta entre saberes diferentes, Há um saber escravo que se pretendia aniquilar com o exercício do poder senhorial. Os pretos que trabalhavam na Alfândega podiam ser "faltos de notícia e ignorantes" da lei senhorial, mas sabiam obter coisas para si, tiradas das mercadorias que transportavam dos navios aos armazéns. O texto impresso no corpo dos escravos podia ser lido de forma diferente pelos escravos: podia dizer sobre a qualidade do senhor que o havia imprimido, podia identificar um aliado possível numa fuga, numa rebelião, etc. Este saber, que informava as ações de resistência dos escravos diante do poder senhorial, apresentava também, ao mesmo

(17) Michel Foucault, Microfísica do Poder, trad. Rio de Janeiro, Graal,

1979, pp. 223·224. (18) Cf. especialmente Michel Foucault, Microfísica do Poder, pp. 2-7,

(19) Cf., por exemplo, Jorge Benei, op. cit., pp. 166-170.

142·143, 148, 164 e 182·191. <

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tempo, uma visão diferente da que estamos costumados a ouvir daquele mundo colonial. Evidentemente, não se trata de um saber autônomo, exterior à própria relação de dominação. Ele se produzia nessa relação. Trata-se daquilo que o próprio Foucault chamou de "saberes dominados", entendendo por isso não só blocos de saber sepultados e mascarados no interior dos conjuntos funcionais, pelos dispositivos de poder, mas também uma série de saberes que foram desqualificados, submetidos. 20 No caso dos historiadores da escravidão, a reconstituição deste saber escravo é dificultada pela falta de fontes diretas. Um obstáculo que é superado, no entanto, por uma série de recursos, pelo cruzamento de fontes diversas, por um certo tipo de leitura dos documentos disponíveis, por buscas em muitas direções. A observação do cotidiano colonial, de pequenos flagrantes da relação senhor-escravo (ainda que filtrados pela pena de um escrivão), depoimentos de escravos fugidos (mesmo que no momento de sua captura), ações de rebeldia e resistência (apesar de reprimidas) permite uma nova abordagem da escravidão e do escravismo. Mas nem sempre esta falta de fontes explica a ausência da procura do saber dominado: na publicação do dossiê de Pierre Riviêre, Foucault e seus discípulos dispunham diretamente da fala deste camponês parricida. 21 Por que será que, em suas análises, eles se preocuparam muito mais com o conflito entre o saber médio e o judiciário do que com a voz de Pierre Riviêre, que falava da sua vida, da vida de sua família, da vida daquela aldeia camponesa da França do século XIX? Esta surdez não seria, rua mesma, um dispositivo de poder?

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(20) Michel Foucault, Microfísica do Poder, pp. 169-171. (21) Michel Foucault (org.), Eu, Pierre Riviere, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão: um caso de parricfdio do século XIX, trad. Aio de Janeiro, Graal, 197'l'.

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Foucault: levantamento bibliográfico de artigos de periódicos

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Compilado por Márcia C. Sampaio Ferraz. Vera Lúcia Junqueira. Márcia N. dos Reis Carvalho e Eunides do Vale

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Power and sex: an interview with Michel Foucault.

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FOUCAULT: LEVANTAMENTO BIBLIOGRÁFICO

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