De folguedos, barcarolas e nervuras: Bailias, de Catarina Nunes de Almeida

May 26, 2017 | Autor: Virgínia Boechat | Categoria: Poesia portuguesa contemporânea, Catarina Nunes de Almeida
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DE FOLGUEDOS, BARCAROLAS E NERVURAS BAILIAS, DE CATARINA NUNES DE ALMEIDA

Virgínia Bazzetti Boechat*

Em 2009, quando compus um artigo sobre os dois primeiros volumes publicados da poesia de Catarina Nunes de Almeida, Prefloração (2006) e A metamorfose das plantas dos pés (2008), iniciei a leitura com uma pergunta presente dentro de um dos livros: “Reconheces esta água para onde cais?” (Almeida, 2008, p. 11). A água para onde caíamos então, nós leitores, era aquela intensa fluidez da linguagem, que se propunha como intercambiante, em seus diversos níveis (fonológico, morfológico, sintático, semântico), e assim propiciava uma série de metamorfoses também dos elementos de toda uma tradição literária, desde a Antiguidade, passando pela Idade Média, com a presença de um imaginário maravilhoso, monstruoso, para afinal tocar pontos nevrálgicos da literatura portuguesa. Tais transformações apareciam então regidas por um erotismo, em algum grau alucinatório, que atravessa ainda toda a obra poética de Catarina. Caíamos, portanto, para uma água que era “mãe de todos os monstros”, segundo diria Plínio o Velho, ou que abriria a qualquer momento algum abismo ou boca imensa para onde os barcos, os corpos e a língua – geralmente na sua polissemia linguística-fisiológica-erótica – poderiam também cair. Em 2011, essa novíssima autora da poesia portuguesa, nascida em Lisboa, em 1982, mas que já tem algum percurso como professora e como pesquisadora de poesia, publicou seu terceiro volume de poemas, que intitulou Bailias. Eis que novamente reconheço a água para onde caímos: água do erotismo, das referências a uma tradição cultural e literária, das metamorfoses nos e entre os diversos níveis da linguagem; reconheço, ainda, aquela voz impressionantemente mutável, feita na fluidez e na dispersão. Ressalto ainda, nesse caminho, algo que torna peculiar o trabalho poético realizado no volume: uma sensível proposta central de releitura do cancioneiro medieval galego-português, predominantemente das cantigas de amigo. A lírica do medievo ressurge então reconstruída ou desconstruída em muitas de suas características, trechos transformados, estruturas remontadas, vozes modificadas, símbolos

* Doutora em Literatura Portuguesa pela USP (2011) e poeta, trabalha como professora, pesquisadora e revisora. Há alguns anos tem desenvolvido pesquisas independentes sobre a obra de Catarina Nunes de Almeida, incluindo artigo, comunicação e entrevista realizada em Portugal. E-mail: [email protected]

ressignificados, o que também acaba por confirmar esse conjunto como uma produção bastante madura da poesia de Catarina. Em um volume cujo título é Bailias, designação para a bailada, tipo de cantiga trovadoresca tão estreitamente ligada à dança, não é gratuito que também na epígrafe do volume, retirada de Mirabai, poetisa do século XVI, do norte da Índia, haja referência ao ato de dançar, utilizado nos cunhos denotativo e conotativo, para balizar o relacionamento, no caso a relação eu-ele, como um ato ritual de fidelidade e devoção: “Só sei dançar/ para o meu mestre.”. Assim como os dois outros livros de Catarina Nunes de Almeida, este tem uma estrutura bastante cuidada e propositalmente produtora de sentido na leitura dos poemas, que estão agrupados em quatro partes distintas, intituladas “Folguedos e noites de pastoreio”, “Barcarolas ou manhãs frias”, “Mágoas ou cantos de alvoroço” e “Cantigas de Romãzeira”. É perceptível em cada uma dessas divisões a diversa modulação, quase como se mudasse o ritmo de uma pretensa música de fundo, em partes nas quais a(s) voz(es) poética(s), a linguagem, a ambientação montam um conjunto próprio mas dialogante. Na primeira parte, chamada “Folguedos e noites de pastoreio”, a dança é temática tratada com estonteante intensidade, e conjugada com o ato do pastoreio, com o ofício de pastor. Aqui a voz feminina, antes comumente franqueada por um poeta na cantiga de amigo, é somada à figura da(s) pastora(s), e ressurge cambiante entre uma voz feminina e muitas vozes femininas, que conduzem os movimentos poéticos com seu cantar e dançar. O poema que inicia essa primeira parte compõe uma atmosfera de maremoto e água pelos tornozelos, cabelos e aves, seguida de água recuada e mudanças, reconhecidamente reapropriações de todo um conjunto simbólico próprio das cantigas, da espera e do encontro amoroso animizados. O último verso, colocado mesmo à maneira de uma finda, estabelece um específico diálogo: O único maremoto de que há memória aconteceu nos teus cabelos que hoje são lisos e deixam a água pelos tornozelos até ser de manhã. Agora até a terra passou. Cruzam-se valsas e expedições na curva do seio a música não cabe na boca das aves e nós, meninas, bailaremos i.

O mais perceptível ponto referencial de diálogo no cancioneiro encontra-se na cantiga de Pero de Vivães, em que as mães se dirigem ao santuário de San Simon, que, “ainda existe num ilhéu da Ria de Vigo, hoje sob a invocação de São Simão" (Reckert, 1996, p. 146), e lá

vão acender velas pelo casamento das filhas, e por si mesmas, afinal, para que assim sejam, também elas, bem sucedidas no seu esperado papel social. Pois nossas madres van a San Simon de Val de Prados candeas queimar, nós, as meninhas, punhemos d’andar con nossas madres, e elas enton queimen candeas por nós e por si, e nós, meninhas, bailemos i. (...)

Assim como nos versos de Catarina, nessa cantiga de Pero de Vivães a dança ritual e a implicação sexual já se conjugam, porém, o fundo religioso medieval do bailado sede lugar agora, nos versos dessa novíssima poeta, a um ritual secular lírico-amoroso, mesmo que ainda com alguma semelhante reverência e pré-cópula. Destaco, além disso, no poema da autora portuguesa contemporânea o ultrapassar de um intrincado medo, tal como se configura em outra cantiga, de Meendinho, que também menciona o templo de São Simão, temor concretizado na cheia do mar, nas ondas e perigos, que fariam com que esse sujeito feminino morresse no santuário à espera do amigo: “Estando na ermida ant’o altar,/ Cercaron-mi as ondas grandes do mar,;/ Eu atendend’o meu amigo,/ Eu atendend’o meu amigo.”. Sendo a real localização dessa ilha abrigada de ondas, Stephen Reckert ressalta que nessa cantiga: O seu medo, em si, é ainda mais complexo: medo de se afogar nas ‘ondas grandes do mar’, ou nas da própria emoção, por um lado; por outro, medo de não ter literalmente meio de se esquivar ao ímpeto amoroso do amigo quando ele afinal chegar; medo também da maré alta da paixão que, simbolicamente, essa chegada representará. (Reckert, 1996, 146-147)

Medo nenhum, contudo, circunda a voz plural feminina nesse poema de Catarina Nunes de Almeida. Os cabelos do outro amoroso nesses versos portugueses do século XXI são lisos, as águas chegam aos tornozelos apenas até o amanhecer, a terra já passou e as aves soltam um canto que não pode mais ser contido, num aliviado desassombro. Chama a atenção o fato de que, ao operar, por seu lado, semelhante busca de captação do universo psicológico feminino, antes construído numa voz apenas franqueada, Catarina, para o seu sujeito, geralmente um sujeito com feminino, porque cambiante, ora fragmentado, ora fluido, ora disperso, tome essa voz feminina multiplicada, metamorfoseada muitas vezes para muitas vozes femininas, metamorfose expressa nas mãos dadas, ventres e seios, “e nós, meninas, bailaremos i.”: Bailam as raparigas as mãos nas mãos das raparigas

nos cabelos das raparigas dos pinhais até aos seios.

Dos tradicionais pinhais, importantes topoi medievais para o encontro com o amigoamado, até os seios contemporâneos, lugar da dança sedutora e pré-talâmica com amigas, figura-se a queda (do símbolo) das tranças, da tradicional marca nupcial, substituídas então, “derrubadas as tranças:/ só manchas de pele na pele”, até a queda exangue, final. Outro poema da mesma parte, compõe essa nova possível relação entre as amigas: Três moças cantavam d’amor os braços debulhados dispostos no lençol. (...) e trocavam de sapatos e teciam véus e vulvas como quem ensaia a perfeição de um delito.

Da sensualização atribuída por Catarina à relação entre as três jovens originárias da cantiga medieval de Lourenço, na qual “Três moças cantavam d’amor,/ mui fremosinhas pastores,/ mui coitadas dos amores./ E diss’end’ũa, mia senhor:/ ‘Dized’amigas comigo/ o cantar do meu amigo’”, sublinho a comparação nomeada como o ensaio de um delito, sublinho nenhuma marca da penosa espera do homem. Também chama a atenção, no mesmo sentido, apesar de já incluir o amigo, o convite à irmã para ir folgar, em outro poema de Bailias: “Vamos carregadas de noites/ acender as aves pousar as aves/ boca a boca/ no amigo.” Antes da núpcia, as vozes de Catarina bailam, se entrelaçam, vão juntas ao encontro do amigo, até que se conclui a entrada do homem nos versos, ao surgir referido no lugar de um tu mítico-amoroso: Quero que me escondas não me deixes ser mais do que a sirene lenta anunciando os poentes do teu dorso. O peso mínimo da costela onde nasceste homem.

Entrevejo nos poemas iniciais uma vida pré-nupcial contemporânea, plena de seus próprios rituais de dança, e até danceteria, de cantos, encontros e vozes, vivência bastante diferenciada da procura e dúvida sobre a chegada ou volta de um especial amigo, ou da angustiada e medrosa espera feminina que pode ter as “árvores como correlato da saudade amorosa” (cf. Reckert, 1996, p. 211), como na cantiga de D. Dinis, “– Ai flores, ai flores do verde pino,/ se sabedes novas do meu amigo?/ Ai Deus, e u é?”. Esse momento é sugerido nos

versos de Catarina como passagem de prazeres, alegres experimentações, pluralidades, mudanças, e da concretização do ato amoroso: “Ai noites ai noites/ de sol a pino”. Passado o encontro, um tênue receio surge somente ao fim da primeira parte, no pedido ao amado: “Daime só mais este passo, meu amigo,/ às escuras às curvas/ pelas ervas abaixo.// Dai-me desse certeiro espinho desse derradeiro laço/ às escuras às escuras”. A segunda parte de Bailias, “Barcarolas ou manhãs frias”, das noites agitadas da parte anterior, passa à escolha entre o partir e o permanecer nas manhãs, que pode ser lida como possível construção inerente ao início de um convívio cotidiano: “Começávamos o dia por baixo/ pelo tempo da pedra. A escarpa muscular/ onde ia gastando os teus sapatos./ Manhãs compridas que chegavam ao mar.” Nos versos dessa parte estão mais referências fragmentadas a um imaginário nacional marítimo, vitorioso e/ou desastroso que atravessará s poemas, cuja raiz figurava já nas cantigas marinhas em que a jovem conversava com as ondas sobre a ausência do amado. Se havia na primeira parte de Bailias o futuro, “bailaremos”, ou o presente com sentido que remete ao futuro, “vamos”, na segunda divisão, o verbo em pretérito é o que predomina, demarcando o momento de memória da convivência: “Passavam orlas e orlas e nós naquela descoberta/ naquela terra toda à vista brincando ao verão/ aos redemoinhos na chávena.”, em algo que poderia ser chamado de anti-barcarolas. O santuário de São Simão surge referido diretamente, quando aparecem reconfiguradas as expectativas e pretensões dessa voz poética feminina, cuja espera é conjugação entre “ver” e “atrever”, e o futuro com o amado, um dia, conjuga “segurar” e “assegurar”, num tipo de relação entre significantes que é bastante recorrente na obra de Catarina e propicia leituras bastante interessantes. Curioso é o pedido para que Deus mantenha esse amigo longe, para que possa estar longos anos com ele: Sedia-m’eu na ermida de San Simón eu atendend’o meu amigo morrendo de olhar lá longe atrevendo-me de longe ao meu amigo espaçoso e branco como cavalo branco. Que o tenha deus lá longe e cá me deixe viver para o dia em que me segura o xaile e me assegura os anos num retrato da mesinha.

A terceira divisão proposta pelo volume, “Mágoas ou cantos de alvoroço”, inicia-se com um erotismo esperançoso, presente numa ambientação que lembra a casa, o início do casamento: “Que repouse para sempre no tímpano dos seixos/ o uivo desse sexo fulgente/ porcelana do prado quebrando-se na boca/ hábil e agre (...)”. O aconchego conjugado à

sensualidade desse ambiente logo dão lugar ao desgaste, tristezas e ausências: “Meu amigo perdoa-me/ se espantei as gazelas/ para um canto do sótão (...)”, ou “Quem de mim s’há-de doer/ aqui tão triste/ cercada pelos grilos?”. Numa ressignificação variada, como a da gazela, símbolo da jovem, assim como do cervo, que por vezes substitui a imagem do amigo, percebo o sutil câmbio do estar cercada pelas ondas temendo a morte, por estar cercada pelos grilos, fora do santuário, no campo aberto, em que a necessidade é de “sobreviver ao orvalho”, numa melancolia serena, solitária. Na última parte de Bailias, da cantiga de romaria foi retirado, em transformação, o título “Cantigas de romãnzeira”, em uma divisão cujos poemas, não gratuitamente, são justamente doze e intitulados como cânticos, como “Cântico Moderado”: Abraçou-o como às uvas com todos os dentes das mãos.

Nessa parte de Bailias mostra-se um amor ora desesperado, ora extremado, cheio de nervuras e meandros, um amor em metafórica peregrinação poética por si mesmo, como nos versos de “Cântico de setembro”, quando “O último abraço foi abraço de videira/ sem palavras”. No “Cântico dos cântaros”, as fotografias antigas vêm revelar “Um dedilhar de amigo/ à beira do vinhal./ Um encantar de amigo.”, em um poema dos mais significativos para o entendimento do ciclo que é constituído nesse livro: Nunca saberás que isso a que chamas silêncio orvalho eu chamo música e toco-a.

Se já apontei que a voz feminina e suas diversas modulações e figurações são reconfiguradas nos versos dessa jovem escritora portuguesa, complemento ainda que uma pansensualidade do medieval, normalmente expressa na cantiga de amigo (cf. Vasconcelos, p. 6), é então realocada para o mundo contemporâneo, para os seus valores, vivências e possibilidades. Ressalto ainda que, nesse mesmo sentido, as árvores, pinhais, fontes, frutos, flores, ventos são em Bailias encontrados e metamorfoseados no corpo das amigas ou do amigo, invertendo a identificação daquela lírica do medievo, trazendo também para seu próprio corpo textual o metafórico florescer desses diálogos, num intrincado e lapidado trabalho de releitura de que pude apenas fazer uma pequena introdução.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Catarina Nunes. Bailias. Lisboa: Deriva, 2011. RECKERT, Stephen. Comentários de “Cinquenta cantigas de amigo”. MACEDO, Helder; RECKERT, Stephen. Do cancioneiro de amigo. 3ª ed. revista e aumentada. Lisboa: Assírio & Alvim, 1996. VASCONCELOS, Maria Elizabeth. Uma Idade Média em quatro cantares. SILVEIRA Jorge Fernandes da (coord.). Antologia da poesia portuguesa: linhas mestras. Tomo 1 – Idade Média. Rio de Janeiro: FL/ UFRJ, s./d. pp. 4-13.

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