DE GOA A LISBOA: Memórias de populações escravizadas do império asiático português (séculos XVI e XVII). FROM GOA TO LISBON: Memories of Enslaved People under the Portuguese Empire in Asia (XVIth and XVIIth Centuries

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Vol. 5, Nº 9, Jan-Jun, 2016

DE GOA A LISBOA: Memórias de populações escravizadas do império asiático português (séculos XVI e XVII)1 FROM GOA TO LISBON: Memories of Enslaved People under the Portuguese Empire in Asia (XVIth and XVIIth Centuries) Patricia Souza de Faria2

__________________________________________________________ Resumo O objetivo é analisar as memórias de populações oriundas das sociedades do Índico que foram escravizadas e convertidas ao catolicismo pelos portugueses. Parte dessas populações escravizadas foi transportada da Ásia para Portugal. Refletiremos sobre a natureza das fontes documentais investigadas em busca das memórias de tais populações e elaboraremos estudos de caso sobre as suas reminiscências. Palavras Chave Império Asiático Português, Memórias da Escravidão, Catolicismo. Abstract The aim of this paper is to analyse the memories of people from the Indian Ocean societies who were enslaved and converted to Catholicism by the Portuguese. Some of these enslaved people were carried from Asia to Portugal. We analyse the nature of the historical sources on such enslaved people’s memories and we develop case studies about their reminiscences. Keywords The Portuguese Empire in Asia; Memories of Slavery; Catholicism.

__________________________________________________________ O objetivo deste artigo é analisar as memórias de populações oriundas de regiões do Índico que foram escravizadas e convertidas ao catolicismo 1 2

Artigo recebido em 10/01/2016 e aprovado em 21/02/2016. Professora Adjunta, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Bolsista CNPq.

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pelos portugueses, nos territórios que compunham o “Estado da Índia” – conjunto de conquistas, fortalezas, feitorias e demais territórios administrados pelos lusitanos, da costa oriental africana até o Extremo Oriente3. Parte dessa população escravizada foi transportada do Oriente (especialmente de Goa) para o reino de Portugal, local em que asiáticos e povos da costa oriental africana viveram como escravos ou forros. Elaboraremos três estudos de caso sobre as reminiscências de Domingos Silveira, Gonçalo Toscano e Gonçalo de Faria,4 com base em documentos do Tribunal do Santo Ofício (de Goa e de Lisboa), produzidos nos séculos XVI e XVII, mais precisamente, entre as décadas de 1590 e 1630. Antes

de

analisarmos

as

memórias

dos

escravos

supracitados,

principiaremos o artigo com uma reflexão sobre os estudos dedicados à memória da escravidão e, em seguida, analisaremos a natureza das fontes que investigamos (os documentos inquisitoriais) em busca das memórias de populações oriundas do Índico, escravizadas e cristianizadas pelos portugueses.

Memórias de escravos: fontes, problemáticas e desafios Apesar de ser um campo de investigação bastante consolidado, ainda persistem algumas controvérsias e esquecimentos no que se refere à escrita da história da escravidão5. Conforme Françoise Vergès, não obstante a existência de trabalhos muito importante, ainda se faz necessário o mais

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Ver a definição de “Estado da Índia” em: THOMAZ, Luiz Filipe. De Ceuta a Timor. Lisboa: Difel, 1994, pp.207-210. 4 Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, Processo de Gonçalo Toscano (nº 4931); Processo de Domingos Silveira (nº 16081) e Processo de Gonçalo de Faria (nº 8089-1). Adiante, citaremos ANTT, TSO, IL. 5 Autores que abordam as reticências em torno do tema na historiografia europeia: COQUERYVIDROVITCH, Catherine. Enjeux politiques de l’histoire colonial. Marseille: Éditions Agone, 2009; EMMER, P. C. The Dutch Slave Trade, 1500-1850. New York: Berghan Books, 2006. 92

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amplo reconhecimento do papel fulcral desempenhado pelo tráfico de escravos e pela escravidão: no surgimento da modernidade, na construção da Europa e do mundo como conhecemos, na indissociabilidade entre essa história e a emergência dos direitos imprescritíveis da pessoa humana6. Além disso, tais reflexões iniciaram ou se desenvolveram com mais intensidade em determinados contextos acadêmicos (e nacionais) que outros, em função das diferentes agendas políticas, do papel dos movimentos sociais, das reflexões estimuladas por ocasião das respectivas datas comemorativas associados à história da escravatura e de sua abolição. No entanto, gostaríamos de destacar os campos de pesquisa caracterizados pelos esforços ligado à recuperação, sistematização e divulgação das memórias da escravidão e das “vozes dos escravos”. Acerca da produção dedicada à memória dos escravos, interessa-nos, neste artigo, destacar o esforço em coligir os registros relacionados às experiências de vida de populações escravizadas. A esse respeito destaca-se o interesse por relatos autobiográficos de escravos que viveram nos Estados Unidos e em espaços coloniais britânicos. Esse gênero narrativo desenvolveu-se a partir da década de 1760, quando foram redigidos textos autobiográficos que seguiam um modelo retórico complexo, baseado em narrativas de ex-escravos que eram bem acolhidas nos circuitos de leitura abolicionista, além de serem fortemente influenciadas por uma tradição de narrativas em torno da conversão ao protestantismo7. Destaca-se o relato de James Albert Ukawsaw Groniossow, redigido em 1770 e o mais antigo dos testemunhos deixados por escravos do mundo Atlântico. Adiciona-se o texto de Ottobah Cugoano (de

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VERGÈS, Françoise. Preface. Mémoires et patrimoines vivants de la traite négrière et l’esclavage. In Situ, n. 20, 2013, pp.2-12. Disponível em < http://insitu.revues.org/10265 >. Acesso em: 31 dez. 2015. 7 Para uma definição desse gênero narrativo: ANDREWS, William. To Tell a Free Story. Urbana, University of Illinois Press, 1986. 93

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1787) e de Olaudah Equiano, publicado em 17898. Em 1845, foi impressa a narrativa de vida de Fredrick Douglass. Oito anos depois, foi publicado Twelve years a slave de Solomon Northup. Em 1854, Mahommah Gardo Baquaqua, que foi escravizado no Brasil e também viveu nos Estados Unidos, teve sua obra – escrita a várias mãos – publicada9. O interesse por tais textos remonta ao período de vigência dos movimentos abolicionistas, mas desde o século XIX eram levantadas dúvidas sobre a identidade e veracidade das autobiografias de escravos. Com efeito, os primeiros estudiosos da história da escravidão americana os consideraram mera propaganda abolicionista. Mas nos anos 1930, no bojo da Works Progress Administration, desenvolveu-se um grande projeto que entrevistou mais de 2000 ex-escravos nos Estados Unidos10. Nas décadas de 1960 e 1970, momento de intensa atividade dos movimentos pelos direitos civis, alguns acadêmicos negaram que a escravidão pudesse ser plenamente compreendida sem ser considerada a perspectiva das vítimas, o que estimulou muitas publicações e reforçou a ideia de que as narrativas de escravos pudessem ser documentos credíveis11. A partir da década de 1970, ampliaram-se os esforços para que documentos dessa natureza se tornassem facilmente acessíveis12. Em suma, no ambiente acadêmico norte-americano tem ocorrido muitos esforços editoriais em torno das Slave Narratives, mas esta tendência não se manifestou, de forma similar em outros ambientes intelectuais, sobretudo naqueles em que não foi possível a preservação de narrativas de 8

ALPERS, Edward; HOPPER, Matthew. Parler en son nom? Comprendre les témoignages d’esclaves africains oroiginaires de l’Ocean Indien (1850 -1930). Annales HSS, n.4, pp. 799-828, jul.-ago.2008; EMMER, P. C., op.cit, pp.60-61,100. 9 Por exemplo, o Projeto SHADD, Studies in the History of the African Diaspora – Documents, dirigido por Paul Lovejoy. Disponível em < http://www.tubmaninstitute.ca/shadd >. Acesso em 11 jan. 2016. 10 Informações sobre o projeto desenvolvido durante a administração de Franklin Roosevelt: Disponível em < https://memory.loc.gov/ammem/snhtml/snhome.html >. Acesso em 19 jan. 2016. 11 ANDREWS, William. To Tell a Free Story. Urbana, University of Illinois Press, 1986. 12 Por exemplo, o Projeto SHADD, Studies in the History of the African Diaspora – Documents, dirigido por Paul Lovejoy. Disponível em < http://www.tubmaninstitute.ca/shadd >. Acesso em 11 jan. 2016. 94

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escravos, como foi o caso do universo francófono. Apesar do vasto império colonial e da existência da escravidão em próprio território metropolitano francês, esse gênero narrativo – o dos relatos autobiográficos de escravos – não se desenvolveu em língua francesa, entre outros fatores, em decorrência da distância territorial que separava os escravos (nas colônias) dos abolicionistas (que viviam na Europa e que poderiam ter recolhido as narrativas e as publicado), além de não ser desprezível a política de “esquecimento” sobre essa temática nas colônias francesas após o fim da escravidão, de acordo com Oudin-Bastide13. Uma forma de tentar superar a carência de relatos autobiográficos de escravos nos espaços francófonos foi a análise de fontes de diferente natureza, em busca das “vozes dos escravos”, que eram perceptíveis em resumos de reclamações, de pleitos apresentados a funcionários coloniais, nas transcrições de interrogatórios, na publicação – em jornais – de audiências de processos envolvendo escravos.

Assim, outras fontes,

especialmente as judiciais, forneciam a chave para apreender traços da vida material, do cotidiano das populações escravizadas, bem como as vozes do escravo14, os conflitos, as negociações e as relações de sociabilidade, a fim “de reconstruir uma imagem diferente de homens e mulheres escravos, atores de sua vida e não apenas simples vítimas”, apesar da coerção dos sistemas escravagistas15.

13

A autora analisa o caso das Antilhas francesas: OUDIN-BASTIDE, Caroline. Maîtres accusés, esclaves accusateurs: les procés Gosset et Vivié (Martinique, 1848). PUHR, 2015, p.15. Roger Little fornece outras explicações para a falta de relatos em francês: LITTLE, R. Pirouettes sur l’abîme: réflexions sur l’absence en français de récits autobiographiques d’esclaves noirs. In: MOUSSA, Sarga (dir.). Literature et esclavage. XVIIIe-XIXe siècles. Paris: Editions Desjonquères, 2010, pp.142-153. 14 Tais vozes são “palavras polimorfas”, exprimem-se em diferentes contextos e diante de diferentes interlocutores (mestres, magistrados, companheiros do mundo do trabalho, amigos, parentes), mas as transcrições dos processos judiciais nos legam um registro muito mais limitado. Por exemplo, os debates restringem-se à temas e à direção de quem conduz o processo, bem como existe o medo de ser reprimido de acordo com o que for declarado no tribunal. OUDIN-BASTIDE, Caroline, op. cit., p.47. 15 ROGERS, Dominique. Voix d’esclaves: Antilles, Guyane et Lousiane Françaises, XVIIIe - XIX e siècles. Paris: Karthala, 2013, pp.12-13. 95

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No espaço acadêmico brasileiro, as investigações que, a partir de fontes judiciais, almejaram captar as experiências de vida da população escravizada têm sido muito profícuas, com enfoques que privilegiam a agência de tais populações16. Além disso, cabe ressaltar os trabalhos que, em busca das memórias das populações escravas e de seus descendentes17, têm recorrido a fontes orais e arqueológicas18. Recentemente, os estudos em torno da memória da escravidão (e das memórias de escravos) têm se desenvolvido por meio de abordagens transversais, que articulam estudos arqueológicos, trabalhos de campo, análise de documentação existentes em arquivos, fontes impressas e orais.19

Memórias de escravos no império asiático português Duas considerações motivaram a elaboração deste artigo. A primeira delas é o predomínio de estudos sobre o tráfico de escravos e a escravidão no Atlântico, o que favorece o risco de serem projetadas as suas características sobre o Índico20. A escravidão no Oceano Índico inseriu-se em uma economia 16 SCHWARTZ, Stuart B. A historiografia recente da escravidão brasileira. In: __. Escravos, roceiros e rebeldes. Bauru, São Paulo: EDUSC, 2001, p.21-57. 17 MATTOS, Hebe. Remanescentes das comunidades dos quilombos: memória do cativeiro e políticas de reparação no Brasil. Revista USP, São Paulo, n.68, pp. 104-111, dez.-fev., 2005-2006. Disponível em < http://www.usp.br/revistausp/68/09-hebe-mattos.pdf >. Acesso em: 10 dez. 2015. Foram produzidos os filmes Memórias do Cativeiro (produção: LABHOI/UFF, 2005), Jongos, calangos e folias: música negra, memória e poesia (2007), Versos e Cacetes: o jogo de pau na cultura Afro-fluminense (2009), Passados presentes: memória negra no sul fluminense (2011), direção geral de Hebe Mattos e Martha Abreu. Disponível em < http://www.labhoi.uff.br/passadospresentes/ >. Acesso em: 10 dez. 2015. 18 Sobre a arqueologia da escravidão no Brasil: FERREIRA, Lúcio. Arqueologia da escravidão e arqueologia pública: algumas interfaces. Vestígios. Revista Latino-americana de arqueologia histórica, 3, 2009, pp.7-23. Disponível em < http://www.fafich.ufmg.br/vestigios/download/05/FERREIRA_Arqueologia-daescravidao-e-arqueologia-publica.pdf>. Acesso em: 22 dez. 2015. 19 DELPUECH, André; JACOB, Jean-Paul. Archéologie de l’esclavage colonial. Paris: Éditions La Découverte, 2014. As atas do Colóquio Les patrimoines de la traite négrière et de l’esclavage realizado em La Rochelle, em 2011, encontram-se na revista: In Situ, n. 20, 2013. Disponível em < http://insitu.revues.org/10296 >. Acesso em: 20 jan. 2016. Menciona-se o Projeto Rota dos Escravos, apoiado pela UNESCO, criado em 1994, que teve vários desdobramentos. Disponível em < http://www.unesco.org/new/en/culture/themes/dialogue/the-slaveroute/> . Acesso em: 20 jan. 2016. 20 Sobre a escravidão no Índico, citam-se alguns estudos: MÉDARD, Henri ; DERAT, Marie-Laure et al (org.). Traites et esclavages en Afrique Orientale et dans l’Océan Indien. Paris: Karthala, 2013; CHATERJEE, Indrani.

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de caráter global, em um sistema de trocas comerciais de longa distância e de longa duração, que permitiram vínculos entre a China, o Sul e o Sudeste da Ásia, o Oriente Médio e a África. Nesse sistema de trocas multidirecional, diferentes tipos de trabalho servil foram demandados ao longo do tempo, assim como povos de diferentes origens, culturas e cores tornaram-se escravos21. Logo, as diversas formas de escravidão no Índico precisam ser consideradas, as imprecisas fronteiras entre ser “livre” e “escravo”, bem como os diferentes agentes envolvidos no tráfico (europeus, árabe-muçulmanos, suaílis, gujeratis, chineses)22. Em segundo lugar, predominam os esforços ligados à reconstituição das memórias relativas às experiências de vida de homens e mulheres escravizados no espaço Atlântico e, consequentemente, o menor conhecimento sobre a trajetória de populações escravizadas nas sociedades banhadas pela Oceano Índico. Excetuam-se os casos de escravos que tiveram trajetórias extraordinárias e inspiraram a redação de biografias e análises históricas sobre os percursos singulares de ascensão social, como foi o caso de Malik Ambar, etíope escravizado, levado para Índia, onde se tornou um poderoso chefe militar no século XVII, no sultanato de Ahmadnagar23. Gender, Slavery and Law in Colonial India. Delhi: Oxford University Press, 1999; MATTOSO, Kátia de Queirós (dir.). Esclavages: Histoire d’une diversité de l’Océan Indien à l’Atlantique sud. Paris, L’Harmattan: 1997; ALPERS, E.; CAMPBELL, G.; SALMAN, M.(org.). Slavery and resistance in Africa and Asia. London/ New York: Routledge, 2005; PINHEIRO, Cláudio Costa. “No governo dos mundos. Escravidão, contextos coloniais e administração das populações”. Estudos Afro-asiáticos, v.24, n.3, pp.425-457, 2002; PINTO, Jeanette. Slavery in Portuguese India. Bombay, Himalaya Publishing House, 1992; THOMAZ, Luiz Filipe. A escravatura em Malaca no século XVI. Studia, 1994, nº.53, pp. 253-316; STANZIANI, Alessandro. Sailors, slaves and immigrants. Bondage in the Indian Ocean World, 1750-1914. Palgrave, 2014 ; CARREIRA, Ernestine. Globalising Goa (1660-1820). Change and Exchange in a Former Capital of Empire, Goa: Goa 1556, 2013; CARDOSO, Hugo C. The African slave population of Portuguese India Demographics and impact on Indo-Portuguese. In ANSALDO, Umberto. Pidgins and Creoles in Asia. John Benjamins Publishing Company, 2012, pp.91-114; JAYASURIYA, S.S. Les cafres de Ceylan: la chaînon portugais. Cahiers des Anneaux de la Mémoire, Nº 3, 2001, pp. 229–253. Sobre a escravidão no Pacífico, ver: SEIJAS, Tatiana. Asian Slaves in Colonial Mexico: From Chinos to Indians. Cambridge: Cambridge University Press, 2014; MANSO, Maria de Deus; SOUSA, Lúcio. Os portugueses e o comércio de escravos nas Filipinas (1580-1600). Revista de Cultura/ Review of Culture, Macau, nº 40, out. 2011, pp.7-21. 21 CAMPBELL, Gwyn. Slavery in the Indian Ocean. In: HEUMAN, Gad; BURNARD, Trevor (eds.), The Routledge History of Slavery, London: Routledge, 2011, p.61. 22 CAMPBELL, Gwy (org.). The structure of slavery in Indian Ocean Africa and Asia. London: Frank Cass, 2004, pp. vii- xxxii. 23 EATON, Richard. A Social History of the Deccan (1300-1761). Cambridge: Cambridge University Press, 2005. 97

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Uma das expectativas desse artigo é perscrutar as memórias de populações escravizadas nos espaços do Índico que não se tornaram célebres e cujas experiências de vida só podem ser apreendidas por meio de fragmentos, sem que seja possível narrar – de forma linear e sem interrupções – as suas trajetórias. De acordo com Clare Anderson, alguns homens e mulheres, que a autora define como “subalternos”, podem emergir dos arquivos em função de alguma circunstância dramática, mas desaparecem na obscuridade após a superação desse momento. Logo, a reconstituição de tais trajetórias de vida caracterizar-se-á pelo caráter fragmentário, em decorrência da própria natureza dos arquivos – que, por sua vez, reverberam a distribuição desigual de poder que vigorou nas sociedades coloniais, bem como as agendas políticas ligadas às formas de apropriação do passado colonial24. Acerca do Oceano Índico, não dispomos da abundância de relatos autobiográficos de ex-escravos, como os supracitados textos produzidos nas colônias britânicas do Atlântico e nos Estados Unidos. Edward Alpers e Matthew Hopper propuseram uma reflexão sobre os testemunhos de escravos africanos do Índico, elaborados entre 1850 e 1930, mais precisamente, discutiram como captar o que seriam as “vozes dos escravos” por meio de fontes que não foram redigidas por eles mesmos. Alpers e Hopper lançaram-se no desafio de apreender a fala – ou as tentativas de captar os relatos em primeira pessoa – de escravos africanos registrada em documentos existentes nos arquivos dos antigos impérios, em textos destinados a funcionários coloniais, cujo registro assumiu a forma final após diversas mediações (de funcionários e tradutores)25. Nesse artigo também nos debruçamos sobre o desafio de identificar as memórias de populações escravizadas no Índico, assim como as fontes que 24

ANDERSON, Clare. Subaltern Lives: biographies of colonialism in the Indian Ocean World, 1790-1920. New York: Cambridge University Press, 2012. 25 ALPERS, Edward; HOPPER, Matthew, op. cit., pp. 799-828. 98

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dispomos não se tratam de relatos autobiográficos de escravos, como as Slaves Narratives produzidas nos Estados Unidos e nas colônias britânicas. Como Alpers e Hopper, esperamos identificar relatos de populações escravizadas no Índico, mas tentamos identificar não apenas os relacionados a escravos provenientes da África Oriental, pois esperamos contemplar especialmente a variedade de povos “asiáticos” (oriundos da Índia, do Ceilão, da China, de Malaca, de Java, do Japão) escravizados pelos portugueses no Estado da Índia. No que concerne às populações escravizadas no Oriente Português que estudamos, elas deixaram apenas fugazes memórias e não escreveram sobre suas próprias experiências de vida. No entanto, algumas de suas reminiscências foram registradas em documentos produzidos pelos tribunais da Inquisição de Goa e de Lisboa. Com efeito, como sugeriu Carlo Ginzburg, ao serem inquiridos pelo Santo Ofício, os relatos orais dos réus foram transformados em registros escritos que podem ser deslindados pelo historiador26. A ação do tribunal da Inquisição de Goa incidiu sobre as populações escravizadas e convertidas ao catolicismo que viveram nos espaços que integraram o “Estado da Índia”, graças à ação de funcionários e de uma rede de colaboradores (confessores, clérigos regulares, bispos e comissários do Santo Ofício)27. Além disso, poderiam ser inquiridos pelo Santo Ofício de Goa por causa das denúncias de proprietários de escravos que fugiam28 ou

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GINZBURG, Carlo. O inquisidor como antropólogo. In: ______. O fio e os rastros. São Paulo, Companhia das Letras, 2007, p.280. 27 Sobre o funcionamento da Inquisição de Goa, ver: TAVARES, Célia Cristina da Silva . Santo Ofício de Goa: estrutura e funcionamento. In: VAINFAS, Ronaldo; FEITLER, Bruno; LAGE, Lana (orgs.). Inquisição em xeque: temas, controvérsias, estudos de casos. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2006, pp. 47-59; FEITLER, Bruno. A delegação de poderes inquisitoriais: o exemplo de Goa através da documentação da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Tempo. Revista do Departamento de História da UFF, v. 24, 2008, pp.127-148. Sobre os agentes e as instituições que atuaram na cristianização de Goa, ver: XAVIER, Ângela Barreto. A invenção de Goa. Lisboa: ICS, 2008. 28 Caso do escravo Paulo. ANTT, TSO, IL, Processo 3672. 99

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das acusações de outros escravos e forros com os quais os réus se envolviam em querelas29. Entre 1561 e 1623, no Repertório dos 3444 sentenciados pela Inquisição de Goa, localizamos 227 réus que foram designados explicitamente como escravos (escravas, cativos ou cativas).30 Cabe destacar que este montante não inclui os descritos como forros, pois nem todos que desfrutaram desse estatuto foram designados como tal,31 por isso presumimos que o número de alforriados julgados pela Inquisição de Goa naquele período tenha sido mais elevado32. Há ainda algumas referências a estatutos de dependência dúbios, que podem se referir tanto a pessoas que viviam como “livres” (ou que prestavam serviços ou “se vendiam” temporariamente) quanto àquelas que viviam de forma análoga à escravidão, como “faraz”, “moço” ou “moça”33. Por essa razão, é provável que o número de mulheres e homens submetidos à escravidão e sentenciados pela Inquisição de Goa naquele período tenha sido mais elevado.

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Exemplo do escravo Gabriel que foi inquirido pelo Santo Ofício de Goa, pela segunda vez, em agosto de 1585, após ter fugido do colégio dos dominicanos. Na ocasião, Joane, cativo dos dominicanos, casta curumbi, de dezesseis anos, denunciou o comportamento de Gabriel. A segunda testemunha foi o forro João Franco, casta java, pintor do colégio, de vinte anos. A terceira testemunha foi o “moço forro ladino” Domingos, casta guzarate, de aproximadamente treze ou quatorze anos. ANTT, TSO, IL, Processo 4937. 30 A metodologia consistiu na leitura do seguinte manuscrito e na sistematização dos dados em uma tabela com os campos: nome, sexo, idade, local de origem, local de morada, estatuto (escravo, forro), casta, nome e ofício do proprietário, informação sobre os pais, local e idade do batismo (batizado criança ou adulto), delito e sentença. Biblioteca Nacional de Portugal, Cód. 203, Reportorio Geral de três mil oitocentos processos, que sam todos os despachos neste Sancto Officio de Goa, & mais partes da Índia do anno de mil quinhentos & secenta & hum, que começou o dito Sancto Officio até o anno de mil & seiscentos & vinte e três. 31 Por exemplo, o forro Gonçalo Toscano foi listado no Reportório sem indicar esse estatuto (ex-escravo), mas foi possível identificar essa condição graças ao cruzamento com outra fonte documental (por termos localizado a confissão dele à Inquisição de Goa). Essa discussão foi desenvolvida em artigo de: HASSELL, Stephanie. Inquisition records from Goa as sources for the study of slavery in the Eastern domains of the Portuguese Empire. History in Africa, 42, 397-418. 32 Bruno Feitler produziu um relatório sobre essa fonte documental (“Uma base de dados dos processos da Inquisição de Goa,1561-1623”), além de disponibilizar o acesso aos dados em uma base, para consulta online. Disponível em < http://d284f45nftegze.cloudfront.net/reportorio/Feitler%20Uma%20base%20de%20dados%20site.pdf >. Acesso em 15 ago 2015. 33Sobre as categorias utilizadas na documentação portuguesa para designar escravos e escravas, ver a discussão em: SOUSA, Lúcio de. Escravatura e diáspora japonesa nos séculos XVI e XVII. Braga: NICPRI, 2014. Também é interessante vislumbrar as categorias presentes nas “Cartas de escravos alforriados de Goa” (Historical Archives de Goa, Cód. 860). 100

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Apesar de mais de duas centenas de escravos e escravas terem sido sentenciados no período supracitado, não foi possível localizar esses processos completos da Inquisição de Goa, em função da alegada destruição desse vasto material34. Até o momento localizamos apenas um número reduzido de processos, como o de Gabriel (abissínio e judeu falaxa), do forro Gonçalo Toscano (nascido no Balagate, na Índia), de Domingos Silveira (nascido no Ceilão). Posterior ao recorte cronológico dos casos listados no Repertório, há o processo de Paulo (mercador nascido em Surate, na Índia, capturado na África e que viveu como escravo em Bardez) de finais do século XVII35. Uma forma de contornar as vicissitudes relacionadas ao legado dos arquivos foi tentar identificar em que locais poderiam ser localizados os vestígios das experiências de vida de tais escravos, oriundos do império asiático português. Uma das alternativas foi a pesquisa dos processos da Inquisição de Lisboa cujos réus foram escravas e escravos (ou forros) oriundos do Estado da Índia. Localizamos alguns processos referentes a tais populações que foram transportadas para o reino de Portugal ou outras localidades que se encontravam sob jurisdição do tribunal da fé de Lisboa. Nesse artigo trataremos das memórias de um desses escravos remetidos ao reino de Portugal e sentenciado pela Inquisição de Lisboa, o indiano Gonçalo de Faria36.

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BAIÃO, A. A Inquisição de Goa. Lisboa: Academia das Ciências, 1945. Os documentos encontram-se em: ANTT, TSO: Gabriel, Processo IL-4937; Gonçalo Toscano (IL-4931); Paulo (IL- 3672); Domingos Silveira (IL- 16081). Neste artigo, analisaremos os casos de Domingos Silveira, Gonçalo Toscano (sentenciados pela Inquisição de Goa) e de Gonçalo de Faria (IL- 8089-1), escravizado na Índia e em Portugal, mas sentenciado pela Inquisição de Lisboa. Como o caso de Paulo remete ao contexto do final do século XVII, exigiria problematizações que fugiriam ao escopo desse artigo, por essa razão não será discutido. Já o caso de Gabriel foi estudado por: MARCOCCI, Giuseppe. Tra cristianesimo e Islam: le vite parallele degli schiavi abissini in India (secolo XVI). Società e storia, nº.138, 2012, pp. 807-822; HASSELL, Stephanie, op.cit., pp.397-418; FARIA, Patricia S. de. Gabriel e Vitória Dias: fragmentos de vida de escravos do Oriente Português processados pela Inquisição (séculos XVI e XVII). In: GORENSTEIN, Lina et al; Centro de História e Cultura Judaica. (Org.) Inquisição Revisitada. Rio de Janeiro: Jaguatirica, 2015, v.1, pp. 179-200. 36 ANTT, TSO, IL, Processo 8089-1. 35

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Em linhas gerais, as memórias desses escravos provenientes do império asiático português consistem em fugazes reminiscências sobre o cativeiro, as condições em que foram compelidos por portugueses ou líderes asiáticos a atuar em grupos armados, a trabalhar nas embarcações, a desempenhar atividades domésticas ou outros tipos de trabalho. Por vezes, é possível elucidar aspectos ligados à vida cotidiana de tais escravos (como as redes de sociabilidade construídas) ou aos sentimentos (afetos nutridos por parentes, expectativas de desfrutar de uma vida melhor, medo das punições pelas fugas empreendidas). No entanto, essas memórias são fragmentadas, especialmente no que concerne aos relatos de homens e mulheres capturados durante a “infância” e que, por essa razão, preservaram poucas lembranças sobre suas origens (como os grupos de parentela, o nome dos pais, o local de nascimento). Segundo James Sweet, o impacto psicológico que a escravatura teve sobre as crianças merece ser mais investigado. A partir de fontes da Inquisição, o autor observou casos de escravos nascidos em África que foram separados muito novos de seus familiares e, por essa razão, não mantiveram quaisquer memórias sobre eles. Contrariamente, quando eram capturados em idade em que eram capazes de “raciocinar e compreender, a sua terra natal ficava impressa de forma indelével na sua consciência”37. Além disso, é preciso considerar que existiram intervalos variáveis entre a vivência dos episódios relatos e o momento em que a narrativa foi realizada (e transcrita pelos portugueses), o que invariavelmente afetava as recordações ou a forma de perceber o passado38. Em alguns casos, é importante adicionar que as falas dos escravos foram traduzidas por intérpretes, bem como muitas das informações específicas sobre lugares,

37

SWEET, James H. Recriar África: cultura, parentesco e religião no mundo afro-português (1441 -1770). Lisboa: Edições 70, 2007, pp.89-92. 38 ALPERS, Edward; HOPPER, Matthew, op.cit., .4, pp. 799-828, 102

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ritos, nomes asiáticos foram transcritos conforme o – parco –conhecimento dos agentes da Inquisição sobre as culturas locais. Por fim, é preciso reconhecer os desafios de tentar captar as memórias dessas populações escravizadas por meio das fontes inquisitoriais, pois tais relatos foram produzidos em circunstâncias de notória coerção, de pressões psicológicas, de privação da liberdade e mesmo de violência física39. No entanto, a vasta produção historiográfica que tentou deslindar as crenças e as experiências de vida de escravos, com base em fontes inquisitoriais, encoraja esse empreendimento40.

Escravos e Escravas no “Índico Português” Antes de analisarmos as fugazes memórias de populações oriundas das sociedades do Índico, escravizadas e convertidas pelos portugueses ao catolicismo, cabem algumas considerações sobre quem seriam, isto é, as origens e os estatutos desfrutados. A análise das fontes inquisitoriais41 sugere a diversidade de origens de tais populações, as ligações entre diferentes mercados (de aquisição e de venda de populações escravizadas) e a complexa fronteira entre ser “livre” e ser “escravo” nas sociedades que emergiram em torno desse sistema, desses mundos articulados pelo Oceano Índico. Ainda que o processo de nomeação, de classificação dos grupos étnicos do Índico fosse dinâmico – e as populações nativas também participaram 39

GINZBURG, Carlo, op.cit., p.280. Destaco os trabalhos de: LAHON, Didier. Les archives de l’Inquisition Portugaise. Sources pour une approche anthropologique et historique de la condition des esclaves. Revista Portuguesa de Ciência das Religiões, v. 5/6, 2004, pp. 29-45, Disponível em < http://recil.grupolusofona.pt/bitstream/handle/10437/5596/archives_inquisition_portugaise.pdf?sequence =1 >. Acesso em 20 nov 2015 e de CALAINHO, Daniela. Metrópole das mandingas: religiosidade negra e Inquisição portuguesa no Antigo Regime. Rio de Janeiro: Garamond, 2008. Ver também: SWEET, James, op.cit., passim; MARCOCCI, Giuseppe, op.cit., pp. 807-822; HASSELL, Stephanie, op.cit., pp.397-418. 41 Refiro-me aos processos, às confissões e ao Reportório mencionados. 40

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deles, podendo ajudar a promover uma imagem positiva sobre os grupos com os quais se identificavam e depreciar os rivais diante dos portugueses–não podemos negligenciar que, nas fontes mencionadas, a diversidade de origens, de culturas e de estatutos dessas populações foi percebida e traduzida especialmente pelos agentes portugueses, por inquisidores e eclesiásticos, o que implicou a redução dessa diversidade a um conjunto de categorias limitadas e genéricas, que nem sempre corresponderam às percepções que as populações nativas tinham de si mesmas. Na documentação inquisitorial, geralmente as populações escravas provenientes de diferentes regiões da Ásia eram classificadas como “cativos índios”. Às vezes, havia uma tentativa de especificar se era um escravo “china”, “japão”, “jaoa” (provavelmente associado à Java), “chíngala” (do Ceilão). Escravos oriundos da África Oriental poderiam ser designados como “cafres”, “abexins” (abissínios, da Etiópia) e às vezes como “escravo preto”. Assim, a classificação dessas populações escravizadas costuma ser bastante genérica, além de lhes serem atribuídas categorias que podem se referir tanto a grupos étnicos quanto a origens geográficas, nem se tratar de local de nascimento, mas da região onde foram adquiridos. Acerca dos escravos oriundos da Índia, é possível identificar um esforço de especificar qual o grupo étnico, geralmente descrito como sendo de uma das seguintes “castas”: canarim, curumbi, canará, naitéa, badagá, baneane, guzarate, decanim, mogol, bengala42. Além de lidarmos com categorias empregadas por inquisidores, eclesiásticos e outros agentes portugueses para designar as populações escravizadas, temos o desafio – destacado por Indrani Chaterjee – de evitar a projeção retrospectiva dos atuais limites territoriais, de modo a forjamos fronteiras e atribuirmos identidades culturais decorrentes delas aos escravos analisados. 42

Isto é de suma relevância para analisar as memórias de

Descrições extraídas de BNP, Cód.203. 104

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populações que, de forma compulsória, foram retiradas de seus locais de origem, capturadas, afastadas de seus grupos de parentela, forçadas a atravessar reinos e oceanos ou que escaparam – e atravessaram – inúmeras fronteiras políticas e culturais. Ainda que inquisidores e eclesiásticos tentassem instituir rígidas fronteiras (religiosas e políticas) e enquadrar estas populações em categorias delimitadas de espaço, crença e estatuto, a vida cotidiana das populações escravizadas a levava a experimentar, de forma contingente e móvel, tais noções de espaço, de confissão religiosa e de status43. o que pretendemos analisar a partir dos estudos de caso de Domingos Silveira, Gonçalo Toscano e Gonçalo de Faria. De Goa a Lisboa: memórias de escravos e forros Como primeiro estudo de caso, destaco as breves reminiscências do escravo de origem cingalesa chamado Domingos Silveira, que se encontrava em Goa em finais do século XVI, servindo ao português cristão-velho Melquior Silveira44. Cabe ressaltar que, em Goa, centro do império asiático português, funcionou um importante mercado de escravos trazidos da África Oriental, de diversas regiões da Índia, do Ceilão e de demais regiões asiáticas. No início do século XVII, havia cerca de 8000 escravos em Goa (sem considerar os que viviam nas províncias adjacentes) que serviam a oficiais do Estado da Índia, clérigos, inquisidores, portugueses e mestiços moradores, desempenhavam diferentes atividades como o trabalho pesado nas embarcações, o labor agrícola, a pesca, os serviços domésticos, a venda de produtos na cidade, a guarda pessoal de fidalgos e autoridades, o trabalho compulsório nas galés do Estado da Índia45. Os escravos também poderiam

43

CHATERJEE, Indrani & EATON, Richard (ed.). Slavery & South Asian history. Indiana University Press, 2006, pp. 22-23. 44 ANTT, TSO, IL-16081. 45 SUBRAHMANYAN, Sanjay. O Império Asiático Português. 1500-1700. Difel, 1995. 105

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ser comprados naquela cidade e levados para outras regiões do império lusoasiático ou mesmo para Portugal, o que ocorreu com Domingos Silveira, por ele ter viajado para o reino na companhia de seu amo46. Em janeiro de 1590, Domingos Silveira retornava à Goa na companhia de seu senhor47. As tarefas desempenhadas por Domingos Silveira parecem ter sido, sobretudo, garantir a segurança de seu amo, função exercida por muitos escravos em Goa, local em que abundavam escravos domésticos e membros da guarda pessoal de portugueses e mestiços. Existia o imaginário em torno da propensão dos escravos à prática de delitos e à devassidão, de modo a serem restringidos de andarem pela cidade no período noturno48. Há muitos indícios de escravos que, por ordem de seus senhores, envolviam-se em conflitos, vinganças, atos de violência49e, no caso de Domingos Silveira, ele foi punido por ter se envolvido em brigas e protegido seu amo (Melquior Silveira) e o sogro dele (o juiz ordinário de Goa Inácio Monteiro) no corredor do cárcere da penitência da Inquisição de Goa. A fim de tentar captar a narrativa do escravo, as tensões associadas ao momento narrado, optamos pela reprodução de um longo trecho, que corresponde à transcrição do relato de Domingos Silveira aos inquisidores, na primeira sessão, em 14 de maio de 1590, em que ele disse: “que havera dois meses pouco mais ou menos em um sábado antes do dia da Purificação do Nosso Senhor estando ele Réu perto do seu senhor Melquior Silveira”, que era “genro de Inácio Monteiro viu um Cafre com um bambu nas mãos contra 46

Informação detalhada no processo do amo: ANTT, TSO, IL - 12800, Processo de Melchior Silveiro. ANTT, TSO, IL - 12800, Processo de Melchior Silveiro, fl.2 48 Carta de lei de D. Filipe II de 1602: “havendo eu respeito a muita frequência de mortes, roubos, e outros delitos, que os escravos cativos na minha cidade de Goa cometem de noite com devassidão [...] mando que todo escravo cativo [...] que passar de quinze anos para cima, for achado de noite depois das sete horas, seja perdido para as galés de minha ribeira [....]e levando o escravo arma ou pau [...] incorrerá nas mais penas [...] e sendo achados mais de dois escravos juntos depois do toque do sino com armas ofensivas, morreram pelo tal caso morte natural. GARCIA, José Ignácio de Abranches. Archivo da Relação de Goa. Nova Goa: Imprensa Nacional, 1872, doc.17, pp.15-16. 49 Por exemplo, Manoel Martins de Madeira (escrita em Goa, em 25 de janeiro de 1664) menciona que “uns cafres de Manoel Corte Real de Sampaio” entraram em casas de parentes do vice-rei “a terem desavenças com as suas negras”. O vice-rei ao saber “que andavam os ditos cafres em suas casas dando nas negras”, isto é, batendo nelas, dirigiu-se para lá com “alguns criados, e amigos fidalgos”. Os cafres estavam armados com azagaias e bacamartes (Arquivo Histórico Ultramarino, Conselho Ultramarino, cx. 46, doc.38). 47

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um escrivão, e o dito Inácio Monteiro”. Por causa disso, ele teria acudido Inácio Monteiro, juiz ordinário de Goa, “com espada nua e fez fugir o cafre”50. Imediatamente, “o dito Inácio Monteiro correu atrás do dito cafre e se meteram no corredor do cárcere da penitência” do Santo Ofício de Goa, isto é, o juiz e os escravos tentaram penetrar no recinto estando a porta Gonçalo Afonso que era servo do alcaide da penitência antes que entrasse requereu da parte da santa inquisição ao dito juiz [Inácio Monteiro] que não entrasse dentro, tendo as portas cerradas da rua que vai para o corredor, e o dito Inácio Monteiro as abriu e entrou por força, e o dito Gonçalo Afonso as tornou a cerrar e ele as empurrou e tornou a abrir e entrou dentro no dito corredor com seu senhor Melchior Silveira que vinha em ajuda do dito juiz com um montante51 nu nas mãos, e ele Réu com uma espada nua, e tanto que ele Réu foi dentro do corredor, viu vir dois cafres com espadas nuas, nas mãos, e vendo os arremeteu para eles e feriu um sobre a sobrancelha e em um braço, e andando o dito juiz a mais gente que com ele foi entre os quais estavam com armas nuas o dito seu senhor com um montante, e ele Réu e Gaspar Nogueira, e andando assim nestas brigas um inquiridor que se chama Gonçalo da Silva requereu da parte d’el Rei que prendesse o dito Gonçalo Afonso: e então o dito juiz lançou mão do dito Gonçalo Afonso: e indo recuando o dito Gonçalo Afonso: para se meter em casa de Pero Fernandez o dito juiz entrou com ele dentro e o senhor dele Réu, e ele dito Réu [lá] prenderam o dito Gonçalo Afonso e o trouxeram para fora assim como estava com calções e camisa e descarapuçado, o levou novo o dito juiz a sua casa e lá o entregou ao ouvidor da cidade Luís da Silva que o levou preso ao tronco52

Cabe destacar que a narrativa de Domingos Silveira sobre os confrontos no corredor do cárcere da Inquisição apresenta detalhes como o nome dos envolvidos na contenda, alusão aos escravos que participaram do conflito, abertura de portas à força, armas utilizadas, ferimentos causados, enfim, em poucas palavras descreveu um dia de intenso movimento, além de justificar sua entrada no corredor da penitência: “não por ódio que tivesse aos oficiais e ministros do Santo Ofício da Inquisição nem por querer fazer contra Ela

50

ANTT, TSO, IL-16081, fl.2. Espada grande. 52 ANTT, TSO, IL-16081, fl.2-2v. 51

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cousa alguma senão por respeito de seu senhor entrar dentro”53. Em suma, Domingos Silveira alegava a obediência ao seu senhor, a impossibilidade – na condição de escravo – de se negar a protegê-lo e a seu sogro. Domingos Silveira fornecia tais informações diante da tensão entre recuperar suas reminiscências sobre o ocorrido e relatar (aos inquisidores) o que talvez lhe pudesse acarretar as menores punições. Na segunda sessão, em maio de 1590, Domingos Silveira disse aos inquisidores “que ele era de vinte anos pouco mais ou menos natural de Ceilão filho de pais gentios”54. Na documentação inquisitorial, ele foi descrito como escravo “casta chíngala”, ou seja, a noção de casta remetia à naturalidade no Ceilão, sem que fosse indicado com mais precisão em que local, cidade ou qual sua etnia. O mesmo acerca da seita a que os genitores pertenciam, descritos apenas como pais “gentios”, nem são mencionados os nomes dos genitores. Não há informações sobre como ele se tornou escravo, mas há o indício de que ele teria sido afastado de sua terra natal (o Ceilão) ainda bem pequeno, por ter dito que havia sido batizado em Goa com cerca de dez anos de idade (em torno do ano 1580) e cujo padrinho foi Duarte de Antônio Pinto, meirinho da Inquisição de Goa. Disse que ainda não havia sido crismado, mas que havia aprendido a doutrina cristã na casa de seu amo, cujos rudimentos da fé demonstrou conhecer, pois disse o Pai Nosso, a Ave Maria, o Credo, a Salve Regina e os Mandamentos aos inquisidores, além de asseverar que se confessava nas quaresmas e que há cinco anos lhe era administrado o sacramento da eucaristia55. Não teria sido por motivos de debilidade da fé que Domingos Silveira se tornava alvo do inquérito do Santo Ofício de Goa, mas por consequências desastrosas de seu ofício, que foram entendidas como desrespeito, ameaça à Inquisição.

53

ANTT, TSO, IL-16081, fl.3. A escrita foi modernizada. ANTT, TSO, IL- 16081, fl.3, Processo de Domingos Silveira. 55 ANTT, TSO, IL- 16081, fl.3. 54

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Ainda na década de 1590, mas em outro contexto da presença portuguesa, na chamada Província do Norte, outro asiático escravizado viveu situações controversas e se tornou alvo do Tribunal do Santo Ofício. Em 1597, Gonçalo Toscano, nascido na Índia, na região do Balagate, apresentou sua confissão aos inquisidores de Goa, período em que ele teria cerca de 23 anos de idade. Na lateral direita do traslado do documento, consta a informação de que o réu havia sido denunciado por sete pessoas, mas o manuscrito localizado contém apenas as sessões em que o indiano foi inquirido e a sentença, sem tais testemunhos56. As informações apresentadas por Gonçalo Toscano mencionam, sobretudo, as constantes travessias, fugas, conversões e regressos ora a comunidades muçulmanas ora a católicas, evidentemente por não se tratar de uma narrativa livre, mas orientada pelas preocupações dos inquisidores em relação aos sentimentos e práticas religiosas do indiano. Por essa razão, Gonçalo Toscano relatou muito pouco sobre sua vida anterior ao batismo cristão, bem como não esclareceu em que condições havia se tornado escravo de Mateus de Carvalho, a quem servia em Baçaim – um dos espaços que se encontravam sob a influência lusa na Província do Norte. O seu estatuto, na ocasião em que se confessou aos inquisidores de Goa, foi descrito como de homem “forro”. Gonçalo Toscano relatou que, após viver cerca de nove anos como católico, fugiu de Baçaim por ser maltratado por seu mestre. A que se pese a justificativa tão recorrente em processos inquisitoriais de escravos que escapavam para terras islâmicas57, os maus-tratos, o relato de Gonçalo Toscano interessa especialmente por ele aludir ao destino preciso de sua fuga: a sua terra natal, Galiana, atual Kalyam, onde ainda vivia a sua mãe. O

56

ANTT, TSO, IL-4931, fl. 2, “Este réu ao tempo [de] sua confissão esta[va] delato por sete [...] que sabiam passar-se [para] terra de mouro e lá fazer-se mouro e p[or esse] respeito foi a público”. 57 SCHWARTZ, S. Cada um na sua lei. São Paulo, Companhia das Letras, 2009.

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encontro com sua genitora, a convivência com seu grupo de parentela, a realização de ritos islâmicos coletivos – provavelmente no seio de uma pequena confraria de orientação sufista– ocuparam um espaço considerável de seu relato. Não mencionou se teria vivido na condição de dependente de alguém, nem como sobreviveu durante os dois anos em que aderiu ao islã. Lacônico, explicou ter se arrependido de viver como um muçulmano e, por essa razão, retornara para a casa de seu antigo amo, em Baçaim. Após saber das experiências de seu escravo, Mateus Carvalho o orientou a se confessar a um jesuíta e, depois de “descarregar” sua consciência, Gonçalo Toscano viveu como católico durante três anos58. Os relatos seguintes são repletos de referências a fugas, prisões, à participação em guerras contra os cristãos em territórios disputados pelos sultanatos de Ahmadnagar, Guzerate, pelo império mogol e pelos portugueses, no final do século XVI. Deste modo, as reminiscências de Gonçalo Toscano podem fornecer indícios de como lutou pela sobrevivência em tal contexto político-militar e experimentou estatutos diferentes de dependência e “liberdade”, ainda que suas lembranças sejam omissas em muitos aspectos. Apesar das muitas lacunas, as memórias de Gonçalo Toscano permitem algumas reflexões sobre o que significava “ser escravo” e “ser livre” nas sociedades por onde transitou. Prestou serviços a Mateus Carvalho no seio de uma comunidade católica, atuou como combatente em tropas muçulmanas que lutaram contra cristãos, foi aprisionado em terras cristãs e em fortalezas islâmicas, viveu como foragido de ambas sociedades, trânsfuga desses dois mundos. Por fim, foi entregue à Inquisição de Goa. Em 1597, após ser emitida sua sentença, os inquisidores da Índia o enviaram para Lisboa, para o Conselho

58 ANTT,

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Geral do Santo Ofício59 junto com cópia do processo60. No ano seguinte, os inquisidores de Goa enviaram uma segunda cópia, pois a primeira versão se encontrava em uma nau que sofrera um incêndio61. Em função dessas vicissitudes –ter sido considerado um réu propenso a retroceder ao islã, caso continuasse a viver na Índia, e por essa razão, ter sido enviado ao reino junto com uma cópia do processo – foi possível que as fugazes memórias de Gonçalo Toscano sobrevivessem e nos permitissem deslindar alguns lampejos, algumas passagens de sua vida que emergem no processo inquisitorial e desaparecem sem que possamos traçar todo o seu itinerário. O terceiro estudo de caso aborda as memórias de Gonçalo de Faria, que nasceu em torno de 1609 na Índia, na Província do Norte. O local preciso de nascimento era Damão, região que foi disputada por portugueses, pelos sultanatos de Bijapur e de Ahmadnagar e o Império Mogol, além de despertar a cobiça de outros impérios europeus, em decorrência de seus portos e de sua significativa atividade agrícola62. Disse ter sido batizado em Damão, além de ter recebido o sacramento da confirmação do Arcebispo de Goa, Dom frei Aleixo de Meneses. Ademais, teria aprendido a ler, a escrever e a doutrina cristã com os jesuítas. Além desta distinção, pois não era comum que escravos soubessem ler e escrever, é notória a capacidade de se recordar de muitos detalhes concernentes à sua origem e aos locais por onde se deslocou. As memórias de Gonçalo de Faria sobre seus familiares são extraordinárias, se compararmos com os relatos de outros escravizados inquiridos pelo Santo Ofício de Goa que analisamos. Recordou-se dos nomes dos genitores, Jerônima e Vasco Homem: “Disse que ele nascera e se criara na cidade de Damão na Índia fronteira dos portugueses e era filho de Vasco

59

ANTT, TSO, IL – 4931, fl.24-26. BAIÃO, Antônio. A Inquisição de Goa. Lisboa: Academia das Ciências: 1945, v.2, doc. LIX, p. 259. 61 BAIÃO, Antônio, op. cit., Doc. LX, pp. 270-271. 62 ANTT, TSO, IL, Processo 8089-1. 60

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Homem português filho da Índia, e de Jerônima mulher da Índia, da qual o houve o dito seu pai não de legítimo matrimônio”63. Sobre os irmãos, Gonçalo de Faria citou apenas o nome daquele que estava vivo, Antônio Leão, mas fez breves referências a duas irmãs que haviam morrido quando ainda eram crianças e a uma meia-irmã (filha apenas de sua mãe). Discorreu sobre os nomes dos avós maternos (Isabel e Mateus), do avô Antônio Leão, do tio Manuel Homem (irmão de seu pai) e da tia Ângela (irmã de sua mãe)64. Em Damão, Gonçalo de Faria vivia com seu amo, João Freire de Sousa, que era casado com Dona Boaventura. Não há informações sobre como ele se tornou um escravo nem se sua mãe também era uma mulher cativa – o que poderia explicar o estatuto desfrutado por Gonçalo de Faria, transmitido pela genitora. Similarmente, não sabemos se a mãe dele também vivia no mesmo conjunto de casas, de habitações que pertenciam a João Freire de Sousa, entretanto, o relato de Gonçalo de Faria sugere que possam ter existido interações entre a mãe dele e o amo. Ao menos esta era a suspeita de Dona Boaventura, que considerava Gonçalo de Faria, na verdade, fruto do relacionamento extraconjugal de seu marido com Jerônima. Com efeito, Gonçalo de Faria reclamou de ter sido vítima de constantes maus-tratos de Dona Boaventura, que descontava seu rancor no escravo. Como mencionamos, uma das justificativas utilizadas por escravos que fugiam eram os maus-tratos que sofriam de seus senhores. Nesse sentido, Gonçalo Faria mencionou que fugiu “movido do desgosto e da má vida que lhe dava sua senhora Dona Boaventura por ela cuidar que ele confidente era filho de seu marido João Freire de Souza e da Jerônima”65. Não trataremos, neste artigo, das questões concernentes à relação entre escravidão, violência sexual, mestiçagem no Império Português, apenas gostaríamos de destacar 63

ANTT, TSO, IL, Processo 8089-1, fl. 3v. ANTT, TSO, IL, Processo 8089-1, fl. 8. 65 ANTT, TSO, IL, Processo 8089-1, fl. 3v. 64

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que, se era uma tópica recorrente alegar que a fuga era motivada pela violência praticada pelos senhores de escravos, o que Gonçalo de Faria adiciona é a percepção dele sobre porque ele era maltratado. Na origem dos maus-tratos, segundo Gonçalo de Faria, estava a convicção de sua dona de que ele era filho bastardo de seu marido. Por esta razão, o escravo teria fugido de Damão, em torno de 1623, quando teria entre quatorze e quinze anos. Seu destino foi Surate, local em que viviam diferentes comunidades religiosas, como jainas, hindus, muçulmanos. Disse aos inquisidores que fugiu para Surrate terra de mouros distante de Damão vinte e oito léguas, e dali se passou a Baroche também cidade de mouros e entrando mais pelo sertão dentro foi ter a Amodavá também cidade de mouros, onde se pôs com um mouro capitão de cavalos que chamavam Mahamed Cão, e com ele se foi para uma aldeia dali duas léguas chamada Biramugão66

O capitão Mahamed Cão (possivelmente Mohammed Khan) teria lhe dito que“não lhe faltaria nada oferecendo-lhe cavalos, vestidos e mulher”, de modo que “movido [...] do tal oferecimento e da necessidade em que estava lhe respondeu que queria ser mouro”67. Logo, Gonçalo de Faria identificou na conversão ao islã uma oportunidade de desfrutar de uma vida melhor, passou a ser reconhecido pelo nome de Silan Khan, adotou vestimentas típicas de um muçulmano daquela região e praticou os rituais correspondentes à nova confissão religiosa. Viveu como um muçulmano até encontrar um grupo de portugueses e alguns jesuítas, com os quais partiu para Diu – local em que havia um povoado cristão, por se tratar de outra área sob a administração portuguesa na Província do Norte. Tal como Gonçalo Toscano teria feito, Gonçalo de Faria também retornou para a casa de seu antigo amo, João Freire de Sousa, 66 67

ANTT, TSO, IL, Processo 8089-1, fl.4-4v. ANTT, TSO, IL, Processo 8089-1, fl.4v. 113

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um possível indício de que a vida em terras muçulmanas também tenha sido penosa. Ao seu amo, Gonçalo de Faria não revelou detalhes sobre suas experiências religiosas vividas em territórios islâmicas por onde passou. Posteriormente, Gonçalo de Faria foi vendido, em Goa, para um marinheiro, que o carregou na Nau Sacramento, com destino ao reino de Portugal. Em Lisboa, o capitão dessa mesma embarcação chamado Sancho de Faria o comprou68. Poucos foram os meses a serviço desse capitão português até que Gonçalo de Faria fugisse e vivesse escondido durante oito dias na cidade de Lisboa. Atemorizado, sem saber como poderia ser punido por seu amo – o que deveria ser um receio constante para um escravo que cresceu sofrendo maus-tratos na Índia – ele procurou um padre da Igreja de São Roque de Lisboa em busca de apoio, ocasião em que confessou suas controversas experiências de vida. Por essa razão, o padre o encaminhou à Inquisição de Lisboa, que registrou as memórias de Gonçalo de Faria que mencionamos. *** Três histórias de vida diferentes que partilham, ao menos, a intensa mobilidade. Domingos Silveira nasceu no Ceilão, foi levado para Goa (onde teria sido batizado na fé católica), carregado para Portugal e, de volta à cidade de Goa, envolveu-se em um episódio dramático que o levou a ser inquirido pelo Santo Ofício, em 1590. Domingos Silveira, seu amo e o sogro (o juiz ordinário de Goa) foram considerados culpados, responsáveis por atos de desacato ao Santo Ofício. O escravo foi punido com o degredo para galés, por um ano, além de receber 50 açoites à porta do corredor da penitência69. 68 ANTT,

TSO, IL, Processo 8089-1, fl.6v. ANTT, TSO, IL- 16081. Os inquisidores aludem à bula do Papa Pio V para respaldar o julgamento. A punição do juiz Inácio Monteiro foi criticada pelo cardeal arquiduque D. Alberto, em carta remetida aos

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No caso de Domingos Silveira, só localizamos referências a deslocamentos forçados, que o fizeram cruzar o Índico, de Goa a Lisboa, em seguida retornar para a capital do Estado da Índia, em 1590, ocasião em que se envolveu no conflito, no drama (no sentido proposto por Clare Anderson) que fez com que vestígios de sua existência emergissem nos arquivos70. Nada mais sabemos sobre sua vida após à entrega dele ao meirinho das galés, para cumprir a pena. Gonçalo Toscano relatou diversas experiências de vida, aludiu a sentimentos, mencionou vários deslocamentos realizados em territórios na Província do Norte e em terras adjacentes. Comparativamente, foi o que forneceu mais informações sobre as crenças e práticas religiosas adotadas durante suas deambulações. Enviado para Goa, foi sentenciado pelos inquisidores locais, em seguida, remetido para o reino de Portugal. Gonçalo de Faria foi transportado de Goa para Lisboa por um marinheiro, que o vendeu ao capitão Sancho de Faria. Graças à confissão de Gonçalo de Faria aos inquisidores de Lisboa sabemos como esse indiano chegou à Lisboa, nas embarcações do “Carreira da Índia”, tal como outros milhares de homens e mulheres escravizados no Índico. Seu processo é o que apresenta mais detalhes sobre os antepassados, sobre a família que o escravizava, os prováveis suplícios que sofreu por causa de sua dona, as fugas, os deslocamentos através de territórios islâmicos na Índia e como ele chegou a Portugal71. As memórias que tentamos recuperar desses três homens – que foram escravizados e convertidos ao catolicismo pelos portugueses – foram inquisidores de Goa. Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, 025,01,001 n.205. ANTT, TSO, IL- 12121 (Processo de Inácio Monteiro Ravasco). 70 ANDERSON, Clare, op.cit., passim. 71 De fato, alguns oficiais portugueses da Carreira da Índia recebiam o privilégio de carregar um ou dois escravos sem pagamento de fretes. Ao chegar ao destino, a tripulação poderia vender tais escravos a novos proprietários que vivessem em Portugal, Espanha ou nos espaços coloniais. SAUNDERS, A.. História social dos escravos e libertos negros em Portugal (1441-1555). Lisboa, Imprensa Nacional/ Casa da Moeda, 1994, p. 15, 106; FONSECA, Jorge. Escravos e senhores na Lisboa quinhentista. Lisboa, Colibri, 2010, pp. 68, 136; STELLA, Alessandro. Histoire d’esclaves dans la Péninsule Ibérique. Paris, Éditions EHESS, 2000. 115

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extraídas das transcrições dos relatos que, na condição de réus, eles apresentaram aos inquisidores. Memórias que não foram redigidas por eles mesmos. Evidentemente, não sabemos que palavras foram desprezadas, que informações foram consideradas de menor importância a ponto de não serem registradas. Lacunares, incompletas, mas que se tratam de memórias que nos permitem apreender uma dimensão mais prosaica das trajetórias desses homens escravizados, por isso mesmo tão essenciais para elucidar os desafios concretos ligados à sobrevivência (sustento, proteção), à dependência (obediência, fugas, reconciliação, negociação), aos temores e às expectativas de desfrutar de melhores condições de vida.

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