De Loucuras e Solidão, entre façanhas, estirpes e possibilidades no tratamento da saúde mental

June 19, 2017 | Autor: R. Cunha de Oliveira | Categoria: Direitos Fundamentais e Direitos Humanos
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DE LOUCURAS E SOLIDAO, ENTRE FAÇANHAS, ESTIRPES E POSSIBILIDADES NO
TRATAMENTO DA SAÚDE MENTAL


"O primeiro da estirpe está amarrado a uma árvore e o último
está sendo comido pelas formigas".
(Gabriel Garcia Márquez)

Resumo: O presente artigo traz a reflexão sobre a mudança de panoramas das
políticas públicas de saúde do Estado brasileiro nos últimos anos, com base
na efetivação dos acordos internacionais e na quebra de antigos modelos
assistenciais, o que possibilitou um enfoque mais humanizado no tratamento
de doenças ou transtornos mentais e também melhor capacitado para
compreender uma visão de mundo das pessoas acometidas de transtornos
mentais. Além disso, retrata a influência da condenação do Brasil no âmbito
da OEA, pela violação de direitos humanos dos portadores de deficiência
mental, nesse processo de transformação da saúde pública. Em razão de ser
um trabalho em prol da promoção de uma cultura de Direitos Humanos,
recorrer-se-á durante seu desenvolvimento á forma mais lúdica da loucura
traduzida pelo literário fantástico. Para muitos, tido com um surrealismo,
mas em um conceito amplo, sendo a fantasia algo capaz de concretizar
utopias. Sobretudo, trata-se de um relato de sonhos e anseios que começam a
ser concretizados com ações de grupos que trabalham em rede e que em muito
agregam ao aspecto preventivo do Direito e à consciência crítica de uma
população. Todavia, também reflete sobre os dilemas atuais na realidade do
RS, com vistas ao papel que o judiciário tem o dever de estabelecer, qual
seja, a promoção de uma democracia com um nível de legitimidade que permita
a defesa de normas válidas, enquanto que com valor substancial.

Palavras-chave: direitos humanos, saúde mental, cidadania, democracia,
participação popular.



INTRODUÇAO




O centro da proposta não é mais um problema acerca da legislação,
nem uma discussão jurídica que encontra posições díspares ou meio de
justificação do discurso de certa autoridade. Embora estas sejam partes
relevantes para que se construa a reflexão, o discurso acadêmico aqui
descrito tenta uma aproximação com o popular, através da utilização do
método cronológico em conjunto com o método indutivo, busca-se uma análise
dos saberes e das atitudes delineados ao longo do sistema da Reforma
Sanitária, em especial á Reforma Psiquiátrica e promoção do Direito Humano
á saúde mental.
Ainda que o Direito, em seus diversos desdobramentos, tenha
influência e também poder de fiscalização sobre o Poder Político do Estado,
é necessário que afirme uma identidade, ou seja, que fortaleça a idéia da
prevenção dos conflitos, da promoção de direitos. No entanto, não se
sustenta em si mesmo, sendo urgente que consiga conciliar seu poder com as
ações de outras áreas sociais básicas, como a educação e a saúde.
O caso Damião Ximenes Lopes foi um, entre muitos outros
denunciados á Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), sobre
violações constantes por agentes públicos em locais de internação ou
detenção. Pois, os hospitais manicomiais, tanto no Brasil, como em qualquer
país da civilização ocidental, sempre foram locais de isolamento,
displicência, violações constantes á dignidade humana, de encarceramento,
depósitos dos "seres anormais" das famílias, sustentáculos de um modelo
regulador, punitivo, excludente e arcaico. No entanto, tal situação começa
a ser repensada por camadas organizadas da sociedade civil, como ONGs,
profissionais da área de saúde, acadêmicos e posteriormente por setores
governamentais que possibilitaram a rediscussão de políticas públicas e
estratégias mais humanizadoras na prestação dos serviços essenciais,
embasados em novos acordos de Direito Internacional[1].
Não obstante, no exercício da autoridade delegada ao Estado
Brasileiro, no caso Damião, houve negligência, ou seja, a autoridade
efetiva local não correspondeu com a normativa supranacional, sendo
legítima apenas na crença de seus subordinados e não em uma análise
específica do termo. A autoridade brasileira não teve legitimidade enquanto
não reformou seu sistema de promoção e proteção dos direitos humanos.
Assim, a Reforma Sanitária, desde a década de 80, positivada em
âmbito interno, foi e é um instrumento para a legitimidade do Estado
Democrático Brasileiro na Convenção Americana sobre Direitos Humanos. A
reforma psiquiátrica, com um novo enfoque do tratamento da loucura, permite
a legitimação da ação pública para os ditos "anormais", que passam não
somente por um tratamento, mas por uma forma de inclusão social.
O caso Damião refletiu os maus tratos e tortura que o levaram até
a morte. Porém qualquer tratamento desumano ou degradante também é uma
forma de tortura, a exclusão dos direitos de cidadania reveste-se em uma
pena cruel, dada por estereótipos cruéis. Definir um consenso para se
chegar à normalidade, deixando a cargo da solidão as pessoas com
transtornos mentais? Até onde vai uma capacidade?Há uma Macondo em meio a
tudo isso? São algumas indagações que persistem nesses mais de cem anos sem
diálogos entre a loucura e a solidão.


O CASO DAMIAO XIMENES LOPES: um sopro dos novos ventos para as políticas
públicas do Estado brasileiro


"Então começou o vento fraco, incipiente, cheio de vozes do
passado, de murmúrios de gerânios antigos, de suspiros de
desenganos anteriores às nostalgias mais persistentes".
(Gabriel Garcia Márquez, Cem Anos de Solidão).

Vento este, que trouxe para uma cultura de Direitos Humanos, novos
ares, que fez uma brisa alegre pairar em nossas aflições quando da
condenação do Estado Brasileiro, no ano de 2006, e o dever de reparar os
danos causados em virtude da morte de Damião Ximenes Lopes, nas
dependências da Casa de Repouso Guararapes (Ceará), no ano de 1999. Mais do
que um caso com repercussão internacional, visto ser o país réu perante a
Corte Interamericana de Direitos Humanos, pode-se vislumbrar uma tentativa
eficaz de trocas de paradigmas na prestação assistencial e social do
Estado, na democratização do poder, pois melhor fiscalizado e também na
inserção social dos "deficientes mentais", "portadores de necessidades
especiais" ou na linguagem coloquial, "loucos", mas no presente trabalho
apenas denominados "buendía", em linguagem metafórica, por assemelharem-se
aos personagens de Gabriel Garcia Márquez[2], tendo sua saga relegada á
solidão.
Como meio impulsionador, o direito internacional dos direitos
humanos reconhece que os indivíduos com deficiências mentais confinados em
uma instituição psiquiátrica, como estava Damião Ximenes Lopes, têm direito
ao consentimento informado e, em conseqüência, o direito de recusar
tratamento. De maneira excepcional, o tratamento forçado pode ser
justificado em uma situação de emergência, quando o tratamento seja
considerado por autoridade médica necessário para evitar dano iminente para
a pessoa ou terceiros. Em casos de ausência de emergência, justifica-se
somente sob a revisão de uma autoridade médica independente.
A Convenção Interamericana sobre a Eliminação de Todas as Formas
de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiência[3] e a
Convenção Contra a Todas as Formas de Tortura e Penas Cruéis ou
Degradantes[4] são instrumentos internacionais de proteção desses direitos.
Além de representar um compromisso jurídico dos Estados Americanos, são
compromissos éticos para assegurar que os "buendía" possam desfrutar de um
mínimo de cidadania capaz de diminuir seus estereótipos de excluídos e sós.
Os Princípios para a Proteção das Pessoas Acometidas de Transtorno Mental e
para a Melhoria da Assistência a Saúde Mental são as normas mais
abrangentes de direitos humanos com relação à assistência para o tratamento
de doenças psíquicas, entretanto, ainda carecem de efetivação na maioria
dos Estados Americanos.
Pensar o contrário é admitir que os murmúrios das nostalgias
anteriores continuem persistentes, que o tempo permaneça "não passando, mas
girando em círculo"[5]e assim, fazer com que os acordos, tratados e
protocolos sobre Direitos Humanos não ultrapassem as letras mortas,
tornando-se somente miragem de Macondos menos desiguais.
Contudo, antes que se vá além, necessário reproduzir um breve
relato do caso ocorrido, constante no relatório da Comissão Interamericana
de Direitos Humanos [6]. Em outubro de 1999, Albertina Ximenes internou seu
filho, Damião Ximenes Lopes, portador de deficiência mental, na Casa de
Repouso Guararapes - a única clínica psiquiátrica da região de Sobral,
Ceará.
Quando Albertina retornou à clínica a fim de visitar seu filho,
restou surpresa ao vê-lo em estado altamente deplorável, com diversas
escoriações e hematomas. Recebendo, logo após o ocorrido, a notícia da que
Damião havia falecido em virtude de problemas respiratórios.
Outrossim, dona Albertina entrou em contato com as autoridades
competentes – Polícia Civil, Ministério Público Federal e Comissão de
Direitos Humanos da Assembléia Legislativa do Ceará - para formular sua
denúncia, na qual anexou uma série de documentos que atestavam a culpa da
clínica.. Levado o caso ao conhecimento da Comissão Interamericana de
Direitos Humanos, foi admitida a petição, houve tramitação da mesma e
posterior envio para a Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Referida Corte, por unanimidade, reconheceu na sentença prolatada
em San José, Costa Rica, em 04 de julho de 2006, a responsabilidade
internacional do Estado pela violação dos direitos à vida e à integridade
pessoal consagrados nos artigos 4.1[7]e 5.1 e 5.2[8] da Convenção Americana
de Direitos Humanos, em relação à obrigação geral de respeitar e garantir
os direitos, estabelecida no artigo 1º desse tratado, em detrimento do
buendía Damião Ximenes Lopes, nos termos dos parágrafos 61 a 81 da
Sentença. Damião não ficou amarrado embaixo de um castanheiro definhando e
divagando com suas próprias reminiscências, ao contrário, morreu violentado
pelos encarregados de sua proteção.
Destarte, a Corte Interamericana reconheceu que o Estado violou,
igualmente, em detrimento dos familiares de Damião Ximenes Lopes, o direito
à integridade pessoal consagrado no artigo 5º da Convenção Americana, em
relação com a obrigação geral de respeitar e garantir os direitos
essenciais da pessoa humana, sua integridade física, psíquica e moral, os
direitos às garantias judiciais e à proteção judicial consagrados nos
artigos 8º e 25 da Convenção Americana.
Além disso, foi estipulado que o Estado deveria garantir, em um
prazo razoável, o processo interno destinado a investigar e sancionar os
responsáveis pelos fatos do caso. Entretanto, ainda hoje, parece estarem os
órgãos governamentais acometidos da "peste da insônia"[9], pois existe uma
forte oposição de dentro do Estado no tocante à produção de provas. Como
exemplo, o fato de que a peticionária foi informada de que não teria acesso
ao processo referente à auditoria da clínica, mas tão somente ao relatório,
e que o processo seria entregue ao prefeito, cuja família era a
proprietária da Casa de Repouso Guararapes.
Outra disposição da CIDH foi de que o Estado deve continuar a
desenvolver um programa de formação e capacitação para o pessoal médico, de
psiquiatria e psicologia, de enfermagem e auxiliares de enfermagem e para
todas as pessoas vinculadas ao atendimento de saúde mental, em especial
sobre os princípios que devem reger o trato das pessoas portadoras de
deficiência mental, conforme os padrões internacionais sobre a matéria e
aqueles dispostos na Sentença, nos termos do parágrafo 250 da mesma.
Ademais o Estado foi condenado ao pagamento em dinheiro para os
familiares de Damião, no prazo de um ano, a título de indenização por dano
material, por dano imaterial, a título de custas e gastos gerados no âmbito
interno e no processo internacional perante o sistema interamericano de
proteção dos direitos humanos, em quantias fixadas na Sentença.
Tal posicionamento da CIDH, maior órgão de responsabilização no
Sistema Regional de Proteção dos Direitos Humanos, e com poder coercitivo
frente ao Estado Brasileiro desde 1998, é uma ação que justifica
ontologicamente as razões para e efetivação da Reforma Psiquiátrica no
Brasil. Pois, ainda que a punição seja um fim, atua em decorrência da
necessidade de políticas públicas que promovam uma qualidade de vida,
independente da consciência subjetiva que se tenha sobre a percepção e
fatos dessa vida. Segundo referido raciocínio, há muitos anos já afirmava
Montaigne (1987):
"Não só o vento dos acontecimentos me agita conforme o rumo de
onde vem, como eu mesmo me agito e perturbo em conseqüência da
instabilidade da posição em que esteja. Quem se examina de
perto raramente se vê duas vezes no mesmo estado. Dou à minha
alma ora um aspecto, ora outro, segundo o lado para qual me
volto (...) não posso aplicar a mim mesmo um juízo completo,
simples, sólido, sem confusão nem mistura, nem o exprimir em
uma só palavra (II, I)."[10]


A diretiva internacional é um alento no projeto de (re)construção
do Estado Democrático Brasileiro, assim como na época da fundação de
Macondo, precisa o Estado refazer-se e não apenas determinar "os objetos
que carecem de nome, apontando-os com o dedo"[11], mas estabelecer um
cultura de promoção dos Direitos Humanos , tal como o direito à cidadania
exercitado por todos e isso torna-se possível pela prática e concretização
de um novo modelo de assistência à saúde mental.


"...e para que a morte de Damião Ximenes Lopes ressoe em nós
como uma permanente advertência em nome da continuidade e
ampliação dos princípios que norteiam a Reforma Psiquiátrica
brasileira, cabe buscar a intensificação ainda maior das
medidas de proteção dos direitos humanos e de cidadania dos
portadores de transtornos mentais no Brasil." [12]

DA CONVENÇAO CONTRA A DISCRIMINAÇAO DAS PESSOAS PORTADORAS DE TRASNTORNOS
MENTAIS À REFORMA PSIQUIÁTRICA: o sedimento de antigas esperanças


Ao contrário dos advogados da estação bananeira de Macondo, que
insistiram em negar o massacre dos três mil mortos na estação férrea,
fazendo referida violação parecer não ter ocorrido[13], as autoridades
sanitárias municipais e federais brasileiras centraram sua defesa, no
referido caso Damião, em 2005, em São José (Costa Rica), na demonstração de
significativas transformações ocorridas desde aquela data, seja no plano
legal (Lei 10.216, de 2001, Lei 10.703, de 2003 e legislação ministerial de
apoio à expansão da rede extra-hospitalar de base comunitária e
territorial), seja no plano da realidade assistencial local e nacional
(CAPS[14], SRT's, leitos em hospital geral, Saúde Mental na Atenção
Básica).


"A influência do caso Ximenes Lopes na reorganização da atenção
da saúde mental no município de Sobral é um fato inegável. O
dia 10 de julho de 2000, dia do descredenciamento da Casa de
Repouso Guararapes do Sistema Único de Saúde, é simbolicamente
considerado pelos profissionais de saúde mental de Sobral como
a data de início do funcionamento da Rede de Atenção Integral à
Saúde Mental de Sobral. Essa rede está composta por um Centro
de Atenção Psicossocial General, uma residência terapêutica,
uma unidade de internação psiquiátrica em hospital geral e por
ações de supervisão e educação sobre o programa de saúde
familiar. Esse modelo de atenção recebeu diversos prêmios
nacionais de experiência exitosa em saúde mental."[15]


Em verdade, é importante não relegar os avanços da Reforma
Psiquiátrica brasileira, que tem um de seus pilares sedimentados no
respeito aos direitos humanos e de cidadania dos portadores de transtornos
mentais e em sua crescente participação cidadã, que se baseia e igualmente
materializa os preceitos da Convenção Americana Contra a Discriminação de
Pessoas Portadoras de Deficiência. Para que se possa consolidar uma
consciência coletiva de proteção e promoção dos direitos dos "buendía", faz-
se necessário não estabelecer regras, nem conceitos fixos, pois o próprio
conceito de deficiência está em constante evolução, tendo relação, em
grande parte, com a dificuldade de interação dessas pessoas com o restante
da comunidade.
Os transtornos mentais não se encaixam em uma definição perfeita
ou universal, aplicável de igual maneira a todos os usuários do Sistema
Único de Saúde (SUS), sendo que os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS)
assumem um importante papel na articulação de redes comunitárias, com foco
nas pessoas, sua existência, seu sofrimento. Assim como na Macondo de Cem
Anos, onde o trabalho de Úrsula na confecção dos animaizinhos de caramelo
estabelecia um elo comunitário entra a família de José Arcádio e o povoado,
as organizações de usuários e/ou familiares cumprem um papel importante na
mudança do modelo assistencial no Brasil, participando ativamente da
discussão sobre os serviços de saúde mental e promovendo atividades que
visam à maior inserção social, à geração de renda e trabalho e à garantia
dos seus direitos sociais.
Conforme artigo 25 da referida Convenção, os Estados Partes se
comprometeram a propiciar os serviços de saúde que os "buendía" necessitam
especificamente por causa de sua deficiência, inclusive identificação e
intervenção precoces, bem como serviços projetados para minimizar e
prevenir deficiências adicionais, em crianças e idosos; propiciar estes
serviços de saúde em locais o mais próximo possível de onde vivem tais
pessoas; exigir dos profissionais de saúde o atendimento com a mesma
qualidade para pessoas com deficiência que para outras pessoas, incluindo,
com base no livre e informado consentimento, entre outros, a
conscientização sobre direitos humanos, dignidade, autonomia e necessidades
das pessoas com deficiência, através da capacitação e promulgação de
padrões éticos para o serviço de saúde pública.
Esses são princípios básicos que norteiam os CAPS, desde a
inauguração do primeiro Centro em 1986, na cidade de São Paulo, pois se
inserem em um movimento social dos trabalhadores de saúde mental na busca
pela melhoria da assitência desses serviços no Brasil. Aos poucos, a dura
jornada de lutas começa a criar um diálogo entre muitas "loucuras" e
solidão, quando se passam a consolidar os dispositivos eficazes que
diminuam as internações em hospitais psiquiátricos, mas, sobretudo, que
influenciem na mudança do modelo assistencial.
Os CAPS, tal como os NAPS (Núcleos de Atenção Psicossocial), os
CERSAMs (Centros de Referência em Saúde Mental) e outros serviços
substitutivos, são regulados pela Portaria 336/GM, de 19 de fevereiro de
2002, a qual reconheceu e ampliou o funcionamento e a complexidade dos
CAPS, com a missão dos mesmos de prestar um atendimento diuturno às pessoas
com transtornos mentais severos e persistentes, em um determinado lugar,
oferecendo não só cuidados clínicos e de reabilitação psicossocial, mas
também promovendo a condição de cidadãos dos "buendía", prescindindo, na
maioria dos casos, do modelo opressor e degradante que é o modelo
hospitalocêntrico.
Ou seja, pode-se dizer que através do trabalho realizado nos CAPS
se configura tanto o modelo do "ajustamento razoável"[16], quanto do
"desenho universal"[17] delineados no âmbito dos Tratados Internacionais.
Mais além, pela participação multidisciplinar de profissionais como
psicólogos, assistentes sociais e terapeutas ocupacionais, começa-se a
desconstituir a crença de que não se pode curar a doença mental, ou ainda
que se faz necessária a doença para que os agentes do Estado atuem e que
somente os hospitais ou médicos psiquiátricos são capacitados para
enfrentar tal questão. Ora, pela inclusão dos distintos profissionais nesse
trabalho de reabilitação se pode cogitar de uma participação menos
elitista, mais consciente, pois o descaso com a loucura é fruto de um
sistema excludente, de clausura e violência que a marginalidade social
impôs e a responsabilidade pela reestruturação de um sistema depende dos
atos autônomos dos diversos atores sociais e em conseqüência, de um
trabalho em rede.
Não obstante, rede e território são dois conceitos fundamentais
para o entendimento do papel estratégico dos CAPS e isso se aplica também à
sua relação com a rede básica de saúde. É nessa que se situa o lugar
privilegiado de construção de uma nova lógica de atendimento e de relação
com os transtornos mentais.
A rede básica de saúde se constitui pelos centros ou unidades de
saúde locais e/ ou regionais, pelo Programa de Saúde da Família e de
Agentes Comunitários de Saúde, que atuam em uma determinada comunidade.
Esses profissionais e equipes são pessoas que estão próximas e que possuem
a responsabilidade pela atenção à saúde da população daquele território. Os
CAPS buscam uma integração permanente com as equipes da rede básica de
saúde em seu território, pois têm um papel fundamental no acompanhamento,
na capacitação e no apoio para o trabalho dessas equipes com os "buendía"
dos tempos atuais.
Desse modo, pela preocupação com as questões preventivas e
educativas desenvolvidas nos CAPS, infere-se que as práticas sanitárias
começam a incluir a intervenção de características sócio-culturais no
processo saúde/doença. Porém, dita intervenção já não se trata apenas de um
assistencialismo que torna dependentes seus usuários, mas de uma
transformação cultural que auxilia os indivíduos na construção de suas
identidades e na recuperação de seu papel de protagonistas no meio social.
Quando se tenta uma mudança de paradigmas, é necessário que o
trabalho se verifique nas entranhas onde se dá o problema, assim, se o
problema da saúde mental é um problema social, mais especificamente, de
exclusão e desigualdade de oportunidades, faz-se preciso que os
trabalhadores comunitários de saúde conheçam o seu território, detenham uma
sensibilidade possível de captar as sensações do lugar e que saibam lidar
com as condições de pobreza. A Convenção contra a Discriminação das
Pessoas com Deficiência se deteve nessa problemática e reconheceu a
dificuldade e a necessidade de lidar "com o impacto negativo da pobreza
sobre essas pessoas".
Por uma linha de raciocínio com foco em uma educação popular, urge
recorrer a PEDRO DEMO (1994):
"Pobreza social aparece no contexto das vantagens desigualmente
distribuídas. No fundo, pobreza é injustiça, o que leva a
ressaltar, por outro lado a necessidade de consciência política
da pobreza. Por pobreza política compreende-se a dificuldade
histórica de o pobre superar a condição de objeto manipulado,
para atingir a de sujeito consciente e organizado, em torno de
seus interesses. Manifesta-se na dimensão da qualidade, embora
seja sempre condicionada pelas carências materiais também. Mas
a essa jamais se reduz, apontando para o déficit de
cidadania"[18].
Pois bem, se a pobreza não existe sem o pobre, a loucura também
não existe sem um "buendía", embora essa seja uma visão cética, enquanto
que os sistemas e as formas podem estar sempre sendo reconstruídos. Isto é,
o trabalho desenvolvido pelas equipes de saúde pública, em prol de uma
saúde pela promoção da qualidade de vida, em especial das equipes de saúde
mental, vai além de um direito devido, dentro de questões democráticas, de
uma assistência que não emancipa. Pelo contrário, pela ação dos CAPS se tem
uma aproximação com um mundo que por ser diverso não deixa de ser mundo, é
uma ação que ainda não se permitiu ser hipócrita, que não se permitiu
realizar algo em que não crê.
Talvez ditos procedimentos sejam tão loucos para os profissionais
quanto para as pessoas neles atendidas, mas a utopia, ainda permanece sobre
os vícios de verdades distorcidas, constituídas para justificar um discurso
de poder e dominação e que por fim acabam por não existir. Ainda que como
Úrsula ou Damião Ximenes Lopes, algum "buendía" de hoje "chegue a misturar
o passado com a atualidade que nos dois ou três clarões de lucidez que teve
antes de morrer, ninguém soube ao certo se falava do que sentia ou do que
recordava..."[19], mesmo assim terá existido enquanto ser humano e lhe terá
sido dada a oportunidade de uma consciência, que embora possa ser distinta,
não deixa de ser válida.
Ademais, a Reforma Psiquiátrica é mais que uma política de gestão
em saúde pública, pois é uma transformação cultural no tratamento da
loucura e na construção de um projeto próprio de desenvolvimento, pois
estimula uma participação e inserção, sem a criação de modelos para que os
indivíduos se adaptem, mas sim de modelos que se adaptem a interação
coletiva. Por isso diz-se que a Reforma é uma conquista, pois partiu de
algo que precisava ser construído, recuperado, reinventado. A emancipação
social depende de um conjunto de fatores mais complexo que a simples
vontade dos que participam, "é a alma da educação compreendida como
processo emancipatório, de desdobramento criativo do sujeito social" (DEMO,
pág. 41).
Todavia, segundo que afirma LANCETTI[20] "o paciente é primeiro um
cidadão e depois um quadro patológico". Com isso o ceticismo acompanha a
construção de políticas públicas no Brasil, pois ao tratar do dilema de
dúvidas e incertezas, no qual não existe o certo ou errado, mas novos
quadros, visões e esperanças, não deixa de tratar do processo democrático
do diálogo e da própria democracia como dúvida de si mesma. Somente se
questionando, perguntando da crença é que pode ser capaz de reavaliar-se,
refazer-se e humanizar-se, isto é, tornar-se reforma.


A REFORMA PSIQUIÁTRICA DIANTE DOS DILEMAS DAS AUTORIDADES POLÍTICAS DO RS:
entre o discurso, o legítimo e o democrático

Perante um quadro de Reformas com visas à democratização do Estado
Brasileiro, no qual as políticas públicas são procedimentos de
concretização de projetos contra-hegemônicos, mais flexíveis e supostamente
mais equânimes, no RS surge uma oposição entre os agentes que trabalham em
prol da Reforma Psiquiátrica e as diretrizes de autoridades políticas que
intentam um curso a pressupor um refluxo, quando do aumento de leitos em
hospitais psiquiátricos para supostamente atender a alta demanda
populacional.
Para um maior esclarecimento, necessário contrapor decisões do
Tribunal de Justiça do RS de 2004 e 2007 em relação à abertura de leitos em
hospitais psiquiátricos e posteriormente traçar uma reflexão com as
atitudes delineadas no trato da saúde mental em Porto Alegre, com
referência aos debates do Conselho Municipal de Saúde.
Na primeira decisão (de 2004), constante no processo nº. 112035853
(de João Batista Santafé Aguiar) foi determinado que em 30 dias se
reabrisse a Unidade Jurandy Barcellos, que tratava alcoólatras e
toxicômanos no Hospital Psiquiátrico São Pedro, em Porto Alegre, a qual
tinha sido desativada em 2002, por ofício interno da direção do Hospital
que determinou o não-recebimento de novos dependentes químicos.
Com fulcro em argumentos como o seguinte: "que o simples
fechamento da Unidade de Desintoxicação do Hospital São Pedro, quando ainda
não há a correspondente contraprestação de serviços em atendimento à lei de
reforma psiquiátrica, não atende aos fundamentos maiores do respeito à
dignidade humana, nem ao direito constitucionalmente assegurado de acesso à
saúde, este compreendido na mais completa acepção da palavra". Ou seja, com
um discurso que se dirige para uma acepção de legitimidade que não se
baseia em preceitos normativamente válidos, pois faz regressar a postulados
não democráticos envoltos ao "véu da proteção", o poder judiciário acabou
por aceitar como regra jurídica a diretiva de uma autoridade, mais
precisamente o CREMERS e outros grupos de controle mental que propuseram a
referida ação civil pública e, em conseqüência, por gerar decisões por ora
equivocadas.
Além disso, restou a assertiva de que "manter desativada unidade
específica do Hospital São Pedro, em leitura fria dos dispositivos legais
da Lei Estadual nº 9.716/92[21], quando restou certo que os pressupostos
para tanto não estão sendo observados, não tem como subsistir".
Em uma rápida análise de tal decisão, por essa concepção, as
políticas públicas tendem a ser apenas instrumentos para a reprodução de
uma ordem política vigente, o que leva à conclusão que, nessa época, fez-se
a opção pela estagnação de uma consciência política, deixando-a
empobrecida, tal qual Macondo depois da chuva "durante quatro anos, onze
meses e dois dias (..) onde o céu desmoronou-se em tempestades de
estrupício e o Norte mandava furacões que destelhavam as casas, derrubavam
as paredes e arrancavam pela raiz os últimos talos das plantações"[22] e
que fez o povoado restar em ruínas, "que da antiga cidade cercada só
restavam os escombros, em cujo horizonte remoto se pôde ver durante vários
anos a espuma silenciosa do mar"[23], esquecendo que tinha sido habitado,
tinha vida circulante, ciganos e uma rua de turcos comerciantes.
Entretanto, não só pelo caso Damião Ximenes Lopes, mas também
devido ao papel desempenhado pela consolidação da reforma psiquiátrica e
seus avanços, se o poder judiciário continuasse arraigado aos argumentos
supracitados, certamente tería-se um paradoxo entre autonomia X autoridade.
É dizer que uma ordem de certa autoridade quando justificada, é uma razão
para crer que se deve obedecer-lha, que suas normas são válidas, pois se
baseiam em princípios universalmente válidos. Porém, se dita normativa da
autoridade não se justifica ou como no caso de 2004, vai de encontro aos
princípios éticos estabelecidos pelo debate democrático e consolidados nos
organismos internacionais, cogita-se então, de uma autoridade que tem a
pretensão de mandar, mas que não pode ser legitimamente obedecida, pois tão
só faz imposições sobre certa razão.
Isto é, uma autoridade que mesmo legalizada, não está legitimada;
não tendo legitimidade, tampouco é uma autoridade democrática e ao não ser
democrática tende à probabilidade de cometer desvios morais na aplicação de
normas jurídicas e, por conseguinte, agir sem uma delimitação do próprio
Direito, o que acabaria por gerar abusos e arbítrios.
Segundo NINO, in CALATAYUD (1996, pág.262) "su justificación de
la democracia permite limitar la indeterminación del Derecho,
puesto que el valor epistémico no se predicaría de un texto, un
acto lingüístico, o una práctica, sino del consenso democrático
que se logra después del proceso de discusión colectiva y que
da lugar a ese acto lingüístico, texto o práctica… dicho
criterio apunta a que debemos detectar cuál fue el acuerdo
mayoritario al que se llegó después del proceso de discusión".
(sem grifo no original).


Por outro lado, a Reforma Sanitária vai além de um debate sobre a
crise de legitimidade do Estado, visto que ao aceitar e promover as
diferenças cria-se o caminho que ultrapassa uma simples reprodução de
condições econômicas, sociais e políticas que o sistema ajuda a sustentar.
A partir da incerteza de si mesmo ou dos questionamentos dos agentes sobre
esse sistema tem-se um ruptura de conceitos, de conformidade e da própria
crença em sua legitimidade, eis fatores que fazem emergir o jogo
democrático.
Nessa tendência se posicionou recentemente o Colendo Tribunal de
Justiça do RS, em sua sétima Câmara Civil, no acórdão de Nº 70018854760,
segundo:
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO CIVIL PÚBLiCA AJUIZADA PARA
OBRIGAR O MUNICÍPIO A FAZER PREVISÃO ORÇAMENTÁRIA
PARA COMPRA DE LEITOS PSIQUIÁTRICOS PARA INTERNAÇÃO
DE ADOLESCENTES, EM DECORÊNCIA, OU NÃO, DE
DEPENDÊNCIA QUÍMICA.
1. A IMPOSIÇÃO DE PREVISÃO ORÇAMENTÁRIA PARA COMPRA
DE LEITOS PSIQUIÁTRICOS COLIDE FRONTALMENTE COM A
VEDAÇÃO IMPOSTA PELA PARTE FINAL DO ART. 3º DA LEI
ESTADUAL 9716/92, QUE REGE A REFORMA PSIQUIÁTRICA, A
QUAL OBSTA O FINANCIAMENTO PELO PODER PÚBLICO DE
NOVOS LEITOS EM HOSPITAIS PSIQUIÁTRICOS.
2. Obrigar o Município a alocar recursos do orçamento
da saúde para finalidade diversas daquelas previstas
na competência municipal é sabidamente abrir uma
lacuna na prestação de serviços básicos e essenciais,
inerentes à gestão básica do SUS.
DERAM PROVIMENTO. UNÂNIME.


Ademais, o Desembargador Luiz Felipe Brasil Santos (RELATOR)
referiu-se ao procedimento de reabertura de leitos em hospitais
psiquiátricos, igualmente contrário à regra jurídica:
"Digo contra-legem porque a previsão orçamentária para compra
de leitos psiquiátricos colide frontalmente com a vedação
imposta pela parte final do art. 3º da Lei Estadual
9716/92[24], que rege a Reforma Psiquiátrica. O fato é que,
mesmo para casos extremos, somente a internação não basta e é
imprescindível a adesão da família ao tratamento
multidisciplinar já ministrado pelo CAPS.
Enquanto não se consegue êxito junto a essas famílias – muitas
delas também doentes e necessitando de acompanhamento
psicossocial – não se pode correr o risco de, até mesmo por
desespero, sacrificar todo um sistema de saúde, instituído com
base em regras de repartição de competência, e por
conseqüência, comprometer uma gama de serviços
satisfatoriamente prestados à população."


Através dessa decisão, em um âmbito jurídico interno, a autoridade
jurídica se mantém democrática, pois embasa justificativas para a atuação
da autoridade política, de modo a satisfazer e harmonizar, os interesses,
anseios e valores de sua gente. Contudo o Direito positivo parece estar se
tornando lúcido, capaz de perceber que suas ações e seu caráter coercitivo
precisam ultrapassar as mazelas da "simples cura" e começar a trabalhar com
o amparo às outras áreas sociais e com a prevenção da insanidade dos
homens, de buscar sempre o mais próximo sem vislumbrar as conseqüências
catastróficas que seus atos podem acarretar.
A reabertura de leitos em hospitais psiquiátricos é um retorno sem
nexo a uma solidão hospitalocêntrica, a toda degradação do espírito humano,
é a privação, de forma ilegal e arbitrária, de uma liberdade de sonhar e
ser diferente, é uma privação de liberdade justamente por ser diferente, em
frontal oposição á Convenção Contra a Discriminação das Pessoas Portadoras
de Deficiência.
Todavia, embora o judiciário tenha asseverado essa liberdade, a
autoridade política do município de Porto Alegre, a exemplo de outros
municípios gaúchos, retoma a problemática quantitativa dos leitos nos
debates do Fórum do Conselho Municipal de Saúde. A seguir segue um trecho
da ata da Reunião do mês de maio de 2007, publicada na rede mundial de
computadores:


"ATA 14/07-CONSELHO MUNICIPAL DE SAÚDE:
Aos 30 dias do mês de maio de 2007, as 18:30 horas, tendo por
local o Auditório da Secretaria Municipal de Saúde de Porto
Alegre, na Av. João Pessoa, 235, realizou-se Plenária
EXTRAORDINÁRIA do Conselho Municipal de Saúde de Porto
Alegre, com a seguinte proposta de pauta: 1)Abertura,
2)Apreciação e Votação da Ata 12/07, Leitura e Apreciação
dos Pareceres 28/07 e 29/07, 3)Informes e 4) Pauta
Principal: SAÚDE MENTAL EM PORTO ALEGRE.
Numa sessão da Câmara de Vereadores, vários deles médicos,
representantes de classe, (...) houve uma manifestação pela
ampliação dos leitos psiquiátricos. Por outro lado, não
precisamos voltar para o modelo Hospitalocêntrico. Temos que
continuar na linha (...) em que o Plantão foi criado, embora,
não sei se vocês sabem, o Plantão não existe no Organograma
da Saúde Mental. O que existe são os CAPS. O lugar do
Plantão deveria ser exercido por CAPS 3, em cada região de
Porto Alegre. Além de tudo tem a interconsulta. Um sistema,
que o CAPS prevê, de atendimento com a Rede, é muito mais
completo que uma reunião mensal. É muito mais próximo do que
poderia ser um atendimento verdadeiro ao paciente de saúde
mental. Que necessita. Tem direito. Que tenha um
acompanhamento completo. E não somente na área da saúde. Isto
quem garantem, sãos os CAPS 3 pois vão trabalhar com a Rede.
Outra coisa, é de que hoje nos foi apresentado um Projeto de
mudança para a Emergência do PACS. Qual não foi minha
surpresa quando dos 7 leitos que nós temos, apareceram 29
leitos no Projeto. Ai perguntamos-nos. Já foi apresentado
para a Câmara a solicitação de verbas e recursos...(..)"


Com referência ao CAPS 3 citado no trecho, é um centro de atenção
para 24 horas, em cidades de grande porte, como é o caso de Porto Alegre,
mas que não cria uma dependência do tratamento ao usuário, pois, ainda que
recomendada em casos de transtornos graves, dita "intervenção" é feita em
conjunto com a reinserção do indivíduo em seu seio familiar. Todavia,
ressalva-se que até o momento a questão da reabertura dos leitos é tão
somente uma hipótese. Mas as hipóteses necessitam ser refletidas, pois é
delas que se parte para o discurso e esse, em muitos casos, pode apresentar
a visão da realidade tendenciosa, o que acabaria por macular uma futura
ação com vícios.
Embora seja hipótese, o que se intentou fazer durante a construção
das identidades coletivas já referidas no presente artigo é que não se
perca a consciência das violações dos direitos humanos adquirida até o
presente. Sejam consciências jurídicas determinadas por normas válidas,
sejam consciências de cidadania constituídas por agentes e atores do
sistema de saúde mental que ainda necessita afirmar-se como obra pronta na
democracia brasileira.
Não se pode relegar a um povo a crítica ao seu passado para que
consiga vislumbrar algum futuro. Enquanto tudo são hipóteses, tem-se a
opção de continuar transformando-se ou permanecer em uma loucura do
esquecimento, na qual apenas Josés Arcádios isolados repetem dos 3 mil
mortos na estação, deixando nossa Macondo de utopias e esperanças ser
engolida também pelo vendaval da angústia, da dor e do desalento. Será a
consciência dessas violações e torturas dos Direitos Humanos carregada
pelas formigas?Ou estará amarrada em uma árvore, impossibilitada de sua
interlocução com o mundo?


"...antes de chegar ao verso final já tinha compreendido que nunca
sairia daquele quarto, pois estava previsto que a cidade dos
espelhos (ou das miragens)seria arrasada pelo vento e desterrada da
memória dos homens (....) desde sempre e todo sempre, porque as
estirpes condenadas a cem anos de solidão não tinham uma segunda
oportunidade sobre a terra".[25]




CONCLUSOES FINAIS

"São todos que estavam na estação, três mil quatrocentos e
oito...só então Úrsula compreendeu que ele estava num mundo de
trevas mais impenetrado que o seu, tão intransponível e
solitário como o do bisavô" (pág.319).


Qual seria o mundo de Damião Ximenes Lopes se lhe tivesse sido
dada a oportunidade de escolher? Essa é uma pergunta acerca do "se", de
algo que podia ter sido e não foi...Um dos objetivos do presente trabalho é
que pelos questionamentos sobre como as políticas públicas foram conduzidas
a um nível de insuportabilidade, até o estopim da violação que leva um
indivíduo á morte, se possa evoluir além de críticas vazias.
A mudança de realidades no Brasil é um processo longo, que exige
esforços de muitos agentes sociais, que necessita que os indivíduos abram
mão de alguns de seus interesses em prol de uma construção democrática. Ao
se falar em democracia, fala-se de algo construído e influenciado por
todos, não somente pelo consenso da maioria, mas dos anseios da minoria
discriminada, alheia a nossa visão "normal" de mundo.
Uma consciência crítica é possível quando não se nega as violações
de um passado recente, quando se atua com ganas, mas sem a imprudência de
crer que tudo que está sedimentado não mais vai ser desconstituído. A
prudência no tratamento de pessoas é um aspecto fundamental nesse novo
modelo de atenção da saúde mental que ainda está construindo sua identidade
brasileira.
Os avanços no tratamento da saúde mental são inestimáveis, porém é
preciso que o Estado não desleixe da sua tarefa de aprimoramento desse
sistema, igualmente de seu cuidado com a promoção, prevenção e promoção de
direitos humanos. O caso Damião ressoou como o vento para a Macondo dos
"buendía", para que esta estirpe possua uma segunda chance sobre a terra
sem mais estar relegada a uma saga de solidão. Nossa história dos fatos e
acontecimentos não permite sociedades iguais por completo, mas no mínimo
toleráveis e a tolerância, sobretudo do outro, enquanto outro e distinto, é
o elo da democracia.
Ademais, a pretensão até esboçada não é a de trazer verdades, mas
demonstrar ações e levantar hipóteses, isto é, estimular o debate da
coletividade e da diversidade numa cultura de Direitos Humanos.






REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

CALATAYUD, Ángeles Ródenas. Sobre la Justificación de la Autoridad. Centro
de Estudios Constitucionales: Madrid, 1996.
DEMO, Pedro. Política Social, Educação e Cidadania. Ed. Papirus: São Paulo,
1994.

MARQUEZ, Gabriel Garcia. Prêmio Nobel de Literatura, Cem Anos de Solidão.
59ª edição, com tradução de Eliane Zagury. Rio de Janeiro/São Paulo: Ed.
RECORD, 2006.

MONTAIGNE, Michel Eyquem de. Ensaios. Brasília: Editora da UNB/ Hucitec,
1987. 3 volume.



LINKS:



Dossiê de documentos anexados ao processo proposto perante a Corte,
no Caso Damião Ximenes Lopes:


http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/ximenes1.htm



Comissão Interamericana de Direitos Humanos:

http://www.cidh.org/comissao.htm



Corte Interamericana de Direitos Humanos:


http://www.corteidh.or.cr/








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[1]Carta da Organização dos Estados Americanos (1948)- "Carta de Bogotá" _
Pela resolução XXX, de 02/05/1948, foi aprovada a Declaração Americana dos
Direitos e Deveres do Homem _ com caráter de recomendação.
Convenção Americana de Direitos Humanos_ "Pacto de San José da Costa Rica",
aprovado pela Resolução II da Conferência Interamericana Especializada,
ocorrida de 7 a 22 de novembro de 1969 em San José, que entrou em vigor em
18 de julho de 1978.
Protocolo Adicional á Convenção Americana em matéria de Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais _ "Protocolo de San Salvador" (1988).
No referente á responsabilização dos Estados membros pela violação dos
direitos humanos, cabe ressaltar o art.29, alínea b da Convenção que diz
que nenhuma de suas disposições pode ser interpretada no sentido de:"
limitar o gozo e exercício de qualquer direito ou liberdade que possam ser
reconhecidos em virtude de leis de qualquer dos Estados-partes ou em
virtude de Convenções em que seja parte um dos referidos Estados".
[2] Prêmio Nobel de Literatura pelo livro Cem Anos de Solidão. A edição
utilizada no presente trabalho é a 59ª, com tradução de Eliane Zagury. Rio
de Janeiro/São Paulo: Ed. RECORD, 2006.

[3] Aprovado pelo Conselho Permanente da OEA na sessão realizada em 26 de
maio de 1999, aprovada pelo Decreto Legislativo nº. 198, de 13 de junho de
200l; promulgada pelo Decreto Executivo3956/2001 de 08 de outubro de 2001,
entrando em vigor, para o Brasil, em 14 de setembro de 2001, nos termos do
parágrafo 3, de seu artigo VIII.

[4] Adotada pela Assembléia Geral das Nações Unidas, através da Resolução
n. 39/46, em 10 de dezembro de 1984, ratificada pelo Brasil em 28 de
setembro de 1989.

[5] Úrsula, a matriarca da família "Buendía" ao longo da obra de Garcia
Márquez constata inúmeras vezes que acontecimentos do passado voltam a
acontecer, dizendo que o tempo não passa, mas anda em círculos, e que nem
por isso "deu oportunidade à resignação" (pág. 319).

[6] * Sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos, redigida em
espanhol e português, fazendo fé o texto em espanhol, em San José, Costa
Rica, em 4 de julho de 2006."

[7] "Art. 4o - Direito à vida: 1. Toda pessoa tem o direito de que se
respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral,
desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida
arbitrariamente."

[8]"Art. 5o - Direito à integridade pessoal: 1. Toda pessoa tem direito a
que se respeite sua integridade física, psíquica e moral. 2. Ninguém deve
ser submetido a torturas, nem a penas ou tratos cruéis, desumanos ou
degradantes. Toda pessoa privada de liberdade deve ser tratada com o devido
respeito à dignidade inerente ao ser humano."

[9] "...o mais temível da doença da insônia não era a impossibilidade de
dormir, pois o corpo não sentia cansaço nenhum, mas sim a sua inexorável
evolução para uma manifestação mais crítica: o esquecimento. Quando se
acostumava ao seu estado de vigília, começavam a apagar da sua memória as
lembranças ( ...) e por último a identidade das pessoas e a consciência do
próprio ser, até se afundar numa espécie de idiotice sem passado".( pág.47-
48, obra citada em item 02, sem grifo no original).
[10] MONTAIGNE, Michel Eyquem de. Ensaios. Brasília: Editora da UNB/
Hucitec, 1987. 3 volume.

[11] "O mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome e para
mencioná-las se precisava apontar com o dedo." MARQUEZ, Gabriel Garcia, Cem
Anos de Solidão, tradução de Eliane Zagury, 59ª edição. Rio de Janeiro/ São
Paulo: 2006, Ed. Record, pág.07.
[12] Informativo da Saúde mental no SUS.

[13] No livro citado na nota 02, há uma passagem de um massacre na estação
férrea pelos donos da Estação Bananeira, do qual o único sobrevivente foi
José Arcádio Segundo, mas que depois do ocorrido "os militares o negavam
aos próprios parentes das vítimas, dizendo que foi um sonho, que em Macondo
não aconteceu nada e que era um povoado feliz .(..) –Eram mais de três mil-
foi tudo quanto disse José Arcadio Segundo. – Agora estou certo de que eram
todos os que estavam na estação." (pág.293, 297, 298).

[14] Centro de Atenção Psicossocial

[15] Luís Fernando Farah de Tófoli, médico psiquiatra da Secretaria de
Desenvolvimento Social de Saúde do Município de Sobral/CE. Relatório da
sentença do caso Damião Ximenes Lopes X Brasil.

[16] Significa a modificação necessária e adequada e os ajustes que não
acarretem um ônus desproporcional ou indevido, quando necessários em cada
caso, a fim de assegurar que as pessoas com deficiência possam desfrutar ou
exercitar, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, todos os
direitos humanos e liberdades fundamentais; (art.2º, Convenção Americana
Contra a Discriminação das Pessoas Portadoras de Deficiência).

[17] Significa o projeto de produtos, ambientes, programas e serviços a
serem usados, na maior medida possível, por todas as pessoas, sem que seja
necessário um projeto especializado ou ajustamento. O "desenho universal"
não deverá excluir as ajudas técnicas para grupos específicos de pessoas
com deficiência, quando necessárias. ( art.2º, Convenção Americana Contra a
Discriminação das Pessoas Portadoras de Deficiência).


[18] DEMO, Pedro. Política Social, Educação e Cidadania. Ed. Papirus: São
Paulo, 1994, pág.17.
[19] Página 325, Cem anos de solidão.
[20] LANCETTI, Antonio, artigo intitulado Saúde Mental na Entranhas da
Metrópole, pág.19.
[21] Lei da Reforma Psiquiátrica do Estado do RS.
[22] Pág.299.
[23] Pág.313.
[24] Art. 3º - Fica vedada a construção e ampliação de hospitais
psiquiátricos, públicos ou privados, e a contratação e financiamento, pelo
setor público, de novos leitos nesses hospitais.
[25] Obra citada na nota 02, pág.394.
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