De martyrio in quinque articulos divisa: o martírio na Suma Teológica de Tomás de Aquino

July 21, 2017 | Autor: D. Moreno Boenavides | Categoria: Intellectual History, Thomas Aquinas, Martyrdom, Dominican Order, Summa Theologiae
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DE MARTYRIO IN QUINQUE ARTICULOS DIVISA: O MARTÍRIO NA SUMA TEOLÓGICA DE TOMÁS DE AQUINO Dionathas Moreno Boenavies1 (Orientador) Prof. Dr. Igor Salomão Teixeira2

RESUMO O presente trabalho trata da questão 124 da secunda secundae da Suma teológica de Tomás de Aquino. A referida questão é sobre o martírio. Nossa abordagem se pretende vinculada a uma forma de posicionamento do objeto de estudo discutida pela História Intelectual. Em um primeiro momento falamos sobre quem foi Tomás de Aquino, focando sua relação com a universidade e com a ordem dominicana. Depois veremos algumas questões sobre a Suma teológica, algumas características da obra e do contexto de elaboração. Por fim, passamos à análise da questão que nos propomos a estudar. Trata-se de uma primeira aproximação ao tema, logo, não pretendemos oferecer conclusões definitivas. Objetivamos, entretanto, demonstrar algumas possibilidades de análise que consideramos interessantes a partir do material selecionado. Para finalizar o presente texto, apresentamos o que seria uma espécie de conceito sobre o martírio para Tomás de Aquino, elaborado a partir de passagens da questão analisada. PALAVRAS-CHAVE: Martírio. Suma teológica. Tomás de Aquino. Dominicanos. História Intelectual.

Introdução Nosso trabalho ora apresentado tem origem em pesquisa realizada vinculada ao projeto de pesquisa “Os Tempos da Santidade: processos de canonização e relatos hagiográficos dos santos mendicantes (séculos XIII-XIV)”, sob orientação do Prof. Dr. Igor Salomão Teixeira. Trabalhamos, no início do nosso trabalho como bolsista do citado projeto, com hagiografias referentes a Pedro de Verona, mártir dominicano morto e canonizado no século XIII (morto em 1252 e canonizado em 1253). Estudar esse sujeito contribuiu para aguçar a nossa curiosidade quanto ao tema que hoje propomos. Identificamos, ao comparar a hagiografia de Pedro presente na Legenda aurea, de Jacopo de Varazze, e nas Vitae Fratrum Ordinis Praedicatorum, de Gerardo de Frachet, o que chamamos de um ofuscamento de três personagens que, segundo as Vitae Fratrum, teriam sofrido o martírio dez anos antes de

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Graduando em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Desenvolve pesquisa vinculado ao Setor de História Medieval da mesma instituição. (E-mail: [email protected]) 2 É professor adjunto de História Medieval no Departamento e no Programa de Pós-Graduação em História pela Universidade Federal Rio Grande do Sul.

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Pedro3. A partir de então, percebemos que seria interessante entender um pouco melhor a concepção sobre o martírio presente entre a Ordem dos Irmãos Pregadores. Nosso primeiro passo foi estudar a Suma teológica4 (ST), de Tomás de Aquino, tendo em vista que se trata de um documento riquíssimo e que, nele, Tomás elabora uma questão para discutir o martírio. É a questão 124 da secunda secundae. Dado o curto período de trabalho com o tema, não pretendemos, momentaneamente, apresentar conclusões. Colocamos mais hipóteses e falamos sobre perguntas que nos surgiram nesse processo ainda inicial. Norteia nosso trabalho uma forma de abordagem disponibilizada por recentes reflexões acerca da História Intelectual. Entendemos, nesse sentido, a importância do posicionamento do nosso objeto de estudo na sincronia e na diacronia, como bem defendido por Carl Schorske5. Todavia, por tratar-se de um tema com o qual trabalhamos há não muito tempo, momentaneamente focaremos mais na sincronia. Outra questão que nos interessa aqui é a relação Texto/Contexto tão importante para o campo de abordagem no qual nos inserimos. Nesse sentido, nos auxiliaram particularmente os textos de Altamariano6 e di Pasquale7. Outra proposta que assumimos e que, por mais que ainda não a tenhamos sistematizado de forma precisa, achamos interessante citar, é tentar que haja um diálogo mais próximo entre a concepção de História Intelectual que assumimos com questões pertinentes à Antropologia história e à Antropologia Escolástica. Ao tratar do martírio, parece claro, tratamos de uma forma de morte. Uma morte bastante específica que tentaremos entender mais a fundo. Os resultados são bastante iniciais, mas percebe-se, em nossa opinião, que ao mesmo tempo em que o martírio da concepção dominicana se aproxima de alguns aspectos correntes da concepção acerca da morte dos

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Cf. BOENAVIDES, D. M. O martírio no século XIII: Pedro de Verona, o primeiro mártir dominicano?. In: Atas da X Semana de Estudos Medievais. Rio de Janeiro: PEM, 2014. pp. 139-148. 4 Para os fins deste trabalho, utilizaremos a versão bilíngüe latim/português TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. Direção de Pe. Gabriel C. Galache e Pe. Fidel García Rodríguez. Coordenação Geral de CarlosJosaphat Pinto de Oliveira, O. P. São Paulo: Loyola, 2001-2006, Tomo I-IX. Serão utilizadas as formas tradicionais de referência para esta obra. Exemplificando: II-II, Q. 124, a. 1, sol. Lê-se: Segunda parte da segunda parte, questão 124, artigo 1, solução à questão. Também podem aparecer termos como “obj.”, “rep.”, “arg.s.c.”, significando, respectivamente, “objeção”, “réplica” e “argumento em sentido contrário”. 5 SCHORSKE, Carl Fin-de-siècle Vienna. Politics and Culture. New York: Cambridge University Press, 1979, pp. XXI-XXII. Apud: CHARTIER, Roger. História intelectual e História das mentalidades. In: IDEM. À Beira da Falésia: A História entre certezas e inquietudes. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2002, pp. 23-60. 6 ALTAMARIANO, C. Idéias para um programa de História Intelectual. Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 19, n. 1, 2007. 7 PASQUALE, M. A di. De la historia de las ideas a la nueva historia intelectual: Retrospectivas y perspectivas. Um mapeo de la cuestión. Revista UNIVERSUM, n. 26, v. 1, 2011.

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homens do período estudado, se distancia na medida em que não possibilita, assim como outras formas de morte súbita, os rituais característicos da tradição.

Tomás de Aquino, dominicano e universitário Trabalhar com Tomás de Aquino para o pesquisador iniciante se mostra, muitas vezes, um desafio difícil de enfrentar. Se, por um lado, pelo renome que alcançou e a importância que lhe é atribuída, muitos estudos acerca dele foram produzidos, muitos desses estudos são muito especializados em algum aspecto de sua obra ou vida, tornando a primeira abordagem dificultosa. Outro obstáculo que tem de ser vencido é o texto enquadrado em uma tradição escolástica de escrita. Demanda certo tempo entender a lógica da organização textual para evitar confusão na hora de fichar a documentação e de entender sua linha de raciocínio. Utilizamos, para nos auxiliar nessa primeira abordagem sobre Tomás, uma bibliografia talvez bastante introdutória, mas necessária a nosso ver. É a partir dela, basicamente, que focamos a inserção de Tomás na ordem dominicana e em universidades do século XIII. Nesse sentido, destacamos alguns trabalhos, como os livros de Otto Hermann Pesch8, o de Sofia Vanni Rovighi9, o de Jean-Pierre Torrel10 e o de Carlos A. R. Nascimento11. Para aqueles que, como nós, pretendem começar a se aventurar no estudo de Tomás de Aquino são obras que podem auxiliar bastante para uma perspectiva mais abrangente. Sobre a vida de Tomás de Aquino, parece-nos interessante, até para manter a conexão entre o produto intelectual e o contexto de produção, entender a posição que ocupava dentro do meio universitário e da ordem dominicana. Além disso, as relações nem tão amistosas entre as universidades e as ordens mendicantes parecem um campo de análise interessante para entender diversas obras produzidas nesse período. Sobre as universidades recém surgidas, nos auxiliou um livro, certamente introdutório, de Jacques Verger12. Para questões acerca da religiosidade e sobre a ordem dominicana, utilizamos o já clássico livro de André Vauchez13. E, para entender o contexto em uma perspectiva intelectual, algumas obras 8

PESCH, Otto Hermann. Tomás de Aquino: limite y grandeza de una teologia medieval. Editorial Herder: Barcelona, 1992. 9 ROVIGHI, Sofia Vanni. Introduzione a Tommaso d’Aquino. Roma: Editori Laterza, 1981. 10 TORREL, J.-P. O.P. Iniciação a Santo Tomás de Aquino: sua pessoa e sua obra. São Paulo: Loyola, 1999. 11 NASCIMENTO, C. A. R. Santo Tomás de Aquino: o Boi Mudo da Sicília. São Paulo: Educ, 1992. 12 VERGER, Jacques. As Universidades na Idade Média. São Paulo: Editora da UNESP, 1990. 13 VAUCHEZ, André. A Espiritualidade na Idade Média Ocidental: séculos VIII a XIII. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1995.

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importantes e já bastante conhecidas contribuíram. Por exemplo, os trabalhos de Étienne Gilson14, Jacques Le Goff15, Jacques Paul16 e Quentin Skinner17. Parece-nos interessante salientar dois acontecimentos que ocorreram na década de 1250 e tiveram grande impacto para a ordem dominicana. Trata-se da querela entre mendicantes e seculares na universidade de Paris e a morte – seguida da canonização – de Pedro de Verona, mártir dominicano18. Os dois acontecimentos, ao que nos parece, influenciaram grandemente a produção intelectual e a ação de forma mais abrangente da Ordem dos Irmãos Pregadores. Foi importante para a nossa análise sobre isso o trabalho de Aléssio Alvez, que, ao analisar a morte nas Vitae Fratrum, mostra a influência da tentativa de deslegitimação do estilo de vida mendicante na produção desta obra, assim como nos informa sobre a mudança na utilização da memória dos mortos após a canonização de Pedro, sendo, inclusive, só após essa canonização que a ordem teria começado a se preocupar com a exaltação do fundador Domingos19.

A Suma teológica Ao que tudo indica, a escrita da ST se insere no mesmo processo de tomada de decisões que visavam melhorar a formação intelectual internamente na Ordem dos Pregadores. Outra medida importante pensada nesse período resultou no envio de Tomás à Roma sendo ordenado que formasse um Studium que selecionaria alguns frades da província romana para acompanhar mais de perto os seus estudos.20 A ST é dividida em três grandes partes: a prima, a secunda e a tertia pars, sendo a segunda subdividida, dado seu tamanho, em prima secundae e secunda secundae. Enquanto residia em Roma, é provável que Tomás tenha terminado a redação da prima pars, sendo possível até que ela já tivesse certa circulação naquela região da península itálica. O restante 14

GILSON, Étienne. A filosofia na idade média. Martins Fontes: São Paulo, 2007. LE GOFF, Jacques. Os Intelectuais na Idade Média. São Paulo: Brasiliense, 1993. 16 PAUL, Jacques. Historia Intelectual del Occidente Medieval. Madri: Cátedra, 2003. 17 SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. 18 Sobre a referida querela, ver PAUL, Jacques. Historia intelectual... op. cit. pp. 362-365; VERGER, Jacques. As universidades... op. cit. pp. 75-79; LE GOFF, Jacques. Os intelectuais... op. cit. pp. 82-85; FORTES, C. C. A querela contra os mendicantes e os estudos na Ordem dos Pregadores (1250-1260). In: MATTOS, Carlina; CRUXEN, Edison; TEIXEIRA, Igor. (orgs.). Reflexões sobre o Medievo II: práticas e saberes do Ocidente Medieval. São Leopoldo: Oikos, 2012, pp. 131-142. 19 Cf. ALVES, A. A. A morte e os mortos em Vitae Fratrum de Gerardo de Frachet (1256-1260). Revista Signum, 2014, vol. 15, n. 1, pp. 84-108. 20 Cf. TORREL, J.-P. O.P. Iniciação a Santo Tomás... op. cit. pp. 167-168. 15

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da obra, entretanto, mostra-se mais difícil de ser datado. O que se sabe com segurança é que a tertia pars não foi finalizada por Aquino. Tomás pára de escrevê-la no final do ano de 1273. Com sua morte no ano subseqüente, essa parte da obra é finalizada por discípulos.21 A separação da ST em três grandes partes correspondia a uma divisão temática. Na primeira parte Tomás intenta trabalhar questões relacionadas à doutrina sacra e sobre as formas possíveis de se transmitir o conhecimento de Deus. Na segunda, a preocupação de Aquino vai no sentido de discutir as possibilidades de movimentos das criaturas em direção a Deus. A terceira parte da ST, por fim, versa sobre Cristo, entendido como uma forma de condução a Deus22. Cada uma dessas partes ainda conterá divisões internas. Nesse sentido, por exemplo, a questão que nos propomos a fazer uma análise inicial no presente trabalho (questão 124 da secunda secundae) está na parte que fala sobre os movimentos da criatura em direção a Deus, mais especificamente na divisão acerca da Fortaleza. Também nos parece interessante falar um pouco mais sobre o funcionamento interno das questões da ST. A dialética, característica da Escolástica, se dá de forma bastante evidente nesse documento. Sobre isso, Nascimento diz que Cada questão é subdividida em tópicos que recebem o nome de “artigos”. [...] Cada um dos artigos da Suma tem a estrutura de um artigo de questão disputada, mas com uma forma mais simples. Há sempre uma pergunta inicial que dá margem a duas respostas opostas. Seguem-se alguns argumentos (três ou quatro em geral) denominados “objeções” e que são contrários à tese que Tomás pretende sustentar. Depois dessas objeções, vem um argumento “em sentido contrário”, que consiste muito frequentemente na citação de uma “autoridade” e que na maioria dos casos representa a opinião de Tomás de Aquino. Esta é apresentada, a falar com todo rigor, no “corpo do artigo”, isto é, numa curta explanação que vem em seguida ao argumento, em sentido contrário, e contém a tese sustentada por Tomás de Aquino e sua justificação. Feito isso, Tomás responde às objeções iniciais, a não ser que a resposta seja, a seus olhos, óbvia, à luz do corpo do artigo. Nesse caso, ele se contenta com uma cláusula estereotipada: “e assim, fica evidente a resposta às objeções”.23

Essa organização das questões torna bastante difícil a análise inicial. Entretanto, se mostra um campo rico de análise sobre as discussões que podiam estar acontecendo nos ambientes freqüentados por Tomás de Aquino. A análise da questão sobre o martírio que faremos na próxima parte deste trabalho deixará mais evidente essa organização.

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Idem. Ibidem. pp. 170-173. Idem. Ibidem. p. 174. 23 NASCIMENTO, C. A. R. Santo Tomás de Aquino... op. cit. p. 63. 22

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A questão sobre o martírio Como já dito, a questão que pretendemos trabalhar se encontra na secunda secundae, parte essa que trata do movimento da criatura em direção a Deus. Não nos parece obra do acaso que Tomás elabore essa questão e a posicione onde posicionou tendo em vista o contexto vivido pela ordem dominicana. No momento da querela entre mendicantes e seculares, a legitimidade do estilo de vida das ordens dominicanas e franciscanas foi posta em dúvida. Tomás, nesse momento, juntamente com o franciscano Boaventura, foi um dos mestres mais ativos na disputa. Escreveu, inclusive, uma obra rebatendo um ataque desferido pelo secular Guilherme de Saint-Amour24. Mais ou menos no mesmo período é assassinado o pregador Pedro de Verona, cuja representação permite simbolizar boa parte do estilo de vida dominicano, como as escolhas ascéticas, a pregação e a defesa de um desprezo do corpo em defesa da fé em Cristo. Parece-nos, então, que ao afirmar que o martírio é um dos movimentos que direciona a criatura a Deus, Tomás intenciona defender todo um estilo de vida e uma legitimidade de ação religiosa. A questão sobre o martírio é elaborada em cinco artigos. O primeiro questiona se o martírio é um ato de virtude; o segundo pergunta se o martírio é um ato de fortaleza; a questão levantada pelo terceiro artigo é referente a se o martírio seria um ato de perfeição máxima; o quarto artigo, por sua vez, questiona se a morte é obrigatória ao martírio e o quinto artigo, por fim, pergunta se só a fé é a causa do martírio.25 Por ser este um trabalho inicial com esse objeto, a pretensão é analisar essa questão demonstrando seu funcionamento interno e traçando algumas possibilidades para análise futura. Não entendamos, portanto, como uma análise conclusiva. O primeiro artigo, como dito, questiona se o martírio é um ato de virtude. Dentro desse artigo, há três objeções que argumentam no sentido de afirmar que não. Assim como há três réplicas a esses argumentos posteriormente. A primeira objeção diz que todo ato de virtude é voluntário, sendo que o martírio nem sempre o é. Muitos mártires não teriam tido escolha no momento de se martírio26. Tomás responde essa objeção ao dizer que, se alguns recebem a

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O texto produzido por Guilherme era chamado Tratado dos perigos dos últimos tempos, enquanto a resposta de Tomás recebeu o título de Contra os que impugnam o culto de Deus e a religião. 25 II-II, Q. 124, a. 1-5. 26 II-II, Q. 124, a. 1, obj. 1.

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graça virtuosa do martírio por própria vontade, alguns mártires a conseguiram pela graça de Deus27. A argumentação da segunda objeção é elaborada no sentido de afirmar a impossibilidade de atos ilícitos serem virtuosos. Assim, tendo em vista que matar a si próprio é ilícito, e que alguns martírios foram assim efetivados, não se poderia afirmar que o martírio é um ato de virtude28. Para retrucar esse argumento, Tomás diz que, nesses casos, Deus persuadiu a Igreja a honrar a memória desses santos29. A última objeção desse artigo coloca a questão de que apresentar-se ao martírio pode representar certa presunção daquele que será martirizado. Sendo que apresentar-se a um ato de virtude deveria ser louvável30. A réplica que Tomás elabora argumentará que não se deve oferecer a oportunidade para que outra pessoa aja injustamente, mas se alguma pessoa dessa forma agir, o mártir deve suportá-lo devidamente. Nessa réplica Tomás nos dá uma das primeiras pistas do que seria o martírio para ele, quando afirma que esse tipo específico de morte “consiste em suportar devidamente os sofrimentos infligidos injustamente”31. O argumento em sentido contrário que Tomás elabora nessa questão afirma que só um ato de virtude pode merecer a bem-aventurança eterna. A bem-aventurança eterna é uma recompensa ao martírio. Portanto, conclui-se que o martírio é um ato de virtude. Através desse silogismo Tomás utiliza a recompensa post mortem como argumento a favor da virtuosidade do martírio32. Na solução do primeiro artigo, percebemos mais indícios sobre o que Aquino entende por martírio, ao afirmar que “pertence à razão do martírio que o mártir se mantenha firme na verdade e na justiça contra os assaltos dos perseguidores”33. Utilizamos essa visão mais detalhada do primeiro artigo apenas para deixar claro o funcionamento interno desse escrito. Momentaneamente, o que nos interessa é focar nas partes em que Tomás deixa mais claro o que chama de martírio. Do segundo artigo, aquele que questiona se seria o martírio um ato de fortaleza, nos interessa entender a relação e a função das virtudes na motivação que leva à morte martirológica. Chegamos à conclusão, através desse artigo, que muitas virtudes se relacionam nessa motivação, principalmente a fé, 27

II-II, Q. 124, a. 1, rep. 1. II-II, Q. 124, a., 1, obj. 2. 29 II-II, Q. 124, a. 1, rep. 2. 30 II-II, Q. 124, a. 1, obj. 3. 31 II-II, Q. 124, a. 1, rep. 3. 32 II-II, Q. 124, a. 1, arg. s. c. 33 II-II, Q. 124, a. 1, sol. 28

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a caridade e a paciência. Entretanto, essas três são auxiliares da fortaleza no caso do martírio. Assim sendo, a fé é o fim no qual o martírio é confirmado, a caridade é o que torna o martírio meritório e a paciência é o que auxilia a fortaleza em seu ato principal que é resistir. Mas a fortaleza é a virtude que realmente produz o martírio34. No terceiro artigo Tomás esforça-se para mostrar que o martírio é um ato da mais alta perfeição. Nesse esforço deixa que percebamos duas questões importantes. Primeiramente, que o martírio pode ser considerado o máximo da obediência a Deus, uma obediência até a morte35. Depois, quanto utiliza o recurso à autoridade de Agostinho para afirmar que o martírio é um ato mais perfeito que a virgindade36. Se refletirmos sobre como a virgindade é valorizada naquele momento, percebemos o peso e a importância que são dados à morte martirológica. É no quarto artigo, que questiona se a morte é necessária ao martírio ou se resistir a outros tipos de tormentos não faria com que alguém fosse considerado também mártir, que Tomás afirma uma concepção um pouco mais elaborada sobre essa morte. Ele utiliza esse artigo para defender que não existe martírio sem que o mártir morra. Na solução, ele diz que Chama-se de mártir aquele que é como que uma testemunha da fé cristã que nos propõe desprezar o mundo visível pelas realidades invisíveis, segundo a Carta aos Hebreus. Pertence, pois, ao martírio que o homem dê testemunho de sua fé, mostrando por fatos que despreza as coisas presentes para alcançar os bens futuros invisíveis.37

O mártir como testemunha da fé cristã. Como aquele que valoriza o mundo invisível e os bens futuros em detrimento do mundo visível. Parece-nos que o principal do conceito de martírio para Tomás de Aquino está presente nessa passagem. Por fim, o quinto artigo. Ele não acrescenta necessariamente nada novo à nossa tentativa de conceituação do martírio. Sua solução, que argumenta no sentido de dizer que não só a fé é causa dessa morte, mas também outras virtudes, retorna à relação entre mártir e testemunha. Tomás ainda se utiliza dessa solução para defender que a fé não seja apenas afirmada em palavras, mas também demonstrada através de ações.38

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II-II, Q. 124, a. 2, rep. 1, 2 e 3. II-II, Q. 124, a. 3, rep. 2. 36 II-II, Q. 124, a. 3, arg. s. c. 37 II-II, Q. 124, a. 4, sol. 38 II-II, Q. 124, a. 5, sol. 35

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Conclusões momentâneas Como acreditamos que tenha ficado claro, esse trabalho resulta de uma primeira aproximação com o tema e com o objeto que nos propomos a estudar. Nesse sentido acreditamos que tenha sido interessante no sentido de mostrar possibilidades de análises possíveis. A relação entre os vivos e os mortos pode ser trabalhada, assim como do mundo terreno e a crença em determinada organização da geografia do além. Outra questão que nos interessa é a possibilidade de haver uma relação entre a escrita da questão analisada, seu posicionamento na ST e os dois acontecimentos anteriormente mencionados: a querela entre mendicantes e seculares em Paris e a morte e canonização de Pedro Mártir. Acreditamos que a História Intelectual nos oferece algumas ferramentas que possibilitam essas aproximações. Podemos, dessa forma, analisar tanto o que nos interessa no funcionamento interno da obra analisada quanto o contexto de sua produção e como eles podem ter se influenciado. Para finalizar, podemos ver o que essa análise inicial sobre a questão do martírio na ST nos diz sobre o conceito tido por Tomás sobre esse tipo de morte. O martírio é uma morte, ou melhor, um estilo específico de morte. É uma morte em que o morto se manteve até o fim firme na defesa da verdade e da justiça, mesmo tendo de resistir aos ataques daqueles que o perseguem. Algumas virtudes influenciam no momento do martírio. A fé o confirma, a caridade torna-o um ato meritório e a paciência auxilia na resistência; mas a virtude que produz o martírio é a fortaleza. Esse relacionamento de virtudes que influenciam nessa morte dá origem a um ato da mais alta perfeição, que pode ser considerado o máximo da obediência a Deus. O mártir, por fim, enquanto testemunha da fé cristã, despreza o mundo que enxerga e valoriza o que, mesmo que não enxergue, crê que encontrará após seu trespasse. O martírio é uma prova de que o sujeito despreza as coisas com as quais tem contato, as coisas presentes, para que alcance os bens futuros no além.

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Referências Documentação: TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. Direção de Pe. Gabriel C. Galache e Pe. Fidel García Rodríguez. Coordenação Geral de Carlos-Josaphat Pinto de Oliveira, O. P. São Paulo: Loyola, 2001-2006, Tomo I-IX.

Bibliografia: ALTAMARIANO, C. Idéias para um programa de História Intelectual. Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 19, n. 1, 2007. ALVES, A. A. A morte e os mortos em Vitae Fratrum de Gerardo de Frachet (1256-1260). Revista Signum, 2014, vol. 15, n. 1, pp. 84-108. BOENAVIDES, D. M. O martírio no século XIII: Pedro de Verona, o primeiro mártir dominicano?. In: Atas da X Semana de Estudos Medievais. Rio de Janeiro: PEM, 2014. pp. 139-148. CHARTIER, Roger. História intelectual e História das mentalidades. In: IDEM. À Beira da Falésia: A História entre certezas e inquietudes. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2002, pp. 23-60. FORTES, C. C. A querela contra os mendicantes e os estudos na Ordem dos Pregadores (1250-1260). In: MATTOS, Carlina; CRUXEN, Edison; TEIXEIRA, Igor. (orgs.). Reflexões sobre o Medievo II: práticas e saberes do Ocidente Medieval. São Leopoldo: Oikos, 2012, pp. 131-142. GILSON, Étienne. A filosofia na idade média. Martins Fontes: São Paulo, 2007. LE GOFF, Jacques. Os Intelectuais na Idade Média. São Paulo: Brasiliense, 1993. NASCIMENTO, C. A. R. Santo Tomás de Aquino: o Boi Mudo da Sicília. São Paulo: Educ, 1992. PASQUALE, M. A di. De la historia de las ideas a la nueva historia intelectual: Retrospectivas y perspectivas. Um mapeo de la cuestión. Revista UNIVERSUM, n. 26, v. 1, 2011. PAUL, Jacques. Historia Intelectual del Occidente Medieval. Madri: Cátedra, 2003. PESCH, Otto Hermann. Tomás de Aquino: limite y grandeza de una teologia medieval. Editorial Herder: Barcelona, 1992. ROVIGHI, Sofia Vanni. Introduzione a Tommaso d’Aquino. Roma: Editori Laterza, 1981. SCHORSKE, Carl Fin-de-siècle Vienna. Politics and Culture. New York: Cambridge University Press, 1979. SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. 10

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