De Mastigadores à Drácula – a figura do vampiro nos relatos oficiais e na literatura

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DE MASTIGADORES À DRÁCULA – A FIGURA DO VAMPIRO NOS RELATOS OFICIAS E NA LITERATURA

Gabriel Elysio Maia Braga81

“Dans ce siècle une nouvelle scene s’offre à nos yeux depuis environ soixante ans dans la Hongrie, la Moravie, la Silésie, la Pologne: on voit, diton, des hommes morts depuis plusieurs mois, revenir, parler, marcher, enfester les villages, maltraiter les homes & les animaux, sucer le sang de leurs proches, les rendre maladies, & enfin leus causer la mort”82

Em 1659 chegam na França, através de cartas escritas pelo secretário da rainha da Polônia, Pierre Des Noyers, os primeiros relatos sobre mortos-vivos que mastigavam suas mortalhas – ou partes de seus corpos – o que ocasionava na morte de seus parentes. A solução encontrada pela população local era enterrar os mortos com algo em sua boca para impedir a mastigação. Em 1693, esses casos passaram a ser discutidos no jornal francês Mercure Galant, principalmente por Marigner, o qual acreditava que os vampiros eram um castigo divino enviado aos povos da Europa Oriental83. A partir de 1725 estes relatos tornam-se mais concisos e frequentes. Não foi pouco o espanto com que foram recebidos. Em tempos de crescente divulgação do pensamento Iluminista, o contraste deste com o folclore da Europa Oriental era grande. Foi justamente no século das Luzes que os vampiros se espalharam enquanto lenda. Um primeiro contato maior destes com o Ocidente se deu a partir dos Tratados de Carlowitz (1699) e de Passarowitz (1718)84, nos quais a Áustria dos Habsburgos consegue a posse, com o primeiro, da maior parte da Hungria e, com o segundo, do norte da Sérvia, norte da Bósnia e da Valáquia. As forças de ocupação austríacas permaneceram nestas regiões até 1739 85. Durante esse tempo, muitos relatos sobre as lendas de mortos-vivos que estrangulam e/ou sugam o sangue dos vivos foram feitos. O que mais assustava os soldados eram as constantes exumações de Aluno de graduação do 7º período do curso de História – Licenciatura e Bacharelado da Universidade Federal do Paraná. Contato: [email protected]. 82 “Neste século surge algo novo aos nossos olhos há cerca de 60 anos na Hungria, Moravia, Silésia, Polônia: vemos, eles dizem, homens mortos há muitos meses, retornar, falar, andar, infestar as aldeias, maltratar os homens e os animais, sugar o sangue dos parentes, lhes causar doenças, e enfim, lhes causara morte” [tradução livre] Cf. CALMET, 1751, tomo I, p.V. 83 VERMEIR, 2010, pp. 4-5. 84 ARMOUR, 2012, p. 30. 85 BARBER, 2010, p. 5. 81

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cadáveres, seguidas de perfuração do corpo por estacas, decapitações e, em último caso, cremações86. Peter Plogojowitz foi o primeiro vampiro a atingir “fama internacional”. Na vila de Kisilova, na Sérvia, dez semanas após sua morte, nove pessoas morreram de uma “doença de 24 horas” (sic). Antes de falecerem, todas relataram que haviam visto Plogojowitz e que este deitou em suas camas e as estrangulou. O provedor imperial, autor do relato, afirma que a população da vila, desesperada, procurou-o e também o “papa local” (sic) pedindo autorização para a exumação do corpo. Em um primeiro momento, afirma, foi contra ao que o povo pedia, mas visto a sua exaltação e ameaça de abandonar da vila, segundo suas palavras, achou melhor concordar, já que não poderia acalmar as pessoas com “boas palavras ou tratados”87. Ao se dirigir ao local, a exumação já havia ocorrido e o relator pode notar que “à exceção de seu nariz, que já havia caído, o corpo estava em perfeito estado e não apresentava odor pútrido”. Cabelo e barba haviam crescido, as unhas haviam caído e novas cresceram no lugar. Havia sangue fresco em sua boca, pertencente às suas vítimas, diziam os camponeses. Uma estaca então foi cravada em seu coração. O autor relata que neste momento muito sangue escorreu tanto da ferida quanto dos olhos, nariz e boca, e o cadáver foi queimado. Interessante notar que o relator afirma que cabelos e barba cresceram mesmo sem ter conhecido Plogojowitz antes de sua morte. Talvez o mais famoso caso de vampiros da história seja descrito em Visum et Repertum88, o qual trouxe o relato do caso Arnond Paole. Soldados e médicos austríacos ficaram intrigados com o que contava a população sobre um ex-soldado húngaro que morreu os quebrar o pescoço quando caiu de uma carroça. Antes de sua morte, Paole relatou estar sendo perseguido e recebendo visitas constantes de um vampiro. O exsoldado chegou a comer terra do túmulo do suposto vampiro e se ungiu no seu sangue9. Entre 20 e 30 dias após seu enterro, quatro pessoas que afirmavam ter recebido sua visita faleceram. A fim de acabar com esse mal, a população optou pela exumação do cadáver. O corpo foi encontrado totalmente conservado, com sangue fresco (sic) nos olhos, boca, nariz e ouvidos, além do sangue que estava no caixão89. Uma estaca então foi cravada em seu peito, o que ocasionou uma cena terrível: o relato afirma que além de sangrar muito, o suposto morto-vivo teria gritado de dor. Os camponeses então queimaram seu corpo e atiraram as cinzas em um rio.

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A cremação não era a primeira opção por se constituir em um processo caro e lento. Cf. BARBER, 2010, p. 76. O relatório oficial está reproduzido integralmente e traduzido para o inglês no livro de Paul Barber. Cf. BARBER, 2010, pp. 6-7. 88 O qual pode se lido na integra e traduzido para o português em: Cf. LECOUTEAUX, 2005, pp. 180-184. 9 Havia uma crença que afirmava que a ingestão de terra do local aonde o morto-vivo estava enterrado e a unção em seu sangue poderiam proteger a vítima de tornar-se um. 89 Em alguns relatos o suposto vampiro está praticamente imerso em sangue. 11 Soldado que carrega a alabarda. 87

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O mesmo aconteceu com os corpos das outras quatro pessoas que foram supostamente mortas por ele. Intrigantemente, os ataques continuavam a ocorrer, mesmo após a eliminação dos cinco possíveis vampiros. Chegou-se então a conclusão de que não apenas pessoas haviam tido seu sangue sugado por Paole, mas também gado. E, em um período de 3 meses, dezessete pessoas que comeram a carne desse gado faleceram. Foi a após esse período que os soldados e médicos austríacos chegaram ao local para pesquisar o caso e escrever o relato. 15 dias antes de sua redação, afirmam os autores, Stanacka, filha do heiduque11 Jowiza, acordou no meio da noite aos prantos, e relatou ter sido atacada por Millöe, filho de um heiduque local que havia morrido 9 semanas antes. A moça faleceu 3 dias após o ocorrido. Com isso, os médicos e soldados austríacos, junto com os heiduques mais velhos, foram ao cemitério abrir os túmulos dos falecidos neste período de 3 meses que separa a exumação de Paole e a chegada dos austríacos. Enquanto isso, na Europa, tanto os pensadores iluministas quanto os religiosos negavam essas histórias de vampiros porque as consideravam apenas como crendice. Em 1744 a Igreja encomendou uma dissertação do padre Giuseppe Davanzati sobre esses casos narrados. Chamada de “dissertação sobre o vampiro”, ela apenas considerava as aparições de mortos enquanto imaginação popular, o que gerou dúvidas em alguns pensadores, entre eles, o monge beneditino Dom Augustin Calmet. Muito conhecido por seus trabalhos sobre interpretação da Bíblia, Calmet propôs algo diferente, examinar o assunto com uma abordagem racionalista do fenômeno sobrenatural. O padre francês afirmava que não se pode tratar por pura imaginação ou mentira relatos tão concisos e homogêneos90. Seu principal objeto, de acordo com ele, são os vampiros da Hungria, contudo Calmet não se limita apenas a essa região geográfica e apenas a esse tipo de morto-vivo. Várias lendas são por ele analisadas e comentadas. Em 1746 veio a primeira edição de sua obra, e 5 anos depois a segunda edição, ampliada. No prefácio do primeiro tomo, Dom Calmet preocupou-se em explicar a metodologia utilizada em sua pesquisa. De acordo com ele foram utilizadas em seu trabalho três vertentes, a histórica, a filosófica e a teológica, e estas estariam ligadas, pois a primeira buscava a verdade dos fatos, a segunda descobrir causas e consequências e a terceira em reportar à religião as descobertas. No início do segundo tomo os ataques de mortos-vivos são apresentados como um fato histórico novo, pois segundo seu relato mesmo que se procurasse na história dos hebreus, gregos, egípcios e romanos, não se encontraria nada que se aproximasse dos fenômenos por ele investigados. É ao decorrer do segundo tomo que são transcritos os relatos sobre os defuntos que voltam à vida para sugar o sangue dos vivos e leva-los à morte. 90

CALMET, 1752, tome II, p. vi.

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É sempre descrita com certo espanto a solução para os vampiros – estaca, decapitação e cremação. A Igreja considerava um sacrilégio, os homens de letras, uma barbárie. Calmet reúne essas duas visões. Sua crítica à barbárie dos atos muito tem relação com a rivalidade das Igrejas Apostólica romana e Ortodoxa Grega. Para a primeira o corpo dos santos não se deteriorava, já para a segunda, é o corpo dos excomungados e pecadores que não se decompõe. Em vários trechos Calmet critica essa visão e afirma que os patriarcas não possuem poder para absolver pecados após a morte, contudo, é controverso quanto aos fiéis romanos, pois estes podem se salvar, mesmo sem a extremaunção. Todos esses relatos, e a própria pesquisa de Calmet, ajudaram a consolidar o vampiro no imaginário popular da Europa Ocidental. Em 1748 é escrito o primeiro texto literário sobre vampiros. Der Vampir (o Vampiro), de autoria do poeta alemão Heinrich August Ossenfelder é narrado pelo vampiro, o qual objetiva seduzir uma jovem que segue os preceitos cristãos91. Em 1797, Goethe publicou A Noiva de Corinto, em que um jovem vai até a referida cidade para conhecer sua noiva. Durante a noite ele recebe visitas de uma jovem que o seduz. O noivo descobre que sua visitante noturna é uma alma condenada a sobreviver sugando sangue de homens jovens. Ela está nesse estado porque quando sua mãe se converteu ao cristianismo a obrigou a desfazer o noivado levando-a à morte. Para Goethe nem mesmo os cânticos dos padres, nem mesmo a Terra é capaz de abater o ardor da paixão não consumada92. O motivo de ela retornar à vida, por algo inacabado, é um motivo recorrente entre os vampiros dos Balcãs. A partir de então nota-se que o vampiro vai se tornando uma criatura sedutora, pleno de desejos sexuais, se mostrando, portanto, um perigo não só à vida, mas também à moralidade cristã, a qual é criticada por Goethe. Importante ressaltar que o vampiro é sempre “o outro” vindo de algum país da Europa Oriental. O vampiro adentra na poesia inglesa com Samuel Taylor Coleridge. Seu poema Christabel, escrito entre 1797 e 1801, apresenta a jovem donzela Christabel que, andando pelo bosque, encontra Lady Geraldine, a qual afirma ter sido sequestrada por malfeitores. A protagonista então a convida para abrigar-se no castelo de seu pai, e as duas dividem a mesma cama. A partir desse momento, Lady Geraldine vai utilizar seu poder de hipnose para seduzir a jovem. Este poema inacabado vai ser uma grande influência do clássico de Sheridan Le Fanu: Carmilla, a vampira que somente suga sangue de outras mulheres93. A prosa vampiresca inicia-se na mesma noite em que Frankenstein foi concebido. A partir do fragmento escrito por Lord Byron, seu assistente, John Polidori, desenvolve o conto O Vampiro. Em 1801 é escrito um conto de mesmo nome na Alemanha de autoria de Theodore Arnold, porém este caiu no esquecimento. Com Polidori o vampiro se consolida como um 91

ARGEL & MOURA NETO, 2008, pp. 21-22. Ibidem, p. 22. 93 Ibidem, pp. 23-24. 92

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aristocrata sedutor. Este não mais se esconde de todos, mas junto com os mortais compartilha os prazeres da vida. O vampiro não é mais o herói, ou um sofredor e sim o vilão. O conto de Polidori tornou-se uma verdadeira febre, foi publicado e levado aos teatros de muitos países, outros autores emprestavam Lord Ruthven em suas histórias ou escreviam continuações para o conto original94. Em 1897 surge Drácula, de Bram Stoker. O romance procura sanar muitas dúvidas quanto ao modo de vida do vampiro. O livro é em si uma investigação de Mina Murray, Jonathan Harker e doutor Van Helsing. A história sacia as dúvidas quanto ao modo como os vampiros se escondem durante o dia, como são combatidos, como são mortos, como alguém vira um vampiro, dentre outros temas. De uma crendice popular o vampiro passa a ser uma das criaturas mais importantes da literatura e do cinema ocidentais. O ocidente se apropriou desse personagem folclórico e retratou-o de modo mais romantizado. A população da Europa oriental aparece, como por exemplo em Drácula, como cúmplice desse vampiro, ou como pessoas pouco racionais e muito assustadas. O conde vivia há séculos matando a população da vila perto de seu castelo e nunca houve nenhuma reação, tanto por auxilia-lo ou por teme-lo. Foi necessário um bravo herói do Ocidente para perseguir o vampiro através da Europa e acabar com o sofrimento de uma população.

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ARGEL & MOURA NETO, 2008, p. 29.

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Fontes CALMET, Dom Augustin. Traité sur les apparitions des esprits et sur les vampires ou les revenants de Hongrie, Moravie, etc. Tome I. Paris: 1751.

CALMET, Dom Augustin. Traité sur les apparitions des esprits et sur les vampires ou les revenants de Hongrie, Moravie, etc. Tome II. Paris: 1751.

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