De Mucama à Empreguete: Análise da Representação das Empregadas Domésticas Negras a partir do Estudo de Caso da Novela “Cheias de Charme”

July 4, 2017 | Autor: Kellen Julio | Categoria: Gender Studies, Race and Racism, Gender and Race
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KELLEN CRISTINA XAVIER JULIO

DE MUCAMA À EMPREGUETE: ANÁLISE DA REPRESENTAÇÃO DAS EMPREGADAS DOMÉSTICAS NEGRAS A PARTIR DO ESTUDO DE CASO DA NOVELA “CHEIAS DE CHARME”

Duque de Caxias 2014

DE MUCAMA À EMPREGUETE: A ANÁLISE DA REPRESENTAÇÃO DAS EMPREGADAS DOMÉSTICAS NEGRAS A PARTIR DO ESTUDO DE CASO DA NOVELA “CHEIAS DE CHARME”

KELLEN CRISTINA XAVIER JULIO

Monografia apresentada ao Programa de PósGraduação em Ciências Sociais da PUC-Rio como requisito parcial para obtenção do título de Especialista em História e Cultura Afrodescendente. Orientadora: Profa. Olívia Nogueira Hirsch.

Duque de Caxias 2014

DE MUCAMA À EMPREGUETE: A ANÁLISE DA REPRESENTAÇÃO DAS EMPREGADAS DOMÉSTICAS NEGRAS A PARTIR DO ESTUDO DE CASO DA NOVELA “CHEIAS DE CHARME”

Banca examinadora

____________________________________ Orientadora: a Prof . Olivia Nogueira Hirsch

____________________________________ Profa. Dra. Sonia Maria Giacomini

____________________________________ Prof. Dr. Jonas Soares Lana

AGRADECIMENTOS

À Olívia Hirsch, que foi uma orientadora muito atenciosa e dedicada, mesmo estando na etapa final de seu doutorado. Muito obrigada pelas orientações e por ser tão didática nos meus momentos de dúvida. Obrigada pelos livros, artigos e comentários ricos que me ensinaram muito sobre como desenvolver minhas ideias. Agradeço também, em nome da turma, pela sua organização e competência na condução do módulo de Sociologia com a Sonia Giacomini. Aos meus colegas de classe que tanto colaboraram para meu crescimento intelectual e pessoal. Vocês foram presentes nos momentos complexos e me ajudaram a superar grandes dificuldades, em especial, Luzia Schmitd e Alessandra Rangel. À PUC-Rio que nos abriu as portas para estudar a história da África e sua influência no Brasil. Hoje me considero uma verdadeira afro-brasileira. À Regiane de Mattos, que conduziu de maneira excelente o módulo de História. Foi atenciosa e muito criteriosa na seleção dos professores. À meus pais, que sempre se esforçaram muito para que eu pudesse ter alguma chance nesse mundo cruel e complexo. Eu aprecio cada detalhe do sacrifício de vocês. Sem ele, eu não seria ninguém. Obrigada pelo amor, pelas palavras de doçura e por me ensinar que o conhecimento é fonte de vida. À Yahn Wagner, meu grande incentivador acadêmico e meu estímulo diário para a felicidade. Obrigada por revisar meus textos, participar das minhas discussões e por ser essa fonte de energia e amor interminável que me cerca. À Deus, que me criou e me formou. Seus planos me fizeram chegar muito mais longe do que uma menina de Realengo jamais sonhou. Obrigada por renovar minhas forças todos os dias e por não me deixar desistir dos meus sonhos. Obrigada pelo seu amor incondicional. Obrigada por seu um pai tão presente em minha vida. Verdadeiramente “Seus pensamentos são mais altos do que os meus”.

RESUMO

A pesquisa busca investigar o modo como a mulher negra, na figura da empregada doméstica, é retratada na televisão brasileira, utilizando como estudo de caso a telenovela Cheias de Charme. O trabalho tem início com uma análise histórica da atuação das mulheres negras no mercado de trabalho brasileiro. Em seguida, são discutidas as particularidades referentes ao trabalho doméstico no Brasil e, também, como se constroem as relações entre as empregadas domésticas e seus patrões. Questões relacionadas à subalternidade e invisibilidade das domésticas são abordadas. É realizada também uma análise sobre o histórico das telenovelas na televisão brasileira, levando a uma discussão crítica sobre as personagens negras nessas tramas. O trabalho busca, contudo, verificar através do estudo de caso, como a novela Cheias de Charme retrata a protagonista negra, em uma análise comparativa com as duas personagens brancas, também domésticas. A abordagem da pesquisa permite chegar a uma discussão sobre a plausibilidade da telenovela enquanto produto oferecido para a classe C e sobre o modo como a trama pode contribuir para a perpetuação dos estereótipos relacionados à mulher negra.

Palavras-chave: Mulher negra. Empregada doméstica. Estereótipos raciais. Telenovela. Televisão.

ABSTRACT

The research aims to investigate how the black woman characterized as a house cleaner is pictured on Brazilian television, through the case of study of Cheias de Charme soap opera. The paper begins with a historical analysis of the role of black women in the Brazilian labor market. Then we discuss the peculiarities related to domestic work in Brazil and how to build relationships between the house cleaners and their employers. Issues related to subordination and invisibility of the house cleaners are addressed. The history of the Brazilian television soap operas is analyzed, leading to a critical discussion of the black characters in the plots. The work aims, however, to verify through case of study how Cheias de Charme soap opera portrays the black protagonist in a comparative analysis with two white characters, also house cleaners. The research approach allows arriving at a discussion of the plausibility of the soap opera as a product offered for C class and about how the plot can contribute to the perpetuation of stereotypes related to black woman.

Keywords: Black woman. House cleaners. Racial stereotypes. Soap operas. TV.

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Gráfico 1 - Rendimento médio real do trabalho das pessoas ocupadas, por sexo ........................... 24 Gráfico 2 - Taxa de desocupação da população branca, por sexo, segundo os grupos de idade .... 25 Gráfico 3 - Participação na população ocupada, por grupamentos de atividade, segundo o sexo ... 26 Gráfico 4 – Taxa de ocupação com serviço doméstico ................................................................... 27 Gráfico 5 - Trabalhadores domésticos ocupados com 11 anos ou mais de estudo, segundo o sexo 33 Gráfico 6 - Pessoas ocupadas com serviço doméstico e com carteira assinada, segundo o sexo ... 36 Gráfico 7 - Rendimento médio real das pessoas ocupadas com serviço doméstico, por sexo ......... 37 Gráfico 8 – Telespectadores de TV separados por classe econômica ............................................. 42 Gráfico 9 - Telespectadores de TV separados por Faixa Etária ...................................................... 43 Gráfico 10 - Programação noturna (18h – 00h) de segunda a sexta ................................................ 43 Imagem 1- “Gabrielas” interpretadas na televisão .......................................................................... 53

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................................................... 9 2 A MULHER NEGRA E SEU LUGAR NO MERCADO DE TRABALHO.......................................................... 13 2.1. Período colonial até a abolição dos escravos (século XVI até XIX) ................................................. 13 2.2. Pós-Abolição (Século XIX – 1930) ................................................................................................. 18 2.3. Situação Atual ............................................................................................................................. 21 Gráfico 2 - Taxa de desocupação da população branca, por sexo, segundo os grupos de idade (%) ..... 25 3 AS ESPECIFICIDADES DO TRABALHO DOMÉSTICO............................................................................... 29 4 A TELENOVELA BRASILEIRA E A REPRESENTAÇÃO DO NEGRO: ENTRE A INVISIBILIDADE E O REFORÇO DOS ESTEREÓTIPOS ............................................................................................................... 39 4.1. Breve histórico sobre a televisão e a telenovela brasileira .......................................................... 39 4.2. Perfil da televisão brasileira e de seus consumidores ................................................................... 42 4.3. Discussão da temática racial nas novelas: realidade ou mito? ...................................................... 44 4.4.Os personagens negros nas telenovelas brasileiras ....................................................................... 49 5 ESTUDO DE CASO – TELENOVELA CHEIAS DE CHARME ....................................................................... 58 5.1.Sobre a telenovela........................................................................................................................ 58 5.2.Motivações para produção da novela ........................................................................................... 61 5.3.Descrição da metodologia ............................................................................................................ 63 5.4. O estudo de caso ......................................................................................................................... 63 5.4.1. Descrição e análise das personagens................................................................................64 5.4.2. Descrição Física ...............................................................................................................65 5.4.3. Descrição comportamental ..............................................................................................66 5.4.4. Descrição Social ...............................................................................................................67 5.4.5. Análise da trama ..............................................................................................................68 6 CONCLUSÃO ....................................................................................................................................... 89 7 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................................................... 95

1 INTRODUÇÃO Em 2007, durante a redação da monografia intitulada Tá Rindo de Quê? Preconceito Racial em Programas Humorísticos de Televisão (JULIO, 2007), o interesse pelo estudo social da televisão e o seu papel na discussão sobre a retratação do racismo começou a se desenvolver e, logo, percebeu-se a complexidade do assunto e as vastas opções de estudo que ele apresentava. Cinco anos depois, em 2012, um novo fôlego contribuiu para uma busca mais intensa dessa relação. Com o amadurecimento das ideias motivadoras da pesquisa anterior e as recentes discussões e aprendizados sobre a história do negro no Brasil e suas influências na sociedade, formou-se uma rede de pensamentos, tecidos pelas complexas observações sobre a temática racista e suas relações com as questões de gênero e classe. Desse modo, a partir da experiência no campo da Comunicação Social e do conhecimento adquirido sobre a televisão como veículo de massa de extrema relevância na construção e reconstrução de identidades, surgiu o interesse de analisar a presença da mulher negra em telenovelas, com o foco nas personagens empregadas domésticas. Para a realização desta verificação, decidiu-se fazer um estudo de caso com a primeira novela com protagonistas empregadas domésticas, qual seja: a telenovela Cheias de Charme, exibida entre abril e setembro de 2012, no horário das 19 horas, na Rede Globo. Além de apresentar as domésticas como protagonistas – interpretadas por atrizes fenotipicamente identificadas como loira, morena e negra - as mesmas possuem uma ascensão social marcante na trama, já que se tornam cantoras nacionalmente famosas nos primeiros meses da novela. A análise se estenderá à percepção de como essas personagens domésticas são vistas antes e após sua fama, checando se o autor atribuiu à personagem negra estereótipos relegados às mulheres negras na sociedade antes e após sua ascensão social. Será feita, também, uma macro análise dos aspectos que circundam a temática principal, como: análise do papel da empregada doméstica nas famílias para as quais trabalham; análise das razões que levam as mulheres ao exercício do serviço doméstico de maneira quase que exclusiva; e as particularidades das mulheres negras no exercício desta profissão, através de uma verificação histórica de seu papel na “família brasileira” desde o período da escravidão.

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Percebe-se que, ainda nos dias atuais, as mulheres negras sofrem com os resquícios da memória do cativeiro presente no imaginário da sociedade. Elas possuem as piores remunerações do mercado de trabalho, povoam as listas do desemprego e do subemprego no Brasil e frequentemente são vítimas de violência física e psicológica. Desse modo, é possível afirmar que o fenômeno da invisibilidade da mulher, além de social e intelectual, também é espacial e étnico, visto que a mulher negra e pobre torna-se ainda mais invisível à história e à sociedade do que a branca. O embasamento teórico da presente monografia privilegiou autores como Gilberto Freyre, Sonia Giacomini e Sueli Carneiro, que foram importantes referências para a reflexão sobre o papel da mulher negra no mercado de trabalho. A obra de Jurema Brittes também foi fundamental para exemplificar os espaços e lugares invisíveis existentes no âmbito da casa, e o livro “A Casa e a Rua”, do antropólogo Roberto DaMatta, esmiuçou o caráter dual e paradoxal da sociedade brasileira, com uma lógica servindo para as relações privadas (a casa) e outra lógica bem distinta orientando as relações públicas (a rua) e os padrões de relações existentes nestes âmbitos. O autor delimitou, com uso de exemplos consistentes, uma maior naturalidade e fluidez nas relações que ocorrem dentro de casa, assim, nos permitindo, inclusive, compreender as relações de afeto desenvolvidas entre patrões e empregadas domésticas. Entretanto, a forte hierarquia social presente nas ruas reverbera dentro da casa e influencia de maneira marcante esta relação. A conflitante relação “casa versus espaço de trabalho” se mantém forte por conta da delimitação física do espaço, dos prazeres e deveres da empregada doméstica. A mulher que, muitas vezes, deixa os próprios filhos para cuidar dos filhos dos outros retrata, de certa forma, a atualização da “mãe preta”, da ama de leite dos tempos da escravidão As obras de Joel Zito Araújo e de Solange de Lima auxiliarão a mapear a presença dos negros no audiovisual e, desse modo, preparar o leitor para a análise crítica a ser realizada no estudo de caso da novela Cheias de Charme. Segundo Araújo (2004), a indústria da telenovela é uma poderosa cortina que dificulta a percepção dos estereótipos negativos sobre os afro-brasileiros e provoca falta de reconhecimento da importância dos atores e atrizes negras na história do cinema e da televisão do país. Os autores também serão utilizados quando for discutida a questão mercadológica do audiovisual, em especial das novelas. Com o crescimento da classe C, estimulado pelos incentivos econômicos promovidos pelo governo, as emissoras televisivas adaptaram rapidamente seus produtos para dialogar de maneira mais direta com este segmento social 10

emergente. A classe C passou de coadjuvante à protagonista. Nesse sentido, a presente pesquisa procura observar se a prioridade na elaboração de produtos para a classe C privilegia ou não os negros e a abordagem da temática racial, já que 80% desse segmento é composto por afro-brasileiros. Um dos estímulos para a realização deste trabalho foi a percepção da imagem construída sobre a mulher negra nos diversos espaços, públicos ou privados. A escrava que desempenhava a função de mucama, criada, ama-de-leite e da “mãe preta” foi projetada, ou melhor, recriada na mulata sensual, na empregada doméstica e na babá (GIACOMINI, 2013). De maneira breve, analisaremos estes trajetos e deslocamentos percorridos pela mulher negra até chegarmos na situação atual, que estimulou inclusive a criação da novela que será analisada. Face ao exposto, a questão que norteará a pesquisa será: é possível estabelecer uma diferenciação entre as personagens empregadas domésticas retratadas na novela Cheias de Charme em função da cor? O que fez com que as empregadas domésticas, normalmente invisibilizadas nas telenovelas brasileiras, assumissem o papel de protagonistas? Pretendemos investigar se a telenovela Cheias de Charme contribuiu ou não para o agravamento do estereótipo de inferioridade social atribuído às domésticas, principalmente às empregadas domésticas negras. Para o desenvolvimento das ideias aqui apresentadas, exploraremos o assunto em quatro diferentes capítulos, seguidos de conclusão, tais como explicitados a seguir: O primeiro capítulo apresenta uma análise sobre a presença das mulheres negras no mercado de trabalho no Brasil, através de uma breve verificação histórica de seu papel na sociedade. Acreditamos que devemos começar os estudos pela raiz da questão, de modo que possamos desenvolver a pesquisa com elementos concretos do mundo do trabalho feminino. Para facilitar a leitura, dividiremos esse primeiro capítulo em três partes: (1) período colonial até abolição dos escravos; (2) pós-abolição; e (3) situação atual. Entendemos que a revisão do período da vinda da mulher africana para o Brasil, no século XVI, até a situação contemporânea, no século XXI, pode colaborar para mapearmos nos próximos capítulos as heranças dos sistemas de trabalho que a mulher negra esteve inserida e como ele evolui para o trabalho doméstico contemporâneo. O segundo capítulo descreve as peculiaridades do trabalho doméstico no Brasil, o “lugar” da empregada na sociedade, em seu trabalho e qual seu papel na dinâmica familiar brasileira. Apresentaremos dados estatísticos sobre a participação da mulher no mercado de 11

trabalho nos últimos anos e um recorte especial sobre o trabalho doméstico. Serão vistas as heranças da subalternidade e invisibilidade herdadas da história recente, vistas no primeiro capítulo, e sua situação atual que se configura nos conflitos e ambiguidades das relações entre patroas e empregadas. Após esta análise, o terceiro capítulo fará um breve resumo sobre a história da televisão e das telenovelas no Brasil, abordando a história da presença dos negros na televisão, especialmente das mulheres negras. Analisaremos também seus papéis e sua visibilidade nas telenovelas ao longo dos anos, o que nos permitirá entender melhor o caráter exclusivo da novela estudada, que possui três domésticas como protagonistas, sendo uma delas negra. O capítulo será subdividido em três partes. A primeira trará informações sobre o perfil do consumidor brasileiro de televisão e telenovelas. A segunda analisará se existe ou não uma discussão sobre a temática racial nas novelas e a última trará um panorama e uma análise sobre a quantidade e o tipo de personagens interpretados por atores negros nas telenovelas. O quarto capítulo versará, de maneira mais direta, sobre a novela Cheias de Charme. Inicialmente se apresentará um resumo da trama, para situar o leitor sobre o enredo e as motivações para a sua criação, já que a classe C não havia sido o foco da produção televisiva anteriormente. Para elucidar os próximos passos do trabalho, descreveremos a metodologia realizada na análise da novela, fragmentada pelos personagens protagonistas e suas características e a análise da trama, que irá estudar separadamente o comportamento das personagens antes e depois da fama. O objetivo é observar a existência, ou não, de estigmas relacionados à cor na protagonista negra. A partir dos elementos desenvolvidos nesses capítulos iremos traçar, na conclusão, possíveis respostas às questões aqui levantadas. Entendemos que a realização de uma pesquisa que cruzará aspectos históricos, econômicos e sociais da mulher no mercado de trabalho, sua atualização na sociedade contemporânea na figura das empregadas domésticas e sua representação na mídia, especialmente por meio das telenovelas, trará uma contribuição relevante paras os estudos sobre a visibilidade, os papéis e os espaços femininos na sociedade contemporânea.

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2 A MULHER NEGRA E SEU LUGAR NO MERCADO DE TRABALHO Há décadas percebemos, na sociedade brasileira, disparidades sobre o que diz respeito à delicada situação envolvendo gênero e etnia no mercado de trabalho brasileiro, principalmente no tocante a mulher negra, que comprovadamente experimenta as condições mais precárias e vulneráveis de trabalho. Temos observado que nos períodos marcantes da história dos afrodescendentes no Brasil, a mulher negra passou por situações específicas que determinaram e influenciaram sua posição e espaço na sociedade brasileira. Antes de realizar uma análise sobre a mulher no mercado de trabalho, precisamos salientar que os estudos sobre o tema que incluem a cor como um marcador analítico são relativamente recentes. A maioria dos estudos se concentra em analisar as disparidades presentes entre homens e mulheres, ou seja, entre os gêneros. Por isso, essa pesquisa pretende analisar as particularidades das mulheres negras no mercado de trabalho, através de uma breve verificação histórica de seu papel na sociedade desde o período da vinda da mulher africana para o Brasil, no século XVI, até a situação contemporânea, no século XXI. Não pretendemos fazer uma cronologia, e sim analisar alguns momentos históricos que ajudam na compreensão do cenário atual. E, por isso, faremos a divisão dos capítulos em três subseções: período colonial até abolição dos escravos; pósabolição; e situação atual.

2.1. Período colonial até a abolição dos escravos (século XVI até XIX) As relações comerciais entre os europeus e os africanos tiveram início antes do processo de colonização brasileiro. O tráfico negreiro, extremamente lucrativo, era uma das principais atividades comerciais que envolvia estes dois povos (a cachaça e o fumo eram trocados por escravos, por exemplo). Provavelmente, a expansão europeia sobre o continente africano foi o principal agente facilitador da entrada dos negros no Brasil, O uso desta mão-de-obra negra como força de trabalho na Europa ou nas colônias europeias utilizou a escravidão como prática social de dominação, a qual usava a força para exercer seu “direito de propriedade”. Pretendemos considerar, no presente estudo, a escravidão não somente como um instrumento de dominação, mas também como instrumento de composição da mão-de-obra no Brasil, analisando suas influências e consequências, mais especificamente no caso das mulheres negras. 13

Nesta sociedade brasileira em construção, que atribuía aos brancos a referência social, cultural e religiosa, o patriarcalismo marcou as relações de poder que envolviam homens brancos e mulheres, sejam brancas ou negras, e entre mulheres brancas e negras. A dominação e o controle exercidos pela figura masculina criou papéis sociais e sexuais distintos para cada uma delas, como mostra Alecsandro Ratts.

Neste sentido, entendo que, no Brasil, essa subalternização do gênero implica na seguinte hierarquia: Em primeiro lugar situa-se o homem branco; em segundo, a mulher branca; em terceiro, o homem negro; e, por último, a mulher negra. (RATTS, 2003, p.4)

É importante salientar que a desigualdade de gêneros, mesmo entre os brancos, sempre colocou homens e mulheres em patamares desiguais. As mulheres brancas contraíam matrimônio através de casamentos arranjados por suas famílias, de acordo com seus interesses econômicos. Seu papel dentro da nova família era de gerar filhos e administrar as tarefas a serem executadas pelas escravas negras, que eram o “objeto” da casa, à disposição dos caprichos sexuais dos senhores e às humilhações e mutilações promovidas pelas ociosas e ciumentas sinhás. Não são dois nem três, porém muitos os casos de crueldade de senhoras de engenho contra escravos inermes. Sinhá-moças que mandavam arrancar os olhos de mucamas bonitas e trazê-los à presença do marido à hora da sobremesa, dentro da compoteira de doce e boiando em sangue ainda fresco. Baronesas já de idade que por ciúme ou despeito mandavam vender mulatinhas de quinze anos a velhos libertinos. Outras que espatifavam a salto de botina dentaduras de escravas; ou mandavam-lhes cortar os peitos, arrancar as unhas, queimar a cara ou as orelhas. Toda uma série de judiarias. (FREYRE, 2006, p.421)

Apesar de Freyre apresentar em sua obra Casa-grande e Senzala os abusos cometidos pelas senhoras brancas, em outros momentos ele tenta amenizar essa relação de crueldade e submissão. Mas aceita, de modo geral, como deletéria a influência da escravidão doméstica sobre a moral e o caráter do brasileiro da casa-grande, devemos atender às circunstâncias especialíssimas que entre nós modificaram e atenuaram os males do sistema. De logo salientamos a doçura nas relações de senhores com escravos domésticos, talvez maior no Brasil do que qualquer outra parte da América. (FREYRE, 2006, p. 435).

Por mais que Freyre se esforçasse em atenuar a tensão entre senhoras e escravas, como mostra a contradição presente nos dois trechos selecionados acima, a literatura recente sobre o assunto comprova a ausência de “doçura” nesta relação de poder.

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Giacomini em sua obra Mulher e Escrava mostra um rico e detalhado panorama da mulher negra no período colonial, e as particularidades da relação das mulheres da casagrande com o trabalho doméstico que era administrado por elas. “Poderíamos dizer que, neste aspecto, a senhora branca seria a versão doméstica e feminina do feitor” (GIACOMINI, 2013, p.88). Outra marca da dominação doméstica, que transformava a escrava negra em mero objeto, era a exploração sexual brutal exercida pelos senhores. A lógica da sociedade patriarcal que determina e localiza o homem como superior à mulher, permitiu, no caso da mulher negra, a criação de estigmas que justificassem a série de abusos e violências sexuais sofridos. O forte apelo à sexualidade presente na mulata e a ausência de valores religiosos (católicos) e morais funcionavam como justificativas no discurso da sociedade colonial. A relação sexual era óbvia diante dos apelos da escrava. (...) mas sim os atributos físicos da escrava, negra ou mulata, que provocariam o desejo do homem branco... A inversão é total: o senhor é que aparece como objeto no qual se realiza a “superexcitação genésica”1 da negra, tornando “inevitável” o ataque sexual. (GIACOMINI, 2013, p.70).

Para os senhores e senhoras de engenho a presença negra escrava poderia “contaminar” os brancos com a cultura africana, considerada como inferior. Freyre tinha uma visão particular sobre essa influência africana, principalmente sobre o que diz respeito ao trabalho executado pelas escravas no cuidado dos filhos dos senhores. Na ternura, na mímica excessiva, no catolicismo em que se deliciam nossos sentidos, na música, no andar, na fala, no canto de ninar menino pequeno, em tudo que é expressão sincera de vida, trazemos quase todos a marca da influência negra. Da escrava ou sinhama que nos embalou. Que nos deu de mamar. Que nos deu de comer, ela própria amolengando na mão o bolão de comida. Da negra velha que nos contou as primeiras histórias de bicho e de mal-assombrado. (FREYRE, 2006, p. 367)

Precisamos ficar atentos para a visão que alguns autores do início do século XX possuem. Gilberto Freyre, por exemplo, retrata o trabalho “materno” executado pela escrava negra de maneira romanceada e com eufemismos que, autores como Sônia Giacomini e Sueli Carneiro questionaram através de suas pesquisas realizadas no final do século XX e início do século XXI.

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Ver, a esse respeito, Nina Rodrigues, 1938.

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A mulher negra era vista como um “agente corruptor” do lar pelo simples fato de levar para a casa-grande a influência africana, as palavras, as cantigas e de ser “a coisa sem valor” que, de um jeito ou de outro, estava destinada a servir os brancos da casa-grande. A relação entre brancos e negros na casa-grande era permeada por tensões e conflitos. Pondo de parte outras cousas, hé costume cantar aos meninos e de ordinário, estes só ouvem nos berços cantigas sem significação ou em lingoa de pretos, e quando as amas são melhores, todas essas cantilenas são cheias de busões, fanatismos superstições, terrores e corcundismos, e muitas vezes são lascivas e todas só proprias para lançar sementes de estupidez, ou de corrupção nas tenras alminhas de nossos filhos. (O Mentor das Brazileiras,18402 apud GIACOMINI, 2013, p.51)

No trabalho doméstico (é preciso relembrar que a mulher negra também tinha outras ocupações pré-determinadas pelos senhores, como trabalhar na lavoura ou se prostituir) eram exploradas para cozinhar, cozer, ser acompanhantes, amas-de-leite, cuidadoras, além de serem exploradas sexualmente, como já mencionamos. Giacomini traz em sua obra uma rica pesquisa sobre os trabalhos realizados pela mulher negra escrava, com destaque para as amas-de-leite. Analisando jornais da época e relatos de viajantes, a autora mostra que a função não era exercida somente dentro da casagrande de seu senhor. Reforçando mais uma vez seu papel de “objeto” doméstico, após perder a função de amamentar os filhos de seu senhor, a escrava era vendida ou alugada para alimentar o bebê de outra senhora branca. Muitas vezes este ciclo chegava a durar mais de uma década. Aluga-se uma preta para ama com muito bom leite, de 40 dias e do primeiro parto, é muito carinhosa para crianças, não tem vicio algum e é muito sadia; e também se vende a cria. (Jornal do Commercio, 18503 apud GIACOMINI, 2013, p.55)

Pelas normas sociais vigentes, principalmente na Europa do século XVII4, a amamentação era considerada uma tarefa negativa que reduziria a mulher à condição de animal e, por isso, as mulheres brancas não deveriam se sujeitar à esse trabalho. Delas era a imagem da pureza, da virtude, do catolicismo imaculado e da bondade. Este serviço foi delegado às escravas negras que, na maioria das situações, não tinham autorização do senhor para amamentar seu próprio filho, fato que propiciou um infanticídio de bebês negros. A

O Mentor das Brazileiras. São João d’El Rei, Typ. Do Astro de Minas, 1829-1832. Jornal do Commercio. Rio de Janeiro, 1850,1871. 4 Ver, a esse respeito, Ichisato e Shimo, 2002. 2 3

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obrigação de amamentar o filho da senhora branca trouxe outra trágica consequência para a escrava negra: a negação de sua maternidade. Contrapondo-se à esta visão, Freyre em diversos momentos projetou “candura” ou “carinho” na relação da ama-de-leite com o bebê de seus senhores, como se ela assumisse a maternidade da mulher branca em termos afetivos, inclusive. A obrigação deste trabalho, e a anulação da sua condição de mãe, pelo contrário, nos mostram a brutalidade da dominação masculina escravocrata sobre o corpo da mulher escrava negra. Para os senhores brancos, a presença de um escravo diariamente na casa-grande era motivo de “alerta constante”, principalmente com as crianças. Toda e qualquer influência vinda do negro era vista como corruptora e lasciva. Apesar deste pensamento, a inegável influência deste gerou reflexo na formação cultural e linguística das crianças brancas. À figura da boa ama negra que, nos tempos patriarcais, criava o menino lhe dando de mamar, que lhe embalava a rede ou o berço, que lhe ensinava as primeiras palavras de português errado o primeiro “padre-nosso”, a primeira “ave-maria”, o primeiro “vote!” ou “oxente”, que lhe dava na boca o primeiro pirão com carne e molho ferrugem (...). (FREYRE, 2006, p.419)

Estudos clássicos, como o realizado por Gilberto Freyre em Casa-grande e Senzala, destacam o papel da mulher negra na preservação da cultura africana no Brasil e no processo de miscigenação ocorrido por conta do trânsito entre diversos membros da sociedade branca, mesmo que como escrava, desde a infância até a sua senioridade. Paralelo à isso, devemos relembrar que a Europa do século XVIII ao XIX, buscava justificar através das ciências, seja da saúde ou humanas, a inferioridade do negro e a suposta superioridade caucasiana europeia. O filósofo alemão Friedrich Hegel (1770 - 1831) em seu livro "Filosofia da História Universal", formalizou algumas destas ideias que circularam no mundo e colaboraram para a construção do imaginário de que os negros são seres inferiores.

A principal característica dos negros é que sua consciência ainda não atingiu a intuição de qualquer objetividade fixa, como Deus, como leis, pelas quais o homem se encontraria com a própria vontade, e onde ele teria uma ideia geral de sua essência [...] O negro representa, como já foi dito, o homem natural, selvagem e indomável. Devemos nos livrar de toda reverência, de toda moralidade e de tudo o que chamamos sentimento, para realmente compreendê-lo. Neles, nada evoca a ideia do caráter humano[...] A carência de valor dos homens chega a ser inacreditável. A tirania não é considerada uma injustiça, e comer carne humana é considerado algo comum e permitido [...] Entre os negros, os sentimentos morais são totalmente fracos – ou, para ser mais exato, inexistentes. (HEGEL, 1999, p. 83-86).

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A cadeia econômica e social que envolve a mulher na sociedade escravista acompanha a mulher negra mesmo após o processo abolicionista. Exercida em nome de um princípio simbólico conhecido e reconhecido tanto pelo dominante quanto pelo dominado, as mulheres negras continuaram com um espaço delimitado e submissas às regras criadas pelos brancos para seu próprio benefício. 2.2. Pós-Abolição (Século XIX – 1930) Primeiramente, é necessário expor a dificuldade de encontrar uma bibliografia específica sobre a mulher negra no pós-abolição. Pelos significantes trabalhos realizados por Gilberto Freyre e Nina Rodrigues, acredita-se que a análise crítica destas duas grandes obras tenha estimulado pesquisadores a desenvolver trabalhos sobre o período colonial, inclusive verificar as afirmações dos autores antes mencionados.

Buscar compreender as relações entre o processo de emancipação dos escravos nas Américas e seu destino nas antigas sociedades escravistas é atitude relativamente recente entre os historiadores. Isso não significa dizer que a preocupação com o período pós-abolição, especialmente no que se refere ao estudo das relações raciais, seja recente. Pelo contrário, é questão bastante antiga. No entanto durante muitos anos considerou-se mais ou menos a mesma coisa estudar as relações raciais no pósabolição ou o destino das populações libertas, considerando ambas as situações uma herança do período escravista. Mesmo a preocupação sistemática com a escravidão em si se desenvolveu, em grande parte, como uma função da preocupação sobre as relações raciais, que eram percebidas de forma quase naturalizada como herança direta da escravidão moderna, muitas vezes chamada de escravidão racial. (RIOS; MATTOS, 2005, p.17)

A alteração na forma de condução da força de trabalho negra, que agora era liberta e remunerada, em nada modificou o status quo do negro. Apesar de livre, continuou à margem da sociedade e com chances limitadas de ascensão. O direito de ir e vir não foi suficiente para que as barreiras históricas fossem quebradas. Institucional e politicamente, nenhuma medida foi criada para integrar os negros à esta nova ordem competitiva 5 e nenhuma ferramenta foi desenvolvida para facilitar este processo. O fim da escravidão era um “mal inevitável” para a nova estrutura urbana e econômica. Contudo, a aceitação desses novos homens e mulheres negros na sociedade sofreu uma série de entraves, orquestrados pela esfera política da época. 6

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Ver, a esse respeito, Fernandes, 2008.

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Partilharam de tal modo da rede de ocupações e de oportunidades abertas pelo “estilo urbano de vida” que acabaram eternizando os inevitáveis desajustamentos iniciais, nascidos da crise do antigo regime, e se convertendo rapidamente, em toda a plenitude, numa população em desorganização social crônica (FERNANDES, 2008, p.161). Sobre a “população negra” da capital nas três primeiras décadas do século XX. Estabeleceu-se um verdadeiro e insuperável círculo vicioso entre a herança sociocultural, transplantada da senzala e do antigo regime, e a exclusão permanente do negro e do mulato das formas de “ganhar a vida”, nascidas da revolução urbana e industrial. (FERNANDES, 2008, p,172)

Uma destas articulações políticas possibilitou o mais significativo acontecimento que determinou a história dos negros e sua relação com o mercado de trabalho brasileiro: a imigração europeia. Como falado anteriormente, a visão que o branco tinha do negro era de inferioridade, de incapacidade e de inutilidade. Eram vistos como pessoas de história cultural inferior cujo contato contaminava a família branca. Como forma de substituir a mão-de-obra negra em um projeto obscuro de branqueamento da população brasileira, através da substituição da mão-de-obra, a máquina pública financiou e organizou a vinda destes imigrantes, principalmente para o trabalho nos centros urbanos 7. Já nos primeiros anos da década de 1880, antes da abolição da escravatura, uma série de medidas foram tomadas para favorecer e promover a imigração desta “raça favorecida”. O senso comum parece concordar com a tese de que a imigração europeia foi uma iniciativa positiva para o Brasil, impulsionadora dos lucros. Contudo, o grande projeto político de imigração foi construído e pautado em uma simples razão: substituir a mão-de-obra negra, com o intuito de eliminar o convívio entre os brancos e a raça dita “inferior”. Por isso era preciso desvalorizar a mercadoria escravo mediante a decretação de altos impostos e ao mesmo tempo fazer com que estes subsidiassem a imigração, o que gradualmente forçaria os proprietários mais arraigadamente escravistas a recorrerem ao braço livre europeu. Ao mesmo tempo, o incentivo à imigração também nas cidades e vilas provocaria um êxodo dos negros e mestiços, livres ou não, de áreas urbanas para o interior, onde eles seriam empregados pelos grandes proprietários rurais. (AZEVEDO, 2004, p.143)

Com este cenário, para a mulher sobrou o trabalho doméstico, que se apresentou como uma atualização do papel exercido na casa-grande. O trabalho era realizado, muitas das vezes, em troca de um lugar para dormir e de comida. Além da exaustiva rotina doméstica nas casas dos brancos, muitas vezes ainda trabalhavam nas ruas e feiras das cidades vendendo frutas e

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Ver, a esse respeito, Azevedo, 2004. Ver, a esse respeito, Azevedo, 2004.

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outros objetos. Os homens, por sua vez, estavam na maioria desempregados e com dificuldade de ter uma vida segura e constante economicamente. Apenas conseguiam arrumar empregos em posições entendidas como "degradantes” pela sociedade. Apesar da “estabilidade” profissional que as mulheres conquistaram, as relações entre a mulher negra e a branca, dentro do ambiente doméstico, se mantiveram muito parecidas com as relações mencionadas anteriormente no período escravocrata. Há muitos anos já não lhe era permitido sair à rua pelos donos da casa, nem mesmo acompanhando a família. Não tinha licença de chegar à porta da rua. Não era bem tratada na casa de Júlio Ramalho, sofrendo ali castigos por parte da mulher daquele cidadão, Fabrícia Ramalho. Era castigada com chicote, tomava bofetadas, murros nas costas e nos braços, dos quais, em consequência dessas pesadas pancadas, mal podia erguer à altura da cabeça. Que Fabrícia Ramalho, além de espancá-la constantemente, dava-lhe bofetões na boca, com os quais lhe arrancou os dentes. (DOMINGUES, 20048, p. 249 apud ARAÚJO, 2013, p. 28)

Esse cenário permitiu que o modelo da família negra tivesse outra organização se comparada à tradicional burguesa: nuclear, monogâmica, composta por marido, mulher e filhos, em regime patriarcal. A família da “plebe negra” era formada por mãe e filhos, eventualmente por tios, avós e netos, o que infere o papel que a mulher assumia nesse sistema: o de autoridade máxima9. É interessante mencionar que o desenvolvimento do capitalismo alterou a dinâmica da vida das mulheres, tanto negras quanto brancas, através de experiências completamente diferentes. Em todo o período considerado (...) foram submetidos pela eclosão da ordem social competitiva e pela revolução urbana, completamente desfavorecidos pelos novos crivos socioeconômicos de peneiramento profissional e, por consequência, totalmente incapazes de assimilar os novos padrões de vida, associados às ocupações urbanas mais promissoras e rendosas. (FERNANDES, 2008, p.161)

Para as ex-escravas que não tinham êxito na tentativa de conseguir um trabalho doméstico, restava somente a prostituição. E, deve-se ressaltar, a prostituta corria riscos bem menores que as domésticas, além de ter um destino financeiramente melhor. 10 Vários informantes indicaram que as mães solteiras trabalhavam onde podiam, e quando não encontravam serviço tinham que recorrer à mendicância e à prostituição ocasional. (FERNANDES, 2008, p,170)

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DOMINGUES, P. Uma história não contada: negro, racismo, e branqueamento em São Paulo no pósAbolição. São Paulo: SENAC, 2004. 9 Ver, a esse respeito, Araújo, 2013.

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Em alguns momentos, Fernandes apresenta abordagens consideradas, hoje, exageradas. Suas conexões sobre o passado (escravocrata) e o presente (pós-abolição), algumas vezes provocam certo desconforto sobre o que diz respeito ao mercado de trabalho e às funções exercidas por homens e mulheres negros. Para ele, a falta de êxito para ascender nesta nova ordem social estava associada à questão da raça, que já havia deixado rastros, traumas e bloqueios concretos neste grupo. A desorganização imperante no meio social imediato auxiliava, naturalmente, a aprendizagem do vício e do crime. Mas não a impunha como um ajustamento desejável e preferível. Isto chegava a ocorrer porque os caminhos de autoafirmação se achavam bloqueados. Os mais audaciosos, impacientes e bem dotados (física e intelectualmente), muitas vezes optavam pelo crime ou pelo vício para evitar o lento suplício e a humilhação dos “serviços de negro” e “para negro”. Na experiência de cada um era simples e fácil separar as duas coisas onde conduzia a vida laboriosa das “pessoas ordeiras”. (...) Em suma, o “negro ordeiro” precisava se conformar com um duro e triste destino. Diante dele só se abriam as perspectivas oferecidas por uma sorte de especialização tácita, involuntária mas quase insuperável, que o mantinha eternamente preso aos “serviços de negro”, que consumiam o físico e o moral do agente de trabalho, dando-lhe em troca parca compensação material e uma existência tão penosa quanto incerta. Por isso, não é de se estranhar que muitos preferissem trilhar outro caminho, para “não se otário”, “não bancar o trouxa” ou “não vender o sangue como escravo”. O vagabundo, o ladrão ou a prostituta enfrentavam risco bem menores e construíam um destino comparativamente melhor. (FERNANDES, 2008, p.171)

É necessário dizer que, apesar de não termos mencionado as lutas do negro para entrar neste mercado de trabalho e suas formas de resistência a esse sistema excludente, sabe-se que houve mobilizações sociais para reverter este quadro de exploração feito por esta recém criada burguesia branca. Neste trabalho não pretendemos apresentar a luta da população afrodescendente contra a exclusão crônica, promovida pelas elites brancas, insensíveis à sua situação. A concentração deste tema será restrita à sua ligação ao mercado de trabalho, temática desse capítulo.

2.3. Situação Atual Ainda podemos perceber, nos dias atuais, os resquícios da memória do cativeiro presente no imaginário da sociedade, sobre a mulher negra. Elas possuem as piores remunerações do mercado de trabalho e povoam as listas do desemprego e do subemprego no Brasil. Como referido anteriormente, a posição de doméstica, que às mulheres negras vêm

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Ver, a esse respeito, Fernandes, 2008

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ocupando por séculos, contribuiu para gerar disparidades socioeconômicas que se perpetuam até hoje, ao compararmos com a situação econômica das mulheres brancas, ou ainda pior, com a dos homens brancos. O início do século XX marca o começo da luta das mulheres por visibilidade social e inserção no mercado de trabalho, contudo esta era uma demanda majoritariamente branca. Um dos grandes “erros” do feminismo era considerar as mulheres em sua generalidade, enquanto as diferenças de raça e de preferência sexual (esta última, principalmente da década de 90) fizeram significativa diferença neste contexto. A história do movimento feminista, de acordo com Toledo (2001), pode ser compreendida a partir de três grandes ondas. A primeira se situa no final do século XIX, denominado de movimento sufragista (luta por direito ao voto feminino) e por direitos democráticos (direito ao divórcio, educação completa, trabalho, etc.). A segunda, no final dos anos 60, a luta por liberação sexual, e a terceira, no final dos anos 70, uma luta de caráter sindical, protagonizada pela mulher trabalhadora, na América Latina. (RAIMUNDO; GEHEN; ALMEIDA, 2006, p.2)

Era preciso reconhecer que as mulheres brancas e negras estavam em situações distintas e mereciam uma atenção específica. O feminismo promoveu uma perspectiva universalista num discurso voltado para uma irmandade entre as mulheres e, desta forma, não dava ênfase às diferenças. É na década de 1980, diz Araújo (2001), que no seio do movimento feminista as mulheres negras começam a levar para as discussões as suas especificidades, tremulando uma nova bandeira de que eram mulheres, mas eram negras, logo, com especificidades da raça. (RAIMUNDO; GEHEN; ALMEIDA, 2006, p.4)

Ratts (2003) também desenvolve este conceito e exemplifica a dimensão espacial das relações de gênero e de raça como integrantes de construções sociais e relações desencadeadas por processos históricos distintos. “Dizendo de outra maneira, os espaços privados e públicos são vividos diferencial e desigualmente por homens e mulheres, qualificando uns de masculinos e outros de femininos, e por negros e brancos. Na sociedade brasileira, algumas dessas distinções não são exclusivas, o que não quer dizer que não existam”. (RATTS, 2003, p.1)

Dentro de sua obra, Ratts usa o conceito desenvolvido por Carneiro (2003) que mostra como a sociedade brasileira escravista e a relação entre gênero e raça provocaram uma subalternização do gênero segundo a raça, que predomina até os dias de hoje: “As imagens de gênero que se estabelecem a partir do trabalho enrudecedor, da degradação da sexualidade e da marginalização social, irão reproduzir até os dias de hoje a desvalorização social, estética e cultural das mulheres negras e a

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supervalorização no imaginário social das mulheres brancas, bem como a desvalorização dos homens negros em relação aos homens brancos. Isso resulta na concepção de mulheres e homens negros enquanto gêneros subalternizados, onde nem a marca biológica feminina é capaz de promover a mulher negra à condição plena de mulher e tampouco a condição biológica masculina se mostra suficiente para alçar os homens negros à plena condição masculina, tal como instituída pela cultura hegemônica”. (CARNEIRO, 200311 apud RATTS, 2003, p.4)

Apesar do movimento feminista ter conseguido abrir espaço para a mulher na esfera trabalhista e da liberdade sexual, por exemplo, esse movimento não conseguiu suprir as necessidades das mulheres negras. As mulheres brancas ainda continuaram em um patamar “superior” comparadas às mulheres negras, como maiores níveis de escolaridade, salários e melhores empregos. Atualmente, percebemos um quadro bem definido na família burguesa brasileira. Enquanto a mulher branca sai para trabalhar juntamente com seu marido, a mulher negra (que representa a maioria no serviço doméstico) fica “responsável” por realizar os trabalhos domésticos e cuidar das crianças. Assim sendo, é possível afirmar que o fenômeno da invisibilidade da mulher, além de social e intelectual, também é espacial e étnico, visto que a mulher negra e pobre torna-se ainda mais invisível à história e à sociedade que a branca. Outra peculiaridade pode ser observada no caso da trabalhadora negra que está inserida fora da esfera doméstica no mercado laboral. Alguns estudos realizados por Silva e Lima (1992) mostram que nas profissões que exigem mais exposição, ou seja, contato face a face com o consumidor, como é o caso das vendedoras, recepcionistas e secretárias, alguns padrões estéticos foram estabelecidos e, estes, excluem as trabalhadoras negras. Neste setor, as brancas e amarelas representam de quatro a cinco vezes mais que as negras. Nas profissões citadas anteriormente temos uma participação negra de 8,9%, 11% e 2,2%, respectivamente. (BENTO,1995, p.482). Para reforçar a tese, mostraremos dados estatísticos fruto de pesquisas realizadas em território nacional, primeiramente pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) e depois pelo SEPPIR (Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial). Nestes, especial atenção será dada às: disparidades de rendimento entre homens e mulheres (principalmente brancos e negras); as diferenças entre homens e mulheres no mercado de trabalho; penetração feminina no mercado por tipo de atividade; a presença das mulheres

CARNEIRO, Sueli. A mulher negra na sociedade brasileira – o papel do movimento feminista na luta antiracista. Brasília: Fundação Cultural Palmares. 2003 11

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brancas e negras no trabalho doméstico e as disparidades salariais entre homens e mulheres (principalmente brancos e negras). Através da publicação da pesquisa realizada pelo IBGE 12 - “A Mulher no Mercado de Trabalho”13 divulgada em 2012 no Dia Internacional da Mulher, observamos que o rendimento médio do trabalho das mulheres em 2011 foi de R$ 1.343,81, 72,3% do que recebiam os homens (R$ 1.857,63). Esses valores indicam uma evolução em relação ao ano de 2003, quando a remuneração média das mulheres foi de R$ 1.076,04. Entretanto, pelo terceiro ano consecutivo o rendimento feminino mantém a mesma proporção (72,3%) em relação ao rendimento dos homens, em 2003 as mulheres recebiam 70,8% do que recebia, em média, um homem. Entre 2003 e 2011, o rendimento do trabalho das mulheres aumentou 24,9%, enquanto que o dos homens apresentou aumento de 22,3%. Apesar do aumento da média, a grande disparidade entre ambos os sexos se mantém. Gráfico 1 - Rendimento médio real do trabalho das pessoas ocupadas14, por sexo (em R$ a preços de dezembro de 2011) – 2003-2011*

Fonte: IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de Trabalho e Rendimento, Pesquisa Mensal de Emprego 2003-2011. *Média das estimativas mensais. 12

Decidimos usar como critério principal a população ocupada e desocupada. O conceito de população economicamente ativa, que engloba os dois critérios anteriores, não daria conta da proposta e intenção da autora. 13 A pesquisa produz indicadores para o acompanhamento conjuntural do mercado de trabalho nas regiões metropolitanas de Recife, Salvador, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre. Trata-se de uma pesquisa domiciliar urbana realizada através de uma amostra probabilística. 14 Segundo o IBGE, a população ocupada, portanto, compreende as pessoas que tem trabalho, ou seja, os indivíduos que têm um patrão, os que exploram seu próprio negócio e os que trabalham sem remuneração em ajuda a membros da família.

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Antes de apresentarmos as taxas de desocupação 15 entre as mulheres brancas e negras, cabe ainda mostrar a média geral das mulheres por ano, para que possamos confirmar o que mencionamos anteriormente. Em 2003, a taxa de desocupação das mulheres de 25 a 49 anos foi de 11,9%, já em 2011 este número reduziu para 6,4%. Ao comparar as mulheres negras com as brancas segundo os mesmos critérios de idade percebemos que em 2003 as negras tiveram 14,2% e as brancas 10,4%. Em 2011 as negras 7,6% e as brancas 5,3%. Em 2003, a taxa de desocupação das mulheres pretas e pardas foi de 18,2% passando para 9,1% em 2011. A taxa de desocupação entre as mulheres brancas, em 2011, foi de 6,1%, menos da metade da registrada em 2003, quando foi de 13,1%. Consideramos importante mostrar a taxa de desocupação para ilustrar a inserção desses grupos no mercado de trabalho e suas disparidades.

Gráfico 2 - Taxa de desocupação da população branca, por sexo, segundo os grupos de idade (%) - (2003 e 2011)*

Fonte: IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de Trabalho e Rendimento, Pesquisa Mensal de Emprego 2003-2011.*Média das estimativas mensais.

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Segundo o IBGE, a população desocupada compreende as pessoas que não tem trabalho e estão efetivamente procurando, em um determinado período de referência e incorpora o conceito de disponibilidade para assumir o trabalho na semana de entrevista.

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O gráfico a seguir mostra os percentuais de participação de homens e mulheres em diversas áreas do mercado de trabalho, em relação à população ocupada. Como já foi mencionado anteriormente, a sociedade estabeleceu espaços masculinos e femininos que estão ligados intimamente à história de cada gênero. Essa análise permite observar que os homens representam a maior parte da população ocupada na indústria, construção e comércio em 2003 e 2011. Na indústria, por exemplo, os homens representaram em 2011, 64%, enquanto na construção 93,9%. Na administração pública e, sobretudo, nos serviços domésticos, a população ocupada feminina era maioria em 2011. Nas atividades historicamente generificadas praticamente não ocorreram alterações, como na construção, com os homens e nos serviços domésticos com as mulheres. Gráfico 3 - Participação na população ocupada, por grupamentos de atividade, segundo o sexo (%) – (2003 e 2011)*

Fonte: IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de Trabalho e Rendimento, Pesquisa Mensal de Emprego 2003-2011. *Média das estimativas mensais

O último gráfico nos mostra um cenário estereotipado e excludente para as mulheres no mercado de trabalho. As mulheres parecem estar fadadas ao trabalho doméstico, área que ocupou 94,8% em 2011, enquanto os homens ocuparam 5,2%. Segundo a 4ª edição do “Retrato de Gênero e Raça”, publicado pelo SEPPIR (Secretaria de Promoção de Políticas para as Mulheres), em 2011, a porcentagem relativa de homens e mulheres no trabalho doméstico remunerado em relação ao universo total de ocupados manteve-se estável no 26

Brasil. O contingente de mulheres dedicadas ao trabalho doméstico remunerado, 17,1%, em 2009, permanece expressivamente superior ao total de homens: 1,0% no mesmo ano. Com relação às raças, em 2009, 12,6% das mulheres brancas ocupadas eram trabalhadoras domésticas, enquanto 21,8% das mulheres negras desempenhavam a mesma função. Gráfico 4 – Taxa de ocupação com serviço doméstico

Fonte: SEPPIR (Secretaria de Promoção de Políticas para as Mulheres) - 2011

A pesquisa revela um dado interessante que nos faz ter uma lembrança da situação familiar negra no pós abolição. Ao longo dos últimos anos (1995-2009), a proporção de mulheres chefes de família aumentou mais de 10 pontos percentuais (p.p.), passando de 22,9%, em 1995, para 35,2% no ano de 2009. Isto significa que temos 21,7 milhões de famílias chefiadas por mulheres. Apesar de não se saber quais os critérios adotados pelas famílias para identificarem quem é o/a chefe, este aumento certamente indica mudanças no padrão de comportamento das famílias brasileiras. Ainda são percebidas situações de maior vulnerabilidade nos domicílios chefiados por mulheres negras, quando comparados aos domicílios chefiados por homens. A renda domiciliar per capita média de uma família chefiada por um homem branco é de R$ 997, ao passo que a renda média numa família chefiada por uma mulher negra é de apenas de R$ 491. Do mesmo modo, enquanto 69% das famílias chefiadas por mulheres negras ganham até um

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salário mínimo, este percentual cai para 41% quando se trata de famílias chefiadas por homens brancos. Há uma divisão do trabalho histórica e socialmente construída de forma atrelada às relações sociais entre os sexos. Essa divisão se caracteriza historicamente pela atuação dos homens na esfera pública e produtiva, e das mulheres na esfera privada e reprodutiva, separação essa que conferia aos homens a ocupação de cargos hierárquica e socialmente superiores (HIRATA; KERGOAT, 2007). Mesmo a inserção das mulheres na esfera pública e produtiva foi acompanhada pela manutenção dessa divisão e pela participação das mulheres em empregos precários e vulneráveis. (TEIXEIRA, 2013 p.4)

Os dados históricos, sociológicos e estatísticos levantados durante todo o capítulo, foram expostos com a finalidade de fundamentar a crítica sobre as peculiaridades do trabalho doméstico feminino, que será realizada no próximo capítulo.

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3 AS ESPECIFICIDADES DO TRABALHO DOMÉSTICO Após realizar uma breve revisão histórica sobre a mulher negra e a sua participação no mercado de trabalho no Brasil, partiremos para a análise da profissão que ocupa 17,1% 16 do trabalho feminino no Brasil: o trabalho doméstico. Primeiramente, devemos estabelecer os parâmetros do que envolve o trabalho doméstico feminino 17. Ele se trata, principalmente, do trabalho de administrar uma casa, limpar, cozinhar, passar, lavar, cuidar de crianças (exclusivamente, como é o caso das babás, ou não) e idosos. A mulher como dona de casa é uma identidade imposta, mas a deturpação da realidade está justamente em pensarmos que essa identidade é natural, ou seja, o espaço doméstico pertence à mulher. Essa ligação ou identidade é uma construção social, mas a sociedade, como mecanismo ideológico, naturaliza esse processo. Essa naturalização ocorre em certos momentos utilizando-se de um resultado da história, difundindo a crença de que esse papel sempre foi desempenhado pelas mulheres, ou mesmo é uma atribuição inclusa na capacidade de ser mãe. Na sociedade patriarcal a qual as mulheres possuem um papel, com valores definidos e subalternos, ser mulher e negra representa uma desvalorização ainda maior. A responsabilidade braçal da manutenção da ordem, limpeza e funcionamento domésticos é um agravante negativo à imagem já estigmatizada deste grupo. Como falado no capítulo anterior, nesta evolução do mercado de trabalho feminino, a mulher negra foi relegada aos piores espaços e segregada à trabalhos em grande parte operacionais ou braçais. “A má colocação da mulher negra no mercado de trabalho reafirma o processo de subalternização deste gênero segundo uma dimensão espacial” (DE PAULA, 2012, p.160). Quando Marise de Paula menciona “espacialidade”, entendemos como uma divisão ou segregação que marca posições e lugares sociais distintos de acordo com o gênero e etnia, ou seja, há lugares específicos para homens, mulheres, brancos e negros. Na obra “A Casa e a Rua”, o sociólogo Roberto DaMatta apresenta a “casa” e a “rua” como categorias sociológicas importantes para um entendimento da sociedade brasileira.

Segundo a 4ª edição do “Retrato de Gênero e Raça”, publicado pelo SEPIR (Secretaria de Políticas para as Mulheres), 17 No caso dos homens, as principais atribuições no trabalho doméstico são como zeladores, caseiros e motoristas. 16

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Quando digo então que “casa” e “rua” são categorias sociológicas para os brasileiros, estou afirmando que, entre nós, estas palavras não designam simplesmente espaços geográficos ou coisas físicas comensuráveis, mas acima de tudo entidades morais, esferas de ação social, províncias éticas dotadas de positividade, domínios culturais institucionalizados e, por causa disso, capazes de despertar emoções, reações, leis, orações, músicas e imagens esteticamente emolduradas e inspiradas. (DAMATTA, 1997, p.14)

Segundo DaMatta, a casa e a rua não se restringem à espaços físicos, sendo na verdade grandes “esferas de ação social”, que são opostas e ao mesmo tempo complementares. Para o nosso estudo, o qual pretende verificar as relações existentes entre membros que circulam dentro deste plano (casa) com as empregadas domésticas, é interessante trazer esta discussão que apresenta a casa e a rua como reflexos das ambiguidades presentes na sociedade brasileira. Não se percebia, ou muito pouco se discerniu, que, se a família era um ator tão aparentemente dividido ou corroído internamente pela desigualdade, ela se integrava plenamente no espaço da casa, espaço que somente se define e deixa apanhar ideologicamente com precisão quando em contraste ou em oposição a outros espaços e domínios. Assim, se a casa está, conforme disse Gilberto Freyre, relacionada à senzala e ao mocambo, ela também só faz sentido quando em oposição ao mundo exterior: ao universo da rua. (DAMATTA, 1997, p.15)

Uma leitura mais detalhada da obra de DaMatta nos permite entender que a casa e a rua representam grandes “entidades morais”. Desse modo, o conjunto de valores de um indivíduo varia radicalmente conforme o contexto em que ele se encontra: no ambiente de sua casa, o indivíduo tende a acreditar no diálogo, na valorização das individualidades. Na rua, por outro lado, aceita-se que todos devem ser tratados de forma igual segundo a lei de modo a manter a ordem. O contraste entre os dois conceitos é abrupto: a casa é o espaço da compreensão, do diálogo, da individualidade. A rua é o espaço da impessoalidade, do isolamento. Na relação com as empregadas domésticas, os patrões tendem a possuir posturas que misturam comportamentos adotados na casa e na rua. Apesar da proximidade física diária que ajuda a desenvolver relações de afeto e proximidade, a distância social que separa estes dois 18 indivíduos na rua (mundo exterior) traz a hierarquia presente na sociedade de classes que demarca os lugares de cada um. A casa, neste momento, reflete o distanciamento que a sociedade os submete.

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Espera-se que a empregada saiba que alguns lugares da casa são autorizados para sua circulação, como a área de serviço, a cozinha e as dependências de serviçais. São esses os locais demarcados para o seu descanso, para realização de suas refeições, para usar o telefone celular, dentre outros. O quarto dos patrões, o banheiro social, a sala de estar e a de jantar, são espaços de uso exclusivo dos patrões, exceto quando estiver realizando a limpeza dos cômodos. Acreditamos que quando DaMatta diz que “é possível ‘ler’ o Brasil de um ponto de vista da casa, da perspectiva da rua e do ângulo do outro mundo” (DAMATTA, 2007, p.18), o sentido é de que o Brasil pode ser interpretado tanto como “casa”, “rua” e “outro mundo”, já que todos esses construtos colaboram para a formação das nossas identidades. “Não há dúvida de que fica cada dia mais complicado viver numa sociedade onde se tem uma cidadania em casa, uma outra no centro religioso e outra ainda – essa tremendamente negativa – na rua” (DAMATTA, 1997, p.20). Podemos dizer que é esperado e legitimado na nossa sociedade que na casa e na rua os indivíduos possam ter padrões comportamentais, sociais, papéis e atitudes completamente diferentes. Não se espera, por exemplo, que a patroa use em uma emergência o banheiro da empregada em caso de necessidade ou que um alto executivo frequente o mesmo restaurante que assistente administrativo, por exemplo. Cada um possui um lugar determinado. A babá que cuida do filho do patrão como se fosse seu, pelas normas sociais e profissionais vigentes, nada mais faz do que sua obrigação. Na prática, sua função enquanto trabalhadora não inclui esta premissa, contudo as mães-patroas esperam que a relação babá-criança seja pautada por esta lógica. Sendo assim, podemos dizer que esta organização social entre empregadores – sobretudo mulheres e crianças – e os trabalhadores domésticos desenvolve uma relação de “ambiguidade afetiva”19. Quando mencionamos a afetividade neste plano organizacional, entendemos que a relação emocional que se desenvolve dentro das paredes da casa, que representa o portoseguro e refúgio dos patrões, é diferente da desenvolvida pelos patrões e funcionários em uma empresa, por exemplo. Neste último caso, a afetividade se restringe por encontros ocasionais fora do ambiente de trabalho, almoços frequentes e algumas conversas mais íntimas que

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Neste caso não queremos dizer somente a relação patroa-empregada, mas sim patrões (homens, mulheres e crianças) com a empregada. 19 BRITTES, 2007.

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envolvam a vida particular dos mesmos. Mesmo existindo uma completa afinidade entre eles, a separação da hierarquia e ao mesmo tempo o pertencimento à um nível social próximo, faz com que essa relação não seja pautada na hierarquia da superioridade pessoal, intelectual e emocional, mas sim por critérios como mais tempo de experiência profissional, senioridade e características técnico-emocionais que tornam este “chefe” apto a exercer tal cargo. No Brasil ter empregados domésticos representa uma marca social de riqueza e superioridade. Por mais que um dos membros da família não trabalhe fora de casa (o que na maioria das vezes ocorre com as mulheres) o que o possibilitaria exercer normalmente tarefas domésticas, o trabalho realizado dentro de casa é considerado subalterno e degradante, não fazendo parte do “escopo” de atividades que cabem ao homem/mulher de classe média/alta. Portanto, podemos deduzir que há uma dependência mútua na relação patroaempregada. A primeira não aceita esse tipo de trabalho e repete o discurso “isso não é para mim”, e a segunda depende do emprego para manter seu sustento. Com a baixa escolaridade, os trabalhadores domésticos possuem opções reduzidas de emprego no mercado de trabalho. Através da publicação da pesquisa realizada pelo IBGE 20 - “A Mulher no Mercado de Trabalho” divulgada em 2012 no dia Internacional da Mulher, observamos que em dentro do universo de mulheres ocupadas que realizam trabalhos domésticos, somente 9,6% tinha mais de 11 anos de estudo em 2003, enquanto em 2011 o número subiu para 19,2%. Já no universo dos homens ocupados nos serviços domésticos, em 2003 tivemos 14,1% e em 2011, 23,8% com mais de 11 anos de escolaridade 21.

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A pesquisa produz indicadores para o acompanhamento conjuntural do mercado de trabalho nas regiões metropolitanas de Recife, Salvador, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre. Trata-se de uma pesquisa domiciliar urbana realizada através de uma amostra probabilística. 21 Segundo a 4ª edição do “Retrato de Gênero e Raça”, publicado pelo SEPIR (Secretaria de Políticas para as Mulheres), o contingente de mulheres ocupadas dedicadas ao trabalho doméstico remunerado era de 17,1%, em 2009, já o de homens ocupados: 1,0% no mesmo ano.

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Gráfico 5 - Participação dos trabalhadores domésticos ocupados com 11 anos ou mais de estudo, segundo o sexo (%) - 2003 e 2011

Fonte: IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de Trabalho e Rendimento, Pesquisa Mensal de Emprego 2003-2011. *Média das estimativas mensais

Sobre as relações entre as empregadas e seus patrões, que seria a marca mais intensa desta classe, o artigo de Brittes (2007) apresenta com riqueza os detalhes presentes e ausentes na relação da empregada doméstica com a família, através de evidências mapeadas em entrevistas realizadas com domésticas, patrões (homens e mulheres) e filhos(as) dos patrões. “No Brasil, a manutenção adequada desse sistema hierárquico que o serviço doméstico desvela tem sido reforçada, em particular, por uma ambiguidade afetiva” (BRITTES, 2007, p.93) que dificulta o estabelecimento de regras. Por mais que haja uma relação de carinho entre os empregados e as crianças, que patroa e empregada conversem sobre assuntos triviais do cotidiano, essa aproximação não anula a clara demarcação entre os lugares de chefe e subordinado, superior e inferior. Estas profissionais que administram o lar são excluídas da dinâmica espacial da casa, por exemplo, através do espaço reservado para o que seria o seu quarto e o seu banheiro. Ambas as dependências sempre ficam próximas à cozinha e à área de serviço, possuem tamanho minúsculo e o banheiro apresenta proporções que dificultam a mobilidade em seu interior. Essa segregação espacial se “justifica” pela imagem que a empregada doméstica (principalmente negra) possui. Para os patrões elas são sujas, mal cheirosas e invejosas. “Ouvi 33

mais meninos e homens adultos referindo-se às empregadas como ‘barangas’, do que como alguém que pudesse ser objeto de desejos” (BRITTES, 2007, p.103). Em sua pesquisa, Brittes relatou escassez de relatos que colocassem a empregada como objeto sexual. “Nas famílias de classe média intelectualizadas do universo urbano moderno, o imaginário sexual tende, cada vez mais, a ser marcado por fronteiras de classe” (BRITTES, 2007, p.102). Acreditamos que, como no período escravocrata, onde os trabalhadores domésticos escravizados eram pejorativamente estereotipados com os mesmos adjetivos negativos supra citados, esta marca ofensiva e preconceituosa caminhou por todos estes séculos e ainda permeia as camadas mais desfavorecidas economicamente, onde encontramos a maior parte dos negros e pardos no Brasil, como sugere o relato de uma das entrevistadas de Brittes: Outro dia, eu cheguei em casa e encontrei Alcina esparramada no sofá, assistindo TV. Os pés em cima da mesa, aqueles braços abertos sobre o encosto do sofá. Vê se pode? No mesmo lugar que depois eu e minhas filhas vamos descansar! E ela, com aquela ‘inháca’ no meu sofá. (BRITTES, 2007, p.105)

A “naturalidade” da declaração acima mostra uma obviedade consciente da patroa sobre sua percepção do mal cheiro de sua empregada e seu espanto ao ver “Alcina” ocupando o mesmo lugar que é usado por sua família. A perpetuação do preconceito acontece de maneira sutil, porém ardilosa, através da educação dada pelos pais aos filhos, transformando a desvalorização e subalternização em um círculo vicioso interminável. “Pauline [4 anos]: Sabe, a Inês falou que a mãe dela disse que a gente não pode usar o banheiro da empregada. Jurema: Por quê? Pauline [5 anos]: Porque empregada tem doença na bunda. Inês: É, a minha mãe explicou que se a gente senta no vaso onde a empregada senta, a gente pega doença, porque elas têm doença na bunda.” (BRITTES, 2007, p.100)

Devemos ressaltar que o caráter afetivo, não é particular da relação entre mulheres. O antropólogo Gilberto Velho, por exemplo, descreve a relação que teve com as empregadas domésticas que trabalharam em sua casa em toda sua vida adulta e apresenta a relação de afetividade que teve com sua a primeira empregada doméstica, Dejanira, carinhosamente apelidada por ele como “Deja”. Em outros termos, é impossível separar, em certos momentos, as obrigações profissionais das cumplicidades afetivas. Foram, assim, minhas amigas, com uma interpretação mais cordial das distâncias sociais. Na minha auto avaliação é improvável que pudesse ficar indiferente ao ouvir uma pessoa doente tossir horas seguidas ou quando alguém perde um ente querido e entra num estado de profunda tristeza, situações, entre tantas, em que pude apoiar Deja. (VELHO, 2012, p.23-24)

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Apesar desta amizade e proximidade com as empregadas domésticas, Velho mostra em seu artigo a separação invisível existente em sua casa que poderia ser traduzida como “cada um sabe o seu lugar”. “Com toda a ambiguidade eram relações muito próximas, mesmo fisicamente. Havia claramente regras implícitas de evitação e de manutenção de distância social” (VELHO, 2012). Quando analisamos a intensa jornada de trabalho dos domésticos, sua baixa remuneração e o afastamento dos familiares que muitas vezes lhes é exigido, podemos perceber a complexidade emocional e financeira que vivem estes profissionais. Para prover o sustento de sua família, muitas vezes aceitam trabalhos nos quais precisam dormir no serviço de segunda a sexta-feira, delegando a parentes, vizinhos ou filhos mais velhos a tarefa de cuidar e educar seus filhos. Assim como as mucamas e amas de leite da época colonial, muitas mulheres, destas a maioria negras, atualmente exercem a maternidade remunerada nos filhos brancos de suas patroas, também brancas. Como não pensar na negra assalariada, em quanto empregada doméstica, quando se discute que o escravo era negada a possibilidade de uma vida privada? Como não pensar na babá negra de hoje, que cuida dos filhos da mulher branca burguesa ou pequeno-burguesa, enquanto seus próprios filhos ou não existem ou percorrem soltos morros e ruas de nossas cidades? A escravidão acabou, mas a presença de suas heranças no bojo das relações burguesas e capitalistas manifesta uma vez mais essa imensa capacidade que têm as classes dominantes, de todos os períodos históricos, de incorporar, até onde for possível, ao privilégios que lhes são próprios os privilégios de grupos dominantes anteriores. (GIACOMINI, 2013, p. 105)

Como exemplo recente deste poderio exercido pelas classes burguesas neste sistema de dominação capitalista, vimos no ano de 2013 uma grande turbulência midiática e da classe média em torno da Proposta de Emenda à Constituição para melhorias nas condições trabalhistas da categoria, chamada a “PEC das domésticas”. A PEC propõe equiparar os direitos desta classe profissional aos dos trabalhadores urbanos e rurais, já a legislação para a classe das domésticas era bastante defasada. Os novos direitos previstos na PEC que já estão em vigor são: recebimento de um salário mínimo ao mês, inclusive àqueles que recebem remuneração variável; pagamento garantido por lei; jornada de trabalho de 8 horas diárias e 44 horas semanais; hora extra; respeito às normas de segurança, de higiene, saúde e segurança no trabalho; reconhecimento de acordos e convenções coletivas dos trabalhadores; proibição de diferenças de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivos de sexo, idade, cor ou estado civil ou para portador de deficiência 35

e proibição do trabalho noturno, perigoso ou insalubre ao trabalhador menor de 16 anos22. É chocante o fato que os trabalhadores domésticos não possuíam as mesmas garantias trabalhistas que as outras classes, e de fato ainda não possuem completamente23. Sobre a formalização do trabalho doméstico através de assinatura de carteira, percebemos uma grande diferença do percentual entre homens e mulheres. Como é visto no gráfico, apesar do contingente masculino ser pouco representado dentro do grupo dos trabalhadores domésticos, este possui um percentual consideravelmente maior de profissionais com carteira assinada do que o contingente feminino. Em 2003, essa diferença foi de 10,1 pontos percentuais, enquanto em 2011 encontramos 15 pontos percentuais.

Gráfico 6 - Proporção de pessoas ocupadas com serviço doméstico e com carteira de trabalho assinada, segundo o sexo (%) - 2003 e 2011*

Fonte: IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de Trabalho e Rendimento, Pesquisa Mensal de Emprego 2003-2011. *Média das estimativas mensais

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Antes da PEC os empregados domésticos tinham os seguintes direitos que continuam em vigor: pagamento de, ao menos, um salário mínimo ao mês; integração à Previdência Social (por meio do recolhimento do INSS); um dia de repouso remunerado (folga) por semana, preferencialmente aos domingos; férias anuais remuneradas; 13ª salário; aposentadoria; irredutibilidade dos salários (o salário não pode ser reduzido, a não ser que isso seja acordado em convenções ou acordos coletivos), licença gestante, licença-paternidade, aviso prévio, além de carteira de trabalho (CTPS) assinada. 23 Ainda está em tramitação o salário maternidade; o auxílio-creche; seguro contra acidentes de trabalho; saláriofamília; horário de almoço e o mais polêmico dos tópicos: o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), o qual foi alterado algumas vezes, inclusive com a proposta do recolhimento ser reduzido para 4% – em vez de 8%, como ocorre atualmente, com a exclusão da multa rescisória, em caso de demissão sem justa causa

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Sobre a remuneração dentro deste mercado, percebemos que as mulheres tiveram um aumento de 41,53% de 2003 a 2011 e os homens de 54,4%, no mesmo período. Gráfico 7 - Rendimento médio real do trabalho das pessoas ocupadas com serviço doméstico, por sexo (em R$ a preços de dezembro de 2011) – 2003 - 2011*

Fonte: IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de Trabalho e Rendimento, Pesquisa Mensal de Emprego 2003-2011. *Média das estimativas mensais

Com o aumento da formalização do trabalho vieram ofertas de desenvolvimento do mercado como, por exemplo, treinamentos presenciais e online destes trabalhadores. Através de uma busca aleatória na internet, selecionamos o Instituto Educacional de Araçatuba e Adamantina24, localizado no interior do estado de São Paulo. O instituto possui um conteúdo programático para o treinamento presencial de empregadas domésticas que contempla os seguintes conteúdos programáticos: Quem é e como se comporta a empregada doméstica; Perfil profissional; Higiene e apresentação; Como ser uma excelente empregada doméstica; Responsabilidade e comportamento profissional; Comprometimento com as tarefas e com a residência; Diferença entre arrumar e organizar; Roupas: cuidados, conservação e organização; Cozinha: Higiene e assepsia; Despensa: organização e preocupação com desperdício; Como limpar o estar, o banheiro e os quartos; Boas maneiras de atendimento e cordialidade; Boas maneiras ao servir; Como fazer uma excelente faxina; Check-list das tarefas domésticas. Além dos aspectos técnicos que estes cursos visam melhorar na qualificação destas profissionais, percebe-se uma iniciativa, ou melhor, uma estratégia para corrigir hábitos das empregadas, padronizando e limitando suas atitudes e comportamentos ao ideal dos patrões 24

Não foram encontradas no site informações sobre o histórico da empresa e custo do curso mencionado.

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(que em geral segue as mesmas necessidades em todas as casas). Percebemos que está implícito nestes cursos o discurso já apresentado anteriormente de que a empregada é “suja” ou não possui padrões higiênicos que correspondam aos interesses dos patrões. Além disso, o primeiro item descrito no curso supra mencionado “Quem é e como se comporta uma empregada doméstica” nos mostra claramente o projeto formalizado de mostrar para estas profissionais que o lugar delas é diferente dos patrões e, mais ainda, ela é uma pessoa diferente que não pode ultrapassar certas barreiras já estabelecidas pela sociedade e pelo próprio mercado de serviços domésticos. O blog Carol Organizza25, por exemplo, reforça o treinamento que uma patroa deve dar à sua empregada e quais diretrizes são fundamentais para que ela saiba qual é o seu lugar e o que deve fazer em diversas situações. Etiqueta de comportamento: esse é um ponto que faz muita diferença na execução do serviço. Defina como sua empregada deve se comportar durante o trabalho em relação ao celular, cigarro, imagem pessoal, regras da casa, como atender telefone e anotar recados, como proceder diante de imprevistos, como atender convidados e prestadores de serviço, como se comportar em relação ao consumo de alimentos na residência, regras para segurança de dados confidenciais da família e como preservar o seu patrimônio. (BLOG CAROL ORGANIZZA, 2014)

“Assim sendo, é possível afirmar que o fenômeno da (in)visibilidade da mulher, além de social e intelectual, também é espacial e étnico, visto que a mulher negra e pobre torna-se ainda mais (in)visível à história e à sociedade que a branca” (DE PAULA, 2012, p.160). O esforço constante em doutrinar estas profissionais mostra o quão incomodados ficam os patrões em lidar com as diferenças sociais oriundas do choque cultural entre classes. Esses mesmos esforços têm colaborado para que os trabalhadores domésticos, em sua maioria mulheres e negras, tenham cada vez menos espaço, voz e individualidade em seu local de trabalho.

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A autora do blog não se identifica, apenas escreve os textos com as “dicas”.

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4 A TELENOVELA BRASILEIRA E A REPRESENTAÇÃO DO NEGRO: ENTRE A INVISIBILIDADE E O REFORÇO DOS ESTEREÓTIPOS 4.1. Breve histórico sobre a televisão e a telenovela brasileira A televisão não tem um inventor, ela foi resultado da progressiva combinação e aperfeiçoamento de várias tecnologias. Ela se apresentou ao público primeiramente como uma forma nova de rádio, ou melhor, inicialmente a reprodução do rádio na frente das câmeras. Em 18 de setembro de 1950, foi ao ar a primeira transmissão de TV da América Latina pela TV PRF3, TV Tupi, canal 3 de São Paulo, promovida por iniciativa do jornalista e proprietário dos Diários Associados, Assis Chateaubriand. O veículo tinha muitas limitações e só entrava no ar às 4 da tarde. A primeira transmissão aconteceu no saguão do “Diários Associados”, de propriedade de Chateaubriand. Foi necessário ainda que o jornalista e empresário importasse cerca de duzentos aparelhos de TV para que os programas da emissora fossem assistidos, já que não havia ainda o consumo em larga escala de televisores. Posteriormente, novas emissoras foram surgindo, como Rede Globo, Record e Bandeirantes. Os primeiros programas da TV Tupi de São Paulo foram telejornais, adaptações de radionovelas, programas infantis, musicais, humorísticos e programas de auditório. O telejornal Imagens do Dia, uma simples projeção de imagens com narração ao vivo, o qual durava enquanto havia alguma imagem para exibir, e O Direito de Nascer, adaptação da radio novela cubana, foram dois dos primeiros programas transmitidos pela Tupi. A novela, “embora tenha suas origens, como se sabe, no folhetim do século XIX, na radionovela que chegou ao Brasil nos anos 40, na soap-opera e no cinema latino americano” (DE LIMA, 2001, p.90), só estreou na televisão na década de 1950, copiando o modelo, a forma e conteúdo das radionovelas. A primeira telenovela brasileira foi Sua Vida Me Pertence, em 1951 (Tupi), mas era exibida somente duas vezes na semana. A primeira novela veiculada diariamente foi 2-5499 Ocupado, em 1963 (Tupi). O primeiro grande sucesso de audiência foi O Direito de Nascer (1965), apresentada, também, pela TV Tupi, que marcou definitivamente a ascensão do gênero. A novela, que trouxe a primeira atriz negra às telas interpretando uma empregada doméstica, teve grande repercussão na época e a personagem Mamãe Dolores gerou grande comoção. Sobre esta novela e personagem, especificamente, falaremos de maneira mais detalhada adiante. 39

Na virada das décadas 1960/1970, com Beto Rockfeller, novela de Bráulio Pedroso, o Brasil inaugura seu período de nacionalização das novelas, deixando de lado o cunho excessivamente dramático e superficial das produções anteriores (característica marcante nas novelas latino-americanas). A partir deste período, a produção de telenovelas fica mais sistemática devido ao aprimoramento dos recursos técnicos. Ainda nessa década é lançada O Bem-Amado (1973), de Dias Gomes, a primeira telenovela colorida da TV. O Bem-Amado foi a primeira novela da TV Globo a ser exportada, abrindo o mercado estrangeiro para os produtos nacionais de televisão. Nas décadas de 1970 e 1980, consolidou-se a fórmula brasileira: colaboração de grandes novelistas e poetas, maior intenção de retratar a realidade brasileira, linguagem coloquial, influência do teatro de vanguarda, aparecimento da figura do anti-herói e de personagens femininos complexos. No final dos anos 1970, com a falência da Tupi, a Rede Bandeirantes entra na disputa por audiência e lança a novela Cara a Cara, de Vicente Sesso, que reunia astros da TV Tupi e da TV Globo. Na década de 1980, a Rede Bandeirantes investiu em dramaturgia, mas sem grandes resultados de audiência. O SBT importou novelas latinas e produziu alguns títulos, mas com baixo investimento em forma e conteúdo. Com o surgimento da Rede Manchete, novas produções aparecem, como o maior sucesso da nova emissora na década, Dona Beija (1986). Neste período a TV Globo continuou a liderar os índices de audiência e lançou, em 1988, a novela Vale Tudo, de Gilberto Braga, Aguinaldo Silva e Leonor Bassères, que revolucionou por mostrar a corrupção e a falta de ética, denunciando a inversão dos valores morais no Brasil do final dos anos 1980. Outros destaques da época foram Que Rei Sou Eu (1989) e Roque Santeiro (1985), essa última que havia sido vetada pela censura militar em 1975, foi exibida dez anos depois. A sátira à exploração política e comercial da fé popular marcou a época, apresentando uma cidade fictícia como um microcosmo do Brasil. A década de 1990 foi marcada pela guerra de audiência que era responsável por pautar novelas, mudar roteiros e até colocar em segundo plano um personagem que inicialmente havia sido escalado para um papel de destaque. O telespectador com o controle remoto se tornou co-responsável pela telenovela brasileira. Nesta década, as principais produções da TV Globo foram O Dono do Mundo, de Gilberto Braga, em 1991, e Torre de Babel, de Silvio de Abreu, em 1998. O SBT investiu em algumas grandes produções, como o remake de Éramos Seis, de Silvio de Abreu e Rubens Ewald Filho, em 1994. A Rede 40

Manchete lançou em 1990 Pantanal, de Benedito Ruy Barbosa, a primeira novela a abalar a liderança da TV Globo. A chegada do novo século mostrou que a telenovela evoluiu desde o seu surgimento. Mudou na maneira de se fazer, de se produzir. Virou uma indústria que forma profissionais e que precisa dar lucro. Nos anos 2000, a publicidade e o merchandising entram nas novelas ainda de maneira amadora, contudo, com o patrocínio de grandes marcas, como Natura, por exemplo, em Por Amor, de Manoel Carlos, onde uma das personagens era revendedora da marca nas horas vagas. O SBT intensifica a produção de versões nacionais de telenovelas estrangeiras, principalmente mexicanas. Após o sucesso de Chiquititas, co-produção com a argentina Telefé, a emissora lança mais de 10 novelas. Em 2004, após uma tentativa frustrada com Metamorphoses, a Rede Record retoma as produções de telenovelas com o lançamento de A Escrava Isaura, passando ao posto de segunda maior produtora nacional na categoria. Nos anos seguintes, a concorrência com a Rede Globo aumenta, sendo esta batida com frequência por produções como Prova de Amor, Vidas Opostas e Caminhos do Coração. Ao mesmo tempo, a Rede Globo passa por uma crise em suas novelas, que registram queda de audiência, sobretudo no horário das sete, onde os índices só subiram com as duas telenovelas do novato João Emanuel Carneiro, Da Cor do Pecado e Cobras & Lagartos. Com a chegada da televisão digital no Brasil, em 2007, as primeiras produções transmitidas com a alta definição suportada pelo formato são Duas Caras, da Rede Globo, e Dance Dance Dance, da TV Bandeirantes. Apesar de nesta década as novelas terem um cunho mais realista, ela ainda teve alguns melodramas folhetinescos, como O Clone (2000 – TV Globo), de Glória Perez. Essa breve cronologia dos momentos marcantes das telenovelas brasileiras pretendeu mostrar como, desde sua transposição do rádio para a televisão, ela acompanhou as mudanças de nossa sociedade e também como se adaptou às regras de mercado do capitalismo liberal. Por conta destes aspectos, seu conteúdo dá preferência à abordagem de assuntos que vão gerar popularidade. O foco parece ser, cada vez mais, a obtenção de altos índices de audiência, além de atrair e de manter grandes patrocinadores. A televisão e as telenovelas tiveram forte influência do sistema político e social das décadas nas quais estavam inseridas, mas em raros momentos “aproveitaram” o canal de comunicação para grandes massas objetivando produzir conteúdo com reflexão social e comprometimento político propriamente ditos. 41

4.2. Perfil da televisão brasileira e de seus consumidores Segundo o Mídia Dados 201326, o perfil dos consumidores de televisão é formado por 53% de mulheres e 47% de homens. Confirmamos a importância e a força da televisão como veículo de comunicação de massa ao constatarmos que ela atrai a maioria dos investimentos em publicidade paga do mercado. A televisão fica com 64% do total investido; o jornal com 11,2%; a revista com 6,4%; a internet com 5% e o rádio com 3,9%. Os outros meios não possuem expressividade significativa para serem mencionados. Apesar do advento da internet, o mercado publicitário ainda aposta mais na televisão para alcançar seu público alvo. Separamos outras categorias relevantes para a análise deste meio, como classe econômica, faixa etária e programação. Gráfico 8 – Telespectadores de TV separados por classe econômica

Fonte: Mídia Dados 2013

Atualmente a classe C representa a maior fatia do público televisivo, com 48%, seguida de 33% da B, 11% da D, 7% da A e 1% da E. Isso reflete as iniciativas das emissoras para elaborar produtos específicos para a classe C. Sobre a faixa etária, o público de 20 a 29 anos representa a maioria.

O Grupo de Mídia São Paulo publica anualmente o livro “Mídia Dados”, que consiste em uma publicação que apresenta acontecimentos e tendências do mercado brasileiro e sul-americano de mídia, assim como informações demográficas, mercadológicas e comerciais do setor. 26

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Gráfico 9 - Telespectadores de TV separados por Faixa Etária

Fonte: Mídia Dados 2013

Abaixo, iremos expor a distribuição da programação noturna de segunda a sexta, dias e horários onde a maioria das telenovelas são exibidas em todas as emissoras. Com isso, é possível identificar o tipo de concorrência de programação nesta faixa de horário, assim como visualizar a grande parcela ocupada pelas telenovelas. Gráfico 10 - Programação noturna (18h – 00h) de segunda a sexta

Fonte: Mídia Dados 2013

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Percebemos que alguns autores (mais do que outros) possuem interesse em trazer os chamados temas polêmicos à tona, como homossexualidade, aborto, violência contra a mulher e outros. Contudo, a temática dos conflitos e preconceitos raciais aparece de maneira superficial e é abordada quase com “constrangimento”. Não há interesse político e nem para uma certa classe social em se “trazer à tona a decadência do mito da democracia racial, sujando assim uma bela mas falsa imagem que o Brasil sempre buscou difundir de si mesmo” (ARAÚJO,2008, p.979).

Nos próximos subcapítulos abordaremos detalhadamente estes

últimos aspectos levantados. 4.3. Discussão da temática racial nas novelas: realidade ou mito? Para falar sobre a presença, ou melhor, sobre a invisibilidade e os estereótipos atribuídos aos negros nestes mais de 50 anos de história das telenovelas, usaremos principalmente os estudos realizados por Joel Zito Araújo, cineasta, pesquisador e autor do livro A negação do Brasil – o negro na telenovela brasileira, e as pesquisas realizadas por Solange Martins Couceiro de Lima, historiadora, pesquisadora e professora da USP. Lima (2001) organizou e analisou as mudanças e as permanências dos personagens negros nas novelas brasileiras das décadas de 1970, 1980 e 1990. Foram analisadas novelas desde 1963, ano da transmissão da primeira telenovela brasileira, até 1998. Foram catalogadas 520 novelas e, deste universo, apenas 200 tinham atores negros, chegando ao total de 70 atores. Para a realização de uma análise mais profunda, Lima (2001) selecionou 24 novelas produzidas pela TV Globo, devido à sua alta produção do gênero na história da televisão, adequadas aos seguintes critérios: a quantidade de atores negros presentes; a importância de seus papeis na trama; e temática não escravocrata, que por razões históricas óbvias, terão sempre um número alto de atores negros. Outro recorte feito pela autora em sua pesquisa foi escolher dois períodos para a análise: telenovelas de 1975 a 1988; e 1988 a 1998.27 Para a presente pesquisa, a análise da presença do negro nas telenovelas e seus papéis são de extrema relevância para a verificação da invisibilidade e rótulos atribuídos aos negros e se eles se mantiveram no decorrer dos anos, principalmente no que diz respeito à interpretação de atrizes negras como empregadas domésticas.

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O ano do centenário da abolição da escravatura, 1988, foi usado como marco, por conta das possíveis mobilizações sociais e abordagens desta temática antes e depois desta data. Além disso, a Constituição de 1988 tornara racismo crime inafiançável.

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Segundo Lima, a década de 1970 marcou o início da criação de papéis de maior projeção social para os atores negros. A primeira versão da novela Pecado Capital, exibida em 1975, teve pela primeira vez um personagem negro em um papel não subalterno: era um psiquiatra, interpretado pelo ator Milton Gonçalves. No mesmo período, Ruth de Souza interpretou Dona Elisa, uma professora e dona de colégio. Apesar disto, Lima afirma que estes personagens não pertenciam a nenhum núcleo específico. Sua história era “solta” e isolada dentro da trama. Como nas décadas de 70 e 80, as empregadas domésticas da década de 90 são mantidas de modo constante e recorrente. Sempre presentes nas telenovelas, apresentam variações: herdeiras das mucamas, das amas-de-leite, bisbilhoteiras, irreverentes sem “saber o seu lugar”, submissas, objeto do desejo dos patrões. Algumas mudanças podem se apresentar na “roupagem”, o que não compromete a essência da característica das personagens: foi encontrada, por exemplo, uma governanta que se apresentava maquilada e de vestido de seda; uma empregada mais falante e participante, que tem a patroa como modelo a ser imitado, ou mesmo a sedutora que, apesar de objeto sexual do patrão, manipula de modo mais consciente seus atributos de sedução. (DE LIMA, 2001, p. 92)

Sobre o papel feminino dado às mulheres negras, Lima percebeu uma grande quantidade de atrizes no papel de empregadas domésticas, e dentro dos papeis interpretados, as personagens tinham as características comportamentais das mucamas e amas-de-leite, submissas, apagadas e voltadas exclusivamente para atender às necessidades da família branca, esquecendo-se de suas próprias necessidades e vontades. Sobre os homens, a brutalidade e força física foram atributos amplamente explorados. “Os empregados negros, homens, apareceram com frequência, principalmente nas novelas rurais, que retratam histórias do Nordeste nas quais os capatazes e empregados são sempre os fiéis e cegos defensores de seus coronéis/sinhozinhos.” (DE LIMA, 2001, p.92) Na década de 1990 a situação muda um pouco. A novela A Próxima Vítima traz a primeira família de classe média alta para a televisão brasileira. Alguns pesquisadores alertam que outras novelas já retrataram famílias negras (Corpo a Corpo – 1984 e Mandala – 1988), mas não com o destaque e com o “cuidado” que foi dado em A Próxima Vítima. Lima confirma isso em seu artigo, através de uma declaração dada pelo autor Silvio de Abreu à revista Contigo: “Mostrar em uma telenovela do horário nobre uma família de negros de classe média sem evidenciar o preconceito racial. Este é o objetivo de Sílvio de Abreu, responsável pela novela das oito da Globo, A Próxima Vítima. Ele aceitou o desafio proposto pelo amigo Antônio Pitanga, que vai fazer um dos personagens do núcleo

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negro da novela. Sílvio contou que o assunto surgiu há cerca de cinco anos, nos corredores da TV Globo. ‘Ele me pediu para que criasse uma novela que mostrasse uma família negra de classe média, como muitas que existem mas nunca aparecem nas novelas. Na época eu disse que era incapaz de fazer isso porque conhecia pouco da cultura negra e então o Pitanga retrucou dizendo que essa questão não tinha nada a ver. Depois, percebi que eu tinha um grande preconceito por achar que seria preciso diferenciar o dia-a-dia de negros e brancos, sem considerar que certos problemas são comuns a todos’”. (DE LIMA, 2001, apud Revista Contigo, 14/02/1995)

O discurso do autor Silvio de Abreu menciona o racismo como um “tabu” a ser abordado em uma novela e afirma não ter conhecimento do cotidiano das pessoas da raça negra para que possa escrever sobre elas. Se o próprio autor afirma ser amigo de Antônio Pitanga, ator negro, ele não conheceria alguns de seus hábitos? E por que os negros teriam hábitos tão diferentes dos seus, ou seja, dos brancos? A excentricidade deste comentário mostra um preconceito explícito do autor, que implicitamente afirma que os negros são pessoas com hábitos e costumes necessariamente diferentes. Apesar de sua intenção inicial de não tratar do tema do racismo, posteriormente o autor optou em mencionar o assunto de uma maneira mais superficial e que confirma o mito da democracia racial. Segundo o site de Memórias da TV Globo, que conta em detalhes sua programação desde 1965, a abordagem feita pelo autor através desta família negra de classe média era estimular a discussão se no Brasil existiria preconceito social ou racial. Assim: Em uma de suas principais tramas paralelas, Silvio de Abreu abordou a questão do preconceito de brancos contra negros e vice-versa, levantando a discussão sobre se o preconceito no Brasil é social ou racial. Para tanto, o autor criou como um dos núcleos dramáticos da novela uma família negra de classe média. O pai, Cleber Noronha (Antônio Pitanga), é um íntegro contador, que trabalha para várias empresas. Casado com a secretária-executiva Fátima (Zezé Motta), construiu uma família bem-sucedida, formada pelos filhos Sidney (Norton Nascimento), um gerente de banco, Jefferson (Lui Mendes), estudante de Direito, e Patrícia (Camila Pitanga), que sonha ser modelo. (MEMÓRIA GLOBO. 2014).

Neste mesmo site, a emissora apresenta um catálogo para cada novela, abordando os principais assuntos da trama para que o visitante possa encontrar a informação que precisa rapidamente. A descrição sobre a família negra e a história que a envolve está catalogada na área denominada “preconceito”. Outros assuntos catalogados são: drogas e menores abandonados, por exemplo. Quando a emissora e o autor se propuseram a colocar uma família negra em uma situação social valorizada, a escolha foi feita sem que a temática racial fosse abordada de maneira clara e relevante. Ela foi diluída através de uma comparação que serve para 46

enfraquecer o debate sobre o preconceito racial no país e, também, competiu com outro assunto que é um tabu na sociedade: a homossexualidade. Jefferson, interpretado pelo ator Lui Mendes, era gay e o conflito da aceitação familiar e social de sua preferência sexual ganhou um grande destaque na trama. Questionamos se a inserção do personagem homossexual na família negra não seria um “pretexto” para reduzir o foco da temática racial. Não temos como comprovar esta hipótese, mas de acordo com o contexto previamente discutido, tampouco devemos excluí-la. O mito da democracia racial, que perdurou (e perdura) na mentalidade do senso comum, estimula uma certa ausência de vontade de se abordar o preconceito racial na televisão. A suposta convivência harmoniosa e respeitosa entre as raças faz com que alguns autores e roteiristas prefiram adotar outros temas “polêmicos” em suas histórias, como o aborto, a homossexualidade, a adoção, dentre outros. A partir dessa virada se constrói a marca característica da telenovela brasileira, sem semelhante no mundo: a mescla da realidade, que inclui temáticas sociais (machismo, posição da mulher na sociedade, alcoolismo, aborto, aids, corrupção, drogas, prostituição, meninos de rua, crianças desaparecidas), com elementos folhetinescos de amor romântico. (DE LIMA, 2000, p.98)

“A crença no mito da democracia racial é estruturante do sentimento de nacionalidade brasileiro, a ponto de operar uma rara concordância valorativa entre as diferentes camadas sociais que formam a sociedade nacional” (BERNARDINO, 2002, p.250). A exemplo do que percebemos ao estudar a presença qualitativa e quantitativa dos negros nas telenovelas, constatamos que este pensamento é facilmente derrubado através da inferior e estereotipada representação dos negros e de sua cultura na televisão brasileira. Os meios de comunicação possuem uma responsabilidade e compromisso com a sociedade. Um produto direcionado às massas, como as telenovelas, que atinge milhões de brasileiros de segunda à sábado, exerce muita influência na cultura, na língua e no comportamento da população. É um veículo de comunicação de grande influência.

A telenovela brasileira é uma obra aberta e coletiva, não é de autoria única, pois mesmo os poucos autores que ainda escrevem uma novela inteira sozinhos dividem o produto final com diretores, atores, cenógrafos, figurinistas, responsáveis pela trilha sonora, construindo um produto final que ainda vai ter a colaboração do público que, através dos índices de audiência, vai direcionar os rumos da trama. (DE LIMA, 2001, p. 97).

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Na idealização inicial da história e de seus personagens, consideramos o autor o responsável por decidir e construir cada trama. Em seu trabalho, Lima afirma que existe a ideia entre os autores de que, como na “vida real” os negros possuem papéis subalternos, já que representam a maior parte da população pobre brasileira, seria “inverossímil” colocá-los em posições de destaque, tendo em vista que não é essa a realidade brasileira. Supondo que a afirmação fosse completamente verdadeira, não seria a novela um meio de comunicação ficcional que possui liberdade de criar situações hipotéticas para estimular uma discussão? Afinal de contas, apenas para fins de entretenimento, alguns autores criaram personagens absurdos como a Dona Redonda, da novela Saramandaia, e Sérgio Cabeleira, de Pedra sobre Pedra, que nas noites de lua cheia tinha que ser amarrado para não sair voando para a lua. Apesar de sua intenção em retratar temáticas sociais polêmicas, não foi incluída nesta agenda a discussão do racismo no Brasil e seus reflexos na sociedade. Para alguns autores a novela nada mais é do que um produto de entretenimento que busca, diariamente, levar o telespectador a uma atmosfera ficcionista semelhante, e não igual à realidade. A proporção dos personagens negros encontrados nas novelas é muito menor do que a proporção de pessoas negras na população brasileira. Contudo, o número não é o único aspecto relevante a essa problemática, mas também a qualidade dos papéis destinados aos atores negros e sua visibilidade na trama. O interesse no estudo da identidade e dos estereótipos do negro na telenovela brasileira se relaciona com a preocupação que estudiosos e militantes negros têm revelado com o papel que a mídia representa, ao lado de outros mecanismos, que nas modernas sociedades complexas interagem e são responsáveis pelo processo de construção/reconstrução de identidades. (ARAÚJO, 2004, p.12)

Na mescla entre a criação de heróis e heroínas, característicos dos folhetins românticos, e a retratação de questões sociais, numa iniciativa de interação com a realidade, as telenovelas constroem um diálogo constante com algumas demandas sociais e subjuga a maioria da população negra existente no país, através de uma sub-representação. “Ao caracterizar o negro de modo estereotipado, a telenovela traz, (...) um imaginário que permeia as relações entre brancos e negros no Brasil, (...) atualiza crenças e valores pautados nesse imaginário que não modernizou as relações interétnicas. (ARAÚJO, 2004, p.13). O próximo subcapítulo, que apresentará os principais personagens interpretados pelos atores negros e sua visibilidade nas tramas das telenovelas, complementará o debate sobre a origem dos estereótipos e seus reflexos nas construções de identidades no país. 48

4.4.Os personagens negros nas telenovelas brasileiras No Brasil, assim como na América Latina, a formação de uma identidade nacional e de uma cultura nacional se opuseram às identidades e culturas dos grupos não hegemônicos. O Estado nação no Brasil estabeleceu como referência para a cultura massiva os atributos da cultura branca europeia, desestruturando e ao mesmo tempo absorvendo das culturas negras e indígenas o tempero para a aclimatização e melhor aceitação da cultura hegemônica. (ARAÚJO, 2004, p. 34)

Assumimos a ideia de que as mídias possuem um papel importante na identidade nacional, colaborando para a construção, desconstrução ou para a transformação dos elementos culturais presentes na sociedade, sendo hegemônicos ou não. Contudo, a interpretação social dominante na sociedade brasileira foi feita pelos brancos e financeiramente privilegiados, grupo hegemônico, por isso, não podemos afirmar que a história dos negros ou indígenas foi contada através do prisma do próprio grupo e sim, de outro. No caso do negro e do indígena, desde a década de 1950, quando a televisão foi lançada, houve uma desvalorização de suas culturas e histórias, com o intuito de promover uma uniformização que contribuísse para a construção de uma identidade brasileira comum, que não possui brancos, pretos ou índios, e sim brasileiros. A representação de alguns personagens marcantes na história da televisão, interpretados por atores negros ou não, nos permitirá fazer uma breve análise sobre a tentativa de construção dessa identidade comum. Durante o presente estudo se buscará analisar a forma como o afrodescendente foi retratado neste gênero ficcional e também a “qualidade” dos papéis criados e interpretados. Sobre a temática racial relacionada ao afrodescendente, não existe avanço ou retrocesso, e sim uma estagnação de sua problemática social nas telenovelas. Como menciona Araújo, “a mulher negra era representada regularmente como escrava e empregada doméstica, encaixando-se na reedição de estereótipos comuns ao cinema e à televisão norte-americanos, como as mammies.” (ARAÚJO, 2008, p.980). A confirmação dessa afirmação pode ser observada na novela O Direito de Nascer, uma adaptação do mais famoso melodrama do autor cubano Félix Caignet, exibida em 1964, na qual a atriz negra Isaura Bruno interpretou a marcante “Mamãe Dolores”. Resumidamente, a novela conta a história de uma empregada doméstica que foge com o filho “bastardo” da filha solteira de seu patrão (um tabu para a época) e o cria como filho, para que o bebê não

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fosse enviado para a “roda dos rejeitados”. Isaura Bruno foi uma das personagens mais importantes da trama e foi imortalizada na teledramaturgia por conta deste papel. Uma combinação perfeita de dois estereótipos: a clássica mãe negra – presente na literatura e no teatro brasileiro desde o período da abolição da escravatura, caracterizada pelo amor extremo ao filho e abnegação sublime de qualquer outro relacionamento social e amoroso - e a mammie, transposição de um estereótipo norte-americano. (ARAÚJO, 2004, p.85)

“A cena em que Mamãe Dolores revelou para Dom Rafael que Albertinho Limonta era seu neto foi vista por 1 milhão e meio de telespectadores e deixou jornalistas intelectuais e publicitários impressionados com o fenômeno” (ARAÚJO, 2004, p.86). Tamanha foi a repercussão da novela que os Diários Associados, empresa que produziu a novela, organizou a exibição do capítulo final no Maracanazinho, estádio localizado no Rio de Janeiro. Devemos dizer que, em um primeiro momento, chegamos a pensar que o papel de destaque de Mamãe Dolores poderia ter sido criado impulsionado pelo turbilhão que os Estados Unidos estavam vivendo naquele momento, com a luta dos negros pela igualdade de direitos que culminou na Lei dos Direitos Civis de 196428. Com toda inspiração e cópia realizada pelo Brasil ao modelo cinematográfico e de novelas norte-americano, não seria difícil de imaginar tal situação. Baseado no livro de Ismael Fernandes, Araújo afirma através de um exemplo bem claro a ausência de qualquer presença política nas novelas da época. “Embora tenha começado no ano do golpe de estado liderado pelos militares, aconteceu de forma totalmente alienada do momento político do país” (ARAÚJO, 2004, p.82). Ou seja, neste momento as novelas brasileiras foram indiferentes à condição política nacional, mas, ainda sim, mostraram o momento de questionamento que os EUA estavam vivendo. A representação subalterna dos negros e a relação paternalista dos empregados com seus patrões formaram o padrão de papéis designados aos negros nas primeiras décadas da televisão. Outra imagem construída era a da ascensão social do negro através de um casamento interracial, o que, aos olhos do pensamento hegemônico da época, era uma boa maneira de mostrar a harmonia existente entre as raças no país, como a personagem Maria Clara da novela Antônio Maria, que interpretou uma empregada doméstica que teve iniciativas para “melhorar de vida”, como fazer curso de inglês e corte e costura por

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A Lei de Direitos Civis de 1964 e a Lei dos Direitos ao Voto de 1965, ambas promovidas pelo presidente Lyndon B. Johnson, do Partido Democrata, codificaram as conquistas dos negros. Elas asseguraram o fim da segregação racial em espaços públicos e o voto universal.

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correspondência. Ela se tornou a primeira empregada doméstica de “sucesso” da telenovela brasileira. No último capítulo, exibido em 1969, a personagem se casou com o Cabo Honório, um bombeiro de cor branca. Ou seja, depois de todo seu esforço para se tornar uma pessoa mais intelectualizada e com mais aptidões profissionais, o autor decidiu “premiar” a personagem com um amor branco, o que para a época seria um gran finale romântico de sucesso. Em 1969, a novela "A cabana do pai Tomás" foi a primeira produção da Rede Globo a contar com um personagem principal negro, mas o papel foi interpretado por um ator branco, Sérgio Cardoso, considerado galã na época, que passava por uma caracterização para escurecer a pele em cena. Na época, a Rede Globo alegou que por pressões dos patrocinadores (agência de publicidade Colgate-Palmolive), o papel deveria ser interpretado por um ator que estivesse no topo de sua carreira. E, para eles, nenhum ator negro atenderia este requisito. A atriz Ruth de Souza teve um papel de destaque na trama interpretando Cloé, esposa de Pai Tomás. A novela não foi bem aceita pelo público que a considerou inacessível e distante, já que a mesma falava sobre o conflito entre os escravos norte-americanos plantadores de algodão e os ricos proprietários de terra no sul do país. O que confirma o que foi dito anteriormente: apesar de nossa indiferença à política nacional, importamos e traduzimos momentos importantes da história norte-americana em nossas telenovelas. Quando fiz “A cabana do Pai Tomás” o público reclamou muito e tiveram que tirar o meu nome dos créditos. Já passei por outras situações de preconceito como essa. Antes, eu havia tentado uma vaga como atriz numa novela na Rádio Nacional e não consegui. Disseram que não tinha papel para uma negra. Mas a voz do negro é diferente? — ironiza Ruth. (JORNAL O GLOBO. 2013)

Nos anos 1970, última década de crescimento econômico no país no século XX, as novelas retrataram os conflitos e drama na luta pela ascensão social. No entanto, somente alguns autores, em especial Janete Clair, criaram papeis para negros buscando mostrar essa ascensão, como é o caso do psiquiatra Dr. Percival, interpretado por Milton Gonçalves em Pecado Capital, ou Dona Elisa, uma professora e dona de colégio, interpretada por Ruth de Souza em Duas Vidas. Nesta mesma década, a Rede Globo lançou uma novela com uma “personagem negra” interpretada por uma atriz branca, A Escrava Isaura. Sucesso como produto exportado para outros países, a novela foi inspirada no livro de Bernardo Guimarães.

A partir dos anos 80, podemos afirmar que houve uma lenta mas progressiva ascensão do negro na dramaturgia da teleficção. Mesmo assim, identificamos que em um terço das telenovelas produzidas pela Rede Globo até o final dos anos 90 não

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havia nenhum personagem afrodescendente. Apenas em outro terço o número de atores negros contratados conseguiu ultrapassar levemente a marca de 10% do total do elenco. Considerando que somos um país que tem uma população de cerca de 50% de afrodescendentes, essa é uma demonstração contundente de que a telenovela nunca respeitou as definições étnico-raciais que os brasileiros fazem de si mesmos. (ARAÚJO, 2008, p.980)

A invisibilidade dos negros na mídia mostra o desprezo da sociedade e do grande capital à cultura negra, rotulando os negros através de uma premissa “aceitável” pela maioria (hegemônica). Por trás disso, conforme indica Sodré (1999), presenciamos nos meios de comunicação do Brasil o chamado "racismo midiático". Ou seja, os media atuam dentro da esfera cultural como propagadores de modelos, sendo que isso ocorre a partir do ponto de vista dos grupos dominantes, o que coloca em cheque toda uma diversidade cultural presente no país. (GRIJÓ, 2011, p.3)

Na década de 1980, Araújo (2004) destaca a novela Corpo a Corpo (1984), que tratou explicitamente da questão do preconceito racial numa trama contemporânea. A personagem Sônia (Zezé Motta) se apaixonou e teve um relacionamento com um homem de cor branca, Cláudio (Marcos Paulo), o que causou polêmica tanto dentro da narrativa (o pai do personagem não aceitava o relacionamento por conta da diferença de cor) quanto na audiência. Nesta mesma década, o país viveu um contexto em que os movimentos em defesa dos negros cresciam, exigindo uma maior participação destes nas teledramaturgias, o que não se refletiu tão intensamente na produção televisiva. Nesse período, surgiram as telenovelas baseadas nas várias obras do autor baiano Jorge Amado, entretanto, nessas adaptações, o universo da Bahia negra, característica do autor, quase desapareceu. Em uma de suas obras mais famosas, Gabriela, Cravo e Canela, adaptada em três versões para televisão, a primeira na TV Tupi em 1960 com Janete Vollu no papel principal; a segunda na Rede Globo em 1975 com Sônia Braga e a terceira em 2012 pela Rede Globo com Juliana Paes no papel principal. Conseguimos encontrar duas menções diretas à cor da pele da personagem Gabriela na obra de Jorge Amado: “cheiro de cravo e cor de canela” e “Naquele ano de 1925, quando floresceu o idílio da mulata Gabriela”. Nas três versões, a personagem Gabriela foi interpretada por atrizes brancas que pintavam sua pele para ficar com a cor mais próxima da descrita no livro. A primeira, Janete Vollu tinha, inclusive, olhos azuis, que não eram percebidos por conta da imagem em preto e branco da época.

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Imagem 1- “Gabrielas” interpretadas na televisão

Primeira é Janete Vollu, a segunda e terceira mostram a atriz Sônia Braga em uma imagem da época e outra caracterizada como a personagem e, nos dois últimos, Juliana Paes. Fonte: Google Images e Memória Globo

Sobre o processo de caracterização da atriz Juliana Paes, a TV Globo tem a seguinte descrição em seu site de memórias: O processo de caracterização de Juliana Paes como a retirante Gabriela durava cerca de uma hora. Uma mistura de dois tons de pó de maquiagem, comprados em uma feira nos EUA foi o segredo para chegar à cor de canela da pele da personagem. Para viver a retirante Gabriela, Juliana Paes deixou de depilar as sobrancelhas e fez algumas sessões de bronzeamento artificial. (GSHOW. 2014)

A representação da personagem Gabriela e a negação de sua negritude mostram a questão da mestiçagem, que se apresenta como uma solução aos conflitos e tensões presentes no plano ideológico, sobre a diferenças entre as raças. Em uma escala de superioridade, o mestiço era considerado “melhor” do que o negro. Na década de 1990, os autores de telenovelas deram, de maneira tímida, o pontapé inicial para apresentar a situação afrodescendente e, também, incluir mais atores negros nas tramas. Dentro desse aspecto, o negro passou a ter um pouco mais de notoriedade, saindo da total submissão ao homem branco para, em alguns casos, fazer parte de uma classe média em ascensão no país, por conta da implantação do Plano Real. Como exemplo dessa representação, temos a telenovela A Próxima Vítima (1995), de Silvio de Abreu, que retratou uma família de classe média encabeçada por Fátima (Zezé Motta), o marido Cleber (Antonio Pitanga) e os filhos Sidney (Norton Nascimento), Jefferson (Lui Mendes) e Patrícia (Camila Pitanga). E, diferentemente de outros personagens negros presentes em outras telenovelas, eles tinha participação ativa na narrativa. O personagem Jefferson era homossexual e, através deste personagem, o autor levantou uma grande discussão social sobre a homossexualidade e sua aceitação na sociedade. 53

Lima apresenta um exemplo em que o racismo foi abordado na novela Pátria Minha (1994), contudo, o tom era muito agressivo e ofensivo, o que particularmente acreditamos que não agrega em nada à comunidade negra. Uma das situações mais violentas nesse período ocorreu na novela Pátria Minha, de autoria de Gilberto Braga, quando o vilão protagoniza uma cena extremamente agressiva contra seu jardineiro que ele pensa ter aberto seu cofre e que culmina com a personagem afirmando que o cérebro do negro era inferior ao dos brancos. Na mesma época em que este capítulo foi levado ao ar, a imprensa escrita deu ampla cobertura ao lançamento do livro Bell Curve de Charles Murray e Richard Hernstein, dois autores norte-americanos que defendem a tese da superioridade da inteligência dos brancos sobre as outras raças. (LIMA, 2000, p.95)

Em 1997, o remake da telenovela Anjo Mau abordou a questão de cor no núcleo formado por Dona Cida (Léa Garcia), sua filha adotiva Vivian (Tais Araújo) e sua filha biológica, considerada socialmente branca, Teresa (Luiza Brunet), que escondia sua origem por temer ser rejeitada pelo marido milionário. No mesmo ano, o autor Manoel Carlos apresenta uma discussão sobre racismo na telenovela Por Amor, através da relação inter-racial, onde o homem branco, Wilson (Paulo César Grande), rejeita a possibilidade de ter um filho com sua esposa negra, Márcia (Maria Ceiça), por temer ter um filho negro. Após engravidar acidentalmente, Márcia se separa de Wilson e a relação só é retomada após o nascimento de uma criança com fenótipo branco. Neste exemplo, encontramos o estereótipo da mulher negra sensual e sedutora, que não pode ter seu papel alterado para a condição de mulher “oficial” e mãe dos filhos. Além disto, o autor deu prosseguimento à discussão do tema racismo nas cenas externas onde as pessoas pensavam que Márcia era a babá de sua própria filha.

Somente nos anos 90, uma atriz negra, Taís Araújo, viria a quebrar o tabu e desempenhar papel-título em uma telenovela, Xica da Silva, (inspirada no filme de Cacá Diegues). Taís Araújo em 2004, após sete anos de trabalho na Rede Globo, na novela A Cor do Pecado, iria ocupar o posto de primeira protagonista negra em 40 anos de história dessa emissora, que é líder de audiência desde a segunda metade dos anos 70. (ARAÚJO, 2008, p.980)

A partir do ano 2000, onde os temas polêmicos começaram a ser abordados de forma mais direta nas novelas, mapeamos cinco novelas com personagens negras como protagonistas: Da cor do pecado (2004), com Preta, e Viver a Vida (2009), com Helena (interpretadas pela atriz Taís Araújo); Cama de Gato (2009), com Rose (Camila Pitanga); Cheias de Charme (2012), com Penha (Taís Araújo) e Lado a Lado (2012) com Isabel (Camila Pitanga).

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Das cinco personagens negras protagonistas citadas, quatro são retratadas em profissões consideradas subalternas, como é caso da vendedora de ervas maranhense Preta (Taís Araújo), em Da cor do pecado, da faxineira Rose (Camila Pitanga), em Cama de Gato, da empregada doméstica Penha (Taís Araújo) e em Lado a Lado, com a empregada doméstica Isabel (Camila Pitanga). Chama a atenção, a repetição das atrizes nos papéis de protagonistas. Apenas duas atrizes representaram todas as cinco personagens protagonistas negras a partir do ano 2000.

Presenciamos nos últimos anos a inserção de negros como personagens principais nas telenovelas da principal emissora de televisão do país, a Rede Globo, nos três horários de exibição desse produto. Além disso, a emissora lançou nomes de novos autores como tentativa de renovar o gênero televisivo, ao mesmo tempo em que nomes antigos tiveram que modernizar suas abordagens e discursos, como foi o exemplo de Manoel Carlos, conhecido por fazer apenas a crônica da elite carioca. Na novela Viver a Vida, a produção trouxe a primeira “Helena”29 negra e concomitantemente a primeira protagonista negra em uma telenovela das 20h. A trama central mostrou a história de Helena (Taís Araújo), modelo de renome internacional que, no auge da carreira, por volta dos 30 anos, decide largar a profissão para se casar com Marcos (José Mayer), empresário do ramo hoteleiro, por quem se apaixona perdidamente. A “Helena negra” criada pelo autor Manoel Carlos não é médica, empresária, engenheira ou dentista, profissões consideradas de alto prestígio social. Pelo contrário, ela tem uma profissão que depende quase que única e exclusivamente de sua beleza, charme e jovialidade. Assim como houve a presença de cinco personagens negras como protagonistas, outras telenovelas tiveram personagens negros em papéis de destaque. Não vamos mencionar os atores, o ano e a novela, pois não é o propósito deste trabalho realizar um trabalho quantitativo sobre a participação dos negros e, sim, avaliar sua participação para verificar os papéis sociais nos quais estão inseridos, principalmente dos personagens femininos. Nesse sentido, temos telenovelas com núcleos negros atuantes na trama, com perfis diversos: níveis socioeconômicos variados (de subempregados à classe alta), buscam ascensão social, possuem um discurso politicamente correto, ou que negam a condição de negros e, por fim, há aqueles com maior destaque dentro do melodrama ficcional, como foi o caso daqueles com função de vilão dentro da narrativa, sem necessariamente serem sujeitos cujas condições sociais lhes conduziram à vida de maldades. (GRIJÓ, 2011, p.8)

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O autor Manoel Carlos é nacionalmente conhecido por nomear como “Helena” suas protagonistas.

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A atual novela das 20h, chamada Em Família (2014), trouxe um assunto polêmico à tona, como já é de praxe do autor Manoel Carlos. Uma jovem negra sofre um estupro coletivo em uma van no Rio de Janeiro no capítulo que foi exibido no dia 10 de fevereiro de 2014. Em reportagens publicadas após a exibição do capítulo, o autor Manoel Carlos afirmou ter se inspirado em um acontecimento da vida real30 para criar a cena. Após a violenta cena que repercutiu na mídia nacional, a personagem “Neidinha” descobre que está grávida e decide criar a criança, omitindo o fato de que ela é fruto de um estupro. A novela, que se dividiu em três momentos: primeira fase, segunda fase e dias atuais, possui duas atrizes diferentes para interpretar o mesmo papel. No site oficial da novela, a personagem de Neidinha (Jessica Barbosa) na primeira e segunda fases é descrita como “Irmã de Virgílio, por parte de mãe, bonita, ingênua e admirada por todos. Amiga de Helena”. A personagem dos dias atuais, recebeu outra descrição da emissora: “A irmã de Virgílio trabalha como enfermeira na casa de repouso. Tem muito medo que a filha, Alice, descubra um segredo de seu passado”. É interpretada pela atriz Elina de Souza. Podemos perceber nesta descrição dois pontos distintos: nas primeiras fases, o canal fez questão de mencionar o parentesco, a beleza, jovialidade, doçura e cordialidade da personagem, o que nos relembra as jovens negras escravas admiradas na literatura por sua beleza e jovialidade. Nos dias atuais, a menção se restringe ao parentesco, sua ocupação e ao trauma sofrido. Na fase atual, a personagem mantém a cordialidade da primeira etapa, mas se apresenta mais subserviente em seu trabalho, considerado subalterno pelos padrões sociais atuais. A desconfiança que parte das ativistas feministas e de outros aliados na luta contra o machismo acontece porque, ao contrário do que Manoel Carlos defende, o caso de estupro não terá um desfecho socialmente responsável. Acontece que a mulher estuprada, Neidinha, engravidará do estupro, manterá o feto e, anos depois, precisará lidar com sua filha em busca do "pai". Embora seja garantia da lei brasileira, mulheres que engravidaram devido a estupro encontram uma dificuldade enorme na hora de conseguir efetivar o aborto com segurança e auxílio do SUS. Há incontáveis casos em que mulheres negras e pobres são obrigadas a dar continuidade à gestação, sendo intimidadas e pressionadas por equipes de saúde e religiosos de sua comunidade. (GELEDÉS.2014)

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Refere-se ao estupro coletivo sofrido por uma turista americana divulgado na mídia a partir do dia 30 de março de 2013. Disponível em: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2013/08/justica-do-rj-condenasuspeitos-de-estuprar-turista-americana-em-van.html

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Na novela Mulheres Apaixonadas, exibida em 2003, a violência doméstica contra a mulher foi traduzida na personagem branca, Raquel (Helena Ranaldi), que frequentemente era espancada pelo marido branco, Marcos (Dan Stulbach). Segundo a Rede Globo, “após a denúncia feita pela personagem à Delegacia Especial de Atendimento à Mulher (Deam), a delegacia do Centro do Rio de Janeiro registrou um aumento de mais de 40% na denúncia de casos de violência doméstica sofrido por mulheres” (MEMÓRIA GLOBO, 2014). Esse fato reforça a importância e influência social que as telenovelas possuem na população brasileira. O que nos espanta é que o mesmo autor abordou a violência contra mulher de maneiras diferentes. A personagem branca, Raquel, teve coragem de denunciar o marido após anos de abuso, contudo, a personagem negra, Neidinha, aceitou a violência que sofreu sem realizar qualquer registro junto às autoridades competentes. Sobre as repercussões que as novelas geram, podemos citar que elas ditam moda, criam novas expressões verbais que são repetidas pela população e estimulam debates nas mais diversas esferas, quando algum assunto mais polêmico é abordado. Na academia, a novela foi relegada por muitos anos por ser considerada um “subproduto de baixa qualidade da cultura de massa” (DE LIMA, 2000, p90.), porém, no final da década de 1980, autores como Jesús Martín-Barbero trouxeram uma nova perspectiva dentro das Teorias da Comunicação. No próximo capítulo, realizaremos um estudo de caso da novela Cheias de Charme, da Rede Globo, que teve três mulheres no papel de empregadas domésticas como protagonistas, duas brancas e uma negra. Pretendemos fazer uma verificação sobre os atributos e os valores atribuídos à cada protagonista, para avaliar a presença ou ausência de estereótipos atribuídos especificamente à personagem negra.

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5 ESTUDO DE CASO – TELENOVELA CHEIAS DE CHARME 5.1.Sobre a telenovela Nesse capítulo realizaremos o estudo de caso e, para isso, iniciaremos com uma sinopse de toda telenovela, com foco nas três protagonistas domésticas. Seguiremos com uma segunda subseção com a explanação metodológica e finalizaremos com uma análise dos personagens (protagonistas) e do conteúdo da trama. A novela Cheias de Charme foi exibida pela emissora Rede Globo, idealizada por Filipe Miguez e Izabel de Oliveira, e dirigida por Carlos Araújo. Exibida no horário das 19h, a trama de 143 capítulos foi ao ar pela primeira vez no dia 16 de abril de 2012 e terminou no dia 28 de setembro de 2012. Três empregadas domésticas – Maria da Penha (Taís Araújo), Maria do Rosário (Leandra Leal) e Maria Aparecida (Isabelle Drummond) – são as protagonistas da trama, que aborda a relação entre as patroas e as domésticas, a diferença social e espacial entre os ricos e os pobres, além de mostrar os desafios das mulheres que precisam conciliar trabalho e família. As três protagonistas se conhecem na prisão. Penha, a empregada doméstica de Chayene (Cláudia Abreu), uma famosa cantora piauiense de eletro forró, denuncia a patroa por agressão; Rosário, cozinheira do bufê do Seu Malaquias (Cláudio Tovar), é detida ao invadir o camarim do cantor Fabian (Ricardo Tozzi); e Cida, empregada doméstica na casa da família Sarmento, envolve-se em uma briga após flagrar o namorado, Rodinei (Jayme Matarazzo), aos beijos com Brunessa (Chandelly Braz). As três domésticas vão para a delegacia. Por causa da demora no atendimento, elas começam a reclamar e acabam sendo presas por desacato à autoridade. Atrás das grades, elas lembram o dia ruim que tiveram e Rosário sugere que todas façam um pacto para somar forças e melhorar de vida: “Dia de “Empreguete”, véspera de madame”, diz. Maria da Penha mora no Borralho, bairro fictício próximo a Jacarepaguá, Zona Oeste do Rio de Janeiro, com seu marido Sandro (Marcos Palmeira), o filho Patrick (MC Nicollas) e os irmãos Alana (Sylvia Nazareth) e Elano (Humberto Carrão), que ela criou quando seus pais desapareceram. Sandro era pedreiro, até sofrer um acidente de trabalho. Caracteriza-se como um típico malandro carioca e se aproveita da situação para não trabalhar e ser sustentado por Penha. Quando precisa conseguir algum dinheiro, se envolve com atividades ilegais (como, por exemplo, venda de celulares contrabandeados) ou com agiotas. Por essa razão, o 58

casamento deles está sempre passando por crises. Penha é empregada doméstica desde a juventude, quando precisou largar os estudos e trabalhar para sustentar seus dois irmãos e, graças ao seu sacrifício, Elano conseguiu se formar em direito. Penha foi responsável, com este trabalho, por construir sua casa na comunidade do Borralho. A profissional trabalha na casa de Chayene, uma patroa que faz questão de inferiorizar e humilhar todos os seus subordinados e que não aceita ser contrariada. Maria do Rosário passou parte da infância num orfanato, mas foi adotada aos dez anos pelo garçom Sidney Monteiro (Daniel Dantas). Também moradora do Borralho, ela é especialista em pratos saudáveis e sofisticados. Seu tempero faz sucesso entre artistas e pessoas da alta sociedade, entretanto seu verdadeiro sonho é o de ser cantora profissional e de levar suas canções ao sucesso. Rosário é fã de Fabian, cantor do gênero sertanejo universitário. Ela possui, inclusive, um santuário de imagens do artista e uma coleção completa de seus CDs. Rosário se empenha para ter uma oportunidade de estar frente a frente com o ídolo. Depois de uma tentativa frustrada, que gerou um escândalo no camarim do cantor e lhe levou à cadeia, onde conheceu Penha e Cida, Rosário tem a certeza de que descobriu como se aproximar de Fabian. Chayene, a ex-patroa de Penha e madrinha musical do cantor, está sem empregada doméstica e Rosário se candidata à vaga. No dia em que decide largar o trabalho no bufê, Rosário conhece Inácio (Ricardo Tozzi), um sósia de Fabian. Na ocasião, o rapaz estava se candidatando a uma vaga para ser motorista do bufê. Rosário é aprovada por Chayene e consegue o novo emprego. As primeiras impressões da cozinheira não são muito boas: acha Laércio (Luiz Henrique Nogueira), assistente da cantora, esnobe e Chayene pedante e cruel, como Penha havia lhe avisado. Contudo, para Rosário, trabalhar na casa da rainha do eletro forró, seria o primeiro passo para conhecer Fabian e mostrar a ele seu talento como cantora. Rosário começa a namorar Inácio, mas projeta Fabian no namorado. Inácio morre de ciúmes do adversário e isso acaba afastando o casal. Já a personagem Maria Aparecida parece representar uma versão moderna da gata borralheira. Sua mãe, copeira na casa dos Sarmento, morreu quando ela ainda era criança. A família do patrão, Ernani Sarmento (Tato Gabus Mendes), disse que cuidaria dela, mas foi a madrinha, Dona Valda (Dhu Moraes), cozinheira da casa, quem ficou com a guarda da menina. Cida, como prefere ser chamada, cresceu junto com as filhas de Sarmento – Ariela (Simone Gutierrez), a mais velha, e Isadora (Giselle Batista) –, mas herdou a função da mãe: 59

arrumadeira da casa, no condomínio Casagrande. Seus estudos eram pagos pela família, mas, quando completou 19 anos, teve a carteira assinada e se tornou oficialmente uma trabalhadora doméstica. Cida sonha ser jornalista e passa as noites relatando num diário seus dramas e fantasias. Logo no começo da novela, a jovem sofre uma decepção amorosa ao flagrar o namorado, Rodinei, aos beijos com Brunessa. Para se vingar, ela agarra o primeiro rapaz que vê, Elano, irmão de Penha, que se apaixona instantaneamente por ela. A noite termina em confusão, e ela é levada para a delegacia. A jovem fica ainda mais confusa quando começa a ser cortejada por Conrado (Jonatas Faro), filho do milionário Otto Werneck (Leopoldo Pacheco). O rapaz pensa que Cida faz parte da família Sarmento e tenta conquistá-la de olho na suposta fortuna. Só que Isadora, filha de Ernani, interessada em Conrado, tenta estragar o romance da doméstica. Ardilosa, Isadora manda para Conrado e todos os seus amigos uma mensagem com uma foto de Cida usando o uniforme de empregada. O rapaz fica indignado e termina o namoro. Cida sofre muito com os patrões, principalmente com Sônia e Isadora, que a humilham constantemente, e juntas formam uma dupla de vilãs, mãe e filha. Ariela é a filha mais velha de Sônia, que, apesar de ser um pouco esnobe, trata Cida com mais educação. Certo dia, Rosário chama Penha e Cida para a casa de Chayene, que está fora. As três resolvem se divertir e, com a ajuda de Kleiton, criam uma música “Vida de “Empreguete”. Lá, o videoclipe é filmado e as roupas de Chayene são usadas. O clipe faz sucesso e elas resolvem formar um grupo: “Empreguetes”. O sucesso das “Empreguetes” também desperta a inveja de Chayene que, com a ajuda de sua empregada, Socorro, obcecada pela cantora, fará tudo o que for possível para prejudicar o trio. Com a fama e o dinheiro recebido com os shows e as turnês, cada “Empreguete” providencia melhorias em suas vidas e de suas famílias. Ao final da trama, o grupo continua unido, Cida decide publicar seus diários e lança livro, e ganha ação na Justiça que condena os Sarmento por exploração infantil. Cida e Elano, assim como Inácio e Rosário se casam e Penha, após um romance, volta para Sandro. Cheias de Charme conseguiu em seu primeiro capítulo 35 pontos de audiência. As novelas antecessoras, Aquele Beijo e Morde & Assopra, conquistaram 35 e 32 pontos de média, respectivamente, no primeiro capítulo. Em seus 34 primeiros capítulos o folhetim 60

registrou média de 29,5 pontos, sendo a novela das 19h horas mais assistida em 5 anos 31. A trama teve média geral de 30,05 pontos e registrou a maior audiência da década. Mesmo após o final da novela, a Rede Globo continuou com sua exploração comercial.

No

dia 25

de

dezembro de 2012, Taís

Araújo, Leandra

Leal, Isabelle

Drummond, Cláudia Abreu e Titina Medeiros, interpretando suas personagens Penha, Rosário, Cida, Chayene e Socorro respectivamente fizeram uma participação no especial Roberto Carlos, no qual cantaram ao lado dele no palco. Em outubro de 2012 foi lançado também o livro Cida, a Empreguete - Um Diário Íntimo, inspirado na personagem Cida (Isabelle Drummond) da novela. A novela foi exportada para nove países: Portugal, Uruguai, Chile, Moçambique, Coreia do Sul, El Salvador, Costa Rica, República Dominicana e Panamá.

5.2.Motivações para produção da novela Cheias de Charme trouxe um fato inédito à televisão brasileira. Comumente invisibilizadas nas telenovelas brasileiras, empregadas domésticas assumiram o papel de protagonistas e levaram, ao horário das 19h, dilemas peculiares da classe e, principalmente, a inferiorização e humilhação sofrida por estas profissionais no mercado de trabalho e na sociedade. Com a percepção do empresariado nacional da ascensão econômica da classe C, o mercado tenta se adaptar para oferecer produtos cada vez mais adaptados a este público. Apesar de seus esforços, ainda percebemos problemas estruturais no que diz respeito a algumas categorias desta classe. No caso das empregadas domésticas, devemos ressaltar que esta profissão, majoritariamente exercida por mulheres, está em desvantagem em relação a outras regulamentadas pelo Ministério do Trabalho, como mencionado no segundo capítulo, e quando o foco é direcionado à empregada doméstica negra, percebemos que suas condições são ainda piores. A indústria do entretenimento está verdadeiramente empenhada em elaborar produtos para a classe C, inclusive na televisão paga. O canal Multishow, pertencente à Globosat, lançou em julho de 2013 o seriado Vai que cola. Com vinte episódios, a trama foi a atração de maior audiência da TV paga nos últimos 10 anos. Foram 11 milhões de espectadores em seus primeiros 20 episódios. Resumidamente, a história mostra o cotidiano de uma pensão 31

Sete Pecados, exibida em 2007, registrou 30,8 de média.

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localizada no bairro do Méier, subúrbio da cidade do Rio de Janeiro, e seus moradores. Com uma vida simples, o seriado mostra de maneira dramática e exagerada a vida do suburbano que precisa se esforçar para ganhar a vida e dos malandros que estão sempre querendo tirar vantagem das situações. Na TV aberta, tivemos o lançamento do programa Esquenta, a minissérie Pé na Cova, e quadros adaptados em programas já existentes como Caldeirão do Huck e Mais Você. O programa Esquenta, veiculado nas tardes de sábado, apresenta um direcionamento claro como um produto destinado à classe C: o conteúdo do programa é voltado para atrações que são do gosto popular das grandes cidades, principalmente Rio de Janeiro e São Paulo. Os cantores fixos que participam do elenco do Esquenta são de estilos musicais populares no sudeste do país, especificamente Rio de Janeiro e São Paulo, como pagode, samba e funk. O último, em especial, possui um bom destaque no programa que traz novos talentos da música, danças e, principalmente, afirma uma identidade da cultura brasileira.

No ano de 2012 ficou nítida a preocupação da Globo com a classe C e isso resultou na inserção de três telenovelas na programação da emissora que abordassem o contexto social e cultural da classe C. Cheias de Charme, Avenida Brasil e Salve Jorge foram produções criadas basicamente para aproximar a realidade sociocultural da classe C às realidades fictícias dessas tramas. (CRUZ, 2013, p.8)

“Estes 80% das classes C, D e E têm uma vida própria, com características próprias. Nós precisamos atendê-los”, disse o diretor geral da Rede Globo, Octávio Florisbal em entrevista ao site UOL32. Segundo a sétima edição da pesquisa Observador Brasil 2012, feita pela empresa Cetelem BGN, do Grupo BNP Paribas, em parceria com o instituto Ipsos Publics Affairs, especializada em analisar o comportamento do consumidor, a classe C é a maioria da população, representando 54% de seu total, o que representa uma mudança considerável em relação ao verificado em 2005, quando a maioria (51%) estava na classe D/E. Um total de 22% dos brasileiros está no perfil da classe A/B, o que também representa um aumento em comparação ao constatado em 2005, quando essa taxa era de 15%. A classe C passou de coadjuvante à protagonista. Segundo Tarapanoff e Fernandes (2012), no caso da novela Cheias de Charme os autores traduziram nas três protagonistas uma representação típica da mulher da classe C.

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http://televisao.uol.com.br/ultimas-noticias/2011/05/09/globo-muda-programacao-para-atender-anova-classe-c.jhtm

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As três personagens são representações típicas de uma figura presente no imaginário sobre a classe C: da mulher que batalha, passa por dificuldades, mas que no final vence devido à sua garra e força de vontade. As três trabalham como domésticas, mas querem mudar de vida. (TARAPANOFF E FERNANDES, 2012, p.8)

5.3.Descrição da metodologia O estudo de caso será calcado em uma análise que visa a observar as diferenças entre as protagonistas, antes e após a fama. Com isso, o estudo busca levar à discussão as diferenças da personagem negra em detrimento das demais, destacando os estereótipos relegados às mulheres negras na sociedade e, nesse caso, antes e após a sua ascensão social como cantora. Foram analisados os 143 episódios da novela “Cheias de Charme” para verificar as hipóteses levantadas e apresentadas na introdução como motivações para realização desta pesquisa. Para estabelecer um padrão comparativo entre cada personagem e verificar a (in)visibilidade de estigmas ou preconceitos relacionados à cor da pele, além da análise crítica do discurso apresentado pelas e para as domésticas, serão analisadas as características físicas, comportamentais e sociais das três protagonistas em todos os capítulos. Para as características físicas, classificaremos quanto à cor da pele, tipo de cabelo e vestimenta. Quanto ao comportamento, classificaremos quanto aos hábitos, expressões orais, relações familiares e aparente estado psicológico frente aos relacionamentos pessoais e profissionais. Quanto às características sociais, serão classificadas em relação ao emprego e às patroas, à moradia, ao nível financeiro e ao grau de instrução. Araújo (2004) discute a questão da presença dos negros no audiovisual e, desse modo, seu estudo se mostra de grande valia para a análise crítica que nos propomos a fazer nesse trabalho. Segundo o autor, a indústria da telenovela é uma “poderosa cortina que dificulta a percepção dos estereótipos negativos sobre os afro-brasileiros e provoca falta de reconhecimento da importância dos atores e atrizes negras na história do cinema e da televisão do país”.

5.4. O estudo de caso Face ao que foi exposto nos capítulos anteriores sobre a história da mulher negra no Brasil e sobre a herança histórica que o sistema escravocrata deixou em sua imagem como trabalhadora ao longo dos séculos, utilizaremos a televisão, especificamente a telenovela, para

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verificar se é possível estabelecer uma relação de discriminação entre as personagens empregadas domésticas retratadas na novela Cheias de Charme em função da cor.

5.4.1. Descrição e análise das personagens

Primeiramente, a discussão sobre a palavra “Empreguete” mostra-se relevante. Ieda Alves publicou em 2010 um breve estudo sobre o comportamento sintático e semântico do sulfixo “ete” no português e suas origens. Iremos nos ater a comentar o valor semântico que está ligado ao que pretendemos discutir em nosso estudo de caso. Do ponto de vista semântico, além do sentido de “pequenez”, por vezes pejorativo e também encontrado no sufixo francês, -ete deriva, sobretudo, substantivos com bases próprias para denotar dançarinas que dançam em torno de um artista ou que, à maneira das cheerleaders americanas, gravitam de maneira animada em torno de um político, de um jogador de futebol, de uma marca da moda. (ALVES, 2010, p.13)

Ainda no mesmo livro, Alves menciona que: (...) o emprego ou do sufixo ou da terminação parece estar associado a um sentimento de exotismo “quando se busca associar o modernoso com certo picaresco: chacrete, jambete, tiete etc.; ou quando se busca dar atrativo comercial publicitário ao produto: quitinete, colchonete, cotonete, sofanete”. (ALVES, 2010, p.2)

A autora menciona, ainda, outros exemplos, contudo julgamos interessante mostrar esta seleção que mostra o sufixo como indicador pejorativo ou exótico. Ou seja, podemos dizer que o termo “Empreguete” reforça a subalternidade, por se apresentar como uma variante inferior da palavra “empregada”. Além disso, apresentaremos a descrição oficial feita pela Rede Globo sobre as personagens estudadas. Consideramos relevante apresentar a visão da emissora e contrapor com a visão da autora. Sobre a personagem Maria da Penha: Típica heroína brasileira. Tem todos os predicados de uma boa profissional: é pé-deboi, de confiança, excelente cozinheira, caprichosa e é cheia de iniciativa. Dona de uma beleza que resiste aos maus tratos da vida e de um humor que resiste às adversidades, Penha não teve muito estudo, começou a trabalhar cedo e desde garota é arrimo de família. Por muitos anos, teve que lidar com o salário que não cobre as contas do fim do mês e as dívidas que se acumulam. Depois de conhecer Rosário e Cida, integrou o grupo das “Empreguetes”, que mudou sua vida. Casou-se com o pedreiro Sandro, com quem teve seu único filho, Patrick. (GSHOW. 2014)

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Sobre a personagem Maria do Rosário: Até os 10 anos, cresceu num orfanato, tendo que sonhar muito para escapar da realidade: sua família morreu numa enchente, quando tinha apenas um ano de idade. Já não tinha muitas esperanças de ser adotada quando, numa festa, cantou e encantou o garçom Sidney. Apesar do dinheiro contado, Sidney deu uma educação esmerada a sua estrelinha e fez da menina uma mulher forte e decidida. Depois de estourar com as “Empreguetes”, Rosário seguiu com a carreira artística, tendo inclusive trabalhado com Fabian, de quem sempre foi fã e fabianática número um. Depois de idas e vindas no namoro, casou-se com Inácio. (GSHOW. 2014)

Sobre a personagem Maria Aparecida: Filha da copeira Dolores, foi criada desde que nasceu na casa da família Sarmento. Cresceu meio empregada, meio cria de Sônia Sarmento, meio irmã das filhas dela, Ariela e Isadora. Conta com a proteção da madrinha e cozinheira Dona Valda, que ficou com a sua guarda depois que a mãe morreu. Depois de terminar com Rodinei, seu namorado da adolescência, se viu às voltas com Conrado e Elano, com quem se casa no final. Gosta de ler romances para garotas e desde menina escreve diários, nos quais desabafa para a mãe que morreu. Com o apoio de Elano, decidiu publicar suas histórias num livro para que outras jovens não caiam na cilada de serem exploradas no trabalho. (GSHOW. 2014)

Para esta análise de personagens, definimos critérios anteriormente à etapa de visualização de toda a novela. Tais categorias, definidas de acordo com as histórias de vida das três empregadas, são: descrição das características físicas, comportamentais e sociais. Essas categorias foram escolhidas por permitirem que a pesquisa delimite a identidade, posicionamento social e valor simbólico de cada personagem representado. Através deles, poderemos construir ou não relações de igualdade e verificar as diferenças atribuídas às protagonistas brancas e à negra, antes da fama. 5.4.2. Descrição Física

Após observar a descrição oficial dada pela emissora às protagonistas, apresentaremos uma interpretação própria das características das referidas personagens.

Maria da Penha - Negra, estatura média, cabelo preto e crespo, corpo com curvas. Tem 34 anos. Usa roupas justas que valorizam seu corpo, como vestidos, calças e blusas decotadas. Está sempre de salto alto. No rosto, não usa maquiagem, somente brincos. Usou uniforme de doméstica na casa de Chayene e Máslova. Na casa de Lygia usou suas próprias roupas. 65

Maria Aparecida - Branca, estatura média, cabelos castanhos escuros, lisos, magra. Usa roupas discretas e condizentes como uma jovem de classe média de sua idade (19 anos). Maquiagem leve e em tons pasteis. Para o trabalho cotidiano usa uniforme de doméstica, mas quando vai à rua, mesmo de serviço, usa roupas de passeio.

Maria do Rosário - Branca, estatura média, cabelos loiros e ondulados, magra. A trama e o perfil oficial da emissora não mencionam sua idade. Usa roupas românticas de jovem suburbana. Muitas cores, acessórios e brilhos. Usa maquiagens, principalmente na cor rosa e verde claro. Tanto no buffet quanto na casa de Chayene, trabalhava de uniforme.

5.4.3. Descrição comportamental

Maria da Penha - Gosta de pagode e de fazer churrasco na laje da sua casa ou "puxadinho", como o autor denomina o espaço que a personagem construiu para alugar e ter uma renda complementar. Mulher muito realista que desejava ser enfermeira e teve que abdicar de tudo para criar os irmãos. Usa jargões e expressões típicas das comunidades e do subúrbio do Rio de Janeiro. Não pronuncia corretamente algumas palavras e fala com erros de concordância. Por exemplo: Pá mim (para mim); vou te falar uma coisa para você; mermo (mesmo); tacarra (tacava); os menino (faltando o plural do substantivo). Possui dificuldade de falar palavras complexas ou estrangeiras como Máslova ou Alejandro. Para se distrair, reúne os amigos em casa ou vai ao Chopeokê, um bar com apresentações ao vivo de cantores.

Maria Aparecida - Gosta de ler livros para jovens, escrever em seu diário e frequentar bailes de hip hop e rap. Se porta como uma estudante universitária, apesar de não ser. Quer ser jornalista no futuro. Esperançosa e tímida, acredita que o futuro reserva algo melhor para ela. Fala português corretamente, notadamente teve acesso à educação Maria do Rosário – Romântica, sonhadora e levemente fora da realidade. Adora cantar desde a infância e seu sonho é ser uma cantora famosa. Fala português informal e comete poucos deslizes de concordância. Por exemplo: colega, vamos se ver. Não usa expressões caricatas ou típicas do subúrbio. É completamente apaixonada por um cantor de música sertaneja 66

romântica, chamado “Fabian” e vive em função de criar oportunidades para estar mais perto do seu ídolo. 5.4.4. Descrição Social

Maria da Penha - Mora na comunidade do Borralho e a sua casa é muito simples e com móveis e aparelhos eletrônicos visivelmente antigos. Vive com o marido, o filho e os irmãos. A irmã mais nova é negra como ela, mas possui comportamento e educação típica de classe média, assim como seu irmão Elano, que é branco, advogado, acaba de se formar e fala inglês. O marido (Sandro) não possui emprego fixo e, com isso, Maria da Penha é a provedora do sustento da família. Penha é muito permissiva e, mesmo depois de muita discussão, sempre perdoa os erros graves do marido, como: não pagamento da pensão do filho quando estavam separados; venda de celulares contrabandeados; uso do dinheiro que Penha lhe dá para pagar impostos/contas para fazer churrasco; empréstimo com agiota. Por ser muito sincera, diversas vezes teve problemas com as patroas. Se esforça para executar um serviço de excelência e faz questão de mostrar parceria com as famílias que trabalha. Pobre. Seu nível de instrução não é mencionado. Maria Aparecida – A mãe e pai, que trabalhavam na casa dos Sarmento, faleceram quando era pequena e, depois do acontecido, foi criada na casa dos patrões de sua mãe pela madrinha, que é cozinheira na casa. Trabalha como doméstica em troca de moradia (dorme no quarto de empregada), alimentação e pagamento dos estudos. Por morar na casa desde que a mãe morreu, a personagem se sente em dívida com os patrões, por isso é empregada tempo integral, não possui liberdades ou folgas regulamentadas. É frequentemente humilhada pela patroa e suas filhas, mas, ainda assim, é submissa. Está finalizando o ensino médio e deseja fazer faculdade de jornalismo. Namora o grafiteiro Rodinei.

Maria do Rosário - Mora na comunidade do Borralho, mas o interior de sua casa pode ser descrita como uma moradia típica da classe média, com decoração incrementada, móveis de qualidade, com cores sóbrias e valorizados pelos padrões sociais. Foi adotada por Sidney, um garçom gay, com 10 anos de idade e até então morava em um orfanato. Seus pais morreram quando era criança. Sonha em ser cantora, mas possui poucas oportunidades para mostrar seu talento. Trabalha no "Aperitivo Buffet" como cozinheira e exerce, ocasionalmente, função de 67

garçonete. Possui ótimo relacionamento com todos do bufê e namora Inácio, o motorista. Quando decidiu se aproximar do meio musical, foi trabalhar de doméstica na casa da cantora Chayene. Não teve o apoio do pai neste projeto.

5.4.5. Análise da trama Para a análise dos capítulos, utilizamos uma metodologia que privilegiou a seleção dos diálogos e situações nas quais as protagonistas estavam fisicamente presentes. O conteúdo foi separado para a apresentação nessa pesquisa e será feita uma breve análise do discurso para a avaliação da presença ou não de estereótipos nos personagens protagonistas e nas suas relações, em especial no que diz respeito à questão racial e suas heranças na profissão de empregada doméstica. Entendemos o termo discurso, aqui, segundo a concepção de Fairclough, que utiliza esse termo como proposição a “considerar o uso de linguagem como forma de prática social” (FAIRCLOUGH, 2001, p.90). A análise será apresentada através de duas etapas denominadas “antes da fama” e “após a fama”, seguindo uma ordem cronológica de acordo com a veiculação da cena. “O discurso contribui, em primeiro lugar, para a construção do que variavelmente é referido como ‘identidades sociais’ e ‘posições de sujeito’ para os ‘sujeitos’ sociais e os tipos de ‘eu’” (FAIRCLOUGH, 2001, p.91). Por concordar com a visão de Fairclough, acreditamos que o discurso contribui para a formação de estruturas sociais e sua adaptação, assim como para a construção das relações e das identidades, criando significado e representação do mundo.

5.4.5.1 Antes da Fama Os dois primeiros meses da novela (16 de abril de 2012 a 31 de maio de 2012) marcam a apresentação da vida das protagonistas para os telespectadores e seus dilemas como empregadas domésticas, bem como o início da mudança em suas vidas. Como foi descrito anteriormente, as três domésticas possuem uma história de vida com características distintas, e isso se refletiu na construção de cada personagem e de suas relações. O “grande” encontro das três protagonistas acontece logo no primeiro capítulo em uma delegacia. Penha está lá para dar queixa dos maus tratos de sua patroa (Chayene), Rosário é

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levada pela polícia após invadir o camarim do cantor Fabian e Cida é levada por brigar com a suposta amante de seu namorado. Para reduzir a demora no atendimento, o delegado conversa com as três simultaneamente. Na primeira cena a qual as personagens estão juntas, cada uma revela sua profissão. Apenas Penha assume ser empregada doméstica. Penha: “Sou empregada doméstica. Cida: Sou estudante e também trabalho de arrumadeira. Rosário: Sou cantora e cozinheira nas horas vagas”. (Cena exibida no capítulo 1 – 16.04.2012)

Cida, mesmo sendo filha de pais pobres com uma criação pautada em uma posição de subalternidade e humilhação, não se considera empregada doméstica, e sim uma estudante que trabalha como arrumadeira, ocupações que possuem status social mais elevado que a de doméstica. Sua presença na casa era vista como um favor por parte dos patrões e desde criança foi forçada a exercer trabalhos domésticos. Rosário, neste momento da trama, ainda trabalha como cozinheira no “Aperitivo Buffet”, mas mostra seu sonho romântico ao revelar que é cantora, em primeiro lugar, e posteriormente sua verdadeira ocupação. Penha é a única que assume sua realidade profissional e ocupação diretamente. Essa objetividade e sinceridade se apresenta como marca da personagem que teve uma vida muito complexa e difícil. Sobre a relação com o trabalho nesta etapa inicial da trama, percebemos que Penha é constantemente humilhada em seu ambiente profissional. Sua patroa, uma celebridade, a trata com profundo desprezo e superioridade. Ofensas e desrespeito permeiam o discurso de Chayene para Penha em toda a trama (mesmo quando a doméstica não trabalha mais em sua casa). Prestes a chegar em casa de uma turnê, a cantora liga para a doméstica para saber onde ela está. Chayene: “Lhe pago né pra ficar na rua não, sua égua! Se eu chegar lá e tu não estiver em casa, pense em uma mulher ‘braba’”. (Cena exibida no capítulo 1 – 16.04.2012)

Ainda no primeiro capítulo, exibido no dia 16 de abril de 2012, quando a doméstica queima o vestido da patroa, acidentalmente, com o ferro de passar roupa, a cantora fica indignada e volta a ofendê-la verbalmente.

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Chayene:"Tu queimou meu vestido de chon, sua égua? Penha: Se a senhora quiser posso costurar, pá senhora! Chayene: Eu vou costurar é a tua língua. Vou te descontar no final do mês (Risadas debochadas de Chayene para Penha). Penha: Sim, Senhora”. (Cena exibida no capítulo 1 – 16.04.2012)

No mesmo capítulo Penha leva o almoço para a patroa. Após preparar uma sopa de cenoura e salada, a doméstica é criticada e humilhada por não ter preparado uma refeição que verdadeiramente agradasse a artista, mesmo sem receber a orientação correta. Chayene: “O que que é isso? Penha: Ué! Salada verde, sopa gelada de cenoura e sua limonada suíça. Chayene: Cenoura? Carboidrato? Tá querendo me ver gorda sua jumenta? Penha: Não, Dona Chayene! Chayene: Tá sim! Penha: Tô não! Chayene: Tá sim! Tá querendo me ver gorda. Tire essa gororoba xexelenta daqui agora! (Chayene joga sopa quente e salada em Penha) Penha: Que isso Dona Chayene? O que é isso? (...) Chayene: Isso aí me detesta e não é de hoje (Fala apontando para Penha que está com os olhos cheios de lágrimas). Ela faz tudinho para me sabotar. Mas faz tempo que estou farta dessa aí... (Neste momento ela dá um tapa e empurra Penha). Penha: Não encosta a mão em mim! (Aos gritos) Chayene: Vai encarar? Penha: Fica em silêncio e pensa: “Penha, Penha, se tu parte pra ignorância, tu mata ela. (Chayene ri e debocha da empregada). Pensa no teu filho que tu tem pra criar. Chayene: (Joga folhas de alface em cima de Penha e sai de cena) Penha: Mas isso não vai ficar assim! Não vai ficar assim mermo! Ou eu não me chamo Maria da Penha”. (Cena exibida no capítulo 1 – 16.04.2012)

Percebemos que, tal como a doméstica, sua patroa não faz uso correto das normas linguísticas do português, já que comete erros de concordância, contudo, nesta relação de patroa e empregada, mesmo marcada por fortes laços competitivos, as vantagens e “superioridade” são atribuídos à patroa, neste caso Chayene. A cantora atribui à Penha nomes de animais com a intenção de inferiorizá-la, como “égua”, “jumenta”, além de usar expressões pejorativas sobre o alimento preparado por ela, como “gororoba xexelenta”, que significaria uma comida ruim com aspecto nojento. A espontaneidade e naturalidade da vida cotidiana muitas vezes revelam o preconceito não dito e velado, que se manifesta através de injúrias, trocadilho e provérbios ou atos falhos. No artigo, “Democracia racial: o não-dito racista”, Ronaldo Sales Jr. dialoga com o caráter aparentemente oculto deste tipo de discriminação.

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“O insulto racial visa (re)marcar a fronteira, a distância social (identidade, status), que aqui, no entanto, se vê ameaçada de ser apagada, rasurada, transposta, enfim, transgredida. (SALES, 2006, p.237)

Dadas algumas situações de conflito, um indivíduo se apropria dele para criar uma situação de desconforto para o ouvinte. A questão racial que envolve o insulto ou o ato falho se revela quando percebemos que, na maioria das vezes, o falante não tem a intenção consciente de manifestar opiniões racistas, seu propósito único é ofender. Xingamentos como “negro sujo”, “macaco” e “preto safado”, são alguns exemplos utilizados para expor o racismo. Por mais que Chayene não tenha se apropriado de um discurso diretamente racista, a literatura nos mostra que ao longo da história os negros foram tratados e humilhados tendo sua figura associada a de animais. Enquanto isso, Cida possui algumas “liberdades” como doméstica por conta de sua idade e por morar na casa desde que nasceu. Na festa de noivado da filha mais velha dos patrões, ela trabalhou sem uniforme de doméstica, mas sim com um vestido da filha mais nova da patroa. Durante a festa, enquanto tirava as cinzas dos cinzeiros da parte externa da casa, um dos moradores do condomínio de luxo a confundiu com uma das donas da casa. Os dois conversaram e flertam, situação que dificilmente aconteceria se ela estivesse de uniforme, pois seria imediatamente identificada como doméstica, portanto, subalterna. Após voltar da delegacia, já que foi presa por brigar com a amante de seu namorado em uma boate, Cida é repreendida pela patroa por conta do longo tempo que se ausentou da festa de noivado de sua filha. Sônia (Patroa): “Maria Aparecida, o que foi aquilo ontem à noite, hein? Você sumiu no meio do noivado da Ariela quando eu mais precisava de você! Me senti traída na minha própria casa, onde você sempre foi tratada como igual. Cida: Me desculpa, Dona Sônia. É que eu tive um compromisso importante. Ariela: Sabe qual era o compromisso importante dela? Era um baile funk... (risos debochados) (...) Sônia: Não me interessa onde você estava e com quem, Maria Aparecida! Você tinha se comprometido comigo! Então eu falo ‘cola em mim’ e você some? Me senti traída na minha própria casa, onde você sempre foi tratada como igual. Cida: Eu sei, Dona Sônia. Vocês sempre foram maravilhosos comigo!” (Cena exibida no capítulo 2 – 17.04.2012)

Apesar de não assinar a carteira da doméstica e desrespeitar as normas trabalhistas com Cida, sua patroa tenta minimizar suas exigências mostrando que ela deve fidelidade e obediência, já que é “tratada como igual”. Assim como falamos no capítulo 3, o entre-lugar destinado às domésticas as colocam em uma situação muito delicada com seus patrões. 71

Muitas são “bem tratadas”, recebem “carinho e respeito”, mas seu lugar é específico e seu propósito de servil deve ser cumprido impreterivelmente. DaMatta aborda o espaço como visão de mundo de classes socialmente distintas, baseando-se no dominado e no dominador. No primeiro caso, observamos que o preço pago por Cida para ser considerada da família, pelo ponto de vista da patroa, seria abdicar totalmente de seus compromisso e ficar como uma sentinela, atenta a cada comando que desse. Cida, tendo descumprido a exigência de Sonia, se sente errante e se humilha a espera de um perdão. No caso de nossa sociedade, as camadas dominadas, inferiorizadas ou “populares”, tenderiam a usar como fonte para sua visão de mundo a linguagem da casa. Assim, eles sempre produzem um discurso fundamentalmente moral ou moralizante, onde as camadas ou atores em conflito (como patrões e empregados) estão quase sempre em oposição complementar se dependem um do outro. (...) Seu ponto de vista é, pois, notavelmente “humilde” e equilibrado, fundado muitas vezes numa deveras fantástica naturalização das relações sociais que raramente são percebidas e ditas históricas e arbitrárias mas, ao contrário, é como se fizesse parte de uma ordem cósmica, moral e dada por Deus. (DAMATTA, 1997, p.45)

Sonia, por sua vez, se sente no direito de realizar todas as suas cobranças, pois como havia firmado um acordo verbal com a doméstica, acredita que ela deveria obedecê-lo a todo custo, mesmo se o seu cumprimento implicasse em uma anulação de seus desejos e expectativas. Para a patroa, a individualidade dos empregados deve ser nula. Devem estar sempre dispostos à servir sua família da melhor maneira possível. Ora isso é muito diferente dos discursos dos segmentos dominantes, que tendem a tomar o código da rua e assim produzem uma fala totalizada, fundada em mecanismos impessoais (...), onde leis – e jamais entidades morais como pessoas – são os pontos focais e dominantes. (DAMATTA, 1997, p.46)

E, finalmente, Rosário enganou o dono do buffet e seu pai, com o intuito de trabalhar servindo no camarim do cantor Fabian (seu ídolo). Após trancar a pessoa que havia sido selecionada para trabalhar no evento no banheiro, a cozinheira finge trabalhar no camarim e, finalmente, encontra seu ídolo. Após uma breve conversa ela é descoberta e levada para a delegacia. Após todos os eventos que precederam o pacto e começo da amizade das domésticas, Penha inicia o processo contra a ex-patroa, Chayene. A cantora, mesmo na frente da juíza, de Penha e seu advogado, continua acusando e humilhando a doméstica.

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Chayene: “Em quem vão acreditar: em uma cantora, Chayene, ou uma empregadinha?? (...) Eu como o fígado daquela porca! No tribunal antes da audiência começar: Chayene: Eu estou reconhecendo. Estas pulseiras são minhas. (Apontando para o pulso de Penha) Penha: Suas? Estas pulseiras eu comprei no crediário. Alguém aqui qué vê o carnê? No tribunal durante a audiência: Penha: (Se dirigindo à juíza) O que a senhora acha de passar 6 anos sendo chamada de burra, porca, jumenta... Chayene: Ela é tudo isso aí mesmo... Penha: Não sou não. Sou muito limpa, caprichosa. Todo mundo adora o meu tempero”. (Cena exibida no capítulo 3 – 18.04.2012) (Após alguns capítulos a novela retoma o julgamento) Elano (Irmão e advogado de Penha): “Esse tipo de comportamento, esse ato de violência nos remete à uma mentalidade escravocrata. Não podemos admitir que nos dias de hoje um cidadão trabalhador, honesto, saia de sua casa para ser agredido no ambiente de trabalho”. (Cena exibida no capítulo 28 – 17.05.2012)

Até esta etapa da novela, a única empregada que recebeu xingamentos e ofensas verbais e físicas foi Penha. Enquanto estava empregada, a doméstica se calava por conta do medo de perder o emprego e, consequentemente, o sustento de sua família. Pela primeira vez, em juízo, Penha enfrentou a ex-patroa quando ela insinuou que a doméstica não era limpa. A atitude de Chayene de insinuar que Penha era suja atualiza e confirma uma representação atribuída aos negros em um diagnóstico feito há mais de 60 anos atrás. Por exemplo, algumas pesquisas realizadas por cientistas sociais na década de 1950 nos levam a refletir sobre a permanência ou mudanças desses estereótipos raciais no Brasil contemporâneo. Giacomini (2008), realizando uma síntese dos resultados dessas pesquisas, relata os trabalhos de Roger Bastide e Pierre Van Den Berg, os quais analisaram a representação do negro em nossa sociedade catalogando os estereótipos e o comportamento inter-racial presentes em São Paulo, especificamente na classe média branca daquela cidade. A pesquisa operou com 580 estudantes de cinco escolas normais diferentes. Apresentando 41 estereótipos diferentes aos entrevistados, os pesquisadores perceberam uma significativa recorrência de alguns poucos estereótipos sobre os negros. São eles:    

Falta de higiene – 91% Falta de atrativos físicos – 87% Superstição – 80% Falta de previdência financeira – 77%

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Falta de moralidade – 76% Agressividade – 73% Indolência – 72% Falta de constância no trabalho – 62% Perversidade sexual – 51% Exibicionismo – 50% (GIACOMINI, 2008, p.86)      

Além disso, a utilização de nomes de animais como forma de ofensa marca, através de uma metáfora, a intenção da patroa de desmoralizar a doméstica e inferiorizá-la. As metáforas não são apenas adornos estilísticos superficiais do discurso. Quando nós significamos coisas por meio de uma metáfora e não de outras, estamos construindo nossa realidade de uma maneira e não de outras. As metáforas estruturam o modo como pensamos e o modo como agimos, e nossos sistemas de conhecimento e crença, de uma forma penetrante e fundamental. (FAIRCLOUGH, 2001, p.241)

Com a saída de Penha da casa da cantora Chayene, Rosário se candidata como nova empregada doméstica. Apesar de nunca ter exercido a profissão, ela acredita que, assim, poderá ficar mais perto de seu ídolo (Fabian) e mostrar seu talento como cantora, além de suas composições. Quando vai comunicar sua decisão ao pai (Sidney), ele fica revoltado, pois acha que a filha está se rebaixando profissional e socialmente. Sidney: "Você está me dizendo que vai trabalhar de empregada doméstica? Não foi para isso que te criei". (Cena exibida no capítulo 3 – 18.04.2012)

Apesar de Rosário ter uma intenção concreta e um propósito plausível para tentar o novo emprego, seu pai considera que ser empregada doméstica é bem inferior a ser cozinheira de um bufê. O discurso carregado de carga dramática traz a decepção e desilusão como pano de fundo. Mesmo sua filha não tendo estudos formais reconhecidos para que possa tentar uma profissão socialmente valorizada, Sidney fica ofendido com o possível rebaixamento social. Cida está muito preocupada com seu futuro. Pretende fazer vestibular e cursar jornalismo. No entanto, seus patrões possuem outros interesses: que ela seja formalizada como doméstica da casa. Dentro de seu ideal romântico sobre os patrões, ela acredita que será apoiada em sua decisão, mas antes que pudesse falar alguma coisa, eles se anteciparam. Dr. Sarmento: “Agora nós temos que começar a pensar no seu futuro. É claro que continuaremos cuidando de você, mas de uma outra maneira. (...) Dona Sônia e eu conversamos e resolvemos regularizar sua situação nessa casa. Você já fez 19 anos e já passou da hora de assinar sua carteira. Então, a partir de agora você começa a ganhar um salário como doméstica. (Silêncio. Cida começa a chorar decepcionada, mas tenta disfarçar ao máximo.)

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Cida: Vocês sempre foram maravilhosos comigo. Realmente eu só tenho a agradecer.” (Cena exibida no capítulo 4 – 19.04.2012)

Cida, talvez como reflexo de anos de dominação e influência psicológica, tem um comportamento completamente submisso e não questiona sua patroa que a obrigou a trabalhar, à noite, no final de semana, no noivado de sua filha. Ao contrário. Apesar das cobranças, humilhações e exploração de trabalho infantil, já que trabalha como doméstica desde criança, ela se sente em dívida pela “generosidade” dos patrões. Após a demissão da casa da cantora Chayene, Penha tenta conseguir outro trabalho como doméstica na casa de Máslova, avó do jovem rico que Cida se relaciona em segredo, Conrado. Durante a entrevista da profissional, a futura patroa pergunta se Penha sabe ler. A doméstica afirma que sim. Esse diálogo mostra a baixa expectativa educacional que ela imagina ser pertencente à classe das domésticas. A pergunta é indelicada e ofensiva. Ela não perguntou seu nível de instrução, mas sim partiu do princípio básico do aprendizado que seria ler e escrever. Máslova, contudo, dá outro tratamento a Cida. Pensando que a jovem é uma das filhas do renomado Dr. Sarmento, a convida para um chá em sua casa. Quando lá chega, Cida se depara com a amiga Penha servindo e fica receosa que o namorado e a sua avó percebam a ligação entre elas. Pelas suas experiências anteriores como domésticas, e pelos conhecimentos da remota possibilidade de um jovem rico namorar uma empregada doméstica, Penha rapidamente entende que Conrado e a sua avó não sabem sobre a profissão de Cida. Penha disfarça e não demonstra ter qualquer intimidade com Cida. Esta cena mostra claramente o distanciamento social que posiciona os patrões e empregados em lugares distintos e sem possibilidade de relacionamento. Cida, diferentemente de Penha, tem “autorização” de circular entre Conrado e sua família por saber usar e interpretar os códigos culturais das pessoas com mais educação e poder aquisitivo. É branca de cabelos lisos, seu jeito de se vestir, falar e portar é o mesmo que os moradores do condomínio de luxo onde mora, trabalhando como doméstica. Nesta cena ela interpreta o “papel de patroa” e cria uma situação desconfortável entre ela e Penha. Neste momento da trama, Rosário vive um romance com um dos funcionários do bufê, que é fisicamente idêntico ao seu ídolo. Inácio, que não gosta da semelhança com o cantor famoso, termina o namoro com Rosário quando descobre que sua namorada é uma ‘fabianática”, ou seja, fã do cantor. Por conta de sua experiência em elaborar pratos finos, ela é contratada por Chayene como empregada doméstica. 75

Lygia, advogada da cantora Chayene, por não concordar com os motivos da cliente, abandona o caso e decide contratar Penha para ser sua doméstica. A trabalhadora aceita imediatamente, pois havia sido dispensada por Máslova por conta de uma viagem à Curitiba que faria com o Neto. Penha: “Eu tô desempregada mermo, né?! E eu não sei por que, mas eu vou cá cara da senhora. Sabe o que é isso? Negócio de santo. O santo bateu, né! Por mim eu posso começar agora. Lygia: Já começou!” (Cena exibida no capítulo 8 – 24.04.2012)

Nesta cena Penha mostra gostar de Lygia por conta de uma empatia espiritual, popularmente chamada de “o santo bateu”, expressão que faz referência a religiões de matrizes africanas. Logo no início de seu novo emprego, Penha começa a sofrer assédio por parte do patrão (Alejandro, marido da Lygia). Até então, nenhuma das protagonistas havia passado por este tipo de situação. Rosário namorava o motorista do bufê - mesma classe social que ela, mas sósia de um cantor famoso; Cida, se travestindo de jovem rica e educada, namora um jovem rico do condomínio onde trabalha; e Penha é casada com um ajudante de pedreiro que interpreta o papel do típico malandro carioca: não gosta de trabalhar, gosta de pagode e deixa todas as contas e responsabilidades da casa nas mãos de Penha. Alejandro: (Ensinando a doméstica a preparar Gaspacho33) “Gaspacho é ótimo para refrescar. Bem, você sabe que espanhol é um povo muito caliente. Penha: Brasileiro também é um povo muito calorento. Alejandro: E aí, Penha, quer conhecer o gosto do mediterrâneo?” (Cena exibida no capítulo 9 – 25.04.2012)

Alguns capítulos depois, o patrão intensifica o assédio: Alejandro: “Estamos com a casa só para nós dois. Penha: Seu Alejandro, eu estou estranhando o Senhor. Estou indo para o meu quarto e é melhor o senhor fazer o mermo. Alejandro: Ir para o seu quarto? Quem sabe eu não termino esta cervejinha aí na sua cama... Penha dá um tapa em seu rosto e diz: Olha aqui, tu me respeita, hein! Tu respeita tua casa e respeita tua mulher que não merece isso!” (Cena exibida no capítulo 21 – 09.05.2012)

Os exemplos citados mostram que através dos anos a imagem do negro sofreu algumas alterações, mas ele ainda continua sendo visto de maneira discriminada. Apesar de ter a

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intenção de criticar, cada exemplo ratifica os principais rótulos associados aos negros. O da sexualidade, sensualidade e da religiosidade, como explorado por Gilberto Freyre em sua obra, Casa Grande & Senzala, mencionada no primeiro capítulo. Diferentemente de quando foi humilhada pela cantora Chayene, Penha, após o ocorrido, pede demissão quando a patroa Lygia chega em casa e não conta o que aconteceu. A patroa fica muito decepcionada, já que havia feito um acordo para a doméstica dormir e administrar sua casa nos dias que estivesse em São Paulo. Inicialmente Penha havia negado o pedido da patroa, alegando: “se eu ficar para cuidar da sua família, quem vai cuidar da minha?”. Contudo, se sensibilizou com a situação e acabou aceitando deixar a família aos cuidados do irmão mais velho. Nesta cena, podemos perceber mais uma atitude da doméstica que nos relembra o período pós-abolição, como foi relatado no capítulo 1. Ela abdica os cuidados de sua família em prol do emprego e de uma renda maior, além de se compadecer da situação da patroa que estaria ausente e sua família ficaria sem “ninguém” (ou melhor, nenhuma mulher) para realizar ou administrar as tarefas domésticas. Rosário, em seu trabalho na casa de Chayene, beija o cantor Fabian, pois o confundiu com seu namorado, Inácio. O artista havia entrado pela cozinha da casa para despistar as fãs (“fabianáticas”). Apesar de seu status social desprivilegiado, e de não ser um padrão da sociedade relações amorosas entre artistas e empregadas domésticas, o cantor gosta de ter sido beijado por ela e ainda a chama de “bonita”. Após o beijo, Rosário pede desculpas e Fabian dá um autógrafo em seu avental. Em outras visitas de Fabian à cantora Chayene, Rosário sempre aproveita para conversar com o cantor e falar de seu talento e composições. Ele sempre dá atenção à doméstica. Samuel, filho dos patrões de Penha, acusa a doméstica de roubo para o padrasto. A doméstica ouve a conversa no corredor e fica magoada. No dia seguinte, Penha resolve perguntar ao patrão sobre a acusação. Pela segunda vez, Penha é acusada por roubo na trama.

Samuel: "O problema é a mamãe. Ela está com medo de perder a empregadinha perfeita, dos sonhos dela, só que ela não tá ligada de que quem roubou essa grana, pode muito bem ter sido a Penha". (Cena exibida no capítulo 11 – 27.04.2012)

Cida, ainda travestida de patroa, frequenta os mesmos lugares que Conrado até ser desmascarada através de uma mensagem no celular do jovem, que mostrava uma foto de Cida

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Gaspacho ou caspacho é uma sopa fria à base de hortaliças, com destaque para o tomate, o pepino e o pimentão, muito popular no sul de Portugal e no sul da Espanha.

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vestida como doméstica. O rapaz termina o namoro imediatamente e de uma forma muito humilhante para a doméstica. Conrado: “Eu não acredito que eu caí no conto da empregadinha. Isadora: Conrado! Se coloca no lugar da Cida um instante, Conrado! A Cida estava com vergonha de te contar. Cida: Não! Não era com vergonha, não! Eu estava com medo da reação, meu amor. Mas me perdoa, por favor! Conrado: (Se afastando de Cida) Não! Amigo do Conrado: Ei Gatinha! Você faz o serviço completo? Se estiver sobrando um dia, passa lá em casa. Tô precisando de uma faxina! (Fala em tom debochado) Cida: Conrado, vamos sair daqui. Vamos conversar em outro lugar, por favor. Conrado: Cai fora! Não tenho nada para conversar com você! Aliás, me esquece!” (Cena exibida no capítulo 19 – 07.05.2012)

Após a revelação de que era empregada doméstica, Cida perdeu o namorado que, por sua posição social, não aceitava a relação. Conrado confirma a barreira instransponível que existe entre patrões e empregados. Além disso, ao ser revelado seu status social, o amigo do ex-namorado de Cida, que antes tecia comentários gentis sobre sua beleza 34 (por exemplo, “Cida, você está uma gata hoje!”), faz uma insinuação à prostituição. Agora, vendo Cida como doméstica, ele se sente confortável para fazer um convite para que a jovem vá à sua casa “fazer uma faxina”, em outras palavras, fazer sexo com ele. Como sabe que Cida é empregada doméstica e pobre, considera que seu dinheiro pode comprar qualquer serviço da doméstica. Após o termino do namoro, o rapaz, por interesses profissionais, fica noivo da filha do Dr. Sarmento e passa a frequentar a casa onde Cida trabalha. A doméstica, mais uma vez, é humilhada pela filha da patroa e seu ex-namorado, que não escondem a relação. Por mais que Conrado demonstre ter sentimentos por Cida e não por Isadora, ele prioriza a área financeira e seu status social e renega este amor. Após esta série de decepções, Rosário convida as amigas para visitá-la na casa de Chayene e elas brincam de imitar as patroas. Neste mesmo dia, Rosário compõe uma nova música e decide chamar Kleiton (produtor musical da comunidade do Borralho) para gravá-la no estúdio de Chayene. Cida e Penha aceitam gravar a música por diversão e Kleiton sugere que as domésticas façam um clipe da música de Rosário para colocar na internet.

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As cenas as quais o amigo do Conrado elogiava Cida, gentilmente, não foram selecionadas para a presente pesquisa, pois não apresentaram relevância.

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Rosário encontra uma mulher na rua que fala sobre seu futuro como estrela. A atriz que atua no papel da personagem que faz a “revelação” sobre o futuro de Rosário é negra e está caracterizada de maneira similar à uma mãe de santo. Kleiton edita o clipe e, por um descuido, o vídeo é posto na internet. Após a divulgação, as domésticas se tornam muito populares e recebem diversas propostas de trabalho. Rosário é demitida por Chayene e volta a trabalhar no bufê. Quarenta e seis dias após o início da novela, as domésticas assinam um contrato de trabalho e viram oficialmente as “Empreguetes”.

5.4.5.2. Depois da Fama A partir do dia primeiro de junho, os autores decidiram dar um novo rumo à vida das três empregadas domésticas,

mas,

individualmente, cada “Empreguete” teve um

desenvolvimento e final particular. Inicialmente, nenhuma largou seus respectivos empregos: Penha continuou na casa de Lygia, Rosário no bufê, que agora pertencia à seu pai e seu namorado, Inácio, e Cida continuou trabalhando na casa dos Sarmento. O primeiro compromisso profissional foi uma aparição no programa Mais Você, com a apresentadora Ana Maria Braga. Nenhuma grande mudança pode ser notada nas empregadas, todas continuam com o mesmo jeito de falar e de se portar, inclusive Penha com sua expressão oral repleta de erros gramaticais. Penha: "Pode cumê as coisa tudo?" (Cena exibida no capítulo 45 – 06.06.2012)

Em seguida, as “Empreguetes” fizeram um show no Pavilhão do Som no Borralho, comunidade onde Penha e Rosário moram. Fabian, cantor famoso, participa do show e faz homenagem à Rosário, relembrando os tempos que ela era doméstica. Ele está claramente interessado em Rosário, o que desperta ciúmes em seu namorado, Inácio. Fabian: “Antes de cantar eu gostaria de falar umas palavras. Foi um sonho o que trouxe essas três garotas até aqui hoje. O sonho de uma menina linda e talentosa, que sempre quis ser cantora. Você ficava zangada comigo quando eu dizia que seu empadão era o melhor do mundo? (Todos riem) Um dia você me procurou e contou o seu desejo de ser cantora. E quando vi, logo ali, tão perto...essa é para você Bonita! (Começa a cantar para Rosário). (Cena exibida no capítulo 53 – 14.06.2012)

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Cida começa a usar roupas novas e a mostrar que está recebendo por seu novo trabalho. Para provocar inveja na filha da patroa que namora Conrado, ela aparece toda arrumada enquanto todos estão na piscina. É a primeira atitude que Cida tem de enfrentamento dos patrões, tentando igualar-se a eles através de sapatos e roupas caras. Enquanto empregada doméstica, Cida sempre teve um comportamento submisso em relação aos patrões, porém neste estágio em que sua carreira de cantora está em ascensão, ela se sentiu confortável para se exibir e debochar das filhas dos patrões. Mais uma atitude de Cida para se inserir no novo mundo o qual seu dinheiro pode comprar, é frequentar a boate que a classe rica frequenta. Ela chegou a frequentar esta boate outras vezes na trama, mas somente na companhia de Conrado e quando o jovem desconhecia a sua condição social. Agora, ela tem a iniciativa de ir sozinha, pois ela possui recursos financeiros para frequentar o lugar. Essa atitude de Cida mostra que, quando há ascensão social, a aspiração é frequentar, ser e ter o que os patrões possuem, numa tentativa de inverter as relações de poder antes estabelecidas. Em meados de junho, a ex-patroa de Penha, Lygia fica muito doente e a doméstica se solidariza com a situação, colocando-se à disposição para trabalhar em sua casa durante seu período de recuperação. Penha: “Deixei a casa limpinha pra quando a senhora chegasse. Lygia: Você leva maior jeito para enfermeira hein, Penha? Penha: Era meu sonho dona Lygia. Mas aí eu tive que trabalhar em casa de família pá sustentar os menino. Acabou não dano pá mim Lygia: Olha, eu agradeço de coração a força que você está me dando. Você está sendo uma grande amiga. Penha: Dona Lygia, eu tive pensando que eu posso ficar vindo aqui até a senhora se recuperar. Lygia: De jeito nenhum, maluca! Você agora é uma cantora famosa! Penha: Cantora famosa que tem um monte de dívida cá senhora, inclusive de gratidão. Essa vida de cantora não me sobe à cabeça, não. Também, só trabalhar de noite e eu não sei ficar parada. E tem outra coisa também: se é pra ficar em casa assim de bobeira, me aborrecendo com os assuntos de Sandro, eu prefiro vir pra cá me ocupar. Também é só até a senhora arrumar outra pessoa. O que eu queria saber é se a gente pode ir descontando daquela dívida. Lygia: Como é que eu posso recusar uma proposta dessa? Ainda mais sem forças do jeito que eu estou. Você tem que prometer que não vai prejudicar sua carreira. Penha: Quanto à isso a senhora pode ficar despreocupada, tá? Lygia: Obrigada, querida. Penha: A senhora sempre foi muito show comigo, Dona Lygia. Me emprestou dinheiro quando nem me conhecia, negociou minha dívida com o cartão... a senhora salvou a vida do pai do meu filho. Não poderia deixar a senhora na mão agora na hora do aperto. Lygia: Você fez isso uma vez Penha. Por que? Penha: É que eu precisei por causa de uns poblemas aí que eu tive, mas já passou”. (Cena exibida no capítulo 56 – 19.06.2012)

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Segundo Maria Claudia Coelho (2006), as patroas exigem de suas empregadas, como retribuição ao que lhes é dado como presente, valores emocionais, tais como: lealdade, fidelidade e gratidão. Contudo, essa expectativa de “gratidão” é marcada por uma obrigação. No diálogo acima, Lygia não deixa de relembrar Penha sobre um episódio passado a qual a doméstica não retribuiu os favores da patroa como esperado e mostra seu desapontamento com a situação. Lygia, detentora de poder financeiro e educacional, pode ajudar Penha emprestando dinheiro para quitar suas dívidas e interceder por ela com a administradora do cartão de crédito. Essa maneira de agradar através de presentes ou atitudes que as empregadas são incapazes de ter ou fazer, marca mais uma vez a hierarquização desta relação. Mesmo que a empregada presenteie a patroa com algum objeto específico, ele não ficará a altura do que a patroa proporcionou. Por conta de “tudo” que fez por Penha, Lygia espera que ela a ajude nos momentos de necessidade. Ela espera um sentimento de retribuição em troca das doações que fez. “A gratidão, assim teria um “gosto de servidão”, ainda mais acentuado por sua natureza “irredutível. (...) É por isso que, em uma relação tão fortemente hierarquizada, a retribuição esperada não é material, mas emocional: expressão de um sentimento que demarcaria a ‘posição permanente’ da empregada em relação à patroa, ou seja, sua ‘servidão’. (COELHO, 2006, p.71)

Apesar de já estar recebendo por seus primeiros trabalhos como cantora, Penha ainda não quitou suas dívidas e precisa trabalhar como doméstica para regularizar a sua situação financeira. Além disso, ela se sente em dívida com a ex-patroa. Na trama, Lygia interpreta a “patroa boa” que destoa das demais. Por tratar com respeito suas empregadas domésticas e cumprir a legislação trabalhista, é vista como a “patroa ideal”. Fazendo uma comparação simplória e exagerada, isso nos lembra o período escravocrata e o registro na literatura do “bom senhor” e o “mau senhor”. O que tinha o mínimo de humanidade era considerado bom e o que era cruel em suas penalizações era considerado mau. “Tal felicidade, no entanto, aparece relacionada ao fato de não serem tratadas como empregadas, mas como alguém da família ou como amiga dos patrões. Há, dessa forma, uma felicidade no trabalho que se relaciona à recusa da identidade da empregada doméstica. A partir dessa recusa, assumem que os lugares em que trabalham também são seus”. (TEIXEIRA, 2012, p.22)

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Contudo, a posição e o lugar de inferioridade social das domésticas as coloca em um lugar subalterno onde, no ambiente doméstico, cada um tem o seu lugar. Inclusive, o emprego como doméstica aparece como último recurso para que Penha pudesse conseguir prover seu sustento. Ela gostaria de ser enfermeira, mas não pôde por conta das responsabilidades que tinha. Na contramão da relação amigável entre patroas e empregadas, encontramos a relação de Isadora, que usou até os últimos minutos antes de seu casamento para humilhar Cida. Isadora: “Isso é para você aprender quem nasceu para mandar e quem nasceu para obedecer. Quem nasceu para ser senhora Conrado Werneck e quem nasceu para Rodinei. Você pode virar cantora, ficar famosa, rica, mas nunca vai deixar de ser a minha criada”. (Cena exibida no capítulo 56 – 19.06.2012)

O discurso de Isadora explora e utiliza a noção de lugar no sentido de exclusão e de segregação. Ela e Cida ocupam lugares distintos e, segundo ela, uma nunca irá ocupar o espaço da outra. “O lugar é construído social e simbolicamente pelos indivíduos e, havendo em relação a ele, um sentimento de pertencimento, nos referimos ao lugar como território. Utilizamos o termo lugar no sentido de algo que transcende o aspecto geográfico e físico dos espaços” (TEIXEIRA, 2012, p.7).

O uso da palavra “criada” em seu discurso distancia ainda mais Isadora de Cida. Para Teixeira, a sensação de pertencimento à família a qual trabalha faz com que estas mulheres sejam promovidas de criadas para empregadas domésticas. A “criada” é uma profissional distante, sem vínculos ou importância com e para os patrões. Após o momento de tristeza de Cida por conta da humilhação de Isadora e a concretização de seu casamento com Conrado (seu ex-namorado), as amigas Penha e Rosário interrompem os cumprimentos dos convidados aos noivos, com buzinas, em uma limusine rosa ao som da música “Dia de Empreguete”. Neste momento, Cida, que estava cumprindo aviso prévio, resolve largar tudo e pedir demissão para sua patroa Sônia na frente de seus convidados. Após deixar todos surpresos, Cida faz strip tease tirando a roupa de empregada. Por baixo ela já está vestida com as mesmas roupas que as outras “Empreguetes”. Conrado ri de tudo e acha hilária a atitude de Cida (claramente ele ainda tem sentimentos por ela). Ela se despede da madrinha Valda, que trabalha na casa, e diz que voltará para buscá-la. Todos os convidados jovens dançam ao som das “Empreguetes”. Seus patrões ficam furiosos e as filhas juram vingança por conta de toda humilhação.

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Entre as protagonistas, podemos dizer que Cida representa uma atualização da Cinderela ou gata borralheira 35, inclusive, acreditamos que o nome Borralho, dado à comunidade, foi inspirado nessa ideia. “Os contos de fadas personificam ações, personalidades e conflitos humanos, perceptíveis, ainda que de forma sutil, na realidade social de quem lê ou ouve a história. E o término em um “final feliz”, que permite um grau de imaginação para o depois de “e viveram felizes para sempre”. (ALMEIDA, 2013, p.5). No caso de Cida, a nova carreira de cantora seria sua fada madrinha, que lhe trará fama, dinheiro e reconhecimento social. Percebemos mais adiante um conflito sobre os lugares entre patroas e empregadas, mas desta vez com Penha, que foi discriminada por outras patroas brancas do prédio por usar o elevador social. Penha: Boa dia Naldo, bom dia a todos. Máslova: Oh Naldo, o elevador de serviço está encrencado? Branca (Amiga de Máslova): Mas esse não é o elevador social? Naldo: Que isso Dona Branca? Penha: Deixa Naldo. Isso é comigo? Vocês estão falano de elevador social por minha causa? Máslova: Se a carapuça lhe serviu? Naldo: Dona Máslova, hoje em dia por lei não tem mais isso não. Branca: Pois eu acho um absurdo eu ter que usar o mesmo elevador que uma doméstica. Pronto. Falei! Penha: Mas eu não me incomodo de usar o mesmo elevador cá senhora, não, sabia? Olha, eu posso até me incomodar, mas eu não vô reclamar porque eu tenho educação. (Patroas riem). Penha: Ué, não gostô? Vai de escada ou pelo elevador de serviço. Branca: Na casa de quem você trabalha, hein, lindona? Penha: Eu sou amiga da moradora do 701, por quê? Branca: Nossa... (Cena exibida no capítulo 60 – 23.06.2012)

Não podemos afirmar se os autores fizeram ou não propositalmente, entretanto, nos chamou a atenção o nome da personagem da cena acima: Branca. A personagem teve uma atitude preconceituosa com Penha e não admitiu que uma moradora do prédio de luxo poderia ter amizade com uma doméstica. É, no mínimo, curioso que Penha, sendo negra, tenha sofrido passado por uma atitude de oposição e segregação causada por uma personagem chamada Branca. Esse nome é bastante usado na teledramaturgia. Nos últimos anos podemos 35

Escrita pelo francês Charles Perrault, em 1697, a história fala sobre uma jovem moça filha de um senhor fidalgo que se casa pela segunda vez com uma mulher da nobreza, esnobe e arrogante, mãe de duas meninas que se comportam do mesmo jeito. Incomodada com a beleza e bondade de Borralheira, que puxou à falecida mãe, a madrasta passa a obrigar a menina a fazer serviços domésticos em prol do bem estar da mulher e suas filhas. Graças à magia de uma fada madrinha, que a transforma em uma bela mulher, ela consegue ir ao baile dado pelo príncipe, onde o conhece e depois de alguns desencontros ficam juntos.

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mencionar a interpretação da atriz Suzana Vieira em Por Amor e Duas Caras e Angela Vieira em Em Família. E, em todos esses personagens, reconhecemos mulheres admiradas, ricas, com personalidade e atitude, características positivas. Nesta cena uma moradora branca do condomínio de luxo Casagrande expressa verbalmente seu desconforto com a possibilidade de dividir espaço com uma doméstica. Diferentemente do que Gilberto Velho afirmou no capítulo 2 36, a personagem Branca, além de considerar óbvio que patrões e empregadas saibam seus lugares, em uma espécie de separação invisível, ela faz questão de marcar verbalmente este distanciamento e repulsa a proximidade. Além disso, ela mostra reprovação quando Penha afirma ser “somente” amiga de uma “patroa”. Dentro da hierarquia social presente em um condomínio de luxo, uma doméstica não poderia ocupar o lugar de amiga de uma pessoa com a mesma posição social que a personagem Branca. Nesta altura da trama, a vida de Rosário apresenta pouca atividade e passa a focar no triângulo amoroso entre ela, o cantor Fabian e seu namorado, Inácio, e as suas futuras composições e trabalhos para as “Empreguetes”. A carreira das cantoras está crescendo cada vez mais rápido e o empresário Tom propõe a realização de uma coletiva de imprensa antes que as “Empreguetes” façam a abertura do show da cantora Chayene. No evento, percebemos que Penha destoa das outras duas domésticas. Seu português continua muito falho, fala alto e ameaça fazer escândalo quando se sente ameaçada por Chayene. Repórter: Chayene, como é esta história de que você é madrinha das “Empreguetes”? Chayene: Pois é pessoinha, eu conheço essas curicas oh... do tempo do onça quando esfregava chão pra mim, né Penha? Penha para Chayene: Na sopa que tu tacarra na gente” (Cena exibida no capítulo 69 – 04.07.2012)

No final do show, Penha recebe a notícia que Lygia voltou para o hospital e que o seu estado de saúde piorou gravemente. Em sua volta, Penha decide ir visitá-la para dar apoio à família. Lygia: “Minha patroinha! Que bom que você está aqui. Penha: Já que eu sou tua patroinha, eu vou te dar uma ordem: não fica falando muito não que pode fazer mal. Tá? Tem que guardar tuas forças para poder ficar boa logo. Lygia: Obrigada por ter cuidado da Manu.

“Com toda a ambiguidade eram relações muito próximas, mesmo fisicamente. Havia claramente regras implícitas de evitação e de manutenção de distância social” (VELHO, 2012, p.23-24), afirma Gilberto Velho sobre o seu relacionamento com sua empregada. 36

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(...) Lygia: Me promete uma coisa Penha? Penha: Lygia, você não tem que se preocupar com mais nada. Tá todo mundo bem. Tu tem que pensar só em você agora. (Chorando) Lygia: Deixe eu falar, Penha. Se acontecer alguma coisa comigo... Penha: Não vai acontecer nada com você! (Chorando) Lygia: Me escuta. (Ofegante) Se acontecer alguma coisa comigo, você promete que cuida da minha família pra mim? Eu confio tanto em você, Penha... Eu sei que você tem a sua vida, mas se você puder de algum jeito... Penha: Para de bobagem mulher, tu vai ficar boa... (chorando) Lygia: O Alejandro, ele não vai conseguir sozinho, e a Liara está em outra. Penha: Quem vai cuidar dos teus menino é você! Lygia: Tô exausta, Penha. Não sei até quando eu vou aguentar. Promete que você vai cuidar da minha família? Pelo menos no começo, pra eu ficar tranquila. Penha: Tá bom, Lygia. Eu prometo. (Chorando) Lygia: Obrigada”. (Cena exibida no capítulo 71 e 72 - 06.07.2012 e 07.07.2012)

Apesar de ser casada e ter uma irmã (Liara) que a própria Rede Globo descreve como “melhor amiga de Lygia” 37, a ex-patroa de Penha pede para que ela cuide de sua família caso ela morra. Mesmo após a fama e tendo largado o trabalho doméstico, Penha aceita exercer a função de doméstica e administradora do lar por ser a mulher de confiança da ex-patroa. Inclusive Lygia faz um comentário chistoso chamando Penha de “patroinha”. Seu novo status profissional não alterou a imagem que tinha de si. Percebemos que as empregadas domésticas são as responsáveis por manter a dinâmica do lar em ordem enquanto os outros membros da casa podem exercer outras atividades ou mesmo no caso de falecimento da figura feminina, como no caso acima. É curioso, também, observar quando Lygia comenta que “O Alejandro, ele não vai conseguir sozinho”. Segundo Brittes, “do marido é esperada a parte principal da manutenção econômica da casa. (...) Poucas tarefas domésticas lhes são destinadas: às vezes, faz compras no supermercado” (BRITTES, 2007, p.96). A segregação e exclusão das mulheres no mercado de trabalho por séculos, as deixou por décadas restritas ao trabalho doméstico. Essa herança possibilita que ainda nos dias de hoje seja atribuída à figura feminina a responsabilidade do lar, mesmo quando possuem uma carreira externa, o que é o caso de Lygia. O dia 14 de junho marca uma grande vitória do grupo “Empreguetes”, já que elas iniciam uma turnê de dois meses por todo o Brasil, o que mudaria definitivamente a situação financeira de cada uma delas. Em sua volta, cada uma está com um visual diferente: Rosário com cabelo mais loiro cortado e com roupas mais extravagantes; Cida com cabelo curto e 37

http://gshow.globo.com/novelas/cheias-de-charme/personagem/liara-mariz.html#perfil

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roupas de luxo e Penha está com cabelo com cachos mais modelados. Contudo, suas roupas e jeito de falar permanecem os mesmos. Ela continua a usar as roupas justas e decotadas, porém, mais brilhosas e chamativas. Ao sair em turnê, Penha deixou sua amiga Ivone responsável pela reforma geral de seu “puxadinho”38. Quando ela volta, fica deslumbrada com a mudança. Penha: Meu pai do céu!!! E a quadra, Patrick? Toda pintadinha, novinha pá tu brincá, meu filho! Eu vou fazer muito pagode nessa quadra, muito do churrasco. E minha laje? Tá linda? Patrick: A senhora vai adorar! Penha: Vou adorar? Cadê minha laje! (...) Alana: Ai minha irmã, ficou lindona a nossa casa, né? Eu ainda acho que tu tinha que ter comprado um apartamento num condomínio na Barra, mas... Penha: Tá doida, menina! Mas eu não me mudo pra condomínio de madame metida a besta nem morta! Tu sabe por que? Por que não tem lugar mais animado no mundo do que o meu Borralho. Cida: Eu morei minha vida inteira lá no Casagrande, mas é muita frescura, uma falsidade danada... Rosário: Tu não morou no Casagrande, tu trabalhava lá. É bem diferente! A casa não era sua. Cida: Bom, nesse momento eu acho o Borralho mais a minha cara. Rosário: Ahhh, mas eu já falei com corretor. Amanhã mesmo ele vai mostrar uns apartamentos pra gente, Papito. (...) Cida: Ah gente, se vocês forem vender o apartamento eu fico interessada em comprar pra madrinha”. (Cena exibida no capítulo 79 - 14.07.2012)

Percebemos algumas diferenças nos discursos das três “Empreguetes”. Cida pensa em presentear a madrinha com um apartamento no Borralho, onde considera um lugar bom para viver, mas não possui nenhum plano concreto com relação a si. Muito grata à madrinha por ter ajudado a suportar toda a humilhação por todos esses anos na casa dos Sarmento, ela seria a primeira pessoa a ser presenteada por ela. Rosário, que sempre aspirou ter uma vida de artista, com todo o luxo que ela poderia proporcionar, mostra sua vontade em morar no condomínio de luxo Casagrande, onde a cantora Chayene mora, assim como a família Sarmento e Lygia. Para ela, o sucesso significa mudança radical e uma melhoria visível a todos, ou seja, assumir status de “patroa”. Penha pensou em reformar sua casa na comunidade do Borralho e a quadra onde o filho costumava brincar. As aspirações dela são básicas, como ter uma máquina de lavar, fogão e geladeira novos39. “Puxadinho” é uma expressão informal que designa uma extensão ou anexo em um imóvel. Uma forma de construção informal através da qual a população de baixa renda resolve o problema de espaço sem investir em uma reforma completa ou na compra de um outro imóvel de maior tamanho. 38

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Cena exibida no capítulo 79 - 14.07.2012.

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Em mais uma tentativa de humilhar as ex-patroas, Cida convida Penha e Rosário para acompanhá-la na liquidação da Galerie, loja de grife de sua ex-patroa, que está fechando as portas. Sonia para vendedora: Mostre os vestidos da Mecatron para a Rosário que ela gosta de coisa boa, a moreninha pode esquecer porque só faz é reclamar de preço". (Cena exibida no capítulo 86 - 23.07.2012)

Rosário e Cida se adaptaram rapidamente ao novo universo e às novas possibilidades. Como um ganhador pobre de loteria que, por ter vivido uma vida de privações, não se importa com o alto custo das coisas que deseja. Cida, por exemplo, compra um vestido de 4 mil reais na loja e não se importa. Penha apresenta uma atitude mais moderada com relação a seus gastos e reclama dos altos preços da Galerie. Por conta desta atitude, Sonia, dona da loja, tem uma atitude preconceituosa com ela de não oferecer os melhores produtos e usa uma metáfora pejorativa para identificá-la para a vendedora. Estas figuras são usadas como recurso estilístico para expressar uma ideia em código. As mais usuais no contexto de discriminação são a metáfora, a metonímia, o eufemismo, a ironia, o humor e a pergunta retórica. Ronaldo Sales Jr. mostra a ideia através de alguns exemplos: Metáfora: “macaco”, “tição”, “carvão”, “grafite”, “cabelo ruim”, “dia de branco”, “cabelo de bombril” Metonímia: “escuro”, “preto” Eufemismos: “boa aparência”, “escuro”, “moreno”, “afro-brasileiro”, “pessoa de cor”, “simpatia”, “cor do pecado” Ironia: “só podia ser...”, “pra variar...”, “mas como é bonitinho...” Pergunta retórica: “desde quando negro é gente?” (SALES, 2006, p.241)

As figuras de linguagem supracitadas mostram como o próprio discurso racista já se apropriou da linguagem para embutir e confirmar o preconceito. Para Aristóteles, “a metáfora consiste em doar a uma coisa o nome que pertence à outra coisa. Transferência que pode realizar-se de gênero para espécie, espécie para o gênero (...) ou com base numa analogia” (ARISTOTELES,1981, p.21). A personagem Sonia usa um eufemismo para identificar Penha, que no imaginário simbólico brasileiro seria uma atenuação da denominação “negra” ou “negro”, que seria inferior à “morena” ou “moreno”. A relação das palavras com os significados é de muitos-para-um e não de um-paraum, em ambas as direções: as palavras têm tipicamente vários significados, e estes são ‘lexicalizados’ tipicamente de várias maneiras (embora isso seja um tanto enganoso, porque lexicalizações diferentes mudam o sentido: ver a próxima seção). Isso significa que como produtores estamos diante de escolhas sobre como usar uma palavra e como expressar um significado por meio de palavras, e como intérpretes

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sempre nos confrontamos com decisões sobre como interpretar as escolhas que os produtores fizeram (que valores atribuir a eles). Essas escolhas e decisões não são de natureza puramente individual: os significados das palavras e a lexicalização de significados são questões que são variáveis socialmente e socialmente contestadas, e facetas de processos sociais e culturais mais amplos. (FAIRCLOUGH, 2001, p.230)

O que nos chama a atenção é o fato de as “Empreguetes” repudiarem a maneira como foram tratadas no passado, mas terem vontade de ascender socialmente e fazer parte da classe dominante, através do consumo dos mesmos bens, terem liberdade de frequentar os mesmos locais que os patrões e se vestirem como eles, principalmente Cida. Lembrando que quando elas ascendem, através do grupo “Empreguetes”, elas igualam seu status ao da antiga patroa de Penha e Rosário (Chayene) e ameaçam sua carreira, prevalecendo no topo da hierarquia. No mês de setembro, último da novela, não encontramos elementos relevantes para mencionar em nossa análise. Como toda história fantasiosa e lúdica, todas as protagonistas possuem um final feliz e os vilões são penalizados por suas maldades. Sônia trabalha de vendedora na Galehip (estabelecimento criado no espaço onde era sua loja) e vai morar em uma pensão no Borralho. Heróis, Inácio e Fabian salvam Rosário e Chayene das mãos de Dália, uma fã obcecada pelo cantor Fabian. Chayene e Fabian reatam namoro midiático e fecham turnê pequena, só para crianças, fazendo show, inclusive no Chopeokê, casa de shows do Borralho. Cida decide publicar seus diários, lançando um livro com o apoio de Elano (seu atual namorado). Também ganha a audiência em que condenou os Sarmento por exploração infantil. Cida e Elano, assim como Inácio e Rosário se casam, e Penha continua seu casamento com Sandro. Por acreditarmos na relevância social das mensagens passadas pela mídia e seus símbolos, decidimos realizar a análise de uma telenovela com protagonistas empregadas domésticas para entender como esta classe é retratada e como essa ascensão econômica da classe C “televisionada” retrataria ou reproduziria não só os estereótipos relacionados às mulheres negras, mas também, o discurso implícito ou invisível que constrói ou confirma ideologias marcadas e consagradas na sociedade. Por exemplo, há várias maneiras em que se pode dizer que o discurso é um modo de prática econômica; o discurso figura em proporções variáveis como um constituinte da prática econômica de natureza basicamente não-discursiva, como a construção de pontes ou a produção de máquinas de lavar roupa; há formas de prática econômica que são de natureza basicamente discursiva, como a bolsa de valores, o jornalismo ou a produção de novelas para a televisão. (FAIRCLOUGH, 2001, p.94)

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6 CONCLUSÃO Após a realização de uma breve revisão histórica da mulher negra no mercado de trabalho, da discussão acerca da situação atual das empregadas domésticas no que diz respeito ao perfil socioeconômico, da reflexão sobre os detalhes de sua relação com seus empregadores e as peculiaridades do trabalho doméstico, pudemos encontrar bases sólidas para buscar respostas às principais questões que incentivaram a presente pesquisa. A revisão do histórico da presença e atuação da mulher negra no audiovisual, especialmente nas telenovelas, também nos permitiu desenvolver um olhar crítico sobre o que a novela Cheias de Charme poderia (re)velar sobre sua protagonista negra, Maria da Penha. As empregadas domésticas, normalmente invisibilizadas nas telenovelas brasileiras, assumiram na novela Cheias de Charme o papel de protagonistas, provavelmente devido a motivações econômicas e não por intenção dos autores de diversificar as histórias retratadas nas novelas, dando destaque, então, a camadas sociais que ficaram por anos em segundo plano. Com a ascensão econômica da classe C, que propiciou o acesso ao consumo a uma camada até então excluída da população, a indústria do audiovisual se organizou para atender a essa nova demanda mercadológica. Percebemos, todavia, que os produtos televisivos desenvolvidos para estes “novos consumidores” não contemplam a realidade racial de maneira verossímil. Segundo a pesquisa da Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE) da Presidência da República, publicada no dia 20 de setembro de 2012, quase 80% dos novos integrantes da classe média40 são negros41, e a novela Cheias de Charme possui apenas 21% do elenco de 41 atores formado por negros. A tentativa de oferecer um produto adaptado às necessidades de um público específico ignora os critérios raciais como parâmetro relevante, contribuindo para a propagação do mito da democracia racial na mídia brasileira. Além disso, nenhum personagem negro tinha posição social de destaque na novela. Todos eram da classe C, D ou E. Ou seja, divisão ou segregação que marca posições e lugares sociais distintos de acordo com o gênero e etnia, ou seja, há lugares específicos para homens e mulheres, brancos e negros.

A pesquisa governamental optou por usar a expressão os “novos integrantes da classe média” no lugar de classe C. 41 http://g1.globo.com/economia/noticia/2012/09/quase-80-dos-novos-membros-da-classe-media-sao-negros-dizgoverno.html 40

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As três protagonistas apresentam um comportamento que tenta simbolizar a mulher típica da classe C: que passa por dificuldades, é trabalhadora, mas vence no final por sua persistência. Mesmo com estas características, a subalternidade e a invisibilidade da mulher enquanto empregada doméstica fica evidente através das humilhações e perseguições sofridas pelas personagens, a despeito das evidências de sua grande importância na dinâmica familiar contemporânea. Devido à realidade brasileira das empregadas domésticas e aos dados estatísticos que foram apresentados no segundo capítulo, percebemos que o percentual das mulheres negras que atuam como domésticas é consideravelmente maior 42 que o das mulheres brancas, o que não traduz a existência de duas protagonistas “Empreguetes” e heroínas brancas e somente uma negra. Devido ao número expressivo de mulheres negras ocupadas como domésticas, supomos que a personagem Penha, provavelmente, deve ter sido a protagonista de maior empatia do público, seja pela cor da sua pele ou por sua realidade mais semelhante à das empregadas domésticas. Penha é chefe de família, sustenta e cria os dois irmãos e um filho, mora longe do trabalho e precisa contar com a ajuda de amigos e vizinhos, além de ser uma mulher incansável. Sobre a abordagem da temática do preconceito racial, percebemos que o assunto não foi abertamente explorado ao longo da novela. Os autores quiseram mostrar a realidade de dificuldades e privações das domésticas, mas não consideraram o processo histórico passado no Brasil pelas mulheres até chegarmos ao status atual. A dominação capitalista da classe burguesa permaneceu durante boa parte da nossa história, do império à república, construindo uma relação de supremacia sobre a mulher negra, a qual foi durante muitos séculos escravizada e humilhada, tendo que se anular em prol da família branca em detrimento da sua. Os limites entre ficção e realidade possuem fronteiras indefinidas e escorregadias, o diálogo dessas duas instâncias é uma constante e as interferências, mútuas, daí por que produções que se propuseram trabalhar a questão racial precisam dialogar com a realidade e trabalhar a ficção de modo honesto e convincente. (ARAÚJO, 2004, p.15)

Diferentemente das décadas de 1950 e 1960, a novela não apresentou a protagonista negra como uma versão direta e adaptada das mucamas e amas-de-leite, submissas, apagadas e sem ter direito de exercer sua própria vontade. Penha é uma mulher determinada e que valoriza sua participação no cotidiano da família, no entanto, em diversos momentos mudou

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sua rotina em prol do bem estar da família da patroa, passando a dormir no trabalho e deixando seus irmãos e filhos sozinhos. Ela se insere no contexto já abordado de “ambiguidade afetiva”, pois por desenvolver relação de afeto com uma patroa, acaba colocando sua vida em segundo plano, já que não consegue negar favores ou ajuda à família. Além dos critérios e parâmetros mencionados anteriormente, analisamos de perto a qualidade da relação que as três protagonistas possuíam com o seu círculo social e de trabalho. Cida e Penha foram as personagens que mais sofreram com a segregação espacial feita por seus patrões. Cotidianamente, eram lembradas sobre o “lugar” que tinham que ocupar na casa e os limites que sua relação com os patrões deveria ter. Neste último item, podemos dizer que Penha, em especial, passou por mais situações de constrangimento e humilhação que as outras protagonistas, já que sofreu assédio moral, sexual e físico dos três patrões que teve na trama. Os diferentes assédios que Penha sofreu nos remetem há outros estereótipos relegados às mulheres negras na história brasileira. Como na literatura do início do século XX, principalmente na obra de Gilberto Freyre Casa Grande e Senzala o forte apelo à sexualidade presente na mulata através das formas de seu corpo, seu jeito de falar e roupas, a torna “irresistível” ao seu patrão, que outrora era o senhor de engenho. Em relação ao assédio moral, percebemos que uma patroa, especificamente, usa termos pejorativos e negativos para ofender Penha. O discurso do racismo que se apropriou de algumas nomenclaturas para colocar o negro em um patamar inferior na sociedade, seja na comparação com animais ou na redução à insignificância, carregam um preconceito que foi embutido no imaginário da população, desde a época da escravidão, assim como a ideia de “sujeira” e sua “aptidão inata” para roubar e furtar. Em contrapartida, apesar de toda humilhação sofrida no ambiente de trabalho, possui alguns privilégios. Por exemplo, no noivado da filha mais velha dos patrões, ela trabalhou usando um vestido de sua patroa, ou seja, sem uniforme. Por isso, foi confundida com uma das filhas do patrão por um dos moradores do condomínio Casagrande, que flertou e conversou com ela. Se Cida estivesse vestida com seu uniforme o vizinho reconheceria que ela era uma doméstica e, dificilmente, mostraria algum interesse. Penha possui o ethos da negra carioca, mulher de formas exuberantes, alegre, desenvolta, que aprecia a companhia das pessoas em sua casa, o pagode e o samba. Suas 42

Com relação às raças, em 2009, 12,6% das mulheres brancas ocupadas eram trabalhadoras domésticas, enquanto 21,8% das mulheres negras desempenhavam a mesma função.

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vestimentas e acessórios, vestidos e calça jeans justos, seu andar rebolado, além de suas sandálias de salto alto, que lembram as utilizadas pelas passistas de escola de samba, colaboram com os estereótipos da personagem. Outro elemento interessante que chamou a atenção durante a novela foi a nomenclatura do condomínio de luxo onde as três protagonistas trabalharam em algum momento da trama: condomínio Casagrande, uma referência direta à Casa Grande da época escravocrata, onde moravam os senhores e senhoras de engenho. Para os autores existem dois polos distintos, o condomínio Casagrande, como representação da burguesia, e o Borralho, que não seria uma senzala exatamente, mas um lugar de moradia e reunião de pessoas pobres. Especulamos se os autores quiseram enfatizar uma noção de que a senzala não seria apenas negra hoje em dia e que todas as empregadas seriam “novas escravas”, já que as três protagonistas moraram em algum momento no Borralho. Contudo, será que dentro dessa “nova senzala” todas as escravas tiveram as mesmas condições de vida? Comparando os históricos das personagens, bem como o que acontece na vida real, parece que não. Aproveitamos essas ideias para levantar algumas discussões sobre os papéis das três domésticas, o universo social no qual estão inseridas e a questão de cor como critério analítico. Entre as três protagonistas, duas delas são brancas e uma negra. Rosário (branca) se tornou empregada doméstica por opção. Cida (branca) é empregada doméstica desde a infância, contudo teve a oportunidade de conviver em um ambiente cultural e social privilegiado, por ter sido criada em uma casa de luxo, com participações e interações intensas na dinâmica familiar de seus patrões. Penha (negra) não teve oportunidades e por conta do abandono de seus pais durante a adolescência encontrou na vida de doméstica a única maneira de sustentar seus irmãos e seu filho. Elas se apresentam como três personagens plausíveis, comparadas à vida real, que poderiam ser interpretados por qualquer uma das três atrizes escaladas. Contudo, será que os telespectadores achariam a trama verossímil se a atriz negra (Taís Araújo) interpretasse o papel de Rosário, a sonhadora que deseja ser cantora e foi adotada? Ou se Isabela Drummond (Cida) ou Leandra Leal (Rosário) interpretassem Penha? Dentro da realidade brasileira, seria normal a atriz Taís Araújo interpretar uma personagem que se tornou empregada doméstica para se aproximar de um ídolo (Rosário). E a atriz Leandra Leal poderia interpretar Cida e viver na luxuosa residência dos Sarmento. Contudo, será que se os pais de Cida fossem negros e ela fosse negra, os patrões a tratariam 92

como “filha” ou proporcionariam os estudos que ela teve como personagem branca? Seguindo esta lógica, a atriz Taís Araújo seria Cida e falaria corretamente e teria uma educação formal. Será que ela, sendo negra, teria suscitado a possibilidade de Conrado, o filho de um dos empresários mais ricos do país, achar que ela é filha do dono da casa e não uma empregada da casa ou contratada para o evento? Contudo, levantamos também a hipótese de Penha ter sido interpretada por uma das atrizes brancas. Será que a aceitação do público seria a mesma? Será que seria aceito que a personagem branca tivesse menos estudo e oportunidades que a personagem negra? O estudo realizado no terceiro capítulo nos mostrou que mesmo quando há pobres da cor branca nas novelas, o negro sempre está no patamar mais subalterno na hierarquia social. Resumindo, será que apenas mudando a cor de pele dos personagens o grande público modificaria seu grau de identificação com a novela? Não estamos pretendendo levantar a questão de que a novela Cheias de Charme é ou não preconceituosa, mas sim levantar a discussão de como as pessoas aceitam o negro no papel de subalternidade de forma natural, enxergando como realidade possível somente esta maneira. Não é só uma questão de inversão de papéis ou de protagonistas, o problema é o universo das três personagens e a suposição da hipótese da personagem negra estar em condições culturais acima das brancas. Se as três protagonistas fossem negras, não haveria este “problema”. Levantamos estas hipóteses para estimular uma reflexão sobre os estereótipos nos papéis dados aos negros e brancos nas novelas e para indicar a necessidade de uma pesquisa futura sobre a inversão desses papéis e a simulação da aceitação por parte dos telespectadores.

(...) uma reflexão sobre o preconceito racial ou de cor em nossa sociedade, além de enfocar o lugar e papel das diferentes instituições na reprodução de representações acerca do lugar social e características – morais, culturais, intelectuais, artísticas – dos negros sem dúvidas, muito terá a ganhar se conseguir pensar criticamente os sistemas de representação vigentes em nossa sociedade acerca de quem é o negro e quais são as suas características. Estamos falando, aqui, dos estereótipos dominantes na sociedade brasileira acerca dos negros. (GIACOMINI, 2008, p. 79)

A telenovela é um meio de representação que fornece valores, significados e símbolos que transmitem o que julgam como representação da sociedade. Desse modo, ela contribui para os juízos de valores negativos e indevidos que a sociedade, televisiva, imputa aos negros. Alguns podem alegar que o autor usou a personagem de Penha para chamar a atenção para a questão racial de maneira indireta. Não concordamos com essa possibilidade por conta 93

da discrepância cultural e social atribuídas às protagonistas, principalmente Penha, que reproduziu de maneira caricatural o estereótipo da empregada doméstica negra. A mídia, pela maneira como seleciona, ordena e representa as informações, reduz a complexidade e a confusão de uma campanha a uma discussão ou a um combate com partes fixas, ataque seguido por contra-ataque. (FAIRCLOUGH, 2001, p.243)

O discurso midiático contribui para a construção dos valores simbólicos da sociedade. Existe uma grande responsabilidade na construção de suas representações e suas influências sociais e ideológicas. Apesar do mercado televisivo estar focado nas classes mais desfavorecidas, o negro ainda é retratado de forma subalterna e a mulher negra, além disso, ainda sofre com a perpetuação de rótulos ancestrais. Apesar de sua penetração na sociedade e poder de influência, a indústria televisiva parece não possuir interesse ou compromisso de colaborar com a correção dos estigmas que ainda circundam os afro-brasileiros.

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