\"De onde você vem?\" Tradução para pt. de um excerto do livro “Kara Günlük. Os Diários Secretos de Sesperado” de Mutlu Ergün

June 5, 2017 | Autor: Jessica Oliveira | Categoria: German Literature, Tradução E Literatura, Tradução literária
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RESUMO: O seguinte texto é a tradução de um excerto do livro “Kara Günlük. Os Diários Secretos de Sesperado” do autor Mutlu Ergün, berlinense em exílio em Londres, onde vive, trabalha e estuda como escritor, educador, pesquisador social e performer. Desde 2001 é membro da Associação anti-racista Phoenix e.V. No centro deste romance encontra-se o jovem estudante racializado Sesperado, que vive em Berlim. Juntamente com a sua família e amigos ele sempre se defronta com a supremacia branca e tenta lidar com essas relações de poder e dinâmicas verticais com humor e ironia. Em seu diário, ele conta os dias para o grande acontecimento que ele chama de “R.O.C.”, a Revolução de Cor – isto é, o dia em que todas pessoas racializadas se unirão para o estabelecimento e convivência da e na “N.O.C.” Nação de Cor. No trecho abaixo, Kara divide suas 5 estratégias mais eficazes para responder à pergunta: "De onde você vem?"

De onde você vem? 17º registro

Na verdade, já estamos cansados desse tema. Eu já refleti muitíssimo se eu deveria emporcalhar o meu lindo diário com esta irrelevância ou não. Porém, finalmente eu pensei: “Ah, o que que tem... Agora você já está tão entediado mesmo e não tem nada melhor pra fazer então escreva simplesmente sobre este tema. Você nunca sabe... talvez algo saia disto. Vocês já vão adivinhar: trata-se da pergunta completamente sem sentido, supérflua, irritante e demasiadamente frequente feita para todos/as P.o.C1 na Alemanha: Tcharamm…“De onde você vem?” Já há muito tempo eu não fico entre brancos/as e por isso, por um longo tempo não me perguntam mais isso. Mas ontem o Mecnun me levou pra um jantar – às vezes não tem como escapar – A namorada branca de Mecnun convidou-o para um jantar no apartamento dela. Pra ser sincero, não tinha nenhuma vontade de ir, visto que todas as pessoas que moram com a Lena são brancas e não muito espertas, mas Mecnun me pediu e implorou, e finalmente se ofereceu para ir cortar a grama do jardim da casa dos meus pais, o que eu não conseguiria fazer no próximo mês. Além disso, ele é meu primo então acabei fazendo o favor. Claro que estou preparado para certas coisas. Meu arsenal lírico de guerilla está transbordando com resposta e já estão todas engatilhadas na garganta. Não faço prisioneiros. Abreviação de “People of Color” em português, literalmente “pessoas de cor”, mas prefiro usar o termo “racializados/as”, uma vez que, historicamente no Brasil “pessoa de cor” é usado no apagamento de identidades negras, além de que o colorismo brasileiro pretende separar pessoas negras pelos tons de sua pele. Para uma discussão mais aprofundada sobre colorismo, leia: http://www.geledes.org.br/colorismoo-que-e-como-funciona/. Contudo, decidi manter o termo em inglês no texto, pois seu uso na Alemanha é diferente do que no Brasil. 1

Lena preparou divinamente uma refeição tipicamente turca. No entanto, cometeu o pecado capital de deixar o alho de lado. Assim que sentamos à mesa verifiquei a circunstância imediatamente: cinco brancos, Lena, seus dois companheiros de casa e as namoradas deles; e então duas P.o.Cs: Mecnum e eu. Mal começamos a comer – a comida ainda estava no meu garfo – e logo apareceu a inexplicável, mas já esperada afronta contra cada etiqueta intercultural. Um deles fez a aparentemente banal, mas no sistema de repressão dos brancos, já arraigada pergunta: “De onde você vem?”. O Mecnun já deu cobertura; a Lena quase se engasgou de susto, mas o Sesperado não fica nada feliz com esta situação: um pequeno apanhado no meu arsenal, carregar e disparar. Meu feitiço atingiu em cheio os brancos. Lena e Mecnum deram um sorriso amarelo e os outros brancos também sorriram depois da minha resposta profunda. Até mesmo quem fez a pergunta riu. Pelo menos este branco percebeu que sua pergunta foi desnecessária. Claro que agora todos vocês estão curiosos e querem saber o que eu disse de tão inteligente para esse cara, mas yaavaasch2...vamos bem devagar... vou torturar vocês mais um pouco. Só uma coisa eu já posso dizer: Está é a melhor resposta que eu tenho para tais situações. E quando o Sesperado diz algo, é sempre algo bem significativo! Toda vez que alguém me pergunta: “De onde você vem?” é como se o tempo parasse e toda a minha vida passasse pela minha frente. Revivo os milhões de olhares que me fizeram a mesma pergunta e me lembro também das diferentes respostas que eu já dei para tal.

Mas primeiro uma introdução teórica do assunto. O que no geral os teutões querem dizer com esta forma de saudação: “De onde você vem”? Por trás desta pergunta não se encontra nenhum interesse amigável. Para ilustrar a forma germânica de pensar, eu uso a estrutura Neandertal da frase: “você não branco, porque você não branco, você não poder alemão ser. Logo: De onde você vem? Eu ser branco, eu já antes aqui, você chegar depois. Porque eu antes já aqui, eu mais direitos”. Além disso, a pergunta “de onde você vem”? implica também a segunda pergunta: “Quando você vai embora”?

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N.T: Yavash, palavra turca que significa devagar.

Naturalmente as estratégias de P.o.C na luta de guerilha contra a supremacia branca/ hegemonia ocidental devem ser disseminadas. Então, aqui vai meu top 5 com as melhores cinco respostas para a pergunta colonial tendenciosa: “De onde você vem?”

Posição 5: - De onde você vem? -De Berlim, e você? - hmmm... e então eu indago quem perguntou primeiro sobre os pais dele/a, avós, irmãs dos pais, tias-avós solteironas e primos de terceiro grau. Faço uma intensiva pesquisa genealógica até a décima segunda geração. Depois de ter escancarado a sua genealogia ariana até as calças na minha frente, às vezes germina nelas a esperança de também ouvir algo de mim, de saber de onde eu venho. Assim que elas refazem a pergunta eu digo com frieza que a questão é muito pessoal. Eu não dou informações sobre a minha origem.

Posição 4: De onde você vem? De Berlim Como assim de Berlim? Eu venho de Wedding. Antes eu estava em Neukölln. E onde você nasceu? Em Tiergarten-Moabit. Em Kreuzberg frequentei a escola primária, o ensino médio em Schöneberg, em Zehlendorf comecei a frequentar a universidade e agora estou em Mitte. Gente, isso é naturalmente tudo besteira. O Sesperado é nativo de Wedding, lembrem-se disso. Representando Berlin City. Saudações de Wedding! pow pow pow!

Posição 3: A posição 3 é um pouco mais complexa. Quando as pessoas me perguntam de onde eu venho, eu conto para elas uma história de família falsa parecida com a seguinte: O meu avô por parte de mãe é metade Kabyle do Marrocos e metade mongol, minha avó por parte de mãe é metade indígena do Chile e a outra parte cubana. Eles se conheceram em Maurício e lá se casaram. Meu avô por parte de pai é metade libanês e metade havaiano, minha avó por parte de pai é metade da Malásia e metade de Mali.

Eles se conheceram no México e lá se casaram. Isto significa que meu pai é um oitavo malaio, um oitavo havaiano, um oitavo libanês e cresceu no México e minha mãe é um oitavo kabile, um oitavo marroquina, um oitavo mongol, um oitavo cubana e um oitavo indígena chilena e cresceu em Maurício. Eles se conheceram no Paquistão e vieram para a Europa. Eu nasci na Alemanha, isto é, minhas origens vêm do Paquistão, México e do Maurício e tenho raízes no Marrocos, Chile, Cuba, Mali, Mongólia, Líbano, Havaí e Malásia. Isto só foi um resumo. Posso me alongar na história por mais quatro horas e meia, se necessário. Com todos os detalhes e anedotas. Eu torturo tanto as pessoas com as histórias da minha família que da próxima vez, elas pensarão cuidadosamente se devem perguntar “De onde você vem?”

Posição 2: Às vezes a pergunta “De onde você vem?” está também associada a um desejo pelo exótico. Por algum motivo indefinido meu rosto se torna uma projeção ideal. Se eu deixar que as pessoas adivinhem minha origem, elas acham então tudo possível, da América do Sul até o norte da África, também da Ásia, com exceção da Rússia, Japão e Laos, mas também Laos só porque ninguém conhece. Às vezes, quando as pessoas me vêem e perguntam, de onde eu venho, eu vejo brilhar esse desejo por uma história exótica e já que no fundo do meu coração eu sou um filantropo, não gosto de decepcioná-las com uma história banal. Então eu digo que era um monge tibetano, de um templo em Timbuktu e fugi para percorrer o rio Amazonas sob um grande tronco de árvore. O fluxo do destino me trouxe finalmente para Mecklenburg-Vorpommern (estado no norte da Alemanha)

Posição 1: Ok, eu posso ver nos seus olhos que vocês querem saber o que eu disse para o cara no apartamento da Lena. Vocês querem ouvir a minha melhor resposta, por isso não vou deixar vocês sofrerem mais. Uma coisa eu preciso dizer antes: esta resposta na verdade não fui eu quem inventou, eu a ouvi de um amigo, mas ela é simplesmente tão genial que tive que pô-la em meu repertório. Então, aqui está ela, a número um, a melhor de cinco, a resposta derradeira para a pergunta: de onde você veio?

-Da minha mãe!

Excerto retirado de Ergün, Mutlu. Kara Günlük. Die geheimen Tagebücher des Sesperado. Unrast Verlag. Münster, 2010.

Tradução: Jessica Oliveira, mestranda do Programa de Pós Graduação em Estudos da Tradução (PGET) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Possui graduação em Letras Português/Alemão pela Universidade de São Paulo (2014) e ouviu 3987 vezes a pergunta “De onde você vem?” enquanto viveu na Alemanha.

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