DE PLAUTO AO TEATRO DE CORDEL EM PORTUGAL E NO BRASIL

September 6, 2017 | Autor: Renato Roque | Categoria: Plautus, Literatura de cordel, Plauto, Ariano Suassuna, Cordel Literature
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DE PLAUTO AO TEATRO DE CORDEL EM PORTUGAL E NO BRASIL

Máscara de escravo da Comédia Nova

2014 Renato Roque FLUP

Imagem de capa – xilogravura digital, desenhada em Photoshop a partir de uma máscara de escravo da comédia grega do Museu Arqueológico de Atenas (Comédia Nova, século II a.C.)

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Sinopse: Neste artigo apresenta-se o teatro de Plauto, faz-se uma pequena história do cordel em Portugal e no Brasil, para a partir daí tentar encontrar relações e semelhanças entre os dois, mas também diferenças. Para concluir faz-se uma procura sistemática de personagens-tipo de Plauto nas peças de Ariano Suassuna. O artigo é acompanhado pela peça de cordel Quem Tem Tudo Quer À Força Ter Canudo – A História de Dois Impostores Que Queriam Ser Doutores, que foi escrita de acordo com as regras do cordel e procurando uma influência do teatro plautino.

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DE PLAUTO AO TEATRO DE CORDEL EM PORTUGAL E NO BRASIL 1. INTRODUÇÃO “Em 1913, certamente mal informados, 39 escritores, num total de 173, elegeram por maioria relativa Olavo Bilac príncipe dos poetas brasileiros. Atribuo o resultado a má informação porque o título, a ser concebido, só poderia caber a Leandro Gomes de Barros, nome desconhecido no Rio de Janeiro, local da eleição promovida pela revista FON-FON, mas vastamente popular no Nordeste do país, onde suas obras alcançaram divulgação jamais sonhada pelo autor de 'Ouvir Estrelas'. (...) E aqui desfaço a perplexidade que algum leitor não familiarizado com o assunto estará sentindo ao ver afrontados os nomes de Olavo Bilac e Leandro Gomes de Barros. Um é poeta erudito, produto da cultura urbana e burguesia média; o outro, planta sertaneja vicejando à margem do cangaço, da seca e da pobreza. Aquele tinha livros admirados nas rodas sociais, e os salões o recebiam com flores. Este, espalhava seus versos em folhetos de cordel, de papel ordinário, com xilogravuras toscas, vendidos nas feiras a um público de alpercatas ou de pé no chão. A poesia parnasiana de Bilac, bela e suntuosa, correspondia a uma zona limitada de bem-estar social, bebia inspiração européia e, mesmo quando se debruçava sobre temas brasileiros, só era captada pela elite que comandava o sistema de poder político, econômico e mundano. A de Leandro, pobre de ritmos, isenta de lavores musicais, sem apoio livresco, era a que tocava milhares de brasileiros humildes, ainda mais simples que o poeta, e necessitados de ver convertida e sublimada em canto a mesquinha vida (...). Não foi o príncipe de poetas do asfalto, mas foi, no julgamento do povo, rei da poesia do sertão e do Brasil em estado puro”. Carlos Drummond de Andrade, Crónica Leandro, O Poeta, Jornal do Brasil, em 9 de setembro de 1976.

1.1. PEQUENA EXPLICAÇÃO Este ensaio aparece no contexto de um trabalho, que tínhamos por missão realizar, para a cadeira de Teatro Latino, que integra o Mestrado de Estudos de Teatro da FLUP. A ideia que nos conduziu a este tema surgiu-nos, repentinamente, por nos termos atrevido, em 2007, a escrever um folheto intitulado O engenheiro que é e não era ou que era e não é, que foi editado, com a cumplicidade do cordelista e editor nordestino Marcelo Soares, pela Folhetaria Cordel do Pernambuco. Sentíamo-nos, por isso mesmo, há algum tempo, quase obrigados moralmente a escrever um outro, sobre o que de muito mais grave nos está a acontecer, sete anos passados. Pensámos então aproveitar esta oportunidade, que o Fado, desta vez generoso, nos oferecia, aprofundar o estudo de Plauto e do cordel e cumprir essa obrigação, perante nós próprios, escrevendo uma pequena peça à moda de cordel, tentando introduzir no texto da comédia e nas personagens influências do teatro plautino, que estudáramos. Perante tal desígnio, tínhamos o pretexto necessário para arregaçar as mangas e ler livros, ensaios, artigos e cordéis, para escrever este pequeno artigo, onde tentássemos explorar algumas relações, as que fôssemos capazes de descobrir, entre o teatro plautino do século III a.C. e o cordel português e brasileiro do séculos XVI até aos nossos dias, e assim realizar o trabalho que a cadeira de mestrado nos exigia. E em paralelo escrever a peça de cordel que o Fado nos impunha. Matávamos nós assim de uma só cajadada com o nosso folhetim dois coelhos de empreitada: Gradus e o seu delfim e cadeira despachada.

1.2. APRESENTAÇÃO DO ENSAIO O teatro de Plauto foi escrito há mais de dois mil anos, numa Roma ainda arcaica, e essa será uma das razões por que persistem tantas interrogações sobre o autor e sobre as peças, sobre a forma como foram escritas, como foram exactamente feitas as traduções/adaptações das comédias gregas e sobre a forma como essas comédias eram representadas em Roma nessa altura. Como muitos 4

séculos o separam daquilo que se designa por literatura de cordel, em muitos aspectos a nossa tarefa poderia logo à partida ser considerada arriscada. Mas, à medida que fomos encontrando material diverso sobre o tema, fomo-nos apercebendo da dimensão enorme do que nos propuséramos realizar. Encontrámos muitos livros, estudos, artigos sobre Plauto e sobre o seu teatro, tal como sobre o cordel em Portugal e no Brasil, mas não fomos capazes de descobrir nenhuma fonte onde, de uma forma sistemática, se abordasse a relação entre o cordel e a comédia plautina. Sabemos hoje que o cordel é matéria de estudo recente, por motivos que ficarão claros neste ensaio, e tal justificará haver tantos campos por desbravar. E, se é fácil demonstrar que a relação existe, bastando para tal, como argumento, apresentar a peça O Santo e a Porca de Ariano Suassuna, escrita em 1957, pois a peça não é mais do que uma adaptação da conhecida peça de Plauto A Comédia da Marmita ao ambiente do sertão, reproduzindo porventura aquilo que Plauto fizera ao traduzir/adaptar as peças gregas ao latim e às vivências romanas, tal não chega para provar se existiu uma influência com significado de Plauto nos cordelistas, em particular na composição de peças de teatro, ou, no caso de tal influência ter existido, de que forma aconteceu. A complexidade deste tema justificaria com certeza a liberdade e o tempo de uma tese de dissertação, que obrigaria a quem a empreendesse a consultar grande quantidade de cordéis, muitos só acessíveis em bibliotecas, e eventualmente a procurar registos sobre a publicação e a representação do teatro de Plauto em Portugal e no Brasil. Esperamos contudo, perante as dificuldades, ter conseguido escrever um texto coerente e com princípio, meio e fim. Que afinal artigo e peça se não desmereçam! Na primeira parte deste trabalho – capítulos 2 e 3 - apresentaremos uma súmula sobre o teatro de Plauto e sobre o cordel, tentando desde logo identificar alguns aspectos de cada um que nos pareçam ser relevantes para o nosso propósito. No que respeita ao cordel teremos o cuidado de abordar separadamente os cordéis em Portugal e no Brasil, procurando descobrir as proximidades, mas sobretudo realçar as diferenças que nos parecem ser significativas. E tentaremos ao longo dos capítulos dedicados a Plauto e ao cordel ir identificando possíveis elos entre os dois. No capítulo 4 extrairemos as relações e as afinidades que nos parecem pertinentes entre o autor latino e o cordel, procurando identificar a presença dos tipos do teatro plautino no cordel português e brasileiro. Por razões de tempo e de espaço focaremos neste capítulo no teatro de Suassuna e ensaiaremos descobrir tipos plautinos em todas as suas peças. Nota final: poder-se-á perguntar porquê focar no capítulo 4 num autor brasileiro, ao pesquisar tipos plautinos, e não no teatro de cordel português, teatro que aliás foi preponderante, como veremos, na história do cordel em Portugal, ao contrário do que sucedeu no Brasil, onde não havia teatro, até às incursões de autores eruditos, como Suassuna, nos territórios cordelistas. Teria sido obviamente extremamente interessante fazer um levantamento das centenas de peças de cordel que integram várias colecções, como por exemplo a de Forjaz Sampaio, que referimos aqui apenas porque conseguimos uma cópia do respectivo catálogo, que só por si contém 487 peças diferentes, a maioria do século XVIII, mas tal propósito ultrapassa largamente o nosso tempo e o nosso espaço, pois tais peças obrigariam a deslocações aos locais onde essas colecções estão guardadas e onde poderiam ser consultadas. Ao contrário, a obra de Suassuna pode comprar-se ou consultar-se com relativa facilidade e pareceu-nos ser um compromisso razoável no contexto em que nos situávamos.

2. O TEATRO DE PLAUTO Ao contrário do que acontecera na Grécia, onde a tragédia se impusera, em Roma é a comédia que domina a representação durante séculos, durante a Roma Arcaica e Clássica, em particular com o teatro de Plauto. Existem registos de algumas tragédias anteriores, coevas e posteriores a Plauto, mas delas apenas nos chegaram pequenos fragmentos. E quando se refere a tragédia romana, pensa-se normalmente em Séneca, muito mais tarde, já do período imperial. 5

Plauto nasceu em meados do século III a.C. e pouco se sabe sobre a sua vida. Os registos que se conhecem são incompletos e contraditórios e a ausência de documentos fiáveis originou um grande número de lendas sobre ele. Não se sabe por exemplo ao certo em que ano nasceu, existindo várias opiniões de estudiosos, que utilizam dados diferentes para justificar o ano que cada um defende como a efeméride. Não era romano, acredita-se que nasceu em Sársina na Úmbria, mas teria vindo para Roma muito jovem, ou seria difícil de explicar o seu domínio extraordinário da língua latina. Teve um carreira longa e com muito sucesso, e terá sido o primeiro autor a dedicar-se exclusivamente à comédia, decisão tomada talvez por causa desse mesmo sucesso. Acredita-se também que antes de escrever terá trabalhado no teatro como actor e, porventura, até em espectáculos de representação primitiva, anteriores ao teatro, e o seu nome tripartido, que se assemelha ao nome dos patrícios romanos, quando Plauto nem romano era, poderá conter indícios desse facto1. Há quem lhe atribua para cima de 100 peças2, mas na opinião de Varrão apenas 21 são genuínas. Todas elas chegaram aos nossos dias, apenas com pequenas lacunas, o que poderá ser um forte indício de que foram muito representadas e consequentemente muito copiadas. Estas cópias sucessivas poderão ter originado bastantes alterações do texto original, que os textos para representação, em particular, suscitam. Todas as peças de Plauto seriam traduções/adaptações de peças obras da Comédia Nova grega, de autores como Menandro, Filémon e Dífilo3. Em muitas delas é o próprio Plauto que o afirma nos prólogos e algumas didascálias conservadas confirmam-no. Filémon escreveu. Plauto traduziu em língua bárbara. Plauto, O Homem das Três Moedas

Curiosamente encontramos algo de semelhante no cordel onde numerosos textos de romances e novelas são traduzidos e também adaptados aos folhetos, como referimos neste trabalho. Em Plauto as personagens mantêm nomes gregos e usam trajes típicos da Grécia4, que simbolizam o estrato social de cada personagem, sendo assim facilmente identificáveis pelo público; a estrutura do cenário é também grega, apresentando um altar e três portas, a da direita para o foro, a do centro para o interior da casa e a da esquerda para o porto, o que não faria muito sentido em Roma onde não havia porto. Mas existem sempre várias romanizações do enredo e das personagens5. Sabe-se ou suspeita-se que nalgumas peças Plauto terá feito “contaminatio”, misturando textos de várias peças numa só. No entanto, não existindo nenhum exemplar de nenhuma das peças gregas referenciadas, continua por esclarecer como eram feitas essas adaptações e qual o grau de originalidade na passagem dos textos para latim e na sua adaptação parcial ao ambiente romano. Um facto que sempre nos causou perplexidade é o de autores como Plauto, com enorme talento e criatividade, nunca terem decidido escrever peças originais, a partir directamente das vivências romanas.

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De facto, o seu nome, em registos desse tempo, aparece como M. Accius Plautus ou como Titus Maccius Claudius. Estes nomes, necessariamente adoptados, têm conduzido alguns estudiosos a defender por exemplo que o nome “Plautus”, que significa literalmente “pé-chato”, poderia ser parodizante e estar ligado ao mimo, onde os actores actuavam descalços. Isto poderia ser uma prova de que Plauto poderia ter feito mimo. Também há quem suporte que “Maccius” poderia ser a latinização de uma das figuras atelanas,“Maccus”. Nesse caso Plauto teria feito atelana. Também se acredita que ele representava alguns papéis nas suas peças, mas pouco ou nada se sabe do actor Plauto. 2 A popularidade de Plauto justificaria tentar apresentar muitos textos como tendo a sua autoria, o que garantiria acolhimento favorável, na opinião de M. Citroni. 3 São o resultado de um processo rápido de helenização da sociedade romana, associada à expansão do poder romano para sul na Itália. 4 É isto que justifica o epiteto de Fabula Palliata para a comédia de Plauto, pois as personagens vestiam o pallium grego. 5 Na opinião de M. Helena Rocha Pereira o melhor exemplo estará na peça O Gorgulho, onde no 4º acto, Choragus, o guarda-roupa, numa longa tirada em jeito de parábase, descreve os frequentadores do Forum Romanum, numa peça supostamente passada na Grécia. Aliás estre trecho tem sido uma fonte essencial para a arqueologia do Forum.

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Um aspecto muito importante para nós tem a ver com o público a quem se destinavam as peças. Segundo M. Citroni, na sua obra Literatura da Roma Antiga, os espectáculos eram oferecidos pelo estado romano a toda a população. Os espectáculos eram abertos a toda a gente, inclusive aos escravos, ao contrário da Grécia. Era por isso obrigatório para os autores escrever para esse público diversificado. O mesmo encontraremos de alguma forma na chamada literatura de cordel que, como veremos, se destinava muitas vezes a um público diferenciado, que incluía muita gente iletrada. Onde se realizavam esses espectáculos e as condições em que os espectadores a eles assistiam, inclusive se haveria lugares sentados, têm sido motivo de grande controvérsia, como afirma M. Helena Rocha Pereira. Outro aspecto interessante, em particular para nós, é o facto de o teatro plautino também ter sido fortemente influenciado por elementos dramáticos primitivos com origens diversas, provenientes de vários povos que habitavam a península itálica. Referimo-nos sobretudo aos cantos fesceninos que eram improvisações satíricas e mordazes com carácter licencioso, à atelana que construía farsas com recurso a máscaras e tipos fixos, ao mimo e às saturas cheias de música, com um canto ao ritmo de flauta. Como porventura se esperaria alguns dos tipos da atelana coincidem com os de Plauto e irão aparecer também no teatro de cordel. Esta é uma das razões por que vai ser muito difícil dizer, com toda a certeza, se esses tipos chegaram ao cordel via Plauto ou via tradições primitivas comuns a muitos povos.

2.1.

ALGUMAS CARACTERÍSTICAS DO TEATRO DE PLAUTO

Uma característica importante do teatro plautino é fazer recurso de um prólogo explicativo, onde se informavam os espectadores sobre os antecedentes da acção e até sobre o conteúdo da história. Poderia ser dito por uma personagem da própria peça ou por uma entidade superior, por exemplo um deus. Veremos que o teatro de cordel em Portugal e no Brasil, aqui nomeadamente com Suassuna, recorre também muitas vezes a esta solução. Nos enredos há quase sempre um protagonista, frequentemente um escravo, que elabora planos e esquemas que depois se desenvolvem na base da sorte, do engano e do equívoco. A fortuna (sorte) desempenhava em muitas peças um papel fundamental, o que não será alheio à importância que os romanos lhe atribuíam, dedicando-lhe até uma divindade6. Outro recurso inovador de Plauto teria sido fazer, de alguma forma, o público muitas vezes envolverse na peça, sobretudo através dos monólogos, em que um actor falava com o público directamente, ou com apartes para o público no meio das cenas. Plauto tinha como principal preocupação fazer rir os espectadores e isso era mais importante do que a coerência ou verosimilhança da história, que muitas vezes apresenta fragilidades visíveis. Plauto era um mestre na arte de criar situações de engano e em lhes acrescentar comicidade. Na opinião de Aires Pereira do Couto o cómico de Plauto assenta em vários aspectos: 1. cómico de palavras com recurso a exageros, exclamações, diminutivos, nomes falantes, jogos fónicos, jogos de palavras, trocadilhos, frases ambíguas, palavras com segundo sentido, brejeiras; 2. cómico de situações, com criação de confusões, quiproquós, cenas de pancadaria, insultos, disfarces e recorrendo ao uso e abuso de repetições que acabam por acentuar o lado burlesco; 3. cómico de carácter, com personagens-caricaturas de tipos vis, malandros, mentirosos, vaidosos, tontos. M. Citroni afirma que Plauto conseguiu recorrer a todos os recursos conhecidos para provocar o riso, podendo as suas comédias quase servir de catálogo, para os estudiosos do cómico, e se é verdade que reproduzia em grande parte as situações cómicas dos originais gregos, apimentava-as e coloria-as com o seu domínio extraordinário da língua latina. E, ao contrário do alguns esperariam, Plauto, ao desvendar no prólogo o enredo, em vez de desinteressar os espectadores pela acção, cujo desfecho conheciam, conseguia que eles sentissem ainda mais a comicidade do momento, ao perceber bem os enganos e

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“Fata uiam inuenient”, pronunciará Júpiter, no canto X da Eneida de Virgílio, uns séculos mais tarde.

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os equívocos das personagens. Aliás Plauto, apesar de desvendar no essencial o enredo das peças, era capaz de continuar a provocar a surpresa, criando reviravoltas inesperadas e até paradoxais7. Mas como frisa, quer Aires Pereira do Couto quer M. Citroni, o domínio da língua latina poderá ser considerado como a grande mais-valia das suas peças. Jamais, na história dos estudos plautinos, alguém pôs em dúvida que a forma de expressão (métrica, língua e estilo) constitui o traço mais evidente da originalidade deste poeta. M. Citroni, Literatura de Roma Antiga

Com os seus jogos linguísticos, consegue uma enorme exuberância, com sonoridade e com cor, e constrói diálogos vivos, naturais e cómicos. Ao mesmo tempo, podemos encontrar toda a profusão de meios estilísticos e retóricos num grau que M. Citroni considera “luxuriante”. Como esse autor afirma, Plauto vai rapidamente de um estilo coloquial a grandiloquentes tiradas épicas ou trágicas. Plauto inventa palavras, de que resulta normalmente um produto bizarro, que permite acentuar efeitos cómicos ou de caracterização de uma personagem. A língua de Plauto, por si, atrai a atenção dos espectadores , espanta, diverte, causa prazer. Sabia fazer falar cada personagem segundo o seu estrato social e até de acordo com a idade. Sabia dosear os textos de linguagem do quotidiano, e até brejeira, e de linguagem artística de grande imaginação e criatividade. Ainda segundo Aires Pereira do Couto, Plauto para acentuar a coloquialidade do seu discurso recorre a: fórmulas típicas de conversação; inúmeras interjeições; enorme riqueza de diminutivos; redundâncias e exageros cómicos; uso frequente de metáforas de grande imaginação. A criatividade no uso da língua é também, como veremos, elemento essencial no cordel onde o linguajar, os dialectos e a terminologia popular desempenham papel de relevo. Ainda na opinião de Aires Pereira do Couto outra característica muito importante em Plauto era a musicalidade do texto, que assentava em métricas muito rigorosas. As peças eram inclusive divididas em partes faladas (diuerbia) e partes cantadas com acompanhamento musical (cantica). A música não existia nas comédias gregas. Plauto introduziu-a nas suas peças. Na opinião de M. Citroni esta transformação constitui “uma novidade aparatosa”8. Em especial os poemas cantados obrigavam a uma grande mestria no recurso a várias métricas, recorrendo Plauto algumas vezes a poesia polimétrica que, como refere M. Citroni, teria uma grande complexidade para ser cantada e acompanhada musicalmente. A musicalidade do poema original latino de alguma forma perde-se na tradução, tal como não conhecemos a música que foi composta para cada peça. Como veremos a música é também essencial no cordel. Grande parte dos textos lidos são acompanhados musicalmente e as peças de cordel continham frequentemente canções. O teatro de Plauto recorre e repete muitas personagens tipo. Alguns parecem derivar das formas primitivas de teatro como a atelana. Essas personagens tipo correspondem a tipos sociais ou a grupos profissionais em Roma. Como personagens tipo de Plauto poderíamos enunciar: o jovem ou a jovem apaixonados, que quase sempre têm de ultrapassar convenções sociais para alcançar o amor; o velho tonto, que pode acumular com a avareza, que acaba enganado na sua vileza; o escravo sabichão, designado por vezes como rei da comédia, que domina a acção, numa inversão clara de valores do mundo real9; a alcoviteira, caracterizada pela sua ganância; o soldado vaidoso e 7

Poderíamos talvez fazer um paralelo, num campo completamente diferente, com Hitchcock que, ao desvendar as situações, conseguia apesar disso dominar por completo o suspense da acção. 8

Alguns autores defendem que a música na comédia latina terá origem em tradições de representação primitivas, como a satura; outros autores defendem que a estrutura poética e musical da comédia latina terá como origem a tragédia grega.

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Em Plauto os escravos são quase sempre os grandes protagonistas e controlam os patrões, as mulheres mandam nos maridos, os velhos são tontos e incapazes, os soldados poltrões, os filhos fazem as coisas como querem, esbanjam os bens e não obedecem ao pater famílias. Esta inversão de valores também existe no cordel, como veremos, e aí é associada aos valores carnavalescos, onde o cordel terá ido buscar influências. Poderá acontecer esta inversão em Plauto também ter origem nas formas primitivas de representação. De facto, como refere M. Citroni, havia em Roma uma festividade em Dezembro, chamada Saturnalia, em honra do deus Saturno, associada ao solstício de inverno. Durante a Saturnalia havia uma inversão da ordem social estabelecida, os escravos

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fanfarrão; o parasita, que vive à custa de bajulações a outra personagem da peça; a meretriz, quase sempre interesseira e falsa; o cozinheiro que é usualmente ladrão e glutão; a matrona embirrenta, rabugenta e intratável, fazendo a vida negra ao marido. Todos eles se converteram de alguma forma em caricaturas exageradas de tipos sociais de Roma. Tentaremos demonstrar que estes tipos sociais e psicológicos, com alguma adaptação, também são comuns no cordel, onde também acontece muitas vezes a tal inversão de valores do real, com a construção de um mundo ao contrário. A popularidade de Plauto ter-se-á mantido durante muito tempo em Roma, mesmo depois da sua morte, o que poderá justificar as suas peças terem-nos chegado quase integrais, pois cada nova cópia aumenta a probabilidade de um texto não desaparecer. Durante a Idade Média, como porventura não nos surpreenderá, Plauto foi esquecido por ser considerado imoral, mas no Renascimento é redescoberto e apreciado, por exemplo por Dante e Pretarca, como refere Aires Pereira do Couto. Em 1429 é descoberto um códice na Biblioteca Vaticana com 16 peças de Plauto. Essa descoberta, associada à invenção da imprensa pouco depois, fez renascer o interesse em Plauto em todo o mundo renascentista. Ainda, segundo Aires Pereira do Couto, vários dramaturgos escreveram peças inspirados em Plauto, como é o caso de Ludovico Ariosto que escreveu La Casaria (1508), I Suppositi (1509), inspiradas em peças de Plauto. O mesmo aconteceu com outros escritores do século XVI. Em Portugal terá sido Sá de Miranda quem trouxe de Itália o modelo plautino e que o adoptou nas suas comédias Os Estrangeiros (entre 1526 e 1528) e os Vilhalpandos(1538). E teria sido Sá de Miranda quem o terá dado a conhecer aos seus contemporâneos, suscitando a introdução de elementos plautinos nas peças mais tardias de Gil Vicente e mesmo na revisitação do Amphitruo de Plauto por Luís de Camões, no seu Auto dos Anfitriões10. Entre o Auto dos Anfitriões de Camões e o Amphitruo de Plauto são muitas as semelhanças que se fazem notar, pois o autor português conserva o principal da intriga e, por vezes, faz recepção de grau máximo pela tradução do texto plautino, que se torna alvo de metacomunicação. Vítor Manuel de Aguiar e Silva, Teoria da Literatura

Alguns desses elementos podem também ser identificados mais tarde, em certa medida, no Auto do fidalgo aprendiz de Francisco Manuel Melo, na opinião de Isabel Morujão. Outro nome importante na difusão do teatro de Plauto na península Ibérica teria sido Bartolomé Torres Naharro11, que tal como Sá de Miranda viveu em Roma, ainda segundo Isabel Morujão. Recorreu por exemplo frequentemente à solução do prólogo explicativo de Plauto nas suas comédias. No entanto no século XVII, o Padre Luiz da Cruz afirma em Sedecias que o teatro de Plauto já não tinha grande popularidade na Universidade Portuguesa. Isto evidencia-nos duas coisas: por um lado Plauto era conhecido e representado em Portugal12, nomeadamente na Universidade, por outro lado o seu declínio de popularidade junto das elites, a partir do século XVII, pode estar associado à ida do teatro de comédia “plautina”, à procura de novos públicos, o que poderá ter contribuído para o desenvolvimento do teatro de cordel, tal como refere Carlos Nogueira. passavam a agir temporariamente como se fossem homens livres; elegia-se, à sorte, um princeps entre eles, a quem se entregava todo o poder, fazendo paródia das classes aristocráticas. 10

Vanda Anastácio faz um profundo estudo comparativo entre o texto de Plauto e o texto de Camões em Aparência e identidade no Auto dos Enfatriões de Camões. Estudos portugueses: homenagem a Luciana Stegagno Picchio editado pela DIFEL em 1991. 11

Propalladia (1517) compila a obra dramática e poética de Bartolomé Torres Naharro. Nesta obra, num prólogo do próprio autor, ele elabora a sua teoria dramática pessoal, o que constitui a primeira exposição teórica importante acerca do teatro no Renascimento europeu. Propalladia acabou por ser colocada no índice de livros proibidos em 1559. 12 Era de regra, em Salamanca, fazer representar, por ocasião das festas religiosas, comédias latinas ou imitadas de autores latinos. Este costume iria implantar-se em Coimbra, pois se praticava aí um intercâmbio de professores e alunos com o país vizinho. Georges Gentil, Camões

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Podemos portanto afirmar que o teatro de Plauto chega a Portugal no início de século XVI; era conhecido de Sá de Miranda e de Gil Vicente, entre outros autores; foi representado em Portugal ao longo dos anos; no século XVII perde popularidade junto das classes dominantes; provavelmente por essa razão dramaturgos posteriores a Gil Vicente tiveram de procurar outros públicos. Se tivermos em conta, como veremos, que a chamada “escola vicentina” estará ligada à origem do chamado teatro de cordel português, teremos se calhar já uma boa base de pistas para suspeitar de poder ter havido influência directa ou indirecta de Plauto em alguns folhetos.

3. A CHAMADA LITERATURA DE CORDEL A chamada “literatura de cordel” designa um conjunto muito amplo de edições, que abrange muitos tipos de obras: desde textos religiosos a relatos de histórias incríveis; desde poemas de amor a poemas heroicos; desde comédias a tragédias. Terá sido Teófilo Braga quem terá introduzido em Portugal essa expressão “literatura de cordel”, que será originária de Espanha. Teófilo Braga tê-la-á usado pela primeira vez num artigo publicado no Jornal do Comércio em 1865, intitulado Da literatura de cordel. Mais tarde, no seu livro O povo português nos seus costumes, crenças e tradições, publicado em 1885, escreve “uma literatura especial, de uma grande importância étnica e histórica, à qual se dá o nome pitoresco de literatura de cordel”. Este epíteto deve-se à forma original como os folhetos eram tradicionalmente mostrados nas feiras, dependurados, presos por molas a um cordel. Arnaldo Saraiva define-a como uma literatura que “pendia de paredes, ou, às vezes, dos braços, sobretudo dos cegos13, e se prendia a um cordel, ou barbante, para amostra, exposição e venda” e acrescenta “salta à vista que o ‘de cordel’ não define inicialmente literatura nenhuma, pois apenas define o modo como essa literatura era mostrada ou exposta”. A chamada literatura de cordel em Portugal e no Brasil tem sido objecto de muitos mal-entendidos que parecem resultar por um lado de desconhecimento, por outro lado de preconceito puro. Enquanto não avançarem os estudos sobre ela, será preferível incluí-la entre uma vasta literatura que se pode adjectivar não como popular, mas como literatura ignorada, esquecida, censurada. Arnaldo Saraiva, Literatura marginalizada14

A literatura de cordel é muitas vezes vista como literatura de má qualidade, em oposição à literatura erudita. O desprezo e a desatenção em relação à literatura dita popular são muito mais de um desprezo e uma desatenção de ordem literária: é o desprezo e a desatenção ao homem popular. … A criatividade e a sensibilidade linguística não são exclusivas do homem culto, rico, burgues; elas existem em todos os homens que as exercitem; e nunca deixou de haver homens de classes trabalhadoras e até analfabetos a exercitá-las, ainda que desencorajados por toda a espécie de limitações e de censuras. Arnaldo Saraiva, Literatura marginalizada

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Estes objectos tipográficos foram por isso também conhecidos como “literatura de cego,” por ser frequente os cegos estarem envolvidos na sua produção e distribuição. Outra designação corrente é “literatura popular” que na opinião de muitos estudiosos é errada porque muitos folhetos tinham de facto origem em autores eruditos, sendo dominante entre eles a visão de que o cordel constituía sobretudo um lugar de encontro entre a cultura erudita e a cultura popular. O epíteto “literatura popular” poderia ser mesmo traiçoeiro por também muitas vezes parecer significar uma literatura destinada a classes iletradas e por isso com menor qualidade, o que traduz o tal preconceito que mencionámos. Como veremos o posicionamento do cordel relativamente à cultura popular é diferente em Portugal e no Brasil. 14 Por os epítetos Literatura de Cordel” ou “Literatura Popular” serem fonte de alguns equívocos, Arnaldo Saraiva utiliza preferencialmente a designação de “Literatura Marginalizada”, o que como é óbvio é uma designação muito abrangente, que pode conter desde a chamada literatura de cordel até literatura de vanguarda. E não será por acaso que as duas são centros de interesse de Arnaldo Saraiva. Esta designação teria porventura a vantagem de não poder ser interpretada facilmente como fonte de preconceitos apressados.

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Para além do trabalho de alguns estudiosos, em que se inclui certamente o português Arnaldo Saraiva, alguns autores notáveis no século XX, entre os quais Carlos Drummond de Andrade15, cuja citação utilizámos, possibilitaram começar a olhar para o cordel de uma forma desempoeirada. Teremos de sublinhar desde já que, mesmo alguns que no presente ou no passado recente parecem valorizar o cordel, o fazem sobretudo numa perspectiva folclórica ou de um fenómeno popular “curioso”. Mas se Drummond defende que Leandro Gomes de Barros deveria ter sido eleito o príncipe dos poetas brasileiros, não o faz por uma razão qualquer ou por mera atracção por folclore. Ele atribuiu a sua não-eleição à ignorância de muitos escritores e críticos e afirma que essa ignorância poderá dever-se à não circulação da sua obra nos círculos privilegiados. Podemos com efeito intuir em Drummond uma crítica à ausência completa do nome de Leandro Gomes na história da literatura brasileira, só justificável pelo tal preconceito social em relação aos chamados poetas de cordel16, por uma tradição acadêmica extremamente elitista, com raríssimas excepções. Na realidade, na opinião de muitos estudiosos, essa ignorância e esse preconceito continuam no essencial bem vivos no presente. Os folhetos, ainda que juntos em colecções ou guardados em bibliotecas, permanecem na sombra. Por isso, se o objectivo principal deste trabalho é o de estabelecer uma relação entre o teatro de Plauto e o teatro de cordel em português, ele gostaria de ter também como propósito, porventura demasiado ambicioso, poder contribuir, por muito pouco que seja, para uma visibilidade sem sombras do cordel. 3.1. A LITERATURA DE CORDEL EM PORTUGAL A expressão “literatura de cordel”, como vimos, aparece em Portugal em 1865, mas sabemos que essa forma de divulgação de textos literários é bastante mais antiga. Conhecem-se muitos exemplares portugueses do século XVI. Há além disso registos indirectos da sua presença. No século XVIII, Nicolau Tolentino, por exemplo, na sua sátira O bilhar, escreve: Todos os versos leu da Estátua Equestre, /e todos os famosos entremeses, / que no Arsenal ao vago caminhante / se vendem a cavalo num barbante.

Também Bocage refere esta “literatura de cego” quando escreve “mercenário pregão de cego andante”, insurgindo-se contra o facto de lhe ser atribuída a tradução da novela exemplar de Cervantes A espanhola inglesa, que os cegos apregoavam nas feiras sob o nome falso de Bocache. Esta forma de distribuição dos textos escritos terá nascido e ter-se-á desenvolvido em toda a Europa depois da invenção da imprensa. A edição mais antiga da célebre História da Princesa Magalona, de origem francesa, mas de que se encontram versões em vários países europeus, é de 1482. A imprensa permite criar um novo território literário, que se desenvolve paralelamente à literatura para camadas cultas da população e à literatura de transmissão oral. Mas o êxito do cordel resulta, em grande parte, da forma original de distribuição. Os folhetos eram levados aos lugares mais recônditos, eram vendidos em todas as feiras de norte a sul, e chegavam assim a novos leitores. Este foi indubitavelmente o seu valor: criar um público novo, popular, para o qual a leitura ou a audição de leitura passava a constituir um prazer. Em finais do século XVI, o número de compradores cresce e diversifica-se, composto por nobreza de província e por pequenos proprietários; nos séculos XVII e XVIII alarga-se ainda mais, a alguns camponeses abastados, artesãos e comerciantes; no século XIX, engloba já uma parte razoável do povo do campo, apesar deste beneficiar ainda muito pouco do alargamento da alfabetização. Os que sabiam ler transmitiam o conteúdo dos folhetos aos numerosos 15 Drummond de Andrade é mesmo um de entre os muitos autores de grande relevo brasileiros que publicaram folhetos de cordel. 16 De facto, o poeta popular Leandro Gomes de Barros nunca fora citado em nenhuma das histórias literárias mais prestigiadas publicadas no Brasil, que excluem igualmente todas as manifestações literárias da área do que se costuma designar como cordel. Esta discriminação pode ser encontrada em muitos países, nomeadamente também em Portugal, como veremos.

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analfabetos, muitos dos quais, ou aprendiam a ler, ou se tornavam em transmissores desse património, pela oralidade. A multiplicidade dos temas e a qualidade muito variável do tratamento dos textos de cordel permite presumir que se tratava de um público leitor heterogéneo, com gostos, interesses culturais e poder económico muito distintos, constituído tanto por gentes ricas e instruídas como por gentes das classes desfavorecidas, da cidade como do campo. Carlos Nogueira, A Literatura de Cordel Portuguesa

A par com os autos de inspiração vicentina, que mencionámos, que foram forçados a procurar outras formas de sobrevivência, de acordo com Carlos Nogueira, tinham aparecido na Europa e também em Portugal, nos séculos XIV e XV, as chamadas “Canções de Gesta”, poemas narrativos breves, criados para disseminação oral, elaborados a partir de romances épicos medievais, que acabaram por também ter grande importância na chamada literatura de cordel em Portugal. Há portanto uma relação de proximidade entre a oralidade e a chamada literatura de cordel. Muitos dos primeiros textos impressos foram adaptados a partir textos antigos que já pertenciam à tradição oral. Esta relação do cordel com a oralidade, que se mantém com o folheto impresso, procede em grande parte, certamente, dos padrões de iliteracia, que os autores, editores, tradutores e adaptadores conheciam. Esta oralidade da chamada literatura de cordel é muitas vezes entendida como menoridade, quando ela é no fundo a mesma de muitos textos canonizados de muitas literaturas nacionais. Quase toda a literatura europeia na Idade Média ou mesmo no Renascimento era escrita para uma leitura em voz alta, isto para já não falar da Antiga Grécia ou em Roma. Muitas vezes os textos eram compostos de memória e só mais tarde transcritos para um suporte, como o papel. O papel do poeta popular, que lia poesia nas feiras e mercados, é afinal muito parecido com o do poeta num recital poético regado a vinho e petiscos na corte do rei. A única diferença residia na posição social dos recitadores e do público que escutava. Muitas vezes, os mesmos folhetos foram lidos na corte e nas feiras. Após tê-los escutado e gostado da história, os folhetos eram frequentemente comprados, mesmo por pessoas analfabetas, para lhes serem novamente lidos por parentes ou por companheiros que soubessem ler. Muitas vezes os autores escreviam ou adaptavam os textos literários por forma a atingir um público alargado, mesmo aquele caracterizado por um analfabetismo total ou funcional. No folheto Vida do façanhoso Roldão, extraída do livro de Carlos Magno, inclui-se um “Prologo a quem soletrar,” que parece tentar captar os leitores com capacidades de leitura reduzidas: Leitor amigo leitor, Que lêz talvez soletrado, Aqui lerás as façanhas Que nem mesmo tu has sonhado: Em rija proza já viste A vida sempre famoza,

Hoje este heroe vai sobindo Por entre rima vistoza: [...] Parece que estremeceste? Parece que descoraste? Porém não temas, não temas, Lé sua vida: pasmaste?

O “leitor que lê soletrado,” decerto assustar-se-ia se confrontado com o texto original das histórias de Carlos Magno e por isso os textos eram ajustados para possibilitar a leitura e, muitas vezes, a oralidade que dela nascia. Histórias célebres como as da Imperatriz Porcina, da Donzela Teodora, do Imperador Carlos Magno e dos Doze Pares de França, de Reinaldos de Montalvão, da Princesa Magalona, de Roberto do Diabo, de Bertoldo, de João de Calais17 e do Capitão Belisário foram escritas originalmente para um público culturalmente privilegiado e por 17

As Aventuras de João de Calais constitui um exemplo paradigmático. Trata-se de um livro escrito por Mme.Angélique de Gomés, que foi publicado em França em 1732. A história foi modificada pouco depois para publicação em cordel, ainda em França. Em Portugal, sucederam-se até ao século XX as edições e adaptações, desde que se publicou pela primeira vez, em 1814, com o título de História de João de Calais.

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isso editadas originalmente sob a forma de livros e só depois adaptadas a cordel. Nesta adaptação outro factor importante eram os ditames da censura, que abordaremos com um pouco mais de profundidade em anexo. A precariedade da edição - impressão pouco cuidada, distribuição assimétrica da tinta, gralhas tipográficas, papel de qualidade deficiente, paginação por vezes errada ou mesmo inexistente, brochura incipiente - mostra que se procurava sobretudo uma redução dos custos na edição. Os textos eram muitas vezes alterados em sucessivas edições e adornados com gravuras de cariz popular18 que tornassem apelativa a nova tiragem. Os autores e os editores faziam frequentemente apelo à fala e ao gosto “popular”. O título desempenhava também um papel muito importante nos folhetos de cordel. Era muitas vezes longo, desvendava e ocultava a história, chamando assim a atenção, anunciavam o cómico, se ele existisse: Novo, e graciozo entremez intitulado A grande desordem, que tiverão as pixeiras com as frialeiras, sobre quaes bailarião melhor nas danças, e o despique, que por ellas tomárão dois marujos. 19

Título de um entremez

de 1793

Os títulos incluíam também frequentemente sintagmas como “verdadeira história”, “história fantástica” ou, por vezes, “novo entremez,” para excitar a curiosidade, apresentando o relato como novo, como único e extraordinário, ao mesmo tempo que denunciavam de imediato a reutilização de temas, de personagens e de motivos que os possíveis compradores conheciam bem e que por isso os atraiam imediatamente. Os textos eram lidos por aqueles que tinham vencido a iliteracia para depois, muitas vezes, serem repetidos oralmente. Os folhetos transitavam de mão em mão, deteriorando-se rapidamente, e por isso muitos desapareceram. Mas, apesar disso, existem alguns catálogos valiosos, que nos permitem avaliar a importância do cordel ao longo do tempo. Em Portugal existem vários catálogos de cordel muito relevantes, com muitas centenas de folhetos, muitos de teatro20. Havendo várias modalidades de folhetos, entre as quais podemos elencar narrativas novelescas, notícias da actualidade e crônicas sociais, parece ser consensual que o teatro desempenhou o papel de maior relevo na produção do cordel portuguesa21. Nos estudos e nos prefácios dos catálogos disponibilizados pela bibliografia especializada de literatura de cordel portuguesa, é frequentemente apontado o estreito vínculo que a grande parte da produção de literatura de cordel portuguesa estabelece com o teatro. Assim, parece consenso admitir que os folhetos portugueses foram responsáveis por uma ampla circulação de gêneros e tradições, sendo que, no conjunto, sobressaem os gêneros teatrais. Trata-se, diz José Oliveira Barata, de “uma produção que floresceu no espaço ibérico, desde o século XVI até o século XVIII, de forma quase ininterrupta, testemunhando a vitalidade de gêneros dramáticos por vezes de difícil caracterização” Maria Isaura Rodrigues Pinto, Brasil e Portugal: Literatura de Cordel 18

As gravuras impõem-se, frequentemente, por uma deliciosa ingenuidade; simultaneamente infantis e profundas, o que, a par com títulos muitas vezes enigmáticos, desperta o interesse pelo conteúdo da obra. A imagem deve atrair o olhar do potencial leitor e ao mesmo tempo conduzir ao reconhecimento do tema central. Perceber de imediato se se trata de uma história amorosa, de uma história de santos, de uma história de guerras ou de uma história de crimes, graças aos símbolos radicados no colectivo: casais abraçados, personagens armadas, ambientes eufóricos, disfóricos ou castos, etc. 19

Entremez é a designação utilizada para uma pequena peça, normalmente de um só acto.

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Podemos apresentar, apenas como exemplos: o primeiro catálogo de literatura de cordel, publicado em 1922, por ordem da Academia das Ciências de Lisboa intitulado Teatro de cordel, catálogo da coleção de Albino Forjaz de Sampaio que integra 487 peças diferentes e 253 edições diversas da mesma peça e ainda lista várias peças conhecidas do autor de outras colecções, como é o caso da importante colecção de Rodrigo Felner; a publicação da Biblioteca Geral da Fundação Calouste Gulbenkian Literatura de cordel – com 455 folhetos teatrais, com obras entre 1692 e 1886; os Catálogos das Miscelâneas da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra organizados em vários volumes que contêm um conjunto muito amplo de folhetos, incluindo centenas de folhetos de teatro, reunidos nos volumes DXXVI a DCXCVII, organizados por inúmeros subgéneros dramáticos (ver em A Literatura de cordel portuguesa de Carlos Nogueira). 21 De notar que enquanto em Portugal o teatro tem um posição dominante no cordel, sobretudo no século XVIII, no cordel brasileiro não existe teatro, até autores eruditos do século XX terem adaptado cordéis ao palco, como é o caso mais emblemático de Ariano Suassuna.

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Embora predominem nas colecções as edições do século XVIII, encontramos também alguns exemplares seiscentistas22 e até um ou outro quinhentista. Poderemos relevar ainda que em 2006 saíram mais dois catálogos muito importantes: Folhetos de cordel e outros da minha colecção - Catálogo, de Arnaldo Saraiva; e Catálogo da literatura de cordel - Colecção Jorge de Faria, de José Oliveira Barata e Maria da Graça Pericão. O catálogo de Arnaldo Saraiva enumera 499 folhetos e 61 folhas volantes. O mais antigo é de 1602, o mais recente de 1982. O autor, no prefácio dessa obra, chama a atenção para a diversidade de textos que este tipo de literatura abrange. Poesia, narrativa, teatro, crítica…; autos, dramas, tragédias, farsas, entremezes, monólogos, desafios, comédias, sátiras, invectivas, paródias, anedotas, cartas, crónicas, biografias, histórias, contos, moralidades, dissertações, elogios, exemplos, testamentos, orações, oráculos, hinos, canções, elegias, fados, décimas, odes, coplas, aventuras, paixões, sonhos, viagens, suspiros, sucessos, confissões, velhos e novos, príncipes, bandidos, soldados, namorados, clérigos, criados, deputados, fanfarrões, fantasmas, Adão e Eva, S. João e S. Pedro, Paulo e Virgínia, Manuel e Maria, Imperatriz Porcina, Carlos Magno, Bertoldo, a Padeira de Aljubarrota, Donzela Teodora, Magalona, João de Calais, Bocage, José do Telhado, Deus e o Diabo... Arnaldo Saraiva, Folhetos de cordel e outros da minha colecção - Catálogo

O catálogo da colecção de Jorge Faria descreve 1928 folhetos de teatro, que vão de 1598 a 1878, e que estão guardados na Biblioteca do Instituto de estudos teatrais Dr. Jorge de Faria. Uma das características mais marcantes da maioria dos textos teatrais de cordel é o seu hibridismo, que resulta de uma apropriação de vários géneros dramáticos a partir muitas vezes de textos com origens e línguas diversas, sendo por isso capaz de promover rupturas no enunciado normalizado. Consegue ser dinâmico e conturbador, ao mesmo tempo que conservador. Ao procurar o público popular, introduz frequentemente uma feição dessacralizadora no modelo tradicional. Vencendo, sob a evidente influência do teatro espanhol, os limites tradicionais fixados ao subgênero comédia, admite-se uma temática progressivamente variada, na substância e nas intenções, dando lugar a um curioso fenómeno de hibridismo literário. Retoma assuntos até então reservados à tragédia, naturalmente adulterados e apeados do seu antigo hieratismo aristocrático. Bem sintomático deste alargamento da comédia aos temas da tragédia é o facto de com aquela designação se publicarem versões de originais trágicos. E nem a coexistência de ambas as designações no respectivo frontispício trazia preocupações de qualquer ordem como pode ver-se no nº 9347 – Comedia nova intitulada Os Persianos refugiados entre povos desconhecidos: Tragédia de Mr. De Voltaire! Aníbal Pinto de Castro, Prefácio para tomo 7 de Catálogos das Miscelâneas da BGUC

A história do cordel português, caracterizado pelo seu hibridismo e pela sua multiplicidade, permite ao mesmo tempo leituras de práticas de resistência – o que justificará a importância das organizações censórias a partir do século XVI - e leituras de manipulação por parte do poder, já que existia um modelo de comercialização ao serviço de uma indústria editorial, que produzia lucros significativos, em que colaboravam muitos letrados, muitas vezes, debaixo de um anonimato autoral. O cordel português, apesar de ter sido em grande parte controlado pelo poder hegemônico, que possuía as tipografias, que dominava muitos autores e que teceu as malhas da censura, não adere plenamente às regras impostas e forja no seu próprio interior processos de ruptura ou de resistência. Depois de fazermos uma pequena história cronológica do cordel em Portugal, veremos como no Brasil esta história parece ser bem diferente. 22

Alguns exemplos do século XVII: a Pratica de tres pastores (1626), Teatro do mundo (1645), Hospital do mundo (1646), Dialogo gracioso (1645) e Mayor gloria (1663),

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3.1.1. O CORDEL EM PORTUGAL DESDE O SÉCULO XVI E A SUA LIGAÇÂO AO TEATRO O autor português mais antigo e mais importante, normalmente ligado à história da literatura de cordel, é Gil Vicente. Embora as suas peças não se destinassem originariamente a ser publicadas em folhetos, mas a ser representadas na corte e em locais públicos, a verdade é que versões dos seus textos circularam em cordel23, ora reproduzidas com fidelidade ora modificadas, ao longo de várias edições, mesmo após a publicação da Copilaçam De Todalas Obras De Gil Vicente, em 1562. Tal como Gil Vicente, outros escritores consagrados, como António José da Silva, seriam popularizados pelo cordel. António José da Silva seria mesmo conhecido como “Plauto Luso” de acordo com Gonçalves de Magalhães e outros autores. …mereceu a denominação de Plauto Luso. Antônio José é o único rival de Gil Vicente, e suas composições ainda hoje são aplaudidas nos teatros de Lisboa Gonçalves de Magalhães, Breve notícia sobre Antônio José da Silva,1865

Há no entanto manifestações de teatro primitivo em Portugal, muito anteriores a Gil Vicente, e que podem ter tido uma influência significativa no teatro de cordel. Aliás, seria difícil de compreender, tal como afirma Luís Francisco Rebelo, que Gil Vicente tivesse criado o teatro em Portugal ex nihilo. Aceita-se que Gil Vicente haja sido o primeiro a dar uma forma e um conteúdo literários a elementos rudimentares até então dispersos; mas não se aceita, por cientificamente inverosímil, que tenha criado ex nihilo o teatro português. Luís Francisco Rebelo, Breve História do Teatro Português

Os textos primitivos ou não existiam ou extraviaram-se, mas há evidências de vários tipos de representações24. A verdade é que, no território português, houve teatro desde pelo menos o século I, ou ainda antes: o Teatro Romano de Lisboa está aí para o provar. E sabe-se que, mesmo durante as invasões suevas e visigóticas, e posteriormente durante a dominação árabe, foram sempre surgindo actividaes esporádicas ligadas às artes cénicas. Duarte Ivo Cruz, História do Teatro Português

O documento escrito mais antigo que se conhece, que comprova representações pré-teatrais, data de 1193, e é relativo a uma doação de terras de D. Sancho I a um jogral e a seu irmão, em paga por um arremedilho, que eles teriam de representar na corte real. E como quitação, como nos informa Duarte Ivo Cruz, escreveram os dois jograis: Nós mimos acima referidos, devemos ao Senhor nosso Rei um arremedilho para efeito de compensação.

Acredita-se que houve uma origem fortemente religiosa no teatro da Idade Média, apesar de não existirem quase nenhuns registos dessas representações. Existem no entanto muitos documentos que provam a contrario a sua existência; correspondem normalmente a proibições/ regulamentações da igreja relativamente a representações de cenas sacras e profanas. Como Luís Francisco Rebelo afirma, teriam sido essas interdições que, provavelmente, teriam dado origem a um teatro profano que é de dois tipos: um teatro de cariz popular, 23

Uma versão modificada do Dom Duardos circulava ainda como folheto de cordel no século XVIII e a peça Pranto de Maria Parda foi editada até ao século XIX, de acordo com Carlos Nogueira.

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Para além de possíveis textos extraviados, é de notar o carácter oral de muitas destas representações, não sendo suportadas em texto escrito.

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vocacionado para públicos iletrados, representado por saltimbancos que iam de terra em terra, e um teatro aristocrático para ser representado na corte e em salões da nobreza. Os três tipos de teatro medieval desenvolvem-se em paralelo e interpenetram-se. No teatro popular medieval o arremedilho desempenha papel relevante; seria uma representação de tipo elementar, conjugando mímica e declamação, que teria sido a principal influência em Gil Vicente. E assim como o arremedilho foi o núcleo a partir do qual a farsa vicentina se formou, abundam igualmente na obra do grande poeta quinhentista os vestígios directos da influência dos goliardos, desde o Pranto de Maria Parda. Luís Francisco Rebelo, Breve História do Teatro Português

O arremedilho seria representado na rua, mas também em casas nobres e até no paço real. Segundo Luís Francisco Rebelo o declínio do arremedilho só acontece com a invenção da imprensa. Há registos de jograis residentes na corte e de jograis ou goliardos25 que a visitavam, quando de passagem, de jograis que viajavam pela Península, que provam que nos séculos XIII a XIV haveria espectáculos dramáticos frequentes. Haveria um outro tipo de dramatização, intitulado momo26, que se desenvolve a partir do século XIV em ambiente cortesão. Eram divertimentos colectivos onde participavam os fidalgos e por vezes até o próprio rei, em que representavam sobretudo temas das novelas da cavalaria. Há inúmeros registos de momos associados a dias festivos, ordenados pelo rei, príncipes e nobres. O Cancioneiro Geral, organizado por Garcia Resende em 1516, alude no prólogo à importância deste fenómeno e integra muitos poetas fazedores de momos ou de textos poéticos a integrar em dramatizações. Como afirma Luís Francisco Rebelo “Gil Vicente não é um fenómeno isolado e nem sequer improvisado; a sua cultura é fruto de uma longa maturação… Mas só com Gil Vicente o teatro português adquire o pleno uso da fala... Ele é ao mesmo tempo o derradeiro dramaturgo medieval e o primeiro dramaturgo moderno… Gil Vicente fez com que o teatro português passasse directamente da infância à maioridade”. Duarte Ivo Cruz, na sua História do Teatro Português, apresenta-nos uma versão muito coincidente com a de Luís Francisco Rebelo. Mas são sobretudo os autores da chamada “escola vicentina27”, com nomes como Afonso Álvares, António Ribeiro Chiado e Baltasar Dias28, que parecem representar um contributo maior para o aparecimento da chamada literatura de cordel em Portugal. Uma das justificações para esta migração do teatro “vicentino” da corte e dos ambientes aristocráticos para o cordel é-nos dada por Figueira Gomes, que aponta a promoção do novo teatro italiano em Portugal como a causa maior para a queda da popularidade do auto, originando assim o seu florescimento junto das camadas populares.

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De acordo com Duarte Ivo Cruz, na sua História do Teatro Português, os goliardos seriam um tipo especial de jogral especializado na imitação, porventura desrespeitosa, de cerimónias litúrgicas. 26

Os momos não eram exclusivos de Portugal; existiam também em Castela, França e Itália. A designação “escola vicentina” parece não ser muito rigorosa porque não existiu uma escola no verdadeiro sentido da palavra, mas apenas um grupo de autores que de alguma forma tomaram como modelo o teatro de Gil Vicente. Como afirmou Jorge de Sena foi ”menos uma escola que uma formulação epocal do gosto teatral”. Adoptámos esta designação apenas por ser geralmente utilizada. Há mesmo autores, como por exemplo Carolina de Michaelis, que desvalorizam os autores desta “escola” por considerarem que em vez de desenvolver o modelo vicentino, o imobilizaram. 28 As obras de maior sucesso junto do povo iletrado foram as de Baltasar Dias, que era muito lido e apreciado ainda no século XX. Terá recebido de D. João III, em 1537, a Carta de Privilégio para a impressão, que evidencia a grande importância da publicação e da venda da sua obra. A partir dessa carta, pode-se concluir que o autor já produzia antes de 1537., de acordo com Carlos Nogueira. 27

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Os autos, desaparecendo do âmbito cortesão, descem providencialmente para o povo, que os acolhe e faz rodear do seu entusiasmo e aplauso … deu-se, afinal, lugar à formação do gosto por estes espectáculos por parte de um auditório que nem sempre era lembrado pelos governantes, no tocante ao robustecimento da cultura. Figueira Gomes, Baltasar Dias: Autos, romances e trovas

No século XVI predominam na produção de cordel portuguesa as histórias em verso, que já eram nesse tempo ilustradas com xilogravuras. Curiosamente são bastante mais escassos os folhetos que se conhecem do século XVII – menos de 1% do total, de acordo com um estudo de Márcia Abreu. Esta quebra criativa no novo século poderá ter várias justificações: a) a anexação de Portugal por Espanha, com impacto na diminuição de produção nacional; b) o papel da Inquisição, que se robustece neste período, desencorajando e perseguindo vários autores, dificultando a publicação de originais, e chegando a destruir textos menos ortodoxos; c) a prática dos censores ao serviço do poder político, muitos ligados à Igreja, que viam com desconfiança e como manifestações de luxúria, ociosidade e profanação, sobretudo as representações populares.

Já no século XVIII, depois da independência, ter-se-ão conjugado vários factores para inverter a situação do século anterior: a) b) c)

a proliferação de tipografias - mesmo as tipografias reais editavam as chamadas obras “de cordel”; o crescimento e a diversificação dos leitores; novos interesses culturais, que conduzem por exemplo ao aparecimento, ainda no século XVII, do primeiro jornal português, a Gazeta.

De acordo com o referido estudo de Márcia Abreu, 78% dos folhetos nos acervos são setecentistas, o que traduz o crescimento das publicações no século XVIII, quer de originais da época, quer de traduções e de reedições. Este crescimento conduz também a um alargamento dos temas: histórias de monstros, histórias de santos, histórias militares, históricas de heróis, sermões, poesia de amor ou poesia zombeteira, crítica social, teatro de comédia e de tragédia, etc. As traduções foram também muito importantes neste século para o sucesso do universo do cordel; textos de todos os grandes escritores setecentistas como Corneille, Molière29, Voltaire ou Goldoni, foram traduzidos e adaptados “ao gosto português.” As muitas obras “traduzidas” ou “acomodadas ao gosto português” se encontram bem distantes do original escolhido, remetendo para cenários e situações tipicamente portuguesas, assim se tendo produzido vasto (e também pouco meritório) repertório que alimentou os palcos portugueses. Barata, História do Teatro em Portugal

A produção mantém-se durante o século XIX, mas no século XX a literatura de cordel em Portugal quase desaparece, ao contrário do que sucede no Brasil, como veremos. Ela é considerada já agonizante no final do século XIX por muitos estudiosos do cordel. Depois do século XIX o cordel português apaga-se. Albino Forjaz de Sampaio, Teatro de Cordel, catálogo da colecção do autor

Em Portugal, em meados do século XX, ainda era possível encontrar em feiras alguns folhetos e folhas volantes, principalmente cartas de namoro, histórias populares ou tradicionais, sobretudo em verso e alguns poemas narrativos de incidência mais noticiosa, na linha das cantigas narrativas que tanto sucesso conheceram em Portugal, partilhando, curiosamente, o mesmo

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Cazamento por Força, por exemplo, é uma adaptação da peça de Molière que teve dez edições como folheto de cordel em Portugal, de acordo com Carlos Nogueira.

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espaço nas barracas das cassetes de música pimba. Hoje sobrevivem apenas alguns almanaques, como o Borda d’água e o Seringador, sobreviventes porque baratos, formativos e úteis. Foi sobretudo o receio de perda irreversível do espólio de cordel que fez com que em 1922 Albino Forjaz de Sampaio se esforçasse na realização do primeiro catálogo de literatura de cordel. No prefácio, o coleccionador apresenta os objectivos da publicação do seu catálogo: “No teatro na literatura de cordel há riquezas sem par para o dicionarista e para o etnógrafo. É uma documentação preciosa onde há de tudo” e acrescenta “neste gênero de bibliografia, há já espécies extintas! Diz o Sr. José Leite de Vasconcelos30 que as obras de literatura de cordel vão rareando nos alfarrabistas e convém recolher o que ainda existe”. Algum deste ímpeto coleccionista parece ainda pecar por uma visão paternalista e nostálgica relativamente a objectos da cultura popular: ou seja, a valorização de alguma coisa apenas porque é rara ou quase extinta. Forjaz de Sampaio expressa isso mesmo no prefácio do seu catálogo de literatura de cordel portuguesa quando escreve: “Folhetos amarelecidos e nodoentos, quantas esperanças, quantos sonhos, quantas angústias não trouxeram presos a si. Teatro que passou; está morta, delida em pó a geração que convosco riu, amou sofreu”, parecendo sugerir uma espécie de ritual de enterramento, para que se celebre o cordel morto como tradição nacional. Ou ainda quando escreve “Não é sem emoção que se tomam, não é sem emoção que se lêem. É que o passado atrai sempre aqueles que têm algum valor às velharias mais valiosas do que as inacreditáveis e irreverentes mocidades…”, onde os folhetos são comparados a velharias a coleccionar. Uma evidência do que escrevemos seria observarmos que embora passe a estar reservado à literatura de cordel um lugar em bibliotecas, ela só muito recentemente começa a ter espaço na academia, na universidade, ou nos livros de literatura. Foi e continua a ser muitas vezes invisível quando se estuda a literatura portuguesa. Trata-se de uma hipervisibilidade que se baseia no descrédito; e de uma invisibilidade baseada no preconceito. M. Isaura R. Pinto, Brasil e Portugal: Literatura de Cordel, Invisibilidade e Monovultura do Saber

E mesmo a conhecida publicação Uma História da Literatura Portuguesa de Antônio José Saraiva e Óscar Lopes, que inclusive em vários passos da obra se afirma como marxista, dedica três parcas linhas à literatura de cordel. Outro exemplo concludente poderia ser o Dicionário da Literatura, dirigido por Jacinto do Prado Coelho, onde não encontraremos um único artigo sobre literatura de cordel. Visível ou invisível, a literatura de cordel continua sem ser lida e sem ser estudada. Teríamos de esperar algumas décadas até aparecerem autores que seriam capaz de olhar para o cordel de uma forma crítica, como fez por exemplo Arnaldo Saraiva, capazes de encontrar pontos de ligação do cordel com a história da literatura e até com a literatura contemporânea.

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José Leite de Vasconcelos foi um reputado linguista, filólogo, arqueólogo e etnógrafo (1858-1941).

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3.2.

O CHAMADO TEATRO DE CORDEL no BRASIL No dia-a-dia do engenho, toda a semana, durante, cochichavam-me em segredo: saiu um novo romance. E da feira de domingo me traziam conspirantes para que os lesse e explicasse um romance de barbante. ... João Cabral de Melo Neto, DESCOBERTA DA LITERATURA

Tal como em Portugal, no Brasil, uma das características da chamada literatura de cordel é cobrir vários géneros literários mas, ao contrário do que acontece em Portugal, o teatro tem pouca ou nenhuma representatividade até à criação teatral de autores eruditos, como Lourdes Ramalho ou Ariano Suassuna. O poeta popular conta “causos”, reais ou inventados, com ou sem diálogos entre as personagens, muitas vezes com a presença de um narrador. A intenção principal do cordel é contar uma história, dar uma notícia, narrar um acontecimento. O discurso, predominantemente narrativo, é quase sempre em verso, rarissimamente em prosa. O cordel brasileiro usa uma métrica própria que depende da forma poética e do gênero literário. A sextilha heptassilábica parece ser a forma poética mais utilizada. Essa modalidade, de acordo com Elba Braga Ramalho, é também a mais utilizada no “repentismo” e constitui o estilo mais comum dos cantadores nas suas pelejas. A literatura de cordel brasileira, apesar de herdeira do cordel português e europeu, tem características muito próprias que a diferenciam e a parecem transformar num fenómeno especial. Tentaremos aqui sobretudo chamar a atenção para essas diferenças. Há mesmo estudiosos, como Márcia Abreu por exemplo, que defendem a tese de que o cordel nordestino é um fenômeno cultural autóctone, totalmente independente do cordel ibérico31, rompendo com os antigos e tradicionais estudos eurocentristas, que fazem herdar a literatura de cordel nordestina sobretudo das congéneres espanhola e portuguesa. Segundo Márcia Abreu, o cordel nordestino seria herdeiro antes de tudo da Cantoria ou do Repente nordestino, modalidade de poesia improvisada de natureza oral. A Cantoria teria como antecedente a chamada “Escola do Teixeira32”, um grupo de poetas populares improvisadores que surgiu na serra do Teixeira, no coração do sertão nordestino, terra de vida muito dura e de grande isolamento, mas onde aconteceu uma grande miscigenação de povos e de culturas. 31

Parece-nos que defender uma total autonomia do cordel brasileiro, tal como defender uma herança umbilical do cordel português, poderão corresponder a visões radicais, que nos impedirão de perceber as múltiplas influências, podendo a questão residir sobretudo em identificar onde cada uma dessas influências prevalece. Para ilustrar a influência do imaginário e do cordel português bastaria recorrer ao exemplo da figura de Pedro Sem, que pertence ao imaginário da cidade do Porto, havendo no presente ainda referências a transmissões orais da história na cidade. Carlos Nogueira trata exaustivamente Pedro Sem no artigo que lhe dedica. Segundo ele a versão sobre Pedro Sem escrita mais antiga conhecida, é de 1848, do poeta romântico Joaquim da Costa Cascais. Estamos num período poético dominado pela figura de Almeida Garrett, caracterizado por um optimismo nacionalista e por uma valorização das manifestações folclóricas e da sensibilidade popular. Baseado certamente neste texto há um cordel anónimo editado no Porto no final do século XIX. No Brasil podem ser encontrados vários folhetos de cordel dedicados a Pedro Sem, de que se destaca um de Leandro Gomes de Barros, nome maior do cordel brasileiro, a que dedicaremos algum espaço neste nosso trabalho. Leandro introduz bastantes modificações na história realçando aspectos que corresponderiam a uma leitura moralista e cristã, longe dos padrões do romantismo. A figura de Pedro Sem aparece de facto referida em muitíssimos cordéis brasileiros. 32 Há outra tradição improvisadora no Nordeste que poderá também ter influenciado a chamada literatura de cordel ainda que em menor grau. É a chamada “Coco de embolada” ou simplesmente “Embolada” que, não tendo o prestígio da Cantoria de viola, teve e tem ainda muitos adeptos em todo o Nordeste. É também um tipo de poesia popular improvisada, adequada a duelos poéticos, que terá surgido na zona da mata e no litoral nordestinos.

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De onde nasceu essa Cantoria, parida na serra do Teixeira? Os portugueses levaram com certeza consigo os “cantares ao desafio” ou os “cantares à desgarrada”, a literatura oral portuguesa, levaram para o Brasil as tradições populares e eruditas da metrópole. Mas de acordo com os estudiosos muitas outras origens podem ser encontradas na Cantoria nordestina: judias, ciganas e africanas. E a Cantoria nordestina acabou por ser a única tradição repentista que sobreviveu até ao presente e que manteve viva toda uma tradição, consubstanciada em dezenas de géneros poéticos e toadas melódicas para cada género. Teixeira teria sido a primeira grande escola de cantadores brasileiros. Eram comuns, já no século XIX, no Nordeste os Festivais de Cantadores e Repentistas, competições poéticas à moda dos antigos “jogos florais” medievais, em que os cantadores duelavam entre si, sendo os prémios atribuídos por um júri. Esses festivais acabaram por assumir uma função legitimadora, dando aos participantes o estatuto de “cantadores”, pois era preciso já ter um grande prestígio como cantador repentista para ser convidado a participar nesses festivais. Os duelos eram tão importantes no imaginário popular que alguns se transformaram em relatos lendários e epopeicos e acabaram publicados em folhetos. Na serra do Teixeira surgiram os primeiros “mestres”, que foram aprimorando as técnicas de improvisação tradicionais, passando-as aos seus discípulos; estes, ao migrarem para outras regiões, à procura de uma vida melhor, levaram consigo a Cantoria, que se espalhou aos outros estados nordestinos. O prestígio da Cantoria pode ser evidenciado pela realização de Congressos de Cantadores, a partir de 1948 em Recife. Mas a Cantoria e estes rapsodos do sertão tiveram de enfrentar algumas dificuldades e a maior de todas terá sido com certeza ultrapassar o preconceito das classes dominantes, que eram as detentoras do capital do saber formal. A Cantoria era considerada como actividade de gente pobre e inculta, sendo tolerada apenas como um divertimento para as poucas horas de ócio e descanso dos caboclos, mulatos e negros, e frequentemente associada a festas do ciclo religioso. E mesmo no presente ela é muitas vezes considerada, mesmo por instituições oficiais de defesa do patrimônio imaterial do povo, como mero “folclore” ou “curiosidade local”. No entanto os poetas populares nordestinos foram desde o início autênticos porta-vozes do seu povo, pois souberam traduzir, mutas vezes através de diálogos poéticos, ou pelejas33, reais ou inventados, as transformações profundas da sociedade nordestina. O Carnaval no Recife, considerado desde sempre um dos mais “autênticos” e populares e o menos institucionalizado de todos, poderá ter também influenciado bastante o mundo do cordel. No Carnaval toda a população saía à rua, pobres e ricos, brancos e negros, para acompanhar os blocos carnavalescos, os “maracatus”. Eram dias de inversão dos papéis sociais, de subversão da ordem tradicional estabelecida. Brancos pintavam a cara de negro, os negros pintavam-na de branco. Homens travestiam-se de mulher e mulheres de homem. Podia-se criticar o governo, sem risco de ser castigado. Um novo rei, o “momo”, era coroado; um rei gordo, fanfarrão e grotesco que governava durante os quatro dias do Carnaval. Ora a crítica social, o estilo satírico, jocoso, as críticas ao governo e às suas instituições, à justiça dos poderosos, personificada muitas vezes na figura do “fiscal”34 ou cobrador de impostos, que eram características de muitos autores de cordel, podem ser interpretadas como uma inversão típica de valores, do estilo carnavalesco. Mais uma vez encontramos aqui um ponto de proximidade com o teatro plautino que também invertia os valores do mundo real. Esta inversão de valores no cordel não parece corresponder a uma atitude ideologicamente orientada. A evidência deste facto pode obter-se se observarmos a atitude conservadora de muitos poetas relativamente a muitas transformações sociais e politicas ocorridas durante o 33

Todos (ou quase todos) os poetas nordestinos escreveram pelejas, género preferido para emitir opiniões e críticas próprias de carácter social, religioso ou político, colocando-se ou não como um dos protagonistas. 34 De facto, há relatos de os próprios poetas serem frequentemente perseguidos pelos fiscais ou pela polícia que lhes cobravam o imposto relacionado com a permissão de poder vender os folhetos nas feiras.

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final do século XIX e início do século XX, como por exemplo com a instauração da República, o que em parte se perceberá porque, na verdade, ela não trouxe de início grandes vantagens para os pobres do Nordeste, antes representou em muitos casos agravamentos de impostos35. Outra influência importante do cordel terá sido o cinema, como fonte de muitos enredos das histórias de cordel e que terá influenciado alguns dos modelos adoptados. Sabe-se, por exemplo, que João Martins de Athayde, outro nome incontornável do cordel brasileiro, empresário-editor do cordel e um dos grandes pioneiros daquilo que viria a ser a literatura de cordel popular brasileira, era frequentador assíduo do cinema, sendo natural que utilizasse algumas personagens e algumas narrativas dos filmes a que assistia. Não por acaso no Mercado S. José, a partir de determinada altura, centro dos cantadores e do cordel no Recife, estava situado o cinema Glória e a tipografia Escola Prática Editora, onde foram publicados grande parte dos cordéis desse tempo. Na opinião de Carlos Oliveira os desafios e pelejas repentistas, os Abecês, as histórias e os romances criados oralmente pela Cantoria tiveram um papel fundamental na génese da chamada literatura de cordel no Brasil36, pois esses géneros da cantoria foram, desde muito cedo, transpostos para o papel, na forma de folhetos, mantendo no entanto aspectos da oralidade inerentes a própria Cantoria. A memória desempenhou um papel muito importante nesse processo de transcrição para o folheto, embora os temas e as formas poéticas consagradas tenham recebido muitas vezes uma nova “roupagem”, ao passar a texto escrito. Estes folhetos terão sido publicados pelos poetas desde o início do século XIX como uma forma de conseguir algum rendimento extra, ainda que se conheçam histórias de cantadores que se opuseram à publicação dos seus textos, argumentando que a escrita era o refúgio dos maus repentistas, preferindo por isso conserválos apenas na memória. No entanto, a maioria dos bons e dos maus cantadores acabou por ver na publicação de folhetos de cordel um meio de obter algum dinheiro extra e ao mesmo tempo de fazer circular o seu trabalho. Os folhetos passam assim a ser vendidos, nomeadamente quando aconteciam as performances dos cantadores, e garantiam algum dinheiro mais para os poetas que viviam normalmente com parcos meios. Outro género poético típico da Cantoria que foi transplantado para o cordel, são os “Marcos” ou “Vantagens”37. Os poetas criarão composições poéticas de grande envergadura, desenvolvendo uma grande rivalidade entre si, que daria lugar a uma luta intertextual bastante original, na medida em que cada qual tenta suplantar em qualidade e tamanho a obra do outro, criando uma espécie de peleja virtual entre poetas. Estes desafios envolveram numerosos poetas, alguns de renome, durante todo o século XX.

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Na monarquia todos os cargos eram ocupados por quem o monarca escolhesse. A República, ao introduzir o voto, aparentemente permitiria que o povo ascendesse a cargos políticos, podendo assim finalmente ocupar cargos na administração, ou mesmo chegar a deputado, a senador etc. No entanto, ao proibir o voto aos analfabetos, a constituição afastava dessa escolha cerca de 90% da população. Leandro e outros poetas, com educação fortemente religiosa, não tinham a formação política necessária para perceber o sentido das transformações históricas em curso e muitas vezes assumiram posições que poderiam ser consideradas conservadoras na sua ingenuidade. 36 Há polémica entre os estudiosos de cordel relativamente ao primeiro folheto publicado. Ariano Suassuna por exemplo defende a existência de um folheto datado de 1836, intitulado O Romance d' A Pedra do Reino, que ele usou como inspiração para um dos seus romances romance mais conhecidos, mas já Horácio de Almeida afirma que foi Leandro Gomes o primeiro poeta a publicar mas também há quem atribua esse pioneirismo a Silvino Pirauá, a que corresponderão portanto datas mais tardias. A dificuldade deriva do facto de grande parte dos folhetos terem desaparecido por razões várias, em particular a pequena qualidade do papel e da impressão e por outro por muitas publicações não identificarem o autor ou a data. 37 De acordo com Almeida e Alves Sobrinho, os primeiros Marcos publicados em folheto foram: Marco do Meio do Mundo (1916/17), de João Martins de Athayde; Como derribei o marco do meio do mundo (1916/17) e o Marco Brasileiro (1917), de Leandro Gomes de Barros.

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A transposição para a forma escrita do valor que os cantadores atribuíam a suas Ribeiras, vistas por muitos deles como castelos em que abancados, resistiriam ao ataque de qualquer cantador, permanecendo donos da praça. José Alves Sobrinho, Glossário da Poesia Popular

Os primeiros cantadores-cordelistas desempenharam um papel fundamental, ao iniciarem a publicação dos seus folhetos. Terão possibilitado dessa forma espalhar essa tradição poética por todo o Nordeste, permitindo a ligação efectiva entre o sertão e o litoral, entre o campo e a cidade. Migrando para cidades maiores, as populações puderam assim levar consigo a tradição poética oral, que serviria de padrão para o futuro sistema literário do cordel. Esta literatura de cordel, herdeira das formas e conteúdos da Cantoria de viola, com todos os seus géneros específicos, sendo publicada em folhetos que podiam ser levados para todo o lado, permitiu alcançar um número muito maior de pessoas. Não havia mais a necessidade da presença física dos contadores e dos cantadores para ouvir as histórias. Outro contador/cantador as poderia contar/cantar. Como resultado desta nova procura crescente, foram surgindo em várias cidades nordestinas, a partir do fim do século XIX, várias tipografias que se especializaram na publicação dos mais variados tipos de folhetos. Mas será sobretudo em Recife38, que essa atividade ganhará maior importância, pois foi o destino de grande parte dos poetas e cantadores nordestinos. Recife, por outro lado, terá sido ideal para desenvolver nessa altura a impressão do cordel; de facto, Recife terá tido, por razões históricas que ultrapassam o âmbito deste trabalho, um papel fundamental na instauração e no desenvolvimento da arte tipográfica no Brasil, que constitui o alicerce da actividade jornalística que se desenvolveu posteriormente. O folheto de cordel encontrou em Recife já uma imprensa pojante, com muitos jornais e também com inúmeros pasquins39, onde já proliferava a moda dos folhetins, publicados nos rodapés dos jornais, que acabaram por influenciar bastante a publicação seriada da muitas das histórias de cordel. De acordo com Carlos Oliveira alguns dos primeiros cantadores-cordelistas que publicaram em Recife merecem nomeação pela sua importância, tais como Silvino Pirauá de Lima, João Melchíades Ferreira da Silva, Antônio Batista Guedes, Manuel Vieira do Paraíso. O cordelista brasileiro contemporâneo José Honório, expressa a importância da imprensa desde o final do século XIX no seu cordel Teia de Cordéis: Quando a imprensa surgiu Facilitando o processo De publicar as ideias Acelerou o progresso Das letras e das ciências Facilitando o acesso Deu margem à propagação De jornal, livro, revista Publicações mais voltadas

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Em Recife a primeira tipografia datava já do meado do século XVII, durante o período de ocupação flamenga, que aliás teve uma influência decisiva na transformação da cidade. 39 No folheto O Recife de Leandro Gomes de Barros, editado em 1908, ele descreve uma espécie de viagem turística ao Recife e registra os nomes das principais tipografias da cidade. Tem quinze typographias aqui nesta capital, tem o Jornal do Recife A Imprensa Industrial, Leão do Norte, A Provincia, Correio e Pequeno Jornal. Nove das principais tipografias pertenciam a jornais importantes o que evidencia a força da imprensa no tempo do poeta.

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Para um público elitista Mas também deu condições À arte do cordelista. Ao lado dos belos livros De lombada e capa dura Feitos com papel de luxo E trazendo iluminura Tivemos rudes folhetos Ilustrados com gravura Baixo custo, preço módico Com despojada impressão Texto leve e pouco extenso De fácil compreensão Temas identificados Com a alma do povão. José Honório, Teia de Cordéis

Silvino Pirauá de Lima é interessante para nós pois podemos já reconhecer nalguns dos seus folhetos já algumas das personagens-tipo do teatro plautino: o velho avarento em A peleja da alma ou os jovens apaixonados em História de Zezinho e Mariquinha. Embora os textos não sejam de comédia têm protagonistas que podem ser identificados como tendo contornos que correspondem a tipos do teatro de Plauto. O primeiro cordel conta a história de um velho rico avarento que desejava muito ter um filho. O seu pedido só acaba por ser considerado por Deus quando ele aceita precindir de toda a sua fortuna. O segundo cordel conta a história de um rapaz pobre e de uma rapariga rica apaixonados que são impedidos de casar em virtude da diferença social entre eles. A história acaba por ter um fim trágico, pois Mariquinha é obrigada a casar com um homem rico, e o Zezinho, quando volta do estrangeiro já rico, para casar com a sua amada, morre de desgosto ao saber do casamento e Mariquinha morre quando sabe do acontecido. Quanto a João Melchíades Ferreira da Silva não será por acaso que o escritor Ariano Suassuna o escolheu como personagem no seu romance A Pedra do Reino e o Príncipe, onde o autor o apresenta como “mestre” de Cantoria e de cordel e como o criador de uma “escola de Cantoria”, onde a personagem principal do romance, Quaderna, teria sido discípulo. A obra de João Melchíades que nos chegou em cordel é composta por 9 romances e 27 folhetos. Os romances são histórias inspiradas na tradição oral de contos fantásticos como, por exemplo, História do viadinho e a moça da floresta, ou na tradição do ciclo épico de novelas cavaleirescas do Imperador Carlos Magno. O texto mais conhecido atribuído a este cordelista é um folheto sobre a chamada “Guerra de Canudos40”, um dos episódios mais sangrentos e vergonhosos da história do Brasil, onde terão morrido cerca de 19.000 pessoas, incluindo mulheres e crianças, em que o autor teria participado, recebendo por isso algumas vezes o epíteto de poeta-soldado. Curiosamente, João Melchíades, aliás como muitos outros poetas populares desse tempo, mostrou possuir também familiaridade com os modelos poéticos do Parnasianismo, em moda no Brasil no final do século XIX. Tal facto pode ser comprovado, pois ele incluiu alguns sonetos no final dos seus folhetos, eventualmente para completar o número de páginas da publicação, ou porventura para mostrar a sua mestria em géneros considerados mais eruditos e, dessa forma, valorizar o seu trabalho. Em António Baptista Guedes também podemos encontrar folhetos onde a figura de jovens amantes é central, tal como em História de dois amantes e o amor que vence, Juvenal e Madalena ou os amantes sofredores e Os martírios do amor ou Rivaldo e Iracema. 40

A certeza da autoria não pode existir, pois este folheto, como muitos que nos chegaram, não identifica o autor, tendo a atribuição sido feita com base em dados múltiplos.

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Mas de acordo com Ruth Terra, entre outros estudiosos do cordel, foi entre o fim do século XIX e 1918 que se inventou uma nova literatura popular, que teria as suas raízes na Cantoria, e que demonstra ser extremamente rica em formas textuais herdadas, tanto pela via da oralidade como pela via da escrita. Esta literatura, que aprofundaremos na secção seguinte, foi capaz de juntar elementos com origem popular a elementos originários de criadores com formação académica. Esta simbiose é de alguma forma evidenciada no poema de João Cabral de Melo Neto, que citámos acima, que explicita a maneira como o cordel circulava e era apreendido pelas populações pobres do Nordeste. João Cabral de Melo Neto participou nessa aventura de leitura e de audição poética. Usando a métrica de romance, Cabral de Melo Neto descreve precisamente como na infância descobriu o “literário” através de “romance de barbante”. Nesse relato vemos que, nas poucas horas de descanso, os sertanejos e trabalhadores dos engenhos levavam sempre um folheto para ser lido/recitado por alguma pessoa que o soubesse fazer. De tanto ler-ouvir esses poemas, memorizavam-nos, criando um circuito de transmissão poética que juntava oralidade e escrita. 3.2.1. LEANDRO E A GRANDE LITERATURA DE CORDEL BRASILEIRA Se há dúvidas e controvérsia sobre o primeiro autor a publicar folhetos no Brasil, existe consenso de que Leandro Gomes de Barros (1865-1918) foi o verdadeiro fundador da literatura de cordel nordestina, já no início do século XX, pela pujança e pela criatividade que representou. Com origem modesta e sertaneja, era caracterizado por uma veia satírica e ferina contra os males do seu tempo, adoptando quer uma linguagem subtil e metafórica quer um vernáculo directo. Era dono de um estilo muito peculiar e autêntico, entre o erudito e o popular - talvez por ter sido educado por um padre que era professor de latim e de humanidades – onde encontramos imagens poéticas com grande imaginação e uma enorme criatividade, onde é patente uma notável ambivalência cómico-séria, onde muitas vezes a distância entre o cómico e o trágico é difícil de avaliar. Como vemos, tudo o que acabamos de escrever sobre Leandro poderíamos ter escrito com as devidas distâncias sobre Plauto. De acordo com Carlos Oliveira, Leandro foi o primeiro poeta popular a viver exclusivamente da venda dos seus folhetos, tendo sido assim o iniciador de um movimento popular de publicação e de difusão de obras literárias, fora do circuito literário erudito. Podendo ter havido eventualmente publicações anteriores irregulares, de outros poetas e cantadores, com alguns romances ou poemas das suas cantorias, foi, de qualquer forma, ele quem estabeleceu as bases para o desenvolvimento de uma edição e de uma distribuição sistemática dos folhetos de cordel. Era o próprio Leandro quem mandava publicar os seus folhetos e os folhetos de outros poetas, em tipografias diversas do Recife, ficando seu proprietário; era depois ele quem os distribuía e quem os pagava, quase sempre às prestações, à medida que os ia vendendo. Fez publicidade nos folhetos, como forma de reduzir os custos das edições. Leandro acabou mesmo por adquirir o seu pequeno prelo manual, começando ele próprio a imprimir os seus folhetos. Era a “Typografia Perseverança” que vendeu algum tempo depois a outro poeta de renome e seu amigo, Chagas Batista. Teria vendido a tipografia por ter constatado que a escrita, a distribuição e a venda dos folhetos, que o obrigavam a viajar frequentemente para visitar agentes ou para ir a feiras, onde levava e vendia os folhetos, não lhe deixavam tempo livre para dirigir as impressões. O sistema literário do cordel, como uma entidade coerente e coesa, realmente inicia-se com Leandro. Sistema literário aqui entendido, de maneira simplificada, como um conjunto de atividades organizadas que englobam escritores, editores e leitores, e um circuito de distribuição e de venda. Leandro é autor de uma obra literária vasta e diversificada. Há quem afirme que Leandro teria publicado mais de mil folhetos. No livro de Sebastião Nunes Batista, são no entanto apenas considerados 237 folhetos como realmente de sua autoria e referem-se outros 36 que, tendo sido atribuídos ao poeta, seriam de outros autores, principalmente do seu amigo João Martins 24

de Athayde41. O número real de obras é difícil de calcular, pois havia folhetos com mais de uma obra ou obras em vários volumes, ou folhetos com a mesma obra mas com títulos diferentes e muitos folhetos perderam-se talvez para sempre. E tal como acontecera com Plauto, havia folhetos que eram atribuídos a Leandro pois o seu nome garantia sucesso. Carlos Oliveira, comparando as várias obras de pesquisadores sobre a obra do poeta, arrisca 23 Romances, 174 Folhetos e 10 poemas avulsos. Leandro é indubitavelmente um cronista do seu tempo e superior a todos os outros poetas populares seus contemporâneos, o que justifica a admiração de Drummond de Andrade pela sua obra. Leandro foi um grande cultivador de uma vertente “jornalística” do cordel, informando o povo e opinando sobre acontecimentos regionais, nacionais e até internacionais. Muitos folhetos de Leandro e de outros poetas funcionavam como uma espécie de jornalismo popular, criticando muitas vezes com mordacidade tudo o que lhes parecesse mau para o povo, como é o caso dos impostos que espremiam todas as camadas da população, como acontece no seu folheto Os dezréis do governo, de 1907, e em muitos outros. Assumindo as funções quase de repórter, escreve vinte e uma obras sobre o cangaceiro Antônio Silvino, que constituem uma verdadeira crónica do Cangaço, trabalho partilhado com o seu companheiro de lides, Chagas Batista. Leandro Gomes utilizou muitos artifícios nos seus textos; utilizou por exemplo muitas vezes nas suas histórias animais, quase sempre com fins satíricos e burlescos, como em O casamento do bode com a raposa, O casamento do sapo, O divórcio da lagartixa, Os bichos que falavam ou O homem que virou urubu. Interessa-nos por razões óbvias, em função do cordel que escrevemos, uma obra sua, que descobrimos, chamada Doutores de 60, que não conhecíamos quando escrevemos o nosso cordel, onde Leandro ridiculariza a possibilidade de qualquer pessoa, desde que tenha dinheiro, poder comprar um título de bacharel. Nesse folheto o poeta critica igualmente a falta de qualidade e de exigência do sistema educacional brasileiro.

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Esta confusão pode ser explicada porque Athayde adquiriu em 1921 o espólio literário de Leandro Gomes de Barros, que falecera três anos antes. Como tinha uma editora especializada na edição de cordéis, editou muitos folhetos de Leandro, mas também muitos de sua autoria. Parece ser indiscutível que nalguns casos se apropriou das obras de Leandro. Especialmente no caso das obras de Leandro, as quais, com a compra dos direitos de propriedade, Athayde passa a representar legalmente, a apropriação se dá de forma radical. Algumas vezes, como mostram sobretudo as edições posteriores a 1930, as atualizações vão um pouco além da revisão ortográfica e das pequenas mudanças observadas no título de algumas obras, chegando, em muitos casos, a comprometer o reconhecimento da autoria. Vilma Mota Quintela, A edição popular no Brasil: o caso da literatura de cordel

É reconhecido que Athayde teve um papel fundamental na padronização das edições de cordel, consolidando uma verdadeira marca editorial. Dentre os produtores de folhetos nordestinos, sem dúvida, J. Martins de Athayde foi o que melhor representou o processo de homogeneização editorial do cordel, ocorrido no decorrer do século XX. Esse aspecto ressalta, antes de mais nada, no modo como o poeta-editor procedeu em relação à forma de apresentação dos folhetos, padronizando, por exemplo, o estilo das capas das representações de pelejas e dos romances, as duas categorias por ele privilegiadas. Tal situação se configura também na escolha das obras publicáveis, efetuada metodicamente por Athayde, de acordo com as demandas dos públicos tradicional e emergente. Vilma Mota Quintela, A edição popular no Brasil: o caso da literatura de cordel

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Um burro passou por elle Disse: bom dia collega O dr. lhe disse burro És dos irracionaes, O burro então perguntou-lhe Collega o que é que quer mais Somos diferentes nos corpos No saber somos iguaes O dr. disse-lhe burro, Então não sabes quem és? És um animal estúpido

Só andas de 4 pés O burro disse eu custei Duzentos e dez mil réis Se nós formos apurar Eu devo ter mais valor, E se o collega duvida Va pergunte a meu senhor, Se troca um como eu, Por você sendo doutor. Leandro Gomes de Barros, Doutores de 60

Outro folheto de Leandro que nos poderá interessar será O soldado jogador, história que será baseada num romance tradicional português. O soldado é cheio de artimanhas, engana toda a gente e no fim até resolve os seus problemas econômicos. Parece-nos que esta personagem pode ser interpretado como uma mistura do soldado fanfarrão e do escravo espertalhão, rei da comédia, de Plauto. Vários outros folhetos poderiam ser aqui referenciados como A Ave Maria da Eleição onde satiriza as eleições ou As promessas do governo, onde denuncia o embuste perpetrado pelos políticos para conseguir o voto do povo. No dia da eleição O povo todo corria Gritava a oposição Ave Maria. Via-se grupos de gente Vendendo votos nas praças E a arma do governos, Cheia de graça. Uns a outros perguntavam O Sr. Vota comnosco Um chaleira respondia Este é com vosco. Eu via duas panellas Com miudo de 10 bois Comprimentei-as dizendo Bemdita sois. Os eleitores com medo Da espada dos alferes

Chegavam a se esconderem Entre as mulheres. Os candidatos chegavam Com um ameaço bruto Pois um voto para elles É bemditos fructos. O mesario do governo Pegava a urna contente E dizia eu me gloreio Do teu ventre. A opposição gritava De nós não ganha ninguém Respondia os do governo Amén. Leandro Gomes de Barros, A Ave Maria da Eleição

Em sintonia com o momento histórico, o poeta Leandro Gomes, ainda que desprovido de uma visão política idológica, foi a voz dos oprimidos num período extremamente complexo e difícil da história brasileira. Os seus folhetos foram autênticos libelos reivindicativos, exigindo mais seriedade no tratamento das coisas públicas e maior respeito pela opinião do povo. Ricos em alegorias e metáforas, hipérboles e antíteses, as suas obras de crítica política e social, para além de documentos históricos importantes, são também monumentos de imaginação e de criatividade literária. Além de satírico, Leandro Gomes era também um poeta burlesco. Rir da sua própria desgraça faz parte de um mecanismo anímico fundamental para a sobrevivência dos pobres. Com ele o povo ri de si mesmo, ao mesmo tempo que ri de todos. O poeta popular representava um papel muito importante ao recitar ou ao cantar os folhetos no chão da feira, nas praças públicas ou nos mercados. Participava num acto de riso coletivo, em que estava intrinsecamente ligado aos 26

seus ouvintes-leitores. O riso dos folhetos está direcionado a aspectos muito concretos, a problemas que o povo conhece e sente, tendo o riso para além de tudo um efeito terapêutico. E mais uma vez as palavras que escrevemos atrás poderiam ser usadas para o teatro plautino. Vamos andando e encontrando relações evidentes entre Plauto e o cordel. Provar que elas se devem a influência de Plauto no cordel exige no entanto muito mais. Mas a literatura de cordel teria tido, para além da Cantoria, duas raízes originais distintas, a primeira oral, a segunda escrita. Na primeira incluem-se os contos de fadas, os romances e as xácaras herdados da tradição oral portuguesa e também as lendas, fábulas e mitos indígenas e africanos42; na segunda, livros “eruditos” editados no Brasil, normalmente em prosa, que foram vertidos para o cordel em forma de versos: romances novelescos como A donzela Teodora, A Imperatriz Porcina, A Princesa Magalona e, sobretudo, Carlos Magno e os doze pares de França, como sublinha Câmara Cascudo, e que foram adaptados ao padrão estilístico da cantoria pelos poetas populares. Raríssima no sertão seria a casa sem a HISTÓRIA DE CARLOS MAGNO, nas velhas edições portuguesas. Era, às vezes, o único exemplar impresso existente em casa. Nenhum sertanejo ignorava as façanhas dos Pares ou a imponência do Imperador da barba florida. Câmara Cascudo, Cinco Livros do Povo: Introdução ao Estudo da Novelística no Brasil

Segundo Teófilo Braga esse livro seria também o mais lido em Portugal43 no século XVII e teria sido traduzido para português da versão castelhana. E os portugueses levaram-no para o Brasil. Este livro, que é ainda hoje o mais lido e reproduzido em Portugal, foi pela primeira vez publicado em Sevilha em 1525, quarenta anos depois da publicação do seu original francês que se intitula Conquétes du grand Charlemagne. Teófilo Braga, O Povo Português nos Seus Costumes, Crenças e Tradições

Também Leandro Gomes dedicou a esta saga dois romances: A batalha de Oliveiros e Ferrabraz e A Prizão de Oliveiros. O mesmo fizeram a maioria dos cantadores de renome como João Melchíades que escreveu o folheto Roldão no Leão de Ouro. Leandro passou a verso ainda duas outras obras da tradição erudita: Os martírios de Genoveva e a História da donzela Teodora44. A segunda, originária do Oriente, encontra-se em algumas versões das Mil e uma noites. Na opinião de Carlos Oliveira a forma como esses textos foram passados a verso demonstra o domínio de um conjunto amplo de soluções estilísticas – tanto ao nível sintático, como semântico e poético – pelos poetas populares. Cada cantador possuía um repertório pessoal destas histórias, preparadas a partir de um fundo comum de narrativas, que era compartilhado por toda a comunidade de cantadores45, para serem cantadas no início ou no fim das cantorias, se o cantador cantasse sozinho, ou se vencesse, depois do seu opositor abandonar a peleja. Este repertório oral era passado por cada cantador a seus discípulos, até ser eventualmente registado em folheto. Alguns cordéis acabaram por misturar mesmo temas e histórias com origens distintas, dentro do imaginário colectivo dos nordestinos. Por exemplo no romance Branca de Neve e o soldado guerreiro, Leandro Gomes de Barros miscigena tradições culturais 42

Houve e ainda há uma certa tendência, de muitos estudiosos, para ignorar a influência de textos orais de origem africana, índia e oriental, sobrevalorizando a influência portuguesa e europeia, mas alguns autores têm evidenciado a enorme importância que também essas origens tiveram na adubação do terreno fértil para o nascer do cordel brasileiro. 43 Curiosamente a literatura popular nordestina mantém essa tradição que desapareceu em Portugal. Nenhum cantador que se preze desconhecerá a história, as façanhas e os nomes de todos os cavaleiros que integravam o séquito de Carlos Magno. 44 Em Portugal, a edição mais antiga é de 1712, com o título Historia da Donzella Theodora, em que trata da sua grande fermosura, e sabedoria. 45 Os poetas eram autores apenas de versões das histórias. O enredo, os personagens, as peripécias e todos os elementos da história constituíam um patrimônio coletivo, podendo cada poeta contar a mesma história à sua maneira.

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orais e escritas, ocidentais e orientais, portuguesas, indígenas e africanas. Junta à Branca de Neve um soldado guerreiro troiano e duas personagens secundários que representam os índios e os africanos. Curiosamente, neste cordel, Leandro assume-se como mero “versador”, já que o relato seria de um grande historiador, tal como Homero ou Virgílio se apresentavam: apenas como poetas que relatavam os factos, servindo de vozes das Musas e das Deusas. Poderíamos assim, curiosamente, se fôssemos atrevidos a esse ponto, neste texto reconhecer até uma ligação possível dos poetas populares com os aedos na Grécia Antiga, o que nos poderia levar a estabelecer uma relação entre a poesia de cordel e os textos homéricos. Aliás essa ligação existe no plano funcional: os cantadores eram os guardadores e os portadores de histórias, que levavam de terra em terra, tal como os antigos aedos tinham feito, apenas os aedos dependiam da aristocracia que os sustentava e os poetas populares eram apenas tolerados pelas classes dominantes, desde que não ultrapassassem certos limites. A importância do cordel no Brasil também resulta de outro factor que é reconhecido pelo investigador Carlos Oliveira: O cordel foi, durante muitos anos, o único texto disponível para a alfabetização de milhares de nordestinos que viviam longe dos centros urbanos. A educação no Brasil sempre foi um privilégio das classes altas durante todo o século XIX, fazendo com que as taxas de analfabetos, principalmente nas regiões rurais, continuassem bastante elevadas. É nesse contexto que surgiu a Literatura de Cordel nordestina. Os folhetos, como qualquer outro portador de texto, possuem uma inequívoca funcionalidade didática e informativa. Através da sua utilização como ferramenta educativa em leituras coletivas, a população mais pobre pôde, mesmo de forma escassa e sem nenhum apoio das autoridades governamentais, aprender a ler e obter informações dos acontecimentos ocorridos nas cidades maiores como Recife, Fortaleza, Salvador, etc., desempenhando o papel de “jornal do sertão”, pois as notícias mais importantes só chegavam aos ouvidos do povo através das chamadas “histórias de acontecido”. Os folhetos de cordel também contribuíram na educação dos filhos dos grandes proprietários de latifúndios. Frequentemente, o primeiro contato com as letras destes se deu através de um folheto de feira. Há que se destacar também a importância dos Cantadores, isto porque eles eram convidados a cantar nas fazendas, recebendo ou não pagamento por isso, oferecendo aos meninos e meninas a primeira oportunidade do contato com a poesia. Por isso, escritores como João Cabral de Melo Neto, José Lins do Rego, José Américo de Almeida e Ariano Suassuna, incluíram em suas obras referências claras e contundentes a esse universo da poesia popular. Carlos Jorge Dantas de Oliveira, A Formação da Literatura de Cordel Brasileira

Ao contrário do que aconteceu em Portugal, observa-se que literatura de cordel brasileira não ficou submetida a uma acção editorial vinda dos centros de poder. Desde o final do século XIX que no contexto colonial brasileiro a edição ganhou uma feição claramente artesanal e popular. São sobretudo os próprios poetas populares que editam as suas obras, por si, ou por intermédio de outro poeta-agente, como no caso de Leandro que publicava muitos poetas e até possuiu uma tipografia, como vimos. Esta diferença parece ter permitido novas possibilidades discursivas e ter aberto espaço para um ambiente cultural de grande criatividade. O cordel brasileiro pôde também reforçar a sua feição híbrida e de contornos emancipatórios com a incorporação de valores de outros sistemas culturais: dos índios, dos negros e dos emigrantes portugueses pobres, todos menosprezados pela lógica colonial, caracterizada pela segregação étnico-cultural. O cordel no Brasil, como produto híbrido colonial, possibilitou a mistura de influências de várias culturas marginalizadas e funcionou mais claramente como importante elemento de resistência ao hegemónico, isto é, ao poder central e à metrópole. Se comparada a outras literaturas ditas populares, a literatura em verso do Nordeste, chamada de cordel, é peculiar. Veja-se, na França, a literatura de colportage: as editoras do livro popular francês organizaram-se desde o início, no século XVI, como atividade comercial lucrativa. A impressão dos folhetos nordestinos guarda o caráter puramente artesanal: deriva daí a qualidade inventiva e reflexiva dessa literatura que abunda em temas que refletem, com profundidade, a realidade social em que floresce. M. José Londres, Cordel: Do encantamento às histórias de luta

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Talvez esta diferença importante justifique também, pelo menos em parte, a pujança que ainda hoje a literatura de cordel mantém no Brasil, ao contrário da quase-extinção verificada em Portugal. E talvez nos permita compreender a atracção que exerceu sobre muitos autores de relevo do século XX e contemporâneos, tendo muitos deles inclusive publicado obras em formato de cordel. Poderemos aqui relevar as obras de Ariano Suassuna, Carlos Drummond de Andrade, Catulo da Paixão Cearense, João Cabral de Melo Neto, Joaquim Cardoso, Lourdes Ramalho e Manuel Bandeira. 3.2.2. AUTORES DE CORDEL DO SÉCULO XX E CONTEMPORÂNEOS Ariano Suassuna é hoje um nome incontornável no cordel brasileiro da segunda metade do século XX. Foi o criador do Movimento Armorial, um movimento artístico que tinha como objectivo unir o erudito e o popular numa base nova e igualitária. Foi autor de numerosas obras, que podem ser consideradas de cordel, ou construídas a partir do cordel, nomeadamente: Auto de João da Cruz, (1950), O Auto da Compadecida (1955), A História de amor de Fernando e Isaura (1956), O Santo e a Porca (1957), O Casamento Suspeitoso (1957), O Romance d'A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta (1971), História d'O Rei Degolado nas caatingas do sertão /Ao sol da Onça Caetana (1976). Algumas são muito conhecidas em Portugal, onde foram representadas por diversas vezes. Para além do Santo e a Porca, que constitui verdadeira adaptação de Plauto, podemos identificar em muitas delas personagens tipo do teatro plautino. Tentaremos fazer esse exercício na secção 4.2. João Cabral de Melo Neto tem uma obra poética extensa, que vai do surrealismo à poesia popular. A sua obra com consensual influência cordelista mais conhecida, inclusive em Portugal, é Morte e Vida Severina (1955). Mas também muita da sua poesia terá sofrido influência da literatura de cordel nordestina. Carlos Drummond de Andrade é um admirador confesso do cordel, como demonstra a citação que utilizamos na abertura desta secção de uma crónica sua num jornal, onde confessa toda a sua admiração por Leandro. Muitas vezes expressou a sua admiração pelos poetas populares. A poesia de cordel é uma das manifestações mais puras do espírito inventivo, do senso de humor e da capacidade crítica do povo brasileiro, em suas camadas modestas do interior. O poeta cordelista exprime com felicidade aquilo que seus companheiros de vida e de classe econômica sentem realmente. … A espontaneidade e graça dessas criações fazem com que o leitor urbano, mais sofisticado, lhes dedique interesse, despertando ainda a pesquisa e análise de eruditos universitários. … É esta, pois, uma poesia de confraternização social que alcança uma grande área de sensibilidade. Carlos Drummond de Andrade, em entrevista

Drummond de Andrade, com o músico Sérgio Ricardo, escreveu inclusive um poema para a obra musical cordelista Estória de João-Joana. Catulo da Paixão Cearense foi um poeta, músico e compositor brasileiro. Boémio conhecido da cidade do Rio, para onde se mudou, associou-se ao livreiro Pedro da Silva Quaresma, proprietário da Livraria do Povo, e passou a editar em folhetos de cordel. Organizou colectâneas, entre elas O cantor fluminense e O cancioneiro popular, além de obras dele próprio. Terá sido responsável por dar a conhecer o cordel e assim valorizá-lo nos meios eruditos, acompanhando os poemas populares com o seu violão. De acordo com Arnaldo Saraiva, Fernando Pessoa tê-lo-á mesmo considerado como o único poeta de língua portuguesa a merecer o prémio Nobel, como teria confessado o seu amigo Carlos Queirós, poeta do modernismo português, um dos nomes da revista Presença. Vários sites, que contêm a biografia de Catulo, referem o facto. Aliás Catulo seria o único poeta brasileiro citado nos poemas de Pessoa. 29

Joaquim Cardozo é um dramaturgo do Recife que se situa singularmente no imaginário estético brasileiro nordestino, misturando a tradição nordestina com fontes tão surpreendentes como a matemática e a filosofia. O Bumba-Meu-Boi é uma das manifestações espetaculares populares escolhidas pelo poeta para alimentar três de suas obras O Coronel de Macambira (1963), De uma Noite de Festa(1973) e Marechal, Boi de Carro(1975). Lourdes Ramalho escreve para teatro desde 1939. Com peças como Fogo-fátuo, As Velhas, A Feira, Os Mal-Amados e A Eleição, na década de 70, propõe reinventar no palco o universo nordestino, valorizando a sua herança cultural. A partir dos anos 1990, Lourdes Ramalho passa a escrever verdadeira dramaturgia em cordel, em sextilhas com a métrica tradicional, com peças como Porque a Noiva Botou o Noivo na Justiça46 (s/d), Romance Conquistador (1991) e Chiavari na Capela (1998). As suas peças de cordel foram entretanto reunidas em dois volumes intitulados Teatro [quase completo] de Lourdes Ramalho: Teatro em Cordel (Volume I e II). Manuel Bandeira também expressou a sua admiração pelo cordel, tendo mesmo, no ano de 1960, depois de participar como júri num concurso, escrito uma homenagem à cantoria popular, dedicada aos Cantadores do Nordeste: … Saí dali convencido Que não sou poeta não; Que poeta é quem inventa Em boa improvisação, Como faz Dimas Batista E Octacílio,seu irmão; Como faz qualquer violeiro Bom cantador do sertão, A todos os quais, humilde, Mando a minha saudação.

A cidade de Salvador, na Bahia, também se destacou, a partir de meados do século XX, sobretudo como centro de referência na produção de teatro popular no Brasil, dramatizando folhetos de cordel. Esta estética popular, ora põe os folhetos em cena directamente, ora os utiliza como matriz estética e cultural para peças criadas pelo colectivo. Não se trata de teatro amador, mas de um teatro produzido por uma companhia profissional, constituída por actores com uma sólida formação de teatro. Em 1959 criaram a Sociedade de Teatro dos Novos e nos anos 1970 fundaram o Teatro Vila Velha. Nesta época foram montados muitos espectáculos, muitos deles de rua, fugindo assim à repressão ao teatro da ditadura militar, procurando frequentemente temáticas do imaginário popular da literatura de cordel, que permitiam um fácil reconhecimento por parte dos espectadores. E a verdade é que hoje, mais de trinta anos depois, a Bahia continua a criar espectáculos desta natureza e a influenciar novos grupos no Nordeste, que trabalham com este formato poético de cena. De acordo com um estudo de Makarios Maia Barbosa da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, entre 1993 e 2006, só na cidade de Salvador, aconteceram mais de vinte espectáculos profissionais diferentes de Teatro de Cordel. A ligação próxima de tantos nomes da literatura moderna e contemporânea brasileira, tal como de grupos de teatro e de realizadores de cinema47 com o cordel permite, parece-nos, evidenciar a pujança e a vitalidade do cordel brasileiro.

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Em rigor este texto em cordel não foi originariamente escrito para teatro, trata-se de um romance escrito em décimas, com duas partes, “A Acusação da Noiva” e “A Defesa do Noivo”, mas já foi encenado por diversas vezes. 47 Este estudo não aborda o cinema mas é fácil reconhecer a influência do imaginário do cordel em muitos realizadores brasileiros, entre os quais o mais conhecido será Glauber Rocha com filmes como Deus e o diabo na terra do sol (1964) e o O dragão da maldade contra o santo guerreiro (1969).

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4. PLAUTO E O CORDEL Chegados a este ponto, perante as dificuldades do tema, poderíamos ser tentados a tentar provar a existência de uma relação forte entre Plauto e o cordel recorrendo à conhecida comédia O Santo e a Porca, escrita pelo escritor Ariano Suassuna em 1957. É uma comédia em três actos que, como já dissemos, adapta a conhecida peça de Plauto Comédia da Marmita (Aulularia) a um cenário sertanejo. Utiliza a poética e a estética da literatura de cordel, influenciada pelas tradições e os folguedos populares do Nordeste. O enredo conta a história de um velho avarento conhecido por Euricão, personagem inspirada no Euclião de Plauto, que esconde em sua casa uma porca cheia de dinheiro; em Plauto era uma marmita, que dava o nome à comédia. A história de Suassuna é muito divertida, mistura o religioso com o profano, e segue no essencial o enredo plautino. Mas se Suassuna é natural do Pernambuco (da cidade João Pessoa), antes de escrever a peça frequentou a universidade de Recife, licenciando-se em Direito. No Recife esteve ligado ao teatro desde muito novo; quando entrou para a faculdade foi um dos fundadores do Teatro do Estudante de Pernambuco. Ou seja, a peça de Suassuna demonstra apenas que o autor leu Plauto e que, já com bastante experiência de escrita de textos para teatro, ter-se-á apercebido de que o ambiente de Plauto tinha muitos pontos de contacto com o mundo popular do teatro de cordel e que por isso a peça Aulularia permitiria uma adaptação bem sucedida ao mundo sertanejo. Esse conhecimento e essa experiência poderão também tê-lo influenciado a tirar partido noutras suas peças de tipos plautinos presentes em diversos cordéis tradicionais. Ou seja, a peça O Santo e a Porca e a presença de tipos e de elementos plautinos noutras obras de Suassuna não nos permitem realmente concluir nada de definitivo sobre se o teatro de Plauto teria tido ao longo do tempo grande influência no cordel. Permitem-nos quando muito verificar a existência desses pontos de contacto, e de outros que as secções seguintes desenvolvem, e eventualmente poder afirmar com substância de facto que esta área justificaria estudos mais aprofundados, por quem tiver tempo e génio para o fazer, para poder de facto medir no espaço e no tempo as reais influências de Plauto no cordel.

4.1. RELAÇÕES ENTRE PLAUTO E O CORDEL Nesta secção tentaremos enunciar as principais relações de proximidade, que conseguimos descobrir, entre o teatro de Plauto e o cordel em língua portuguesa. Como vimos em capítulos anteriores, o teatro de Plauto era conhecido e representado em Portugal no século XVI, precisamente quando se desenvolve o cordel. Teria sido Sá de Miranda quem o teria trazido de Roma, onde viveu alguns anos, tendo influenciado as suas comédias e as comédias de muitos autores seus contemporâneos, a começar por Gil Vicente na sua fase tardia e mais tarde outros autores, como o próprio Luís de Camões que escreveu na sua juventude três peças de influência vicentina e plautina. Luís Francisco Rebelo informa-nos que no prólogo da peça Os Estrangeiros, Sá de Miranda admite ter “arremedado Plauto e Terêncio” e na peça Vilhapandos retoma os conhecidos temas plautinos do Milles Gloriosus e do Amphitruo. Os estatutos da Universidade de Coimbra, no tempo de Camões postulavam mesmo uma representação anual obrigatória de Plauto e de Terêncio, segundo o mesmo Luís Francisco Rebelo. Camões teria tido por isso oportunidade de ver várias peças plautinas, tal como a sua peça Auto dos Anfitriões denuncia. Aliás, é através do prólogo de uma das suas outras peças, o Auto d’El Rei Seleuco, que: Ficamos a saber da existência de companhias ambulantes, que transportando em canastras os seus endereços e guarda-roupa, representavam em casas particulares as comédias do seu reportório, a troco de alguns cruzados. Luís Francisco Rebelo, Breve Historia do Teatro Português

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A superior capacidade estética de Camões levou-o a conciliar os dois espíritos, da Idade Média e da Renascença, pelo modo como aliou as formas populares do auto, fixadas por Gil Vicente, com os temas mitológicos imitados dos escritores greco-romanos. Teófilo Braga, Escola de Gil Vicente e Desenvolvimento do Teatro Nacional

Se Plauto influenciou Gil Vicente e outros autores de renome, deverá também ter influenciado a chamada Escola Vicentina, que referimos, e que procurava imitar o mestre. E se essa chamada Escola Vicentina teve um papel de relevo no teatro de cordel português, poderemos admitir alguma influência plautina. O teatro português, tendo sido levado para o Brasil durante a colonização, poderá ter transportado consigo peças de Plauto ou influências dessas peças nos textos portugueses. Os factos que apresentámos permitem-nos deduzir que, nem que seja de uma forma muito indirecta, Plauto poderia ter influenciado primeiro o cordel português e depois o brasileiro. Este cenário permitiria explicar a presença de alguns elementos plautinos nos dois. É no entanto apenas uma explicação teórica que não podemos sustentar com evidências documentais. Ao longo deste ensaio, vimos que, para além de factos de natureza histórica, existem realmente muitas características que parecem ser comuns entre o teatro de Plauto e o cordel, o que facilitaria a possibilidade de uma relação. Dessas características poderemos destacar: 1) um tipo de público muito diversificado, onde predominam as camadas iletradas da população; 2) uma linguagem rica e variada, onde se recorre a todos os artifícios e invenções para conseguir manter a atenção do público; 3) a repetição sistemática de temas e de tipos de personagens; 4) a utilização de inversões relativamente ao mundo real, um mundo de pernas para o ar, onde os papéis de escravos e senhores, homens e mulheres, jovens e velhos se invertem; 5) o papel da música e da musicalidade do texto.

Nos capítulos anteriores, quando fizemos uma curta história do cordel em Portugal e no Brasil identificámos também, em textos de cordel de que fomos falando, tipos de personagens que podem ser facilmente ligados aos tipos plautinos. É realmente fácil encontrar cordéis, onde nos aparecem todos os tipos característicos do teatro de Plauto. É o caso do popularíssimo cordel O Cavalo Que Defecava Dinheiro48 de Leandro Gomes de Barros, que nos passou pelas mãos recentemente e que ouvimos ler, onde um pobre camponês engana o velho senhor, que tudo queria ter, com um velho cavalo doente, levando-o a acreditar que a cavalgadura defecava dinheiro, e depois o engana muitas outras vezes, com enganos em crescente, até o levar por engano a matar a mulher. Podemos ver nas personagens da história o escravo, rei da comédia, o velho tonto e avarento e a matrona rabugenta e impossível de aturar de Plauto. Este folheto á adaptado por Suassuna na sua conhecida peça Auto da Compadecida. Ou o caso dos célebres cordéis dedicados às proezas de João Grilo49, de vários autores, entre os quais lemos uma versão de João Ferreira de Lima, onde novamente aparece um pobre que engana tudo e todos. Mais uma vez João grilo é adaptado por Suassuna no Auto da Compadecida. Ou ainda, os conhecidos cordéis dedicados a um pavão misterioso que nos contam histórias, aventuras e desventuras de jovens apaixonados. Todas as relações e proximidades que descobrimos fazem-nos suspeitar de influências, no entanto, tal como a figura abaixo pretende representar de uma forma simplificada, tanto as 48

Este folheto foi uma das inspirações ao Auto da Compadecida de Suassuna, onde o protagonista se chama precisamente João Grilo. 49 As histórias de João Grilo na realidade fazem parte do imaginário português, como refere Teófilo Braga na sua obra Contos Tradicionais do Povo Português, onde o conto João Grilo é mencionado, tendo sido publicado no nº6 da Era Nova. Terão sido portanto os portugueses a levar João Grilo para o Brasil, tendo sido adoptado pelos cordelistas nordestinos.

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figuras plautinas como outras características desse teatro podem ter chegado ao cordel via Plauto ou directamente a partir das formas primitivas de representação.

Figura 1 – Modelo de relações possíveis entre Plauto e o cordel

Ou seja, essas relações e essas proximidades entre Plauto e o cordel podem apenas resultar afinal de um e do outro terem como raíz as mesmas formas primitivas de representação, que parecem ser comuns a muitos povos. Apenas como mais um evidência dessa possibilidade, existem no norte de Portugal várias representações populares, onde a figura da velha ou do velho tonto aparecem e que sabe serem muito antigas. Como exemplos podemos dar apenas algumas que já vimos e fotografámos: em Sobrado nas festas de S. João, festa solsticial de verão, e em várias aldeias do Nordeste português durante as chamadas festas dos rapazes, festas solsticiais de inverno em honra de S. Venâncio. Como afirmámos num trabalho com as características do nosso não seria possível fazer uma abordagem sistemática do cordel para encontrar a presença das figuras plautinas em catálogos ou em colecções, o que nos obrigaria a visitar esses catálogos e essas colecções, guardadas em diferentes locais, nem investigar a verdadeira influência de Plauto no cordel, o que obrigaria a um verdadeiro projecto de investigação histórica, procurando o fio da meada ao longo de séculos de história em Portugal e no Brasil. Portanto, para além de todas as relações que fomos encontrando, quer no cordel em geral, quer nalgumas das obras que fomos conhecendo nesta viagem, propomo-nos fazer a pesquisa dos tipos plautinos apenas na obra teatral de Suassuna. Suassuna, sendo um bom exemplo de ligação entre o erudito e o popular, integra no seu teatro muitas tradições populares e mesmo nalguns casos mistura textos de vários cordéis anteriores. A secção seguinte apresenta cada uma das peças deste autor por ordem cronológica e tenta em cada uma enumerar as personagens pertinentes.

4.2. OS TIPOS DE PLAUTO EM SUASSUNA UMA MULHER VESTIDA DE SOL (1947) Esta peça é de facto uma tragédia com claras referências ao cristianismo. Joaquim e António são dois irmãos que cortaram relações. Rosa é filha de Joaquim, e Francisco é filho de António. Os dois vivem uma paixão arrebatadora. Decidem casar, apesar da rixa da família,. Ao descobrir essa relação, Joaquim, homem cruel e

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possessivo, arma uma emboscada e mata o Francisco. Rosa, então, decide ajudar seu tio António a vingar a morte de Francisco. Ela mesma prepara uma cilada ao pai. Depois sente o remorso por ter sido responsável pela morte do próprio pai e mata-se com um punhal que Francisco lhe oferecera. Antes de morrer, a jovem pede a Nossa Senhora para que seu suicídio seja perdoado. E a figura da santa, ao final, acolhe o corpo de Rosa. Personagens-tipo plautino: Rosa e Francisco: jovens apaixonados.

CANTAM AS HARPAS DE SIÃO (1948) É também uma tragédia; tem um só acto. Conta o ataque à cidade de Princesa pela polícia militar e por jagunços a mando de João Pessoa, contra os revoltosos da cidade comandados pelo coronel José Pereira. Com a curiosidade do pai de Suassuna ter estado do lado de Princesa. Era uma luta pelo poder no estado da Paraíba. A peça foi reescrita dez anos mais tarde com um novo título O Desertor de Princesa. Utiliza a figura de um prólogo, onde um cego anuncia a tragédia.

OS HOMENS DE BARRO (1949) Não conseguimos obter nem o texto nem informação sobre o enredo.

AUTO DE JOÂO DA CRUZ (1950) Peça inspirada em três folhetins da literatura de cordel. Personagens-tipo: Não conseguimos obter nem o texto nem informação sobre o enredo.

TORTURAS DE UM CORAÇÂO OU EM BOCA FECHADA NÃO ENTRA MOSQUITO (1951) Pequeno entremez escrito para teatro de bonecos. Principais personagens da peça: Manuel Flores é o narrador e no prólogo anuncia a história com a ajuda de Benedito. Benedito para conquistar Marieta vence os dois valentões graças à sua astúcia. Benedito – um negro que, apesar de pobre, domina a cena e vence os valentões. Apaixonado por Marieta Marieta – desejada por todos os homens e também por Benedito mas quando este prova a coragem, acaba por preferir Afonso Gostoso. Vicentão – valentão Cabo Setenta – outro valentão e fanfarrão Personagens-tipo plautino: Benedito: o escravo-esperto; Vicentão e Cabo Setenta: o soldado fanfarrão.

O ARCO DESOLADO (1952) É também uma tragédia baseada numa velha lenda polaca. Apesar de ter ganho um concurso em S. Paulo, nunca foi publicada. Este texto parece diferenciar-se da restante obra de Suassuna que aparentemente pretenderia reescrevê-la, mas nunca o fez. De qualquer forma, pela primeira vez o autor juntou na mesma peça o mundo erudito e o mundo popular, o que vai caracterizar todas as peças seguintes e vai ser o universo 50 do Movimento Armorial . A história passa-se num palácio. A rainha morre e a falta de herdeiros passa a ser uma grande preocupação. Mas o rei descobre que a rainha tivera um filho em segredo, Sigismundo. O segredo devia-se a uma profecia associada ao nome dado ao filho. Peça plena de sobressaltos, revelações, adultérios, traições e assassinatos. Não identificámos personagens-tipo plautinas.

O CASTIGO DA SOBERBA (1953); Esta pequena peça (entremez) parece representar o início de uma fase que poderíamos designar por cordelista de Suassuna.

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O Movimento Armorial foi um movimento artístico cujo objetivo era criar uma arte erudita a partir de elementos da cultura popular do Nordeste Brasileiro. Um dos seus fundadores e directores foi Ariano Suassuna. Tal movimento trabalha todas as formas de expressão artística: música, dança, literatura, artes plásticas, teatro, cinema e arquitectura.

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É baseada no cordel O Castigo da Soberba de Anselmo Vieira de Sousa. Vai ser usada para integrar o Auto da Compadecida que Suassuna vai escrever em 1955 (ver abaixo onde tratamos os personagens).

O RICO AVARENTO(1954) A peça conta a história de um coronel, um homem rico e avarento, que trata mal toda a gente e se nega a ajudar quem precisa - temos aqui de novo a figura do velho avarento – e de um seu empregado, chamado Tirateima, um rapaz humilde mas que, com a sua esperteza, acaba por se salvar e por salvar o Coronel do diabo, que os queria mandar para o inferno. Personagens-tipo plautino: Tirateima: escravo-esperto; Coronel: velho avarento.

AUTO DA COMPADECIDA(1955) É talvez a peça mais conhecida de Suassuna. A história é baseada em diversos cordéis tradicionais de vários 51 autores, nomeadamente de Leandro Barros . Suassuna parece assim fazer um “contaminacio” à maneira plautina. Principais personagens da peça: Palhaço: é o apresentador da peça e também quem vai comentando as situações para o público. O Palhaço parece desempenhar também uma função metalinguística na representação, ao reflectir sobre o próprio mecanismo mágico do teatro. Constitui assim um elemento de meta-teatro, recurso a que Plauto também recorreu nalgumas peças, como é o vaso do Soldado Fanfarrão. Vemos aqui também o recurso ao prólogo plautino. João Grilo: protagonista da peça, personagem pobre e franzino, que usa e abusa da sua infinita astúcia para sobreviver. Trabalha para o padeiro. Temos aqui o João Grilo de que já falamos, que podemos ler como tendo alguma proximidade com o escravo, rei da comédia, de Plauto. Chicó - É um covarde e gosta de contar mentiras. Também trabalha para o Padeiro. É o melhor amigo de João Grilo. Também nas peças plautinas aparece muitas vezes, a par do escravo que domina, o escravo que é enganado e que é servil, bastará como exemplo a peça O Soldado Fanfarrão. Padeiro: velho avarento, é dono da padaria de Taperoá. Casado com uma mulher infiel, que o engana. Temos aqui o velho tonto e avarento de Plauto. Mulher do padeiro: esposa infiel e devassa, que demonstra amor genuíno apenas pelos seus animais de estimação. Poder-se-á ver aqui alguma ligação às matronas no teatro de Plauto. Antônio Moraes: latifundiário, truculento e poderoso, que se impõe pelo medo, pelo dinheiro e pela força. É um velho prepotente. Bispo e padre: clérigos interesseiros, que tudo fazem por dinheiro. Frade: homem bom, maltratado pelo bispo. Personagens-tipo plautino: João Grilo: escravo-esperto; Padeiro: velho avarento; Mulher do padeiro: matrona.

O SANTO E A PORCA(1957) Esta peça, como referimos, é uma adaptação da Comédia da Marmita de Plauto e todos as personagens são baseados nas personagem do original. Personagens-tipo plautino: O escravo-esperto; o velho avarento; os jovens apaixonados.

CASAMENTO SUSPEITOSO(1957) É uma comédia de costumes. Trata do tema do casamento interesseiro, por dinheiro. Peça plena de travestimentos, de cenas de pancadaria à boa moda plautina. Principais personagens da peça: Cancão: é o condutor da acção, mais uma vez o servo espertalhão que vai perceber o golpe e enganar tudo e todos e salvar Geraldo. Lúcia: mulher falsa, devassa e interesseira que deseja encontrar homem rico para casar. Parece coincidir em certos pontos com a figura da meretriz em Plauto. Suzana: mãe de Lúcia, é quem planeja tudo. É a alcoviteira de Plauto. 51

A peça junta de facto enredos de quatro folhetos de cordel: O Enterro do Cachorro e O Cavalo que Defecava Dinheiro, de Leandro Barros, O Castigo da Soberba de Anselmo Vieira de Sousa e As Proezas de João Grilo de João Ferreira de Lima.

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Geraldo: moço rico do sertão, mas ingénuo, que Lúcia e a mãe pretendem enganar. Em vez de velho tonto, um jovem tonto. Personagens-tipo plautino: Cancão: escravo-esperto; Lúcia: meretriz; Suzana: alcoviteira.

O HOMEM DA VACA E O PODER DA FORTUNA (1958) Esta peça foi criada, tal como O Rico Avarento para o teatro de bonecos. É uma adaptação de um folheto de Francisco Sales Areda, de uma peça de teatro para mamulengos e de um romance ibérico. Vai servir de base para o 2º acto de A farsa da boa preguiça. Personagens: O protagonista é um poeta e cantador pobre, muito preguiçoso, chamado Joaquim Simão. Ele recebe uma vaca de presente mas que por trocas sucessivas vai recebendo objectos cada vez de menor valor mas que inesperadamente numa aposta e graças à sua esperteza acaba por ficar com o dinheiro do velho rico. Personagens-tipo plautino: Joaquim Simão: escravo-esperto.

A PENA E A LEI (1959) Peça inspirada no teatro de mamulengos52 e em histórias populares de cantadores nordestinos, onde se misturam também a inspiração erudita da Commedia dell'Arte e o auto sacramental. Tem por tema a justiça. A peça é dividida em três actos, o primeiro chama-se “A Inconveniência de ter Coragem”, o segundo “O caso do Novilho furtado”, e por fim o “Auto da Virtude da Esperança”. No 1º e no 2º acto agem os actores como mamulengos, ainda que no 2º já não se vistam como tal. No 3º os mamulengos desaparecem. Na peça o protagonista, Benedito, está apaixonado por Marieta; ele é um negro esperto, hábil em artimanhas e engodos,. Personagens-tipo plautino: Benedito: escravo-esperto.

FARSA DA BOA PREGUIÇA(1960) A figura do preguiçoso é bastante explorada em muitos contos populares de diversos lugares do Nordeste. Peça em três actos (I-O peru do cão coxo; II-A cabra do cão caolho; III-O rico avarento) inspirada na arte do mamulengo, teatro de bonecos do Nordeste; é escrita em versos livres, com trechos musicais cantados. Contém citações de folhetos de cordel, de Camões, da Bíblia e até de orações. Esta peça é particularmente interessante pela forma como mistura criativamente vários elementos. O 1º ato vai buscar a tradicional história divulgada pelo mamulengueiro Benedito, conhecida como O Preguiçoso. O 2º acto usa a história tradicional de um macaco que perde tudo o que tinha ganhado, após várias trocas, e ainda no folheto de Francisco Sales Arêda (1958) O Homem da Vaca e o Poder da Fortuna. O 3º acto baseia-se num conto popular, São Pedro e o Queijo, e também numa peça de mamulengo chamada O rico avarento do Professor Tira-e-Dá e no entremez homónimo de Suassuna (ver acima). Personagens: Um velho rico, chamado Aderaldo está apaixonado por Nevinha, mulher de Simão, e tenta conquistá-la. Acaba enganado pelo demônio Fedegoso. Podemos aqui descobrir uma vez mais o tipo de velho tonto. Personagens-tipo plautino: Aderaldo: velho tonto.

A CASEIRA E A CATARINA (1962) (Ver As Conchambranças de Quaderna de que faz parte)

AS CONCHAMBRANÇAS DE QUADERNA(1987) Esta peça integra as peças anteriores Casamento Com Cigano Pelo Meio e A Caseira e a Catarina.

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Mamulengo é um fantoche típico do nordeste brasileiro, especialmente do Pernambuco. A origem do nome é controversa, mas acredita-se que ela se originou de “mão molenga” - mão mole, ideal para controlar os movimentos do fantoche.

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Pedro Quaderna é o protagonista e a peça utiliza uma vez mais um modelo próximo do servo que consegue com a sua esperteza resolver tudo a contento. Quaderna é também o narrador e é ele quem une os episódios entre si, garantindo a unidade da peça . Quaderna é rei e palhaço, misto de Quixote e Sancho, astrólogo, charadista, bibliotecário, profeta, intelectual megalomaníaco. Carlos Newton Junior, em programa da peça quando representada no Rio de Janeiro. Personagens-tipo plautino Quaderna: escravo-esperto

RESUMO As ligações entre os tipos plautinos e as peças de Suassuna aparecem resumidos na tabela apresentada abaixo. Esta mostra que todos os tipos aparecem representado e que em particular o escravo, rei da comédia, é um tipo muito habitual nas comédias de Suassuna, tal como o avarento. Ou seja existe um conjunto de relações muito evidente, ao nível do tipo de personagens, entre o teatro de Plauto e o teatro de Suassuna, que podem ser o ponto de partida para indagações mais fundas.

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PEÇA

ANO

Tipo53

UMA MULHER VESTIDA DE SOL CANTAM AS HARPAS DE SIÃO TORTURAS DE UM CORAÇÂO O ARCO DESOLADO

1947

1952

O RICO AVARENTO

1954

T T C T C C

AUTO COMPADECIDA()

DA

1948 1951

1955

O SANTO E A PORCA

1957

CASAMENTO SUSPEITOSO O HOMEM DA VACA E O PODER DA FORTUNA A PENA E A LEI

1957

FARSA DA BOA PREGUIÇA AS CONCHAMBRANÇAS DE QUADERNA

1960

53

1958 1959

1987

C C C C C C

Prólogo

Escravo esperto

Velho tonto

Avarento

Jovem (s) Meretriz apaixonado(s)

Alcoviteira

Soldado Fanfarrão

Matrona

X X X

X

X

X X

X X X

X

X X X X X X

X

X X X

X

X X

T para tragédia e C para comédia

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ANEXOS Decidimos colocar estes dois textos como anexos. Por um lado, depois de os escrever, parecemnos interessantes por conterem informação pertinente sobre a história do cordel, e não quisemos pura e simplesmente eliminá-los, por outro lado tornavam talvez o corpo do trabalho demasiado longo. O primeiro anexo aprofunda um pouco o tema da ideia pejorativa associada ao cordel em Portugal e no Brasil, o segundo evidencia a importância do cordel e em particular do teatro ao fazer uma relato curto da organização da censura em Portugal, desde os tempos da Inquisição, o último tenta apresentar a forma como procurámos, na nossa pequena comédia de cordel, a dupla influência de Plauto e dos cordelistas. A. A IDEIA PEJORATIVA ASSOCIADA A LITERATURA DE CORDEL EM PORTUGAL E NO BRASIL O epíteto “literatura de cordel” teve e tem, muitas vezes ainda, um sentido depreciativo, sendo associado a textos considerados de baixa qualidade literária e por essa razão relegados sem apelo nem agravo para o âmbito da subliteratura ou da chamada “literatura popular”. Esta ideia, talvez ainda prevalecente em certos meios, tem vindo a ser contrariada por numerosos autores e estudiosos do cordel, que a consideram como resultado de um juízo infundado e preconceituoso, que configura uma ignorância acerca de muitos autores de folhetos de cordel e de folhas volantes, publicados entre o século XVI e terceiro quartel do século XX em Portugal e no Brasil desde o século XIX. Mas é ainda assim, apesar do trabalho realizado na catalogação e na divulgação de coleções de folhetos, da fundação de bibliotecas de cordel, da elaboração de antologias e de estudos, da publicação de inúmeras teses de mestrado e de doutoramento sobre o cordel. Mesmo no Brasil, a literatura de cordel, na opinião de muitos estudiosos, apesar de parecer ter conseguido ganhar um maior reconhecimento do que em Portugal, graças sobretudo à utilização do modelo cordel por nomes maiores da literatura brasileira contemporânea, existe ainda uma certa subalternização desta literatura, que se manifesta na sua quase ausência nos curricula da maioria das universidades, nas escolas e nos compêndios de literatura. Arnaldo Saraiva parece ser o primeiro académico em Portugal a interessar-se por esta literatura marginalizada, como ele prefere dizer, e terá tido também um papel preponderante no desenvolvimento de estudos de âmbito académico em várias universidades brasileiras, com que mantém ligação desde há muito, relacionada com a literatura brasileira, incluindo o cordel. Como Arnaldo Saraiva Pesquisador, ensaísta Professor e tradutor Poeta e também cronista E além de tudo em cordel É grande especialista. José Honório, Teia de Cordéis

As condições de ignorância relativamente ao chamado cordel, que propiciaram a citação de Drummond de Andrade que usámos para abrir este trabalho, parecem não se ter ainda modificado na essência em muitos meios académicos e eruditos. A natureza da linguagem, muito vinculada à oralidade e ao regionalismo, usando amiúde variedades não padrão da língua

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ou até dialectos54, além de outros factores que a ligam à esfera do “popular”, atribuem ao cordel ainda um lugar ambíguo e de subalternidade em relação à literatura consagrada. A própria designação “literatura de cordel”, construída a partir de factores extraliterários, e que remete sobretudo para o modo de difusão, para o objecto físico “folheto”, pode induzir em erro, pois comporta uma diversidade enorme de especificidades textuais, como vmos. Uma citação de Forjaz de Sampaio, que se tornou célebre porque é usada muitas vezes nos estudos sobre cordel, afirma preto no branco que “o teatro de cordel (ou a literatura de cordel) não é um género de teatro (ou de literatura), mas uma designação bibliográfica”55. Arnaldo Saraiva é talvez o investigador em Portugal que mais tem contribuído para a correcção do erro generalizado de confundir literatura de cordel com literatura de baixa qualidade para o povo consumir, defendendo que a área bibliográfica do cordel abarca muitos temas e adopta muitas formas, muitas linguagens e muitos estilos, que pouco ou nada têm a ver com o que vulgarmente se designa como “popular”, “popularucho” ou “populista,” sobretudo na área extraordinária da literatura dramática de cordel. Arnaldo Saraiva sustenta com evidências que, com excepção das regras editoriais, do aspecto físico e da forma de distribuição, que são partilhadas por publicações designadas por cordel em muitos países europeus, não há outros critérios seguros que uniformizem esse material. Existe também ainda prevalecente a ideia de que a literatura de cordel, e em especial o teatro de cordel, era para uso exclusivo das classes iletradas. Sabe-se no entanto que os públicos do teatro de cordel seiscentista e setecentista tinham uma composição bastante heterogénea. Testemunhos escritos, por exemplo, do Padre Mestre Baltasar Teles (1647) ou de Manuel de Figueiredo (1810), evidenciam que os folhetos circulavam e alcançavam públicos de vários estratos sociais em Portugal, a começar pelo rei, pela família real e pelas cortesãs, até a aristocracia, desde as camadas mais cultas da população, a burguesia e grandes proprietários de terras, até ao povo de menores recursos. Eram realizados espectáculos teatrais baseados em folhetos, na rua, mas também na corte ou em casas particulares mais abastadas para celebrar nascimentos, baptizados ou casamentos. A esse público diversificado correspondia, como seria de esperar, um corpus teatral, não menos diversificado, proveniente de várias tradições culturais, unificado apenas na constituição material dos suportes. E no que diz respeito aos autores dos folhetos a diversidade também parece ser grande. De acordo com Albino Forjaz Sampaio, entre os autores setecentistas portugueses, identificam-se alguns criadores “populares”, mas predominam autores provenientes das elites: advogados, professores, médicos, padres, militares, os quais poderão ter contribuído para um maior renome dessa literatura, para além das traduções, plagiatos e adaptações de originais em várias línguas. No século XIX, em 1848, por exemplo Camilo Castelo Branco, na altura ainda muito pouco conhecido, a pretexto de um violento matricídio que indignou e impressionou a cidade de Lisboa, publicou no Porto um curioso folheto, cuja primeira edição tinha este título extraordinário: Maria, não me mates que sou tua mãe! Meditação sobre o espantoso crime acontecido em Lisboa; uma filha que mata e despedaça sua mãe. Mandado imprimir por um mendigo, que foi lançado fora do convento, e anda pedindo esmola pelas portas. Offerecido aos paes de familias e aqueles que acreditam em Deus.

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Seria interessante um estudo que comparasse a atitude paternalista e preconceituosa prevalente perante modos de falar e escrever populares que tantas vezes foram objecto de “correcções” e a atitude de exaltação perante a criatividade linguística de escritores eruditos como Mia Couto. 55 Apesar de ter escrito isto no prefácio do seu conhecido catálogo, o mesmo autor também escreve ”Teatro de cordel e teatro popular o mesmo é.”, mesmo se depois, ao apresentar as peças, os autores, os actores, as salas de espectáculo se verifique que quase todos são de camadas eruditas e que as peças eram representadas para diferentes públicos.

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Uma razão que poderá também justificar o pouco apreço que ainda subsiste pela literatura de cordel portuguesa, quando comparamos com o que acontece no Brasil por exemplo56, poderá residir no carácter contraditório da sua produção. Uma contradição entre por um lado o poder e o modelo cultural hegemónicos, que controlavam em grande parte a publicação e a disseminação das obras, representados pelas entidades editoriais, pelos agentes letrados, pela maioria dos autores envolvidos na produção dos folhetos, muitas vezes anonimamente, e pela censura, e por outro lado um poder e uma cultura que procuravam romper, assentes num discurso que procura a identificação com o “popular”, por vezes por meio de um hibridismo transgressor. Há por isso estudiosos que também contestam a designação “literatura popular”, argumentando o carácter hegemónico das classes dominantes de grande parte dos folhetos de cordel. José Oliveira Barata, quando se refere à difusão dos folhetos, diz que se trata: …de uma circulação que, embora facilmente relacionada com os cegos mendicantes, oculta os cérebros de – em nosso entender – uma verdadeira operação planificada. José Oliveira Barata, Catálogo da literatura de cordel

Planificada pelas classes dominantes que controlam no fundamental todo o processo de edição. Esta ambiguidade poderá ser apontada como estando na origem de menores autenticidade e criatividade de um cordel popular em Portugal e favorecerá assim ainda mais a manutenção de alguns preconceitos. Pode observar-se que a literatura de cordel é uma literatura híbrida e complexa, que resiste a interpretações fáceis que olham para ela como simples literatura de baixa qualidade, de entretenimento dos mais pobres ou como literatura de rua. A literatura de cordel parece ter desempenhado e continuar a desempenhar um papel relevante na difusão cultural, uma função conjuntamente literária e identitária. A literatura de cordel estará destinada porventura a estar sempre situada “à margem” ou “na margem”57 de um corpus literário institucionalizado, mas isso não a impede de ter um papel relevante, porque radicado num património comum e num imaginário colectivo, permanecendo ainda hoje como terreno por desbravar e por descobrir na sua riqueza, variedade e complexidade. Um facto que pode evidenciar a pouca importância dada ao cordel mesmo no Brasil é verificarmos, como acentua Carlos Oliveira, que nem mesmo um poeta tão importante como Leandro Gomes, mereceu ainda um estudo crítico de toda a sua produção poética. Não terá havido ainda um estudo literário académico de Leandro Gomes como um autor – na acepção moderna do termo. De facto, parece existir ainda uma tendência bastante generalizada no mundo académico de considerar o cordel como um fenómeno popular colectivo, desvalorizando o trabalho e a individualidade de cada autor.

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Não se pretende afirmar que não existe ou não existiu no Brasil uma depreciação da chamada literatura de cordel, mas apenas frisar as diferenças quanto ao exercício de poder nos dois objectos: no país colonizador e depois no país colonizado. 57

Poderá por isso ser menos problemática a designação de “literatura(s) marginalizada(s)” proposta por Arnaldo Saraiva.

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B. A CENSURA E O TEATRO DE CORDEL EM PORTUGAL58 Temos consciência de que o tema deste anexo não está no centro do trabalho que nos propusemos realizar e o que escrevemos era já bastante longo. No entanto, parece-nos que a história da censura do teatro em Portugal pode dar-nos indicações preciosas acerca da importância e do impacto da literatura e do teatro e, em especial, da literatura e do teatro de cordel ao longo do tempo. Decidimos por isso remeter o que escrevêramos sobre este tema para este anexo. Em cinco séculos de história em Portugal, desde a introdução da imprensa no nosso país, quatro séculos pelo menos foram dominados pela censura. A censura foi especialmente incisiva no teatro, desde o tempo de Gil Vicente. A incidência especial destas práticas repressivas sobre o teatro evidencia uma vez mais como o teatro era nesse tempo quase sempre um dos alvos privilegiados da repressão por parte do poder instalado. Compreende-se, pois o teatro será, pelas suas características, a arte mais adequada a comunicar com o povo iletrado; nenhuma outra forma de comunicação, com excepção porventura dos sermões feitos nas igrejas, chegava tão diretamente e tão rapidamente ao povo analfabeto. A censura formalizada em Portugal começa muito cedo, em 1536, com a publicação da bula Cum ad nihil magis, que instaura a Inquisição no nosso país. Foram então criadas três entidades censoras: o Santo Ofício, responsável por garantir o cumprimento da linha orientadora da Igreja; a Censura Régia (ou do Desembargo do Paço) que assegurava a defesa dos interesses da monarquia, e a Censura do Ordinário, figura criada pelo Concílio de Trento, que fiscalizava de próximo o que acontecia nas próprias dioceses. Os primeiros documentos conhecidos de concessão de licenças para a impressão, concedidos pelas entidades censórias, são de apenas um ano mais tarde, de 1537; referem-se aos autos de Baltasar Dias, como referimos, o que demonstra que de imediato a actividade incidiu sobre as peças de teatro para o povo. A partir de 1536 a censura refina-se. Em 1547 aparece o primeiro índex de livros proibidos em Portugal, na sequência do Concílio de Latrão. Este índex foi sendo actualizado ao longo dos anos com novas publicação consideradas perigosas pela Igreja. Em 1571, D. Sebastião definiu mesmo pesadas penas para quem tivesse na sua posse alguma dessas obras proibidas. Quem ousasse fazê-lo, arriscava perder da quarta parte a metade dos seus bens, castigo a que acrescia a possibilidade de pena de exílio no Brasil ou em África. Até a pena de morte era possível, em casos de maior gravidade. Em 1576 o rei tornou obrigatória a avaliação de todas as obras pela censura do Desembargo do Paço, mesmo após aprovação pela censura do Santo Ofício ou pela censura do Ordinário, garantindo assim que nada se publicava ou era representado que pudesse constituir uma ameaça para o rei. Até ao século XVIII a censura assentou nesse modelo de poder tripartido, criado no nosso país com a Inquisição. Só na segunda metade do século XVIII a censura se centralizou, e desta forma ganhou eficiência. A esta reforma não serão alheios dois factos: o desenvolvimento de ideais liberais e democráticos, que chegavam ao nosso país trazidos pelo pensamento iluminista, e o endurecimento do poder absolutista em Portugal durante o governo do Marquês de Pombal. Foi de facto o Marquês de Pombal quem criou a Real Mesa Censória em 1768, organismo que aparentemente irá marcar completamente o desenvolvimento do teatro em Portugal. Poderá explicar, na opinião de Laureano Carreira, o facto de o teatro português da segunda metade do século XVIII não ter sido capaz de produzir mais do que algumas tentativas dramáticas frouxas, muito académicas, e algum teatro de cordel que, no entanto quase todo ficou preso nas malhas censórias, e que foi por isso guardado nos arquivos da Mesa e proibido de ver a luz do dia. A actividade da Mesa Censória era realizada em nome da defesa de preceitos morais, religiosos e políticos que se consideravam inatacáveis. Igualmente propunha-se defender um rigor 58

Existe um estudo muito interessante de Laureano Carreira intitulado O Teatro e a Censura em Portugal na Segunda Metade do Século XVIII e um conjunto de trabalhos de Luís Tarujo Ferreira da FLUP a que pudemos recorrer para obter informações sobre a relação entre o cordel e prática censória do poder em Portugal no século XVIII. Como o estudo foca

apenas no século XVIII, permite-nos apenas perceber a pujança do teatro de cordel em Portugal nesse século, mas podemos facilmente extrapolar muito do que o estudo contém para antes e depois.

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gramatical e uma pureza linguística. O crivo era apertado e proibia a impressão ou reimpressão de muitas obras, ou a sua representação, por não respeitarem “as regras de decência”, ou por serem consideradas “chulas”; por vezes, rejeitavam-se textos porque abordavam questões como o “adultério” e outros “pecados”; muitos textos eram considerados “contra a Fé e contra as Escrituras”, ou “contra os Príncipes” ou “contra o Governo”. Outras peças eram proibidas por terem “impropriedades de linguagem”, ou “má locução”, por não respeitarem o “vernaculismo” ou por apresentarem um “estilo duro”, “insultuoso” ou “afectado”59. Conhecendo a aceitação popular do teatro de cordel, e a forma como o teatro permitia uma difusão rápida de ideias potencialmente perigosas, a Real Mesa Censória dedicou-lhe uma atenção muito especial, consubstanciada numa acérrima fiscalização de toda a produção teatral quer nacional quer importada/traduzida/adaptada. A actividade fiscalizadora da Mesa obrigava: 1. ao exame de toda a produção literária manuscrita e impressa; 2. ao controlo de todo o comércio e importação de livros e de folhas volantes; 3. à verificação de bibliotecas públicas e privadas. E eram os textos dramáticos os que mais atenção reclamavam da Mesa. Apenas os escritos, que usassem uma linguagem elitista e que se referissem a temas sóbrios, sérios e úteis (decentes), teriam direito a licenças. Os autores eram por isso obrigados a jogar de acordo com as regras ou encontrar formas sub-reptícias de as enganar. A discricionariedade da censura levava por exemplo muitos autores a procurar justificar tudo o que pudesse ser interpretado pelos censores como “sinistro”. Por exemplo o autor do entremez intitulado A Criada Ladina, de 1788, escreve no final da sua peça: “todas as palavras que nelle uza, são meramente para ornato delle, e sem algum sentido sinistro: o que tudo offerece á correcção dos Dignissimos Censores.” Muitas vezes as razões da censura são contraditórias ou mesmo incompreensíveis. O entremez A Doutora Brites Marta, escrito pelo actor e dramaturgo Pedro António Pereira, foi submetido à apreciação em 1771 e obteve um parecer desfavorável da Mesa. Seria, na opinião do censor, “demasiadamente chulo e indecente e nada instrutivo, e ao mesmo tempo com pouca graça”. Quem o lê hoje parece-lhe ser o texto do entremez inócuo, tendo sido aparentemente proibido apenas por a protagonista recusar o conselho do pai em casar, dizendo preferir a companhia dos livros à autoridade do marido. Os valores dominantes da sociedade setecentista vêem o casamento como o corolário único da realização pessoal da mulher e por isso uma tal protagonista poderia parecer devassa aos olhos mais conservadores de então. Mas a mesma peça seria já publicada, pela primeira vez em Portugal, no ano de 1783, com autorização da Mesa. No estudo que referimos, que analisa vários pedidos e várias proibições de peças no século XVIII, podemos curiosamente encontrar vários exemplos de textos que foram aprovados num primeira apreciação, mas que depois para uma reedição ou nova representação foram chumbados, por motivos que da primeira vez tinham sido ignorados, o que evidencia a arbitrariedade de critérios, que aliás conhecemos bem de exemplos da censura que vivemos em Portugal no século XX, o que justificava alguns dos artifícios ardilosos que os autores usavam para a enganar. Em 1771 é criada pelo Marquês de Pombal a Sociedade Estabelecida Para A Subsistência Dos Teatros Públicos da Corte. Esta instituição resulta de se considerar o teatro como um veículo privilegiado para a instrução e para a felicidade do povo; desde que se observasse decoro, o teatro contribuiria para a defesa da Monarquia. Esta organização ficou responsável pela direcção dos mais importantes teatros da capital, elevados à categoria de entidades de utilidade pública, tendo cada um áreas de intervenção muito definidas. Mas a gestão dos teatros terá sido um fracasso e o Marquês de Pombal sentiu-se obrigado a encerrar os teatros para evitar 59 José da Costa Miranda, realizou um estudo sobre os requerimentos de obras teatrais tratados pela Mesa Censória durante o século XVIII publicado num artigo intitulado Teatro Manuscrito, em Língua Portuguesa, Rejeitado pela Mesa Censória (séc. XVIII), in Critério, n.º 7, Lisboa, 1976.

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prejuízos ainda maiores. Curiosamente, terá sido a situação dos teatros na capital que fez com que o Porto neste período se tornasse o centro do teatro português. Com a morte do Marquês a censura pareceu abrandar. No último quartel do seculo XVIII foram impressas muitas de peças de teatro em Portugal. Os censores que, antes da morte do Marquês, tinham proibido muitas peças, permitem agora a sua impressão e representação, o que parece resultar apenas do desaparecimento de directivas claras e firmes do governo. Mas esta situação é corrigida ainda antes da mudança do século e a censura apertada regressa, talvez porque neste período alguns ecos revolucionários da revolução francesa chegam a Portugal. Sabendo que o teatro poderia transformar-se facilmente num instrumento de difusão dessas ideias, o governo decidiu controlar de uma forma muito apertada as representações teatrais e criou a Real Mesa da Comissão Geral sobre o Exame e Censura dos Livros. E entretanto tinha sido nomeado Pina Manique como Intendente Geral da Polícia, com a jurisdição dos teatros. De acordo com os estudos em que nos baseámos, a maioria das obras sujeitas à censura continuava a ser constituída por peças de teatro, muitas de cordel, o que demonstra a importância que estas obras continuariam a assumir. Esta tendência para controlar muito de perto toda a produção artística deu lugar a nova reforma, em 1795, que retomou o sistema tripartido - pontifício, episcopal e real - que tinha como objectivo garantir que nenhuma ameaça, mesmo que ténue passasse no triplo crivo. A reforma parece ter sido bem sucedida pois as edições de teatro quase desapareceram nos últimos anos do século. A censura só foi aliviada com o triunfo do liberalismo. Só em 1821 é abolido o Tribunal do Santo Ofício, pois é "incompatível com os princípios adoptados nas bases da Constituição". A Constituição de 1822 estabelece finalmente a liberdade de imprensa, sem necessidade de censura prévia. Mas este período dourado de liberdade vai ser muito curto. Um ano depois, a censura prévia é restabelecida. D. João VI, temendo também a influência revolucionária de periódicos impressos no estrangeiro, alarga-lhes também a censura, e eles passam a necessitar de licença régia para entrar no país. A partir de 1824, a censura é bipartida: a Censura do Ordinário e a Censura do Desembargo do Paço. Só desaparece a censura da Inquisição. A partir de meados do século XIX a censura centra-se nos ideais republicanos que pareciam representar o maior perigo para o poder monárquico. São conhecidas as medidas repressivas nas Conferências do Casino, encerradas à força pelo poder, ou a forma como o governo de Hintze Ribeiro em 1896 manda a polícia apreender todas as publicações que critiquem as instituições monárquicas. E formas de censura manter-se-iam mais ou menos duras e drásticas ao longo do tempo. Em especial durante o Estado Novo. Até ao 25 de Abril de 1974. Houve no entanto sempre, ao longo do tempo, obras que puderam ser representadas porque fugiam ao controlo apertado da censura. Tal era conseguido através de uma forma de “contrabando” que, já no século XVIII, era muito comum, na opinião de alguns estudiosos. Essas peças eram impressas e circulavam nas feiras. Tendo-se perdido a maioria, algumas resistiram e integram os catálogos de teatro de cordel do presente.

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C.

RELAÇÂO DO FOLHETO “QUEM TEM TUDO QUER POR FORÇA TER CANUDO” COM PLAUTO E COM O CORDEL

Neste anexo, tentamos realçar a forma como na peça QUEM TEM TUDO QUER POR FORÇA TER CANUDO procuramos a influência do cordel e ao mesmo tempo do teatro plautino.

Capa do livrinho de cordel - a partir de xilogragura de Nivaldo Oliveira

O autor da peça em análise defende-se, afirmando que se limitou a obedecer a um desafio do poeta (Plauto), que lhe trouxe a inspiração, soprando-lha na orelha. Plauto ao adormecer sussurrou-me ao ouvido -Tenho para ti um dever que espero ver cumprido. - Vou-te agora dizer qual é este meu pedido. - Não quero que se cante de Aquiles a cólera funesta nem de Ulisses sofrimento. - O que quero, é mão lesta adequada ao momento, que é de luta, não de festa. - Mão capaz de acusar, mão aberta que se fecha, mão que se ergue no ar, que morde como flecha. - Pretendes ser o meu par? - Se não queres, então deixa!

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- Se aceitares a empreitada, soprar-te-ei a inspiração. - Dar-te-ei faca afiada para fechares na tua mão. - Uma faca e uma enxada e uma pena no coração. Não, não era ultimato que me estava a colocar. Aceitei de imediato, nunca pensei recusar. Se recusasse, era um rato não me iria perdoar. Espero ter sido certeiro co’ as flechas do poeta! Plauto por companheiro não é vitória certa. Coxo não chega em primeiro mesmo com boa muleta.

O cordel Quem Tem Tudo Quer À Força Ter Canudo – A História De Dois Impostores Que Queriam Ser Doutores foi afinal o ponto de partida para a nossa aventura em que mergulhámos no cordel e no teatro plautino. No fim desta submersão vimos à tona para respirar. A comédia Quem Tem Tudo Quer À Força Ter Canudo – A História De Dois Impostores Que Queriam Ser Doutores está escrita com sextilhas heptassilábicas com rima cruzada que, como frisámos no nosso ensaio, é o formato poético mais comum no cordel brasileiro e na Cantoria. Escrita como uma peça de teatro, junta várias personagens que se cruzam de alguma forma com alguns dos tipos plautinos, ainda que adaptadas ao Portugal de 2014. A peça tem um prólogo explicativo, à moda de Plauto, onde Caius Plebeculus apresenta a peça e contextualiza a acção. Junta ainda um epílogo, onde o mesmo Plebeculus regressa à boca de cena para incentivar o público. Contém ainda um pré-prólogo e um pós-epílogo opcionais, onde é o próprio autor a explicar ao público porque escreveu aquela peça e a procurar obter a reacção desse público no fim da representação. Esses dois elementos adicionais foram escritos para a primeira leitura pública do cordel, onde o autor participará. As personagens representam políticos corruptos, interesseiros e mentirosos, um político parasita, que abre caminho e tece louvores àquele que há-de conquistar o poder, e onde encontramos em Rubus Doutus Magister, o tal velho tonto que, na sua soberba e poder balofo, acaba enganado como convém no mundo plautino. As personagens mantêm conversas com o público, através de apartes ou em momentos em que estão sós em palco. O enredo recorre a uma cena de reconhecimento final, tão comum na comédia de Plauto, como já era no teatro grego desde a tragédia clássica, utilizando, como acontece em tantas peças de Plauto, um anel como objecto que possibilita esse mesmo reconhecimento. É verdade que, ao contrário do que acontece nas peças de Plauto, no fim da nossa peça os malandros não são castigados, a não ser Rubus que é enganado. Por isso, a comédia teve de juntar ao prólogo um epílogo a suscitar a intervenção dos espectadores. 46

A publicação em si procurará imitar as publicações de cordel quer no formato, quer nos materiais, quer nos métodos artesanais, adoptando um formato idêntico ao do cordel O Engenheiro Que É E Não Era ou O Engenheiro Que Era E Não É, editado pela folheteria Cordel de Timbaúba-Pernambuco em 2007. Leiam a peça de cordel e divirtam-se. E critiquem, se for caso disso. Terminada esta demanda, perguntei eu ao poeta se a voz me saíra branda ou se falara em linha recta. Que com gente tão nefanda só com veneno na seta. Ele nada respondeu, tereis vós de validar, se este esforço valeu, ou se devo lastimar o tempo que se perdeu, que vos fiz desperdiçar.

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