De Ratione Aedificiorum e a Implementação do Sistema Jesuíta de Licenciamento de edifícios jesuítas (séc.XVI-XVIII): O Caso do Colégio de Santarém

May 26, 2017 | Autor: Inês Gato de Pinho | Categoria: Jesuits, Society of Jesus, Santarém, Companhia De Jesus, Jesuítas
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Volume 2

2º Congresso Internacional de História da Construção Luso-Brasileira Culturas Partilhadas

Editores Rui Fernandes Póvoas João Mascarenhas Mateus

2º Congresso Internacional de História da Construção Luso-Brasileira Culturas Partilhadas Porto, 14-16 Setembro 2016

2 º C I H C L B 2016 LIVRO DE ACTAS Volume 2

Centro de Estudos de Arquitectura e Urbanismo Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto Via Panorâmica S|N 4150-755 Porto PORTUGAL T+351 225 057 100, F +351 226 057 199 www.fa.up.pt www.2cihclb.arq.up.pt

Culturas Partilhadas

I

Livro de actas - 2.º Congresso Internacional de História da Construção Luso-Brasileira Editores: Co-Editores:

Capa: Apoio à produção:

Rui Fernandes Póvoas João Mascarenhas Mateus Clara Pimenta do Vale Joaquim Lopes Teixeira Teresa Cunha Ferreira Rui Tavares Ana Aragão Juliana Costa

Data:

Porto, Dezembro de 2016

ISBN:

978-989-8527-11-0

Os artigos são da exclusiva responsabilidade dos seus autores.

II

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De Ratione Aedificiorum e a Implementação do Sistema Jesuíta de Licenciamento de Edi ícios S c VI – VIII O Caso do Colégio de Santarém Gato de Pinho, In s 1

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*CERIS, Instituto Superior Técnico, Universidade de Lisboa

RESUMO A Companhia de Jesus (CJ), instituto religioso gerado no seio da Reforma Católica, caracterizou-se por se distanciar da conduta das ordens religiosas anteriores ao Concílio de Trento. As diferentes formas de actuar e de se relacionar com o mundo laico levaram a que se tornasse a congregação de referência da contra-reforma. Essa forma de actuação distinta traduziu-se na construção das suas casas e desde a primeira congregação geral que a preocupação com a utilidade e adequação do edifício à função é manifesta, sendo expressa no cânone intitulado De ratione aedificiorum. O sucesso do novo instituto levou à disseminação mundial das suas fundações, que assumiram diferentes tipologias arquitectónicas (casas professas, noviciados, colégios, quintas, missões, etc), exigindo um bem estruturado sistema de organização no território, repartido por diferentes assistências. Esta dispersão territorial e a aculturação às praticas locais, fomentaram nos dirigentes da CJ a necessidade de fiscalizar a forma dos seus edifícios, criando um bem estruturado sistema de controlo do edificado. Pretende-se com esta comunicação analisar a forma como a CJ geria o seu parque edificado através de um inovador e actual sistema de licenciamento de edifícios, quais os actores que intervinham no processo e que tipo de directivas seguiam. Esta análise basear-se-á na leitura dos projectos e de algumas memórias descritivas enviadas a Roma, hoje à guarda de dois grandes arquivos: a Bibliothèque Nationale de France (BNF), em Paris e o Archivum Historicum Societatis Iesu (ARSI), em Roma. Referindo casos nacionais e internacionais, e analisando o caso concreto do processo relativo ao colégio de Santarém à luz de novos documentos, pretende-se com esta comunicação provar que o processo de controlo de edificação jesuíta não era apenas uma utopia, mas uma realidade que nos permite ainda hoje aceder aos projectos dos edifícios da CJ e entender as condicionantes ao processo criativo. Palavras-chave: Companhia de Jesus; Projectos de arquitectura; De ratione aedificiorum; Revisor romano.1

Este texto insere-se no âmbito dos trabalhos desenvolvidos no nosso doutoramento, intitulado Modo Nostro. A especificidade da Arquitectura dos colégios da Companhia de Jesus na Província Portuguesa. Os séculos XVII e XVIII (SFRH/BD/110211/2015), desenvolvidos no Civil Engineering Research and Innovation for Sustainability do Instituto Superior Técnico - Universidade de Lisboa, e apoiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia com financiamento comparticipado pelo Fundo Social Europeu e por fundos nacionais do Ministério da Educação e da Ciência. 1

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UM PROCESSO DE LICENCIAMENTO À ESCALA GLOBAL A Companhia de Jesus, instituto religioso gerado no seio da Contra-reforma, foi fundada por Inácio de Loyola em 1540. O novo instituto procurou distanciar-se da conduta das ordens religiosas pré-reforma católica, tão criticada pelo movimento protestante, procurando uma maior proximidade à população através de posições inovadoras na catequização e assistência espiritual. As diferentes áreas de actuação (formação dos seus quadros, missionação e ensino de laicos) levaram à criação de diferentes tipologias arquitectónicas – noviciados, casas professas, colégios, quintas, etc. – disseminadas pelo mundo inteiro. Dividida por assistências (que abrangiam áreas geográficas com características díspares), a CJ organizava-se em torno da casa mãe — a casa professa de Roma — presidida pelo padre geral. O crescente número de fundações e a sua diversidade tipológica, suscitou nos sucessivos dirigentes a necessidade de controlo do edificado jesuíta, procurando-se cumprir as directivas do fundador expressas nos documentos fundamentais da nova congregação. A preocupação de Santo Inácio com a forma de construir as diferentes casas da CJ surge nos primórdios da organização do instituto religioso, constituindo uma das directivas emanadas da I Congregação Geral. O cânone 34, intitulado De ratione aedificiorum, define em traços gerais os princípios de construção pelos quais os edifícios jesuítas se devem reger: ser destinados à habitação da CJ e adaptar-se à função a que se destinam. Os projectistas dos colégios riscavam-nos tendo por base o citado cânone e o modo nostro jesuíta. O modo nostro não era nenhum tipo de tratado de arquitectura ou arte de construir. Representava sim, a forma jesuíta de viver e habitar um edifício transmitida nas constituições, repetida nas actas das congregações gerais e na correspondência interna da CJ. Não sendo uma regra, mas sim um

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conjunto de instrucções de actuação, lançava as directrizes que influenciavam directa ou indirectamente a forma dos edifícios inacianos. Nestes documentos os padres referem o modo como se deve efectivar o culto e habitar um edifício inaciano, referindo as características que deveriam ter as novas construções: salubridade, simplicidade, economia, modéstia e funcionalidade. Segundo Richard Bösel (2012, 41-71), tal como o ratio studiorum regulamentou as estratégias de ensino da ordem, foi também necessário criar um sistema centralizado de controlo para assegurar a adequação dos projectos arquitectónicos. Esta foi uma das principais preocupações dos dirigentes inacianos, que implicou o envolvimento das autoridades administrativas centrais e locais da CJ, em conjunto com um grande grupo de irmãos pedreiros e arquitetos, mas especialmente matemáticos, que aliavam os seus conhecimentos científicos com o conhecimento prático da vida religiosa. Em 1565, aquando da segunda congregação geral da CJ e com manifesta intenção de garantir o cumprimento das directivas estabelecidas no citado cânone, estabeleceu-se o princípio que definia que todas as intenções de construção deviam ser aprovadas pelo padre geral. No ano seguinte, o novo dirigente – Francisco de Borja – operacionalizou esta regra instituindo que os projectos deveriam ser obrigatoriamente enviados à casa generalícia para verificação e que nenhum tipo de edifício deveria ser construído sem que Roma analisasse e aprovasse a sua traça. Em 1580, o padre Cláudio Acquaviva deu continuidade à norma, reforçando o anterior procedimento: sempre que se preparava uma nova fundação, o processo seria enviado a Roma para aprovação e seria obrigatoriamente analisado tecnicamente por um especialista em arquitectura e construção: o consiliarius aedificiorum ou revisor romano. Baseado no De ratione aedificiorum e no modo nostro, o revisor romano verificava se a proposta se adequava a um conjunto de preocu-

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pações mais relacionadas com a funcionalidade e economia, que com questões estilísticas. Em seguida o projecto seria deferido, indeferido, ou proposto para alterações pelo geral e devolvido ao requerente. O sistema, que já havia sido instituído na II Congregação Geral foi reescrito em 1613 e difundido junto de todos os provinciais através de uma epistola communis, obrigando a que os processos fossem instruídos em duplicado, de maneira a que permanecesse sempre uma cópia no arquivo da casa professa de Gesú, em Roma. A implementação do sistema, não terá tido a eficácia que os gerais pretendiam, conforme se pode atestar pela epístola de reforço enviada em 14 de Julho de 1668 para os diferentes provinciais e assinada pelo padre geral João Paulo Oliva: “Au sujet des projets de nos églises et de nos établissements, ou de quelque bâtiment d’importance, afin qu’aucune modification ne puisse être apporté au projet approuvé ici; ayez soin qu’a l’avenir tout projet, examiné auparavant chez vous par des experts, me soit envoyé en doble exemplaire, dont l’un sera conservé ici dans les archives, l’autre étant retourné muni de l’approbation, et, le cas échéant, des amendements nécessaires, sera conservé lá-bas avec grande diligence, et qu’il ne soit pas permis à quiconque de s’en écarter, ce qui a pourtant été fait, ainsi qu’on me la écrit plus d’une fois. Pour le reste, que la construction de nos établissements soit simple, salubre, ‘fonctionelle’, et qu’elle ne témoigne en aucune de ses parties du désir d’éblouir, ni par les matériaux, ni par le style. Qu’elle soit un sujet d’edification et non pas faite pour le faste ni pour être admirée”2 (Vallery-Radot, 1960, 14). A missiva de Oliva, reforça as directivas anteriores e demonstra que, para além do padre geral e do revisor romano, também os projectistas e responsáveis de cada província teriam que instruir Tradução do latim para francês feita pelo autor à epístola assinada por João Paulo Oliva, à guarda do ARSI (ARSI, Epp. com. B2, p. 153). Para não comprometer o conteúdo optamos por não fazer tradução do francês para português. 2

o projecto tendo em vista o respeito pelos princípios patentes na ratione aedificiorum. Seriam estas directivas que o revisor romano — o conselheiro técnico do padre geral —, seguiria aquando da avaliação dos projectos, sendo ele o principal regulador do edificado jesuíta. Este cargo não seria desempenhado por qualquer quadro da CJ. Teria que ser alguém que tivesse sólidos conhecimentos científicos para avaliar a qualidade de um projecto e as implicações do risco do projectista na fase da construção e da utilização. Inicialmente o cargo foi ocupado por arquitectos (padre Giovanni Tristano e padre De Rossis), mas a partir da segunda década do sec. XVII, o cargo foi maioritariamente ocupado por professores de matemática do colégio romano.3 A análise da colecção de desenhos relativos aos edifícios da CJ à guarda da BNF revela o tipo de críticas que condicionavam a aprovação dos projectos. Não seriam críticas muito extensas, oscilando entre pequenas correcções e outras mais expressivas (as últimas relacionadas quase sempre com a forma da igreja), anotadas no desenho, propondo uma aprovação condicionada do projecto ou mesmo a sua rejeição. As preocupações mais constantes eram as relacionadas com a utilidade, facilidade de construção, economia e salubridade. No que se refere à utilitas, quando a forma condicionava o correcto desempenho do edifício, as alterações eram de imediato impostas – veja-se o caso do colégio de Castiglione (Itália) em que o revisor mandou eliminar um pilar para facilitar a comunicação entre as capelas laterais (Vallery-Radot, 1960, 80). No que se refere à firmitas, no projecto para a igreja de Siena (Itália) podemos atestar a preocupação do revisor Orazio Grazzi com o peso próprio da cobertura, sugerindo um tecto em cúpula mais leve e de contrução mais económica (Vallery-Radot, 1960, 9 e 22). No projecto para o Sobre este assunto é fundamental a leitura das obras de Richard Bösel sobre cada um dos revisores romanos e sistematizadas pelo próprio no artigo citado. 3

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colégio de Mirandole (Itália) aprova-se o projecto mas alerta-se para a obrigatoriedade de abrir mais janelas no refeitório para assegurar um correcto arejamento (Vallery-Radot, 1960, 9 e 86). A preocupação relacionada com o terceiro princípio vitruviano – venustas – é manifestada pelo Padre Oliva, em 23 de Dezembro de 1668: “Les projets doivent aussi faire connaitre l’ordre d’architecture suivant lequel on pense bâtir l’édifice, et préciser les ornements du décor, afin de ne pas laisser aux exécutants la liberté d’en ajouter de nouveaux au préjudice de la sainte pauvreté.”4 (Vallery-Radot, 1960, 15). Examinando os projectos da colecção de Paris, Vallery-Radot não encontrou dados que reproduzissem a resposta a esta directiva, à excepcção do caso do colégio de Poszawze (Lituânia), em que é referida em nota a intenção de se compor a fachada sob a ordem dórica (opus doricum) (Vallery-Radot, 1960, 15 e 331). Na nossa opinião isto não constitui prova de que a directiva não foi cumprida. Afinal, em Paris só encontramos peças desenhadas e este tipo de informação poderia estar contido na memória descritiva. A DISSOLUÇÃO DE UM IMPORTANTE ARQUIVO A existência e o cumprimento do referido processo de avaliação aos projectos dos edifícios da CJ, que previa o arquivo de uma das cópias em Roma, garantiria, na teoria, o acesso aos projectos originais dos edifícios da assistência portuguesa entretanto perdidos no processo político que afectou os jesuítas lusos. A expulsão dos jesuítas de Portugal e dos seus domínios ultramarinos, e o processo de sequestro de bens que a sucederam, levaram ao desaparecimento de grande parte do seu acervo documental. No entanto, o ataque aos Tradução do latim para francês feita pelo autor ao texto assinado por João Paulo Oliva, à guarda do ARSI (ARSI, Rom. 207, f. 173). Para não comprometer o conteúdo optamos por não fazer tradução do francês para português. 4

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jesuítas foi global, levando à expulsão dos mesmos nas diferentes assistências e à sua supressão em 1773. Esta manobra que afectou o coração da instituição, em Roma, conduziu igualmente ao extravio dos projectos à guarda da casa generalícia e do colégio romano. Até agora, considerámos que a explicação mais bem fundamentada para o processo de extravio destes documentos é apresentada na obra Le recueil de plans d’édifices de la Compagnie de Jésus conservé a la Bibliothèque Nationale de Paris (1960), assinada por Jean Vallery-Radot. O documento focaliza-se na apresentação e análise do acervo iconográfico à guarda da Bibliothèque National de Paris (hoje Bibliothèque Nationale de France) compreendendo as peças desenhadas pertencentes aos projectos de edifícios da CJ, fundados nos dois primeiros séculos da instituição. Os documentos, predominantemente gráficos, ascendem a mais de um milhar e, antes da reorganização que conduziu a esta obra, apresentavam-se como uma miscelânea de desenhos geograficamente mal identificados e sem catalogação lógica. Era urgente o trabalho de reorganização do acervo. Assim, em 1960, o conservateur en chef do Cabinet des Estampes da Biblioteca Nacional de Paris, Jean Vallery-Radot (1890-1971), consciente da importância da colecção e da dimensão da tarefa a empreender, reuniu todos os esforços para entender o contexto em que havia sido produzida e para transmitir aos leitores o que apurou. Segundo o conservador, em 1773, ano da supressão da Companhia de Jesus, a documentação relativa aos projectos dos seus edifícios foi vendida em leilão. Terá sido o coleccionador de arte Jaques Laurel Le Tonelier, oficial de Breteuil e embaixador da Ordem de Malta na Santa Sé, que terá adquirido a colecção que pertencia à CJ e que hoje se encontra à guarda da BNF. Em 1777, o diplomata deixa Roma para desempenhar em Paris as funções de embaixador extraordinário da Ordem de Malta. Morre em 1785 e o seu espólio é desmembrado nos leilões de Janeiro de 1786.

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A colecção referente à CJ é referenciada com o nº95 no lote denominado “Dessins d’Architecture”. O conjunto é vendido a um comprador não identificado (referido somente como commandeur) e só em 1788 dá entrada no Cabinet des Estampes sob a supervisão do arquitecto Bellanger. No catálogo de entradas da BNF, a colecção é acompanhada da seguinte nota: “Acheté au Collége romain par M. le Bailly de Breteuil em 1773. Remis au Cabinet des Estampes par M. Bellanger Ier Architecte de M.le Cte d’Artois le mardi 18 mars (1788?)”. O conjunto de desenhos dobrados e separados em cinco volumes, era à época identificado como “Piante di diverse fabbriche”, englobando maioritariamente plantas de edifícios e, em menor número, cortes, alçados e perspectivas.

A obra refere também a existência de dois importantes espólios: a colecção de desenhos então guardada na biblioteca municipal de Quimper (França) — organizada pelo padre jesuíta Charles Turmel e particularmente importante para o entendimento dos edifícios jesuítas franceses — e a colecção de projectos — que reúne peças desenhadas e memórias descritivas — à guarda dos Arquivos Romanos da CJ, organizada pelo padre jesuíta Edmond Lamalle. Lamalle, arquivista da CJ e autor do segundo apêndice, apresenta uma reflexão comparativa entre dois arquivos – a BNF e os Arquivos Romanos da Companhia de Jesus. Antes de elencar e descrever os projectos, o autor faz uma importante introdução em que tece críticas (ainda que

Fig. 1 - “Trassa d’Elvas”, [s.d.]. ARSI, F.G. 1408, nº 9. Elvas.

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justificadas) às opções arquivísticas que poderão ter levado ao desmembramento dos processos. Curiosamente, apesar de admitir que os projectos de Paris sem as memórias descritivas são peças documentais incompletas, quando se refere aos projectos que se encontram à guarda da CJ, alude à existência de memórias descritivas, mas acaba por descrever no apêndice apenas os desenhos. Tomando como ponto de partida esta obra, procurámos localizar os projectos já identificados como pertencentes à assistência portuguesa. Na BNF, são referenciados os projectos relativos a Coimbra, Évora, Rio de Janeiro e Goa. No ARSI, são assinalados os projectos relativos aos edifícios da CJ localizados em Santarém, Elvas, Baía e S. Paulo. Sendo a presente investigação, uma parte fundamental de um projecto doutoral mais vasto em que se pretende atestar a especificidade da arquitectura dos colégios jesuítas na província lusitana5 nos séculos XVII e XVIII, os projectos relativos aos colégios de Elvas e de Santarém revelam-se de maior importância para o nosso estudo. Apesar de ambos estarem à guarda do ARSI e de, segundo Lamalle, os projectos conservados no arquivo romano estarem completos, não localizámos a memória descritiva relativa à planta do colégio de S. Tiago de Elvas (Fig.1). No entanto, no que se refere ao colégio de Nossa Senhora da Conceição de Santarém, encontrámos novos dados que, conjugados com documentos provenientes de outros fundos e arquivos, ilustram a complexidade em torno da execução do projecto de um edifício inaciano. O PROCESSO DE APROVAÇÃO DA TRAÇA DO COLÉGIO DE SANTARÉM A ligação dos jesuítas a Santarém data dos primórdios da presença da CJ em Portugal. Ainda no reinado de D. João III é assinado o documento de doação “de um chão na villa de Santarém, que 5

Área correspondente ao actual território português.

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parte com a parede da Ermida de Santo Antão na dita vila”.6 Em 1575 Aires de Sousa, membro da CJ e natural de Santarém doa umas casas para que aí se instalasse um colégio.7 Na época, os inacianos contavam com o apoio de D. Jorge de Almeida, arcebispo de Lisboa, mas a sua morte em 1585, fez com que a fixação em Santarém fosse adiada. De acordo com Francisco Rodrigues (1938, 29), uma missiva do padre Pedro da Fonseca revela que dois anos depois seriam os governantes escalabitanos a negociar a autorização do rei empreendendo, porém, esforços infrutíferos. Em 1607, ano em que ingressa na CJ (Rodrigues, 1984, 5), o padre Duarte da Costa faz nova doação ao instituto religioso, com vista à criação de um colégio na vila de Santarém, do qual se viria a tornar fundador.8 O documento de doação viria a ser assinado em Abril de 16099. Encetaram-se então novos esforços para a criação do estabelecimento na vila, sendo para isso necessária a autorização de D. Filipe II de Portugal. Com autorização régia concedida, os padres enviaram a Santarém em 1620 o padre Luís Lobo, mas surgiram entraves por parte do clero. O arcebispo de Lisboa, D. Miguel de Castro, resistiu até à data da sua morte (1625), à presença dos jesuítas na vila. Certo é que, apoiados pelo rei e pelo papa, se fixam junto a Santo Antão em 1621, figurando nos catálogos da CJ nesse ano 5 padres e 3 irmãos leigos,10 assumindo no entanto uma posição discreta devido aos problemas continuamente levantados pelo arcebispo. 6

ANTT, Cartório dos jesuítas, maço 5, doc.1.

ARSI, Lus. 67, f. 108. Citada em Rodrigues, Francisco. 1938. História da Companhia de Jesus na Assistência de Portugal, Tomo 2, Vol.1. Porto: Apostolado da Imprensa, p.29. 7

“Rol da fazenda e renda do Padre Duarte da Costa que se aplica ao Collegio que quer se faça na Villa de Santarem, conforme a enformação dos que a admenistrão em Dezembro de 607”. ARSI, Lus. 85, f. 383 a 384v. 8

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ANTT, Cartório dos Jesuítas, maço 5.

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ARSI, Lus. 39, f. 127.

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Ao que parece esta localização não agradou aos inacianos, que identificaram como lugar ideal para o novo colégio o terreno onde se situavam as ruinas dos antigos paços reais de Santarém. De acordo com Francisco Rodrigues (1944, 10) os padres dirigiram uma petição a D. Filipe III solicitando que “fizesse mercê ao colégio de Santarém (...) das ruínas do Palácio, que os reis de Portugal tinham naquela vila à Porta de Leiria, e que não serviam para nada por não haver nêle habitação nenhuma”11. Comprometiam-se a oferecer, em troca dessa mercê, três mil cruzados para os gastos. Mais uma vez se levantaram entraves, desta vez por parte da nobreza. Quinze anos depois da petição dos jesuítas, D. Francisco de Castelo Branco, conde de Sabugal, meirinho-mor do reino e alcaide-mor de Santarém, ainda se mobilizava acerrimamente contra a possibilidade desta mercê, alegando que os paços lhe eram devidos pelo seu cargo de alcaide e que já eram pertença dos seus antepassados, que há duzentos anos desempenhavam a mesma função12. Discutiu-se longamente esta querela, decidindo-se que os ditos paços eram propriedade do rei e não do alcaide, mas só após a restauração da independência se efectivou a sua doação à CJ. A 14 de Julho de 1647, é finalmente assinada por D. João IV, a doação dos paços de Santarém à CJ. Esta mercê não terá porém, correspondido em pleno aos pedidos da CJ, uma vez que o rei exigia como contrapartida, que o projecto previsse no complexo a construção de um novo paço: “... que os ditos relegiozos possão fazer no dito çitio cazas em que vivão e Igreja e o mais que lhes pareçer e esta doação lhe fazem com as comdiçois seguintes assaber [:] que os ditos relegiozos serão obrigados a fazer no dito citio para o dito Senhor e seus subcessores huns Paços comforme a traça que fez Matheus do Couto seu mestre das obraz (...). [Os padres] vão a fazer a obra dos paços do 11

ANTT, Cartório dos jesuítas, maço 68.

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ARSI, Lus. 85, f. 399 a 400v.

dito Senhor na forma siguinte assaber [:] farão os ditos padrez nas suas obras duas partes. e hua parte nos ditos paços de Sua Magestade fazendo duzemtas braças nas suas obras fasam cem braças nos ditos paços do dito Senhor e a esse respeito yrão correndo sempre as obras dos paços com as obras dos ditos padrez; e os ditos paços terão as mesmas perrogativas que tem os paços Reais, com declaração que não temdo o dito Senhor ocupados os ditos paços poderão os ditos padrez uzar delles para os abitarem.” 13 Os padres da CJ viram-se perante um novo desafio: conjugar o já complexo programa colegial com o programa do paço régio, garantindo que ambos satisfizessem as necessidades dos seus utilizadores e harmonizando as duas tipologias num só edifício, de forma a garantir a autonomia e privacidade de ambos. O rei, ao fazer a doação refere a existência de um projecto previamente riscado por Mateus do Couto (tio), mas até ao momento não foi possível localizá-lo. Retomando a linha condutora da presente comunicação, se o processo para obter o local ideal para a implantação do colégio de Santarém foi complicado, a escolha da forma definitiva do edifício também não se revelou simples, exigindo muitas alterações ao projecto e trocas de correspondência entre o reitor e a casa generalícia. O ARSI conserva nos seus arquivos uma planta sem data intitulada “Planta velha”14, relativa ao colégio de Santarém15. Apesar deste desenho (Fig.2) representar por si só um documento fundamental para o entendimento da história do colégio da então vila, procurámos esclarecer se a afirmação de Edmond Lamalle (que declarava que no ARSI as memórias descritivas acompanhavam os desenhos) se verificava neste caso. E efectivamente existe um 13

ANTT, Cartório dos jesuítas, maço 72, nº10.

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ARSI, FG 1588, 18, 01.

Esta planta foi apresentada informalmente pela primeira vez por Pedro Canavarro no colóquio “Comemorações dos 300 anos da edificação da Sé de Santarém”, em 12.11.2011. 15

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Fig. 2 (à esquerda) - “Planta velha”, [s.d.]. ARSI, F.G. 1588, nº 18, 01.

Fig. 3 (à direita) - “Advertencias sobre a nova planta do Collegio de Santarem”, [s.d.]. ARSI, F.G. 1588, n.º 18, 03.

manuscrito correspondente a este desenho, que o clarifica e nos fornece informações cruciais para o entendimento da evolução do projecto deste colégio. O manuscrito intitula-se “Advertencias sobre a nova planta do Collegio de Santarem” (Fig.3). Ao longo de 4 folios, o redactor refere-se a uma planta nova (que não está agregada ao actual processo) e a uma planta velha. A planta velha serve unicamente para justificar as opções da planta nova, desenhada sem grande rigor e enviada à pressa para Roma, guardando-se o original em Portugal.16 Este envio algo precipitado de material leva-nos a especular que se trate, não de um pedido de aprovação de um projecto, mas

sim de colocar Roma ao corrente da situação e da evolução do projecto de intenções. Note-se que o redactor faz alusão à existência de um projecto anterior à “planta velha”, mas não refere que esse tenha sido avaliado fora de Portugal;17 E que apesar do título se referir directamente à nova planta do colégio de Santarém, em dois terços do texto manifestam-se às desvantagens da planta velha que nunca foi enviada. Explica-se ainda que o dito desenho não havia sido remetido para a casa generalícia “porque nella se não acha nenhuma aprovação, nem he dever se aprovase la planta tão torta, e irregular e com tantos defeitos, e inconvenientes”.18

“... como se ve pello petipé da planta grande que ca fica, que não levou o Padre Assistente por eu estar na missão [ms. ilegível] e só se tirou della à preza este rascunho em papel limitado para poder ir pello correo, e voltar por elle”. ARSI, FG 1588, 18, 03. 16

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“...já advirto que esta não foy a primeira planta que se fez para este collegio.” ARSI, FG 1588, 18, 05. 17

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ARSI, FG 1588, 18, 04.

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De Ratione Aedificiorum e a Implementação do Sistema Jesuíta de Licenciamento de Edifícios (Séc. XVI – XVIII): O Caso do Colégio de Santarém

Independentemente do objectivo ser a aprovação final ou apenas fazer um ponto de situação do projecto, certo é que se demonstra a observância ao cânone 34 acima citado — de ratione aedificiorum — e ao modo nostro. No que se refere à composição formal global, denota-se uma grande preocupação com a simetria e com a ortogonalidade. A ausência destes dois princípios na planta velha é um dos grandes defeitos apontados. Esta situação torna-se ainda mais problemática porque se reflete na fachada, ficando a “Igreja no canto do terreiro, podendo ficar no meyo”, correspondendo a um traçado em planta pouco ortogonal, resultando na “intolerável tortura com que fiqua a fachada principal do Collegio”19. A planta nova procura soluções para estes problemas, ainda que com limitações provocadadas pelas pré-existências: “Que o corredor que vai de pardo está ja meyo feito que não he possível meterse com elle a perfeita esquadria a demais obra do collegio assi por que descompõem o terreyro que fica por fora, como por que encurta muito o pouquo espaço que temos pera edificar.”20 A situação requer uma atenção especial, resolvida de modo a que a ortogonalidade esteja garantida nas divisões interiores: “Que posto que todo o sitio he esconco, que nenhua caza o fica porque tudo se remedea nas escadas com hum arco sem que nenhuma dellas fique esconça.”21 A pré-existência das ruínas do antigo paço apresenta-se como uma condicionante ao traçado ortogonal, constituindo um dos principais defeitos da planta velha: “nem he dever se aprovase la planta tão torta, e irregular e com tantos defeitos, e inconvenientes; só por não derrubarem três ou 4 cazas dos passos antíguos tortas e desiguaes, e que hoje para nada possem servir.”22 Esta afirmação demonstra que a noção de conservação do patri-

mónio edificado não era uma premissa da época. Esta ideia é reforçada por uma solução de ordem prática e económica sugerida na planta nova: “Que além de ser necessario he também conveniencia desfazeremse as paredes dos passos velhos porque ainda que custe tirasse pedra que logo fica na obra, e que hade custar dobrado se se cortar na pedreira e trouxer em carros a monte tão alto como o em que esta situado o Collegio e fica muito longe da pedreira. Alem de que pouquo mais se desfaz pello que se avia de desfazer segundo a planta velha, para se fazer o frontespicio da Igreja, e outro semelhante que se hauia de fazer no topo do corredor.”23 Os defeitos particulares apontados à planta velha são justificados por questões relacionadas com salubridade e o conforto, patentes inúmeras vezes nos documentos da CJ quando se aludia ao modo nostro. Relativamente à zona do dormitório, refere-se “que não fica com mais que hum corredor que corre de nascente a poente como todos os cubículos ficão ao Norte que em Santarém he frigidíssimo e os cubicolos de desmarcada grandeza. E os que ficão ao Sul todos são de 2ª luz e deuaços e escuros por culpa da varanda de 24 palmos de largo que corre iunto deles. E posto que este corredor também fiqua na planta nova; ficão cortados alguns cubículos dos cegos que não prestão para nada; e ficão acrecentados 13 excellentes ao Sul e a Nascente.”24 Na zona escolar também se demonstram preocupações da mesma índole: “Que os estudos ficão sem pateo nenhu e sem ar. Metidos em humas logeas ou masmorras correndo por cima dellas cubicolos e corredor sem varanda nem cousa que o valha”.25 Parece-nos que quem traçou a planta velha não possuía o mínimo conhecimento da ratione aedificiorum ou do modo nostro jesuíta, uma vez que são desrespeitados princípios básicos. E isto é claramente atestado no manuscrito, onde se refere que “o archi-

19

ARSI, FG 1588, 18, 03.

20

Idem.

23

Idem.

21

Idem.

24

ARSI, FG 1588, 18, 04.

22

Idem.

25

Idem.

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tecto da planta velha (...) foy hum irmão leigo de S. Francisco”26 e não um jesuíta, ou Mateus do Couto como havia sido exigido por D. João IV. Este facto, aliado à inexistência de qualquer referência à presença de um paço no traçado do colégio, seja na planta velha ou na nova, leva-nos a especular que estes dois projectos seriam ante-projectos à doação oficial. O que não é uma hipótese e que podemos atestar com documentos é que se fez novo projecto, enviado a Roma, em que se previa a articulação do programa colegial com o programa imposto pelo monarca. Em 1648, o padre reitor João Cabral envia nova planta a Roma, acompanhada por uma carta que dá conta da evolução do projecto e também das obras, entretanto iniciadas. No verso da carta27 lê-se: «manda a Vosso padre a planta do edificio aprovada pelo Architecto real & outra [ms. ilegível] com informacam ao Padre Assistente”. A planta não se encontra arquivada conjuntamente com o manuscrito, mas este fornece-nos dados fundamentais para o entendimento da maturação do projecto e da evolução construtiva do edifício. O projecto enviado havia sido desenhado pelo arquitecto régio (que nessa data poderia ser de facto Mateus do Couto), que alterou três vezes a traça antes da última versão enviada — “A traça do collegio para nos ahi vai a nosso Reverendo Padre foi yaminada28; dipois de ser fecta polo architecto de Rey com muito vagar: e tres ueses emendada”.29 O programa do edício atendia às duas funções exigidas no documento de doação: “Sua Magestade nos fez mercê dos seos Passos, pera nelles edeficarmos, com condição de lhe reedeficaremos hum quarto para ele; asas limitado, para grandeza de Rey; mas fallo pela vontade, que tem de ali se agazalhar com nosco”.30 Note-se que a designação de quarto, enten-

dida à luz do vocabulário da época, se refere a um conjunto de divisões que formam o aposento real. Ainda assim, podemos entender pela descrição que o redactor faz desse aposento – “asas limitado, para grandeza de Rey” – que não seria muito grande, ficando integrado na tipologia colegial. Apesar de não termos acesso à planta podemos aferir que o quarto real se localizava na confluência de dois corredores – “que correm hum de Norte a Sul, em correspondencia ao quarto del Rey; e o outro de Poente a Oriente indo topar no mesmo quarto real”31. A relação entre os diferentes espaços que formariam a residência real é vagamente descrita pelo padre João Cabral: “estes quartos são casas que fiquão huas sobre as outras. e sobre as da Rainha casas para a Camareira mor, e suas companheiras”.32 Relativamente ao projecto da zona destinada aos jesuítas, são descritas alterações33 feitas pelo arquitecto régio a versões anteriores, que vão certamente ao encontro dos pedidos dos inacianos. Emenda-se a sacristia de forma a torná-la mais luminosa – “fazendo que suba asima a tomar lux no alto; e não fique debaixo do dormitorio; aonde fiquava acanhada; e falta de lux” –, normaliza-se a largura dos corredores “fazendosse todos da mesma largura, que he de 20 palmos”, à excepção de um de menor largura que está já construído entre duas paredes mestras, e altera-se a localização de uma capela. Equaciona-se a altura do edifício — “dava a esse dous andares, que ficavão na altura, pouco mais, ou menos dos de Santo Antão, mas velyousse34, que ficava o andar de sima, muy ventoso e menos accomodado” – e apresentam-se várias opções para a localização das enfermarias, alertando que em relação ao que ainda se projecta “pode aver facilmente mudança” se o padre geral assim o entender.

26

ARSI, FG 1588, 18, 04.

27

ARSI, Lus. 85, 401-403.

31

ARSI, Lus. 85, 402v.

28

Leia-se examinada.

32

ARSI, Lus. 85, 402v.

29

ARSI, Lus. 85, 402.

33

Idem.

30

Idem.

34

Leia-se avaliou-se.

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Fig. 4 - “Planta primeira do sitio do Collegio da Companhia de IESUS de Santarem”, 1673 [data da aprovação da planta por parte do padre geral João Paulo Oliva]. BPE, GAV 8, Pasta 1, nº10.

O padre João Cabral dá ainda conta do andamento das obras e dos custos, demostrando ao geral que o monarca tem auxiliado muito a construção: “tudo o que fazemos para el Rey sempre custosa uns cinco mil cruzados; mas o que ele nos dá no risco; paredes feitas para igreja e dormitorios e pedra daluenaria; e cantaria, sisternas feitas que ia35 dão água para as obras (...). E depois nos fiquão servindo e são de obra firme”.36 35

Leia-se já.

Ao que parece, o rei terá ajudado mais na construção do colégio do que havia acordado inicialmente, uma vez que no documento de doação refere apenas as seguintes ajudas em material: “os ditos Padres farão todos os gastos dos cortes e carretos (...) porquanto sua Magestade lhe não dará mais que a ditta madeira (...) para a poderem cortar; e tambem lhe dara o dito Senhor a madeira para portas e janellas de seus quartos; e para o quarto da camareira mor e damas (...) farão os ditos padrez as portas e janellas necessarias de bordo ou carvalho, e toda a obra dos ditos paços ha de ser travegada, soalhada e ladrilhada, e madeirada e forrada por sima das madeiras de taboado singelo e serão obrigados os ditos padrez a mandarem cortar a ditta madeira na lua de Janeiro.” ANTT, Cartório dos jesuítas, maço 72, nº10. 36

O entendimento desta memória descritiva seria muitíssimo mais claro se confrontado com a planta, mas a dispersão dos documentos é efectivamente um grande entrave para o entendimento dos colégios jesuítas. Ainda equacionámos a hipótese desta memória se referir à planta relativa ao colégio de Santarém (Fig. 4), guardada na Biblioteca Pública de Évora, mas nem a distribuição espacial, nem a representação (no texto alude-se à representação de “tres linhas, que vão com pontinhos” que não surgem nesta planta) coincidem com o projectado nesta peça desenhada. Esta última planta, representa o culminar do longo processo de projecto. Note-se que apresentámos a “planta velha” e que essa se sobrepôs a uma primeira. A “planta nova” (que conhecemos apenas porque é referida na memória descritiva) é uma terceira versão. Estas três versões inserem-se naquilo que chamamos ante-projecto. Da intervenção do arquitecto régio podemos dizer que foram feitas pelo menos três versões, que culminaram numa quarta versão desenhada numa planta, também ela perdida, que corresponde à memória descritiva do padre João Cabral em 1648. Não sabemos se foram feitas ou enviadas mais versões entre 1648 e a data de envio da planta à guarda da Bibloteca Pública de Évora. Não sabemos em que data foi desenhada ou quem a assinou, mas sabemos que este foi o projecto aprovado em Roma em 1673 por João Paulo Oliva37, o padre geral da CJ, tornando-se esta na quinta versão conhecida do projecto e assumindo-se como a representação mais fiel daquilo que se pretendia para a traça do colégio de Santarém.38 E não em 1653 como tem sido divulgado, até porque nessa data o geral da Companhia era Goswino Nickel e não João Paulo Oliva. 37

Sobre esta planta ainda muito está por analisar. Note-se que as anotações no desenho são feitas por três diferentes mãos, como se pode atestar pelos diferentes grafismos. Note-se ainda que, para além de não estar localizada a memória descritiva, também equacionamos a hipótese de se ter perdido as plantas dos restantes pisos, uma vez que esta representa apenas o piso inferior (“Planta primeira”). 38

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CONSIDERAÇÕES FINAIS Quando Inácio de Loyola fundou a CJ dificilmente imaginaria o impacto que esta teria no mundo inteiro. O crescimento galopante do parque edificado jesuíta, espalhado pelos quatro cantos do mundo e aliado a directivas muito específicas de utilização dos seus edifícios, exigiu aos dirigentes da CJ uma rápida resposta, de forma a garantir o cumprimento dos princípios inacianos. Foi criado um bem estruturado sistema de controlo, que foi aperfeiçoado à medida das necessidades, pelos diferentes padres gerais que sucederam a Santo Inácio. A análise do processo relativo ao colégio de Santarém revela que este sistema de licenciamento era rigoroso, moroso e que até os arquitectos civis se ajustavam aos princípios emanados das constituições e congregações gerais do instituto religioso. O arquitecto não se sujeitou à autoridade do padre geral, mas procurou propor soluções que fossem de encontro às necessidades dos utilizadores e da função do edifício, acatando a ratione aedificiorum e o modo nostro jesuíta. Mais do que encontrar plantas relativas aos edifícios, consideramos fundamental entender

o processo, e para isso a peça desenhada é insuficiente. As memórias descritivas e a correspondência trocada entre os diferentes agentes do processo – desde o encomendador, ao utilizador, passando pelo projectista e pelo supervisor - são fundamentais para entender o que era realmente importante para os jesuítas e o que traça nos seus edifícios uma linha condutora. A questão da historia arquivística é particularmente importante para a comunidade científica que estuda a Companhia de Jesus. Apesar de todos os esforços, nem Vallery-Radot nem Edmond Lamalle, conseguem encontrar respostas concretas relativamente à razão que levou ao desmembramento dos projectos dos edifícios ou à sua limitação cronológica. Apesar de lançarem algumas hipóteses (não confirmadas), não se consegue aferir o porquê de só existirem desenhos e os mesmos serem relativos apenas aos dois primeiros séculos de existência da CJ. Urge pois, entender a história arquivística dos diferentes acervos e tomar como prioritária a reorganização do projecto como um todo, reunindo peças gráficas com peças manuscritas.

FONTES FONTES PRIMÁRIAS Arquivo Nacional Torre do Tombo, Lisboa ANTT, Cartório dos jesuítas, maço 5. ANTT, Cartório dos jesuítas, maço 68. ANTT, Cartório dos jesuítas, maço 72. Archivum Historicum Societatis Iesu, Roma ARSI. Lus. 39, f. 127. ARSI, Lus. 85, f. 383 a 384v. ARSI, Lus. 85, f. 399 a 400v.

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ARSI, Lus. 85, f. 401 a 403. ARSI, FG 1588, 18. Biblioteca Pública de Évora, Évora BPE, GAV 8, Pasta 1, nº10. FONTES SECUNDÁRIAS Bösel, Richard. 2012. “La Ratio aedificiorum di un’istituzione globale tra autorità centrale e infinità del territorio”. La arquitectura jesuítica. Actas del Simposio Internacional Zaragoza, 9, 10 y 11 de diciembre de 2010: 41-71.

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Rodrigues, Francisco. 1938. História da Companhia de Jesus na Assistência de Portugal. Tomo 2, Vol.1. Porto: Apostolado da Imprensa. Rodrigues, Francisco. 1944. História da Companhia de Jesus na Assistência de Portugal. Tomo 3, Vol.1. Porto: Apostolado da Imprensa.

Vallery-Radot, Jean. 1960. Le recueil de plans d’edifices de la Compagnie de Jésus conservé a la Bibliothéque Nationale de Paris. Roma: Bibliotheca Instituti Historici S.I, nº XV.

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