De sangue, ossos e sopro

July 26, 2017 | Autor: Vanessa Rodrigues | Categoria: Essays, Colm Toibin, Erri De Luca
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De sangue, ossos e sopro: duas novelas sobre Maria

Vanessa C. Rodrigues

Eu devia ter uns seis ou sete anos quando achava que a idade adulta (e toda a liberdade a ela associada) chegaria aos dezessete, idade em que minha mãe foi mãe pela primeira vez. Os meus dezessete não demoraram muito, mas finalmente chegaram, sem que nada de muito intenso mudasse: continuei a ser uma filha adolescente, cuja vida era mais ou menos facilitada por ainda não ser de fato uma adulta. Mas neste ano em que faço trinta anos, exatamente a idade que minha mãe tinha quando eu nasci, sinto com estranheza ter me tornado, integralmente, uma mulher. A partir dos próximos aniversários, eu serei mais velha que minha mãe. É, de certo modo, como se a tivesse perdido num cruzamento de tempos. Não obstante minhas convicções a respeito da maternidade, chegou o tempo em que devia ser abandonada por Ártemis, a deusa, que me deixou neste lado da vida civilizada, responsável e adulta e seguiu, segurando em seus braços um vazio, o do filho que não tive (e que, presumo, nunca terei). Ártemis, segundo a mitologia grega1, é a deusa das zonas limítrofes, cuida da fronteira entre a floresta e a cidade, entre a selvageria e a civilização, entre a infância e a vida adulta. É a deusa do parto, o momento que marca o fim de um cuidado e o início de outro. Ártemis cuida da filha até que se torne mãe. E talvez a aceitasse de volta se, tragicamente, o papel de mãe fosse interrompido. Não é de todo espantoso que seja justamente em seu templo que Maria, a que foi concebida por Colm Tóibín, busca consolo décadas depois de ter presenciado a tortura e a morte de seu filho, Jesus. Em O testamento de Maria2, o escritor irlandês Colm Tóibín dá voz a uma Maria já envelhecida, exilada e a todo tempo interrogada pelos discípulos de seu filho, que, àquela altura, escreviam os evangelhos. Neste romance conhecemos uma mulher triste, solitária, que nunca acreditou de corpo inteiro que fosse mãe do filho de Deus, que 1

Ver: VERNANT, Jean-Pierre. A morte nos olhos: figurações do outro na Grécia Antiga, Ártemis, Gorgó. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988. 2 No Brasil, publicado pela Cia. das Letras em 2013, com tradução de Jorio Dauster.

desconfia dos milagres, que atribui sua crucificação aos fanáticos tolos que o rodeavam desde muito jovem. Não teme contar sua versão desconfiada aos evangelistas, mas sabe que a história não será contada com as suas palavras, as de uma mulher, que só por isso valiam pouco. Em nenhum momento ela chama seu filho de Jesus, ou de messias. E ironiza as palavras enormes (eterno, todos, salvação) usadas pelos homens que a rodeavam — pois é na linguagem que o mito é descontruído. Ela não chegou a ver seu filho morrer porque fugiu da colina das cruzes com medo de também ser presa enquanto ele ainda agonizava com as dores das feridas dos cravos. Também não o viu ressuscitar, apenas sonhou com isso — um sonho compartilhado com Maria Madalena, sua companheira na fuga. Também foi apenas em sonho que segurou o corpo frio e pálido de seu filho morto: aqui, a Pietà é uma imagem noturna. Maria não frequenta mais a sinagoga. Teme ser reconhecida e perseguida, tanto por seus opositores como, pior, pelos mesmos fanáticos que se amontoavam ao redor de seu filho. Feita “tanto de sangue e ossos quanto de memória” (e não de espírito milagroso, nem de fé), Maria se move por este mundo, o humano, e só encontra paz no templo da deusa pagã que ficava próximo da casa onde se escondia. Sem temer a ira de Deus pelo pecado de adorar um ídolo, Maria comprou de um prateiro uma pequena estátua de Ártemis. Talvez ela já não acredite em mais nada, ou quem sabe tenha se afastado de suas convicções religiosas por achar impossível que um deus masculino entenda o sofrimento de uma mulher que deixa violentamente de ser mãe. E tudo piora quando é justamente ele, o próprio Deus Pai, que lhe arranca o filho de maneira tão brutal. A Maria humana de Tóibín, em nada semelhante àquela da iconografia religiosa (a mulher de semblante calmo, sentada sobre um trono, segurando um bebê saudável rodeada de anjos), talvez tivesse percebido que estava mais próxima da deusa pagã do que dos anciãos da sinagoga; talvez lhe fosse mais fácil adorar, pela semelhança, uma deusa virgem que também tenha sido mãe e que assim como ela perdeu seus filhos para o outro mundo (Maria, para o céu de onde não vem mais nenhuma voz; Ártemis, para o mundo da cidade adulta). Em O testamento de Maria, não sabemos da anunciação, da milagrosa e pura concepção, nem da natividade. A história começa a partir do ponto em que tudo isso já era passado, memória, quando tudo isso já não importava mais, pois não consolava. Os relatos de Maria são de uma mãe comum, humana, não fossem os mistérios para os quais perde seu filho antes mesmo da condenação à cruz. E como tentativa de consolo

do inconsolável, ou de explicação do inexplicável, os homens que a interrogam lhe dizem que era assim que tudo tinha de ser, que a morte do seu filho estava prevista pelos profetas, e que ele morreu para redimir o mundo: “(...) quando você diz que ele redimiu o mundo, eu digo que não valeu a pena. Não valeu a pena.” Mas há ainda outro desvio no livro: o de que ser mãe é colocar os filhos diante de todo o resto, mesmo da própria vida, da própria segurança. Pois Maria, temendo ser pega pelos romanos, abandona o lugar da crucificação, deixa para trás o corpo agonizante de seu filho, já que nada poderia fazer para impedir o inevitável. Ela não sabe se o corpo terá um funeral adequado, se sua morte será rápida ou se ele vai sofrer por muitas horas. Se pudesse subir naquela cruz e despregar seu filho dela, não há dúvidas que o faria. No entanto, nada mais urgente que proteger o próprio corpo. Essa é, para mim, a cena que mais humaniza Maria. Pois não é só da santidade e da fé que ela foi afastada no romance. Também do amor sobre-humano, incondicional e perfeito que dizem nascer com a maternidade. O céu de Maria tornou-se noturno, um espaço em que nada se ouve e cuja superfície não é atingida com as palavras anunciadas: só se percebe um silêncio vindo de lá, assim como nada dito aqui mudará as coisas. Dizer devolva-me o filho não o ressuscitaria. Maria já não ora. “E o dia, também, é de todo indiferente a qualquer coisa que se diga.” Perderam a força as palavras de outro tempo. Pois teria sido com um sopro de palavras que Maria engravidou de Deus.

Em outro livro curto e igualmente intenso, o escritor italiano Erri de Luca também dá voz a Maria, ou a Miriam, seu nome em hebraico. Em nome da mãe3 é o relato poético, também em primeira pessoa, da mesma e ao mesmo tempo outra personagem. Mais próxima dessa vez da imagem que se faz da Maria da Bíblia, Miriam é uma mulher inocente que não duvida nem por um momento que carrega no ventre o filho de Deus. Nesta obra, sabemos o que ela teria sentido desde o momento da anunciação do anjo, que com um sopro abriu o espaço em seu corpo fechado, até a noite do nascimento de seu filho, na manjedoura. Sua fé inabalável a Deus não a faz temer nem mesmo aos castigos a que poderia ter sido submetida por ter se casado grávida. Miriam foi forte, apesar de sua ignorância (as mulheres não liam, não conheciam as leis) e de sua fragilidade (era praticamente uma menina). Manteve-se firme durante a viagem

3

No Brasil, publicado pela Cia. das Letras em 2007, com tradução de Rosa Freire d’Aguiar.

a Belém, demonstrava a segurança necessária para que seu marido Iosef não duvidasse dela ou dos propósitos divinos. Mas o filho deixou de ser uma promessa anunciada, que crescia milagrosamente em seu ventre, e passou a ser outro, um varão do lado se fora de seu corpo. Já não era mais sopro divino pesando em seu corpo, era outro corpo, um menino de quem ela já não queria se separar. É o mesmo rosto que vejo nos dois livros: Miriam é Maria em outro ponto do tempo, o de inocência e fé, quando a morte ainda não fazia parte de seus dias. Pelo contrário, Miriam é preenchida da vida de seu filho, tudo lhe parece inaugural, fresco e iluminado. Maria, no entanto, carrega em seu corpo velho as memórias do vazio de seus braços, a imagem da morte, a solidão e o desencanto. E a beleza da literatura está nesse emaranhado de imagens que construímos com nossa experiência — de leitura, mas principalmente a do corpo. Em ambos os livros é o mesmo rosto que vejo, um rosto que lembra o rosto de minha mãe, um rosto parecido com o meu. Nos últimos parágrafos de Em nome da mãe, Miriam pede a Deus que se esqueça de seu filho, que volte atrás, que faça de seu Ieshu um judeuzinho regular, com uma vida comum, que afaste dele os seus propósitos eternos, que ele seja seu projeto abandonado. Mas ela sabia, não haveria volta. Restava-lhe aproveitar a noite, as horas de privacidade que ainda tinha com seu filho. Ali, talvez ainda ligado pelo umbigo à sua mãe, não era o santo, mas um menino, que mamava nos seios de Miriam. Viesse o sol iluminar a manjedoura, nada mais se poderia fazer que cumprir o que estava escrito nos céus. O tempo não se impede. É irreversível o tempo, disse a outra Maria, “(...) que transforma um bebê tão indefeso num menino (...), e depois cria um rapaz, dono de suas próprias palavras, pensamentos e sentimentos secretos.” Não se para o tempo que transforma o corpo minúsculo da filha num corpo maduro e fértil e aumenta os números dos anos até que se chegue (e ultrapasse) à idade da mãe. É o tempo que solta a criança dos braços de Ártemis e deixa ali um espaço disponível que talvez nunca se preencha.

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