De Viollet-le-Duc ao restauro crítico e à Carta de Veneza: aproximações teóricas e práxis do restauro em Salvador, Bahia (1957-64)

September 22, 2017 | Autor: Nivaldo Andrade | Categoria: Conservação e restauro, Carta de Veneza, Eugène Viollet-le-Duc, Bahia
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De Viollet-le-Duc ao restauro crítico e à Carta de Veneza: aproximações teóricas e práxis do restauro em Salvador, Bahia (1957-64) Nivaldo Vieira de Andrade Junior Doutor em Arquitetura e Urbanismo, Professor da Universidade Federal da Bahia, Salvador, Brasil, [email protected] RESUMO: Este trabalho analisa as influências teóricas e o resultado prático de três projetos realizados entre o final da década de 1950 e o início da década seguinte em conjuntos ou monumentos tombados localizados no Centro Histórico de Salvador ou em seus arredores: o restauro do Convento de Santa Teresa e sua adaptação em Museu de Arte Sacra da Universidade da Bahia (1957-1959), o restauro do conjunto do Unhão e sua adaptação em Museu de Arte Moderna da Bahia (1961-1963) e o edifício Ipê, pequena construção de uso misto situada em um terreno no Centro Histórico de Salvador (1964). PALAVRAS-CHAVE: projeto de restauração, teoria do restauro, Salvador.

INTRODUÇÃO Através da análise de três projetos paradigmáticos realizados no Centro Histórico de Salvador, Bahia, ou em seus arredores, entre o final da década de 1950 e a primeira metade da década de 1960, este trabalho pretende identificar as influências teóricas e a práxis projetual do restauro arquitetônico em Salvador naquele período. Os projetos analisados são o restauro do Convento de Santa Teresa e sua adaptação em Museu de Arte Sacra da Universidade da Bahia, concebido e executado entre 1957 e 1959 pelos arquitetos Wladimir Alves de Souza e Geraldo Câmara, sediados no Rio de Janeiro; o restauro do conjunto do Unhão e sua adaptação em Museu de Arte Moderna da Bahia, coordenado pela arquiteta italiana Lina Bo Bardi – então residente na Bahia – e desenvolvido entre 1961 e 1963; e o projeto do edifício Ipê, uma pequena construção de uso misto erguida em 1964 em um terreno no Centro Histórico de Salvador pelo arquiteto baiano Paulo Ormindo de Azevedo, que pode ser entendido como um restauro urbano, pela abordagem conceitual e projetual adotada pelo seu autor. A análise destas três intervenções se baseia em uma aprofundada pesquisa em documentos textuais, cartográficos e iconográficos existentes em diversos acervos, com destaque para o Arquivo da Superintendência da Bahia do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN/BA).

O MUSEU DE ARTE SACRA DA UNIVERSIDADE DA BAHIA (MAS-UB) O conjunto arquitetônico formado pela Igreja e pelo Convento de Santa Teresa, erguidos no último quartel do século XVII no Sodré, na periferia sul da cidade, foi tombado pelo IPHAN em 1938 e encontrava-se em estado de progressivo arruinamento em 1953, quando o Seminário Arquiepiscopal que o ocupava desde 1836 foi transferido para uma nova sede, no distante bairro da Federação. Preocupado com o arruinamento de tão importante monumento, o Reitor da Universidade da Bahia, Edgar Santos, obtém em 1957 do Arcebispo a cessão do complexo arquitetônico e encarrega os arquitetos Wladimir Alves de

Souza e Geraldo Câmara, que já vinham desenvolvendo outros planos urbanísticos e projetos arquitetônicos para a Universidade da Bahia, de elaborar o projeto de restauração e adaptação do conjunto. Embora não tenhamos identificado, na nossa pesquisa, nenhum memorial justificativo que registre a fundamentação teórica do projeto de restauro do Convento de Santa Teresa elaborado por Alves de Souza e Câmara, a comparação dos registros fotográficos do estado do imóvel antes e depois da intervenção, associada à leitura dos pareceres e documentos existentes sobre o mesmo no arquivo do IPHAN/BA, nos permitem perceber o afã dos arquitetos em conduzir o edifício a uma versão idealizada de como ele deveria, no seu ponto de vista, ser – independentemente dos registros históricos existentes e do valor documental do edifício no estado em que se encontrava, resultante de sucessivas intervenções ao longo dos séculos. É preciso ressaltar que, nos anos 1940 e 1950, essa visão do restauro como reestabelecimento de um estado completo que pode não ter existido nunca em um dado momento, como conceituaria Viollet-le-Duc, e que cria falsos históricos e falsos artísticos – e que encontramos no restauro do Convento de Santa Teresa – era recorrente em diversas intervenções então realizadas no Brasil e era a prática corrente no próprio IPHAN, como destacou Sérgio Miceli.1 Em 12 de novembro de 1957, Rodrigo Mello Franco de Andrade, Diretor do IPHAN, encaminha a Godofredo Filho, Chefe do Distrito do IPHAN na Bahia, “cópia do programa de utilização do antigo Convento e Igreja de Santa Teresa, elaborado pelo arquiteto da Universidade da Bahia, em colaboração com o Dr. Renato Soeiro”, acompanhada da “planta do aludido monumento com indicação dos serviços de adaptação e melhoramento pretendidos”. Na ocasião, Rodrigo sugere que seja “ouvido a respeito o arquiteto Diógenes Rebouças”, que era o mais importante arquiteto da Bahia à época e constante colaborador do IPHAN/BA.2 Os embates entre Godofredo Filho, Diógenes Rebouças e seus colegas do IPHAN/BA, de um lado, e os “arquitetos do Reitor”, do outro, seriam constantes e intensos ao longo de todo o processo de restauração do Convento de Santa Teresa, que se encerraria dois anos depois, em 1959.3 Esses embates ocorreram seja pela ausência de um verdadeiro projeto de restauração, já que o “Roteiro dos trabalhos de restauração” encaminhado à análise do IPHAN se resumia a uma listagem itemizada dos serviços a serem realizados, acompanhado de uma planta4, seja pela pouca frequência de Alves de Souza – verdadeiro responsável pelo projeto – no canteiro de obras de Santa Teresa, seja ainda pelas polêmicas soluções projetuais adotadas por Alves de Souza e Câmara. Os aspectos mais polêmicos da restauração foram aqueles relativos à fachada leste do convento. Como consequência de todo o processo de transformações pelas quais o complexo arquitetônico tinha passado ao longo dos seus quase 300 anos, a fachada leste se encontrava, em 1958, configurada por vãos de portas e janelas das mais diversas dimensões e formas, com vergas ora retas, ora arqueadas, e sem qualquer vestígio de “ordem” que pudesse presidir àquela composição caótica – ainda que, por isso mesmo, representativa da atribulada história do monumento. Frente à proposta apresentada por Alves de Souza visando à regularização destes vãos, a primeira ação realizada pelo IPHAN/BA, em março de 1958, foi elaborar “uma perspectiva do Convento de Santa Teresa, devida ao Arquiteto Diógenes Rebouças, à base dos últimos estudos que fizemos juntamente e nos possibilitaram uma recomposição das fachadas quais tivessem sido no século XVII”.5 A uma preocupação eminentemente estética de Alves de

Souza, a equipe do IPHAN/BA contrapõe uma ideia de restauração fundamentada em pesquisas históricas e na vetustez e na austeridade características do edifício, como informa Godofredo Filho a Rodrigo Mello Franco de Andrade: Convocando [Diógenes] Rebouças e Fernando [Machado Leal], debatemos amplamente com o Geraldo Câmara, in loco, os vários projetos apresentados para a restauração do Convento e sua adaptação às novas finalidades do Museu de Arte Sacra. Fachada principal e lateral esquerda – [...] sugerimos a anulação de certo [sic] vãos cuja abertura estava prevista, bem como pleiteamos a manutenção de outros, antigos, o que, a nosso ver, contribuirá enormemente para que as fachadas em aprêço conservem algo de sua nobreza primitiva, muito prejudicada pelo propósito de dar-lhes uma ordem e simetria convencionais.6

Provavelmente preocupado com um iminente conflito entre a equipe do IPHAN/BA e os “arquitetos do reitor”, Rodrigo solicita a Godofredo, por telegrama, esclarecimentos sobre os fundamentos das objeções por ele apresentadas quanto ao projeto elaborado por Alves de Souza e Câmara. A resposta de Godofredo é esclarecedora dos conflitos existentes: Os fundamentos em aprêço [...] dizem mais respeito à modenatura do edifício do que mesmo ao programa de sua adaptação às finalidades previstas, com o qual em grande parte transigimos, menos atentos aos prejuízos ao presente que aos benefícios de ordem geral trazidos pela restauração. Sôbre as fachadas, achamos que os vãos ora propostos, a serem rasgados com monotona simetria, bem como o cegamento de outros, quebrariam por completo a linha tradicional do edifício, trazendo-lhe um desequilíbrio de composição que, no caso, é mais visível do que propriamente explicável. Fomos, p. ex., pela manutenção daquele vão de verga em arco abatido, acesso ao porão pela fachada principal, por considerá-lo, não tanto valioso em si mesmo, mas necessário ao conjunto, à falta de outros elementos que o substituam com propriedade. Ou mantê-lo, ou cegá-lo, mas nunca permitir os três vãos desenhados para o 7 local.

Para referendar seu posicionamento, Godofredo se vale da autoridade de dois dos mais renomados colaboradores do IPHAN então de passagem por Salvador: o mineiro Sylvio de Vasconcellos e o carioca Paulo Santos, ambos respeitados historiadores da arquitetura brasileira: [...] Ficamos muito confortados com a presença, aqui, do Sílvio e Dr. Paulo Santos, que, visitando com vagar Santa Teresa, concordaram integralmente com os pontos de vista defendidos por êste Distrito, e o Sílvio, com o maior ardor, condenando as soluções que impugnamos e ainda apontando outras falhas, a seu ver graves, a carecerem de pronta reparação. [...] Também, de referência aos vãos de verga abaulada do pavimento térreo da fachada principal (antiga porta de acesso ao porão), são unânimes em considerá-lo absolutamente necessário do equilíbrio do conjunto. Deverá ser mantido e, não, cegado como, 8 em última instância, pretende o Geraldo.

Entretanto, não foi o que ocorreu: prevaleceu o projeto simétrico e ordenador idealizado por Alves de Souza e Câmara, e nem mesmo os “vãos de verga abaulada do pavimento térreo da fachada principal” foram poupados, sendo substituídos por novos vãos com vergas retas. Diversas outras soluções adotadas pelos “arquitetos do reitor” desagradaram à equipe do IPHAN/BA. Se o restauro conduzido por Alves de Souza no Convento de Santa Teresa se aproxima da teoria e práxis viollet-le-ducquianas ao criar falsas janelas antigas eliminando aberturas centenárias, visando alcançar um ideal estilístico que, na prática, nunca se efetivara no edifício, o seu discurso ia na direção contrária, defendendo que “hoje, à idéia de reconstruir a obra como deveria ser, substitui-se a idéia de preservar a contribuição das

gerações” e afirmando ter “sempre pensado em não falsificar soluções, em deixar evidenciado o que se fez de novo, sem, contudo permitir a rutura da unidade geral”. 9

Figuras 01 e 02: Fachada leste do convento: à esquerda, durante a restauração, podendo ser observados alguns vãos com vergas arqueadas; à direita, após a restauração, com a “ordenação” dos vãos, que passam todos a ter dimensões semelhantes e vergas retas (Arquivo fotográfico do IPHAN/BA)

O MUSEU DE ARTE MODERNA DA BAHIA (MAMB) Em 1961, dois anos após a inauguração do Museu de Arte Sacra no Convento de Santa Teresa, tem início, nos arredores do Centro Histórico de Salvador, outra intervenção voltada à restauração de um conjunto arquitetônico tombado, igualmente visando transformá-lo em museu. O Conjunto do Unhão, erguido, a partir do século XVII, às margens da Baía de Todos os Santos, na periferia sul da cidade, tinha como função original recolher e exportar a produção de engenhos do Recôncavo. O solar – construção mais antiga do conjunto – e a Igreja de Nossa Senhora da Conceição – reconstruída com a feição atual em 1794 – haviam abrigado, do século XIX até a primeira metade do século XX, usos como fábrica de rapé e trapiche, no caso do solar, e serraria, no caso da igreja. O conjunto estava formado ainda por uma fonte, um chafariz, um aqueduto, um alambique e uma série de galpões. Agregados às edificações principais, haviam sido construídos ao longo dos anos uma série de pequenos anexos, resultando em uma paisagem confusa. Em 1961, o conjunto foi declarado pelo Governo do Estado da Bahia como sendo de utilidade pública para fins de desapropriação. O objetivo da desapropriação era “servir a finalidades educativas do Museu de Arte Moderna [da Bahia]” 10, criado em 1959 pelo Governador Juracy Magalhães, que havia nomeada a arquiteta de origem italiana Lina Bo Bardi para o cargo de diretora executiva do MAMB. Em janeiro de 1960 o MAMB foi inaugurado em instalações provisórias no foyer do Teatro Castro Alves, onde foram promovidas exposições memoráveis de artistas plásticos locais,

brasileiros e estrangeiros. Entretanto, com o início das obras de reconstrução do Teatro Castro Alves, era preciso que o MAMB encontrasse um nova e definitiva sede, e para tanto foi escolhido o Conjunto do Unhão. O projeto de restauração e adaptação foi elaborado pela própria Lina Bardi, e as obras tiveram início em 1962. Em 3 de novembro de 1963 o conjunto foi aberto ao público, abrigando o Museu de Arte Popular do Unhão (MAPU), as respectivas oficinas e o MAMB. Na restauração do Unhão, Lina se baseou na teoria do restauro crítico, então pouco conhecida no Brasil; é provavelmente a primeira intervenção no Brasil baseada nesta teoria. A própria Lina ressaltou essa filiação teórica no documento “Critério Proposto para a Recuperação do Solar do Unhão”, encaminhado por ela ao Chefe do IPHAN/BA, Godofredo Filho, em 14 de agosto de 1962, como um “memorial justificativo” do projeto de restauração então encaminhado para apreciação do IPHAN: O velho método romântico de ‘recomposição’ inaugurado no século XIX por Viollet-le-Duc, foi superado depois, e substituído pelo método da ‘restauração científica’, cujo principal representante foi o prof. Giovannoni, na Itália são ambos não sòmente superados, mas inúteis, nêste caso típico de moderna ‘restauração crítica’. [...] O critério da ‘restauração crítica tem por base o respeito absoluto por tudo aquilo que o monumento, ou o conjunto representam como ‘poética’ dentro da interpretação moderna da continuidade histórica, procurando não embalsamar o monumento, mas integrá-lo ao máximo na vida moderna. O conjunto do Unhão é, por si mesmo, um caso de restauração crítica, não apresentando peculiar interesse como documento arquitetônico em si mesmo mas sim no conjunto, possuidor como é duma poética estritamente ligada à expressão mais direta da Cidade do Salvador. Na definição ‘conjunto’, incluímos também os galpões construídos no século XIX, humildes em si mesmos mas estritamente ligados hoje, ao Solar, formando, com a massa dos telhados, um conjunto harmônico, marcante como paisagem na beira do mar. O Solar, com a esplendida estrutura interna, belíssimo exemplo de carpintaria naval, com as janelas abrindo diretamente sôbre o mar, e a possante estrutura em arcos de descarga do sub-solo, o àtico com as colunas em madeira de lei, a estrutura do telhado a vista, e a solução do grande rufo de cobre, não oferece mais hoje um exemplo de arquitetura colonial mas assumiu um bem definido caráter que poderíamos definir ‘marinho’, característico da Bahia. A Igreja isolada à esquerda, constitue, na elegante restauração do tardo barroco, um monumento à parte, um volume ‘de lado’, mas bem integrado à distribuição dos espaços ao ar livre que se abrem em duas praças, uma interna, fechada, e outra aberta, à beira mar. Sendo estas as características do Conjunto do Unhão, o critério a ser adotado no trabalho de restauração, tem que ser o do mais cauteloso e rigoroso respeito pelo que existe. Conservação do monumento como é, limitando-se o trabalho, a uma substituição de materiais deteriorados, respeitadas todas as características dêles. As demolições serão limitadas àquelas poucas que confundem a ‘leitura’ exata do organismo arquitetônico; como os acréscimos lateral e do fundo da igreja, e o deselegante pórtico da frente, (que corta ao meio a ‘ordem única’ das pilastras da fachada), o muro a esquerda da igreja (aumentado recentemente), cuja demolição dará maior elan à mesma, especialmente hoje, que, destruído o verde do encôsto, o fundo da Igreja será o muro construídos a poucos metros pela ‘Avenida de Contôrno’.

A intervenção promovida por Lina Bardi no Unhão se vincula à teoria do restauro crítico ao entender que o complexo arquitetônico deve ser valorado tal qual chegou aos nossos dias, com toda a complexidade disso decorrente, e que somente os elementos que comprometem a sua artisticidade podem ser eliminados. Visando resgatar a coerência formal do complexo e a sua poética – palavra tão cara à arquiteta –, bem como permitir o novo uso que garantiria ao monumento a sua reintegração à vida moderna, diversos galpões de construção recente

ou que comprometiam a unidade estética do conjunto foram demolidos. Da mesma forma, outros galpões do século XIX foram preservados pois, ainda que “humildes em si mesmos”, estão “estritamente ligados hoje, ao Solar, formando, com a massa dos telhados, um conjunto harmônico, marcante como paisagem na beira do mar”.

Figuras 03 e 04: Conjunto do Unhão: à esquerda, em 1959, antes da restauração; à direita, em 1963, após a restauração (Arquivo fotográfico do IPHAN/BA)

Lina Bardi foi ainda pioneira na aceitação e incorporação das características do Conjunto do Unhão em toda a sua complexidade histórica, preservando e restaurando não só alguns dos galpões construídos no século XIX mas também o monta-cargas, o guindaste, os trilhos e outros elementos vinculados ao passado industrial do complexo. Alguns anos depois, a própria Lina Bardi reconheceria o pioneirismo do restauro do Unhão na arqueologia industrial brasileira e seu aspecto precursor ao incorporar os preceitos que, imediatamente depois, seriam consolidados na Carta de Veneza: O Conjunto do Unhão é importante por representar um dos primeiros exemplos (se não o 1º) de Arqueologia Industrial, isto é: uma restauração não somente limitada à recuperação até o século XVIII, mas uma recuperação dedicada também à documentação do ‘trabalho’ e de um território, neste caso, uma ‘fábrica’ do começo do século XIX. O conjunto do Unhão é uma antecipação dos princípios de restauração fixados posteriormente em campo internacional 11 pela Carta de Veneza (1964-65) .

O EDIFÍCIO IPÊ O edifício Ipê (1964-65) é uma nova edificação de uso misto erguida em um terreno de esquina cercado por sobrados dos séculos XVIII e XIX, em pleno Centro Histórico de Salvador, já à época um sítio tombado nacionalmente. O projeto foi elaborado pelo jovem arquiteto Paulo Ormindo de Azevedo, então colaborador do IPHAN/BA. A análise do edifício Ipê e de um memorial justificativo publicado pelo autor logo após a inauguração do edifício na revista Arquitetura, do Instituto de Arquitetos do Brasil demonstra que a sua abordagem ao desafio de projetar em um ambiente patrimonial já apresenta diversos pontos de contato com as teorias do restauro crítico italianas do segundo pós-guerra e com a Carta de Veneza, ainda que Azevedo afirme que não tinha, até então, travado qualquer contato com esses conceitos e teorias12. No edifício Ipê, ao ocupar a totalidade do terreno com a nova edificação, evitando recuos exógenos ao contexto, e ao repetir a altura e a cobertura em telhas cerâmicas, dos sobrados vizinhos, Paulo Ormindo de Azevedo consegue estabelecer uma continuidade visual com as antigas edificações que lhe são vizinhas. A afirmação da sua modernidade, por sua vez, é obtida seja pela reinterpretação do ritmo das fachadas vizinhas, através da estrutura em

concreto aparente, seja pelos largos e salientes painéis horizontais de madeira treliçada que, à altura do primeiro pavimento, substituem os balcões das edificações tradicionais da zona, seja ainda pelo fechamento dos intercolúnios com painéis modulares de madeira ou pelas janelas quadradas e centralizadas dos dois pavimentos superiores.

Figura 05: Vista geral do Edifício Ipê a partir da Rua Monte Alverne (Foto realizada pelo autor, dez 2004).

Figura 06: Vista geral do Edifício Ipê a partir do Paço do Saldanha (Foto realizada pelo autor, dez 2004).

Nas suas próprias palavras, Azevedo pretendeu restaurar a ambiência daquele trecho do Centro Histórico, defendendo uma reintegração paisagística: A restauração não deve se limitar aos edifícios em separado. Deve recriar a atmosfera dos espaços externos como ladeiras, vielas, largos e encostas, através da restauração das relações de cores das calçadas e pisos, espécies vegetais, etc. A reintegração paisagística do conjunto com a cidade que cresceu em torno deve ser estudada a partir dos locais públicos de observação. [...] Especial atenção deve ser dada à abordagem do conjunto. A seqüência de emoções que culminam com o encontro do conjunto constitui a iniciação do observador à compreensão do monumento. Nos casos de demolições anteriores ao tombamento ou de acidentes que provocaram a ruína dos prédios ao ponto de impedirem a recuperação, a construção de edifícios com feição antiga é condenável. Não só pela inautenticidade, como pela impossibilidade de reproduzir com fidelidade, inclusive em sua rusticidade, edifícios do passado, quando já não existe o artesanato construtivo que os produziu. [...] Nestas situações o que se deseja são soluções válidas como expressão arquitetônica atual, embora orientadas na manutenção das linhas gerais de composição da quadra e na inalterância das relações de volume, textura e cor13.

O memorial justificativo do projeto do edifício Ipê, publicado em 1965 mas relativo a um projeto concebido no ano anterior, repete quase literalmente as ideias da Carta de Veneza de 1964, especialmente em seus artigos 6º (que combate “qualquer nova construção [...] que possa alterar as relações de volumes e cores”) e 12º (que determina que “os elementos

destinados a substituir as partes faltantes devem integrar-se harmoniosamente no conjunto, distinguindo-se, contudo, das partes originais”).

CONSIDERAÇÕES FINAIS A análise dos projetos do restauro do Convento de Santa Teresa e do conjunto do Unhão e o projeto arquitetônico do edifício Ipê permite demonstrar que, no curto período compreendido entre o final da década de 1950 e a primeira metade da década seguinte, ocorreu uma mudança significativa na práxis da restauração arquitetônica e urbana baiana, com o progressivo abandono de uma visão de restauro próxima daquela defendida e praticada por Viollet-le-Duc na segunda metade do século XIX e que ainda era dominante em Salvador no final da década de 1950 e a incorporação de referenciais teóricos mais recentes, de certo modo ainda hoje vigentes, em especial o restauro crítico. É importante ressaltar que muitos dos conceitos que seriam consolidados e alcançariam difusão internacional somente a partir de 1964, com a Carta de Veneza, foram adotados nos projetos de Lina Bo Bardi para o Conjunto do Unhão e de Paulo Ormindo de Azevedo para o Edifício Ipê.

REFERÊNCIAS E NOTAS 1

MICELI, S.. SPHAN: Refrigério da cultura oficial. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, nº 22, Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 1987, pp. 44-45. 2 Ofício no 1497, do Diretor do DPHAN, Rodrigo Mello Franco de Andrade, para o Chefe do 2º Distrito do DPHAN, Godofredo Filho, datado de 12 de novembro de 1957. Arquivo IPHAN/BA. 3 Para uma análise detalhada do projeto e dos embates citados, cf. ANDRADE JUNIOR, N.V. – Embates e visões do restauro nas gêneses do Museu de Arte Sacra da Bahia e do Museu de Arte Moderna da Bahia. In: GUIMARAENS, C. (org.). Museografia e Arquitetura de Museus. Identidades e comunicação. PROARQ/FAU/UFRJ, Rio de Janeiro, 2010, pp. 152-189. 4 “Roteiro dos Trabalhos de Restauração do Convento de Santa Teresa”. Documento datilografado, sem data. Arquivo IPHAN/BA. 5 Ofício no 66, de Godofredo Filho para Rodrigo Mello Franco de Andrade, \datado de 27 de março de 1958. Arquivo IPHAN/BA. 6 Carta no 53, de Godofredo Filho, Chefe do 2o Distrito da DPHAN, para Rodrigo Mello Franco de Andrade, Diretor do órgão, datada de 29 de novembro de 1958. Arquivo IPHAN/BA. Grifos nossos. 7 Carta nº 54, de Godofredo Filho para Rodrigo Mello Franco de Andrade, datada de 05 de dezembro de 1958. Arquivo IPHAN/BA. Grifos nossos. 8 Carta nº 57, de Godofredo Filho para Rodrigo Mello Franco de Andrade, datada de 16 de dezembro de 1958. Arquivo IPHAN/BA. 9 Apud MAIA, P.M. (Ed.). O Museu de Arte Sacra da Universidade Federal da Bahia. Banco Safra, São Paulo, 1987, p. 14. 10 Carta no 47, de Godofredo Filho para Rodrigo Mello Franco de Andrade, datada de 26 de agosto de 1961. Arquivo IPHAN/BA. 11 “Pró-Memória para uma Ação na Bahia – Recuperação e Revitalização do Conjunto do Unhão”, texto inédito de autoria de Lina Bo Bardi. 12 Em depoimento concedido pelo arquiteto Paulo Ormindo de Azevedo ao autor deste artigo. Azevedo, porém, havia sido aluno de Lina Bardi na disciplina “Teoria e Filosofia da Arquitetura” que ela ministrou no segundo semestre de 1958 no curso de Arquitetura da Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia. 13 AZEVEDO, P.O. – Reintegração de conjuntos arquitetônicos tombados. Arquitetura – Revista do Instituto de Arquitetos do Brasil, nº 36, Instituto de Arquitetos do Brasil, jun. 1965, p. 17.

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