DEAD MEN TELL NO TALES: A “IRMANDADE” DOS PIRATAS ATRAVÉS DOS ESTANDARTES DO TERROR E DA MORTE

June 6, 2017 | Autor: Leandro Duran | Categoria: Maritime Archaeology, Historical Archaeology, Maritime History, Piracy, Pirataria Marítima
Share Embed


Descrição do Produto

DEAD EN TELL NO TALES: A “IRMANDADE” DOS PIRATAS ATRAVÉS

LEANDRO DOMINGUES DURAN**

Resumo: o presente artigo faz uma breve análise do papel simbólico e prático daquele que pode ser considerado como o mais icônico elemento da cultura material associada aos grupos de marítimos que se dedicaram à prática da pirataria durante o período moderno de nossa história, qual seja: os estandartes e bandeiras navais do “senhor da morte”. Nesse sentido, são abordadas diferentes versões pictográficas de bandeiras piratas registradas por fontes históricas ou preservadas em instituições de memória, que são analisadas tanto a partir de seu papel como instrumentos bélicos de ação efetiva, quanto de sua importância como discurso não verbal revelador dos anseios e do conteúdo identitário desses grupos de excluídos sociais. Palavras-chave: Pirataria. Bandeira Pirata. Bandeira Negra. Bandeiras Navais. Simbolismo Naval

N

327

o âmbito das tradições navais, o uso de bandeiras e flâmulas se caracteriza como uma das expressões simbólicas mais antigas desenvolvidas pelas “gentes do mar”, tendo ocorrido não apenas como uma forma de comunicação eficiente, mas também como veículos de afirmação política e de identidade social. Na era digital, onde as conexões via satélite, as ondas de rádio e os sinais luminosos dominam o cenário das interações à distância perpetradas no espaço marítimo, esse poderoso instrumento ainda não perdeu seu valor e continua a reclamar e reafirmar seu lugar como um equipamento de fundamental importância. Nesse sentido, os pavilhões nacionais continuam a adornar a popa das embarcações militares, comerciais ou de lazer em todo o mundo, sendo uma

* Recebido em: 29.05.2012. Aprovado em: 22.06.2012. ** Doutor em Arqueologia pelo Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo. Mestre em História pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Professor no Núcleo de Arqueologia da Universidade Federal de Sergipe. Pesquisador voluntário do Ceans/ Nepam/Unicamp. E-mail: [email protected]

Goiânia, v. 10, n.2, p. 303-315, jul./dez. 2012.

DO TERROR E DA MORTE*

ARTIGO

DOS ESTANDARTES

Goiânia, v. 10, n.2, p. 327-339, jul./dez. 2012.

regra básica e imprescindível do direito marítimo, tanto internacional quanto aquele de âmbito mais restrito, associado às legislações dos diversos territórios nacionais. Apesar de sua importante função enquanto símbolo máximo de identificação dos diferentes estados politicamente constituídos, esferas de governo e outras instituições públicas, bandeiras e flâmulas também têm sido utilizadas como meios rápidos e eficazes de comunicação entre embarcações (como é o caso das bandeiras utilizadas pelas embarcações de mergulho), e como instrumentos de afirmação identitária de agremiações, comunidades ou outros grupos organizados da sociedade civil. Enquanto exemplares da cultura material de sua época, bandeiras e flâmulas associadas à tradição marítima inserem-se no domínio de interesse da arqueologia, apresentando um importante potencial interpretativo como expressões de uma forma de comunicação não verbal extremamente eficiente nesse espaço tão particular. Seu conteúdo apresenta, em geral, um alto referencial simbólico que pode nos informar muito acerca dos valores, crenças e propósitos dos grupos que as ostentaram ou ostentam. Todas as funções acima descritas interessam diretamente à discussão aqui pretendida que pode ser resumida como uma breve incursão ao universo da pirataria marítima desenvolvida durante os séculos XVII e XVIII, através da análise das várias bandeiras que foram, por esse período, desenvolvidas e arvoradas pelas diferentes tripulações de marginais do mar. Vistos e entendidos por seus contemporâneos como uma corja desprezível de malditos, esses indivíduos povoaram o imaginário da gente comum ao ponto de terem mesmo se transformado em homens bestializados, verdadeiros demônios em forma humana. Essa condição permitiu, nos séculos subsequentes, que os “piratas” compartilhassem do mesmo status de seres mitológicos como bruxas e vampiros, o que lhes garantiu o acesso ao universo mágico infantil (CORDINGLY; FALCONER, 1992; DURAN, 2011). A exemplo desses outros seres mitológicos, os piratas também se vêem intimamente associados a uma série de representações simbólico-materiais que lhes garante uma identidade particular, como são a perna de pau, o papagaio, o tapa-olho e, principalmente, [...] a bandeira negra com a estampa da imagem da caveira e as duas tíbias entrecruzadas, a famosa “Jolly Roger”. Essa última talvez seja o maior símbolo no reconhecimento da pirataria, e quer indicar a necessária existência de uma forte identidade de grupo. Este talvez seja o caráter mais importante deste paradigma na medida em que retira o pirata da vala comum da marginalidade e atribui-lhe uma condição valorativa especial. É graças a essa “ identidade” que, diferentemente do simples “ ladrão”, o “pirata” pôde literalmente se “materializar” em nossa imaginação (DURAN, 2011, p. 15). SHOW YOUR COLORS! O ESTANDARTE DO SENHOR DA MORTE A despeito de sua associação com um universo mágico, alegórico e mesmo infantil, a bandeira pirata foi um elemento material fundamental de uma tradição naval ocidental real, tendo sido hasteada em várias embarcações por diferentes tripulações de indivíduos que se colocavam enquanto partícipes de um movimento social de caráter publicamente criminal, como atestam diversos documentos históricos. A criação e uso de bandeiras náuticas - símbolos identitários e bélicos tradicionais - logo encontrou

328

329

Goiânia, v. 10, n.2, p. 327-339, jul./dez. 2012.

espaço entre os grupos de marítimos que se entregaram à pirataria durante o período moderno e que puderam desenvolver e estabelecer uma tradição cultural muito própria e particular. Habitantes dos espaços “infinitos”, dos oceanos libertários dos ritmos e mecanismos de controles sociais terrestres mais tradicionais, esses indivíduos sentiram a necessidade e entenderam, também, possuir o poder necessário para manifestar material e simbolicamente sua autonomia frente aos desígnios estatais e sua condição criminal particular de existência. Dessa maneira, a exemplo do que fizeram com a faina marítima, instituindo práticas de caráter muito mais igualitário e mesmo democrático, que destoavam fortemente daquelas então em operação na marinha mercante e de guerra dos diferentes estados modernos europeus, criando um verdadeiro “mundo de ponta cabeça” (DURAN, 2011), para nos utilizarmos do título, em português, de uma obra do historiador Hill (2001), esses grupos reverteram a sacralidade instituída da bandeira, símbolo máximo da desigualdade social e representante fiel do poder estatal e aristocrático. Tão caras a uma representação bélica oficial como símbolos estatais e também da heráldica nobre, as bandeiras passaram, na realidade pirata, a uma expressão libertária, contestadora, além de se constituírem em um importante elemento de coerção psicológica. Representando uma ameaça ao comércio marítimo de todas as nações, sendo um verdadeiro criminoso internacional segundo a teoria jurídica construída em sua época, o pirata passou a assumir, principalmente a partir do período em que foi mais ferrenhamente combatido, durante o século XVIII, a condição de sumo representante da antítese da “nacionalidade”1, sendo mesmo equiparável às bestas selvagens, verdadeiro animal, fora do estado de direito. Essa “anti-nacionalidade” se traduziu também nesse elemento particular da cultura material náutica, podendo ser, a cor negra da bandeira pirata, entendida como uma espécie de oposto simbólico às cores vibrantes dos pavilhões reais e estatais (Duran, 2011). Além disso, o predomínio cromático do negro na bandeira pirata também está intimamente ligado à idéia da Morte, sendo essa a cor que tradicionalmente representa o luto na sociedade ocidental. A cor negra, entretanto, não foi a única nem a primeira a ser utilizada pelos grupos de piratas ocidentais que formam a base de nosso conceito atual de pirataria. Os primeiros bucaneiros, que surgiram na região caribenha, parecem ter lançado mão de estandartes de diferentes cores, em geral sem a presença de quaisquer elementos gráficos específicos. A bandeira vermelha é muito referida nas fontes documentais como comumente arvorada pelas tripulações de piratas (ESQUEMELING, 1967; JOHNSON, 2003) e isso se justificava pelo fato de que ela já era vista e entendida, na comunicação marítima então usual, como um estandarte tradicional de batalha, um símbolo de combate até a morte e, portanto sangrento, onde solicitações de misericórdia ou rendição não mais se aplicavam (Cordingly; Falconer, 1992). No âmbito do universo pirata, existem referências ao uso tanto de bandeiras negras quanto de bandeiras vermelhas, o que é comprovado pelos dois exemplares dessa cultura material ainda hoje preservados em instituições privadas, como mencionaremos mais adiante. Nesse sentido, a diferença cromática observada nesses elementos materiais não está relacionada de forma alguma com possíveis preferências estéticas individuais, como chegaram a aventar alguns importantes estudiosos da matéria (GOSSE, 1924), mas, antes, com uma mensagem codificada de importância vital. O capitão Richard Hawkins, em 1724, nos fornece um esclarecedor relato sobre o uso de tais estandartes no âmbito dos costumes piratas do período. Segundo ele, quando os pi-

Goiânia, v. 10, n.2, p. 327-339, jul./dez. 2012.

ratas “[...] lutavam sob a Jolly Roger, eles ofereciam misericórdia, diferentemente de quando lutavam sob a bandeira vermelha ou a bandeira sangrenta”2 (CORDINGLY; FALCONER, 1992, p. 79, tradução nossa). Uma possibilidade de vínculo entre ambos os estandartes pode ser estabelecido quando consideramos que na teoria mais aceita pela historiografia, a própria designação Jolly Roger, geralmente agregada à bandeira negra, seria derivada da expressão francesa “ jolie rouge” que significaria “a bela vermelha” ou a “linda vermelha” (CORDINGLY; FALCONER, 1992, p. 78). A despeito da convivência entre elas, com o passar dos anos, a prática de arvorar apenas a bandeira negra parece ter se estabelecido de forma mais usual dentre as tripulações piratas. Uma justificativa para isso talvez possa ser encontrada no fato de que o objetivo primário das tripulações piratas era a captura, o apresamento, e não a destruição ou o afundamento das embarcações. Mas nem só de cores viveram os pavilhões piratas. O desenvolvimento de uma consciência de grupo no âmbito pirata ampliou sobremaneira a originalidade desses elementos simbólicos que foram enriquecidos com diferentes cenas e motivos. Assim, quando falamos em “pirataria” a bandeira que logo nos vem à mente não é a de um simples estandarte monocromático preto ou vermelho, mas sim uma bandeira elaborada graficamente com elementos poderosos. A representação que assumiu o papel de principal elemento de identificação dessa prática é, sem dúvida, aquela que apresenta como elementos pictográficos principais a caveira com as duas tíbias cruzadas. A despeito da hegemonia que essa simbologia em particular assumiu para nós, indivíduos dos séculos XX e XXI, ela também não foi única, mas antes, uma dentre várias formas de representação escolhidas e utilizadas por esse grupo específico de “homens do mar”, como veremos. O motivo que originou uma preferência pela reprodução dessa representação em particular quando no trato de questões ligadas à temática da pirataria escapa a historiadores, piratólogos e memorialistas, que, é importante que se diga, pouco se debruçaram sobre a questão. Entretanto, podemos cogitar que tal predileção esteja vinculada justamente ao próprio conteúdo chocante da mensagem ali codificada. A figura da caveira com as duas tíbias cruzadas é uma imagem poderosa e com apelo claramente aterrador e ameaçador. Esse vínculo explícito e exclusivo com a imagem da morte, no nosso entender, contribuiu decisivamente para a seleção dessa bandeira frente a outras representações simbólicas que, como veremos mais adiante, talvez por incluir outros elementos em seu conjunto, podem ter sido consideradas menos apelativas ao teor dramático que historiadores, memorialistas e artistas buscaram imputar às suas obras, em geral fortemente marcadas pelo emprego de adjetivos. Entendida dessa forma, a conduta contemporânea não poderia deixar de ser também classificada como uma resposta de longa duração às próprias intenções dos grupos de piratas quando da escolha de tais manifestações simbólicas ainda no período moderno da história ocidental. Outro possível fator para o vínculo preferencial com essa imagem pode estar relacionada com a questão do respaldo ofertado pelas fontes e relíquias históricas disponíveis. Uma das primeiras referências ao uso de bandeiras piratas, e que provém dos registros do almirantado britânico, dá conta da presença de uma imagem muito similar e se referem a um episódio datado de 18 de julho de 1700, quando o HMS

330

do norte da África (PLATT, 1996; http://www.sjofartsmuseum.ax). Figura 1: Representação artística com base na Jolly Roger exposta no Ålånd Sjöfartsmuseum

331

A outra possui uma trajetória melhor documentada e teria sido capturada em batalha também no norte da África, em 1780, desta vez pelo então tenente, posterior almirante da Real Marinha Britânica, Richard Curry. Parte de uma coleção particular de um descendente direto do referido militar, o artefato foi restaurado recentemente pelo Textile Conservation Centre da Southampton University. Nessa oportunidade foram identificados no corpo principal da bandeira vários orifícios chamuscados com a presença de vestígios de pólvora ainda incrustados em suas tramas (www.dailymail.co.uk). Trata-se da versão vermelha da Jolly Roger tradicional, comprovando a existência e o uso mesmo tardio de tais bandeiras historicamente documentadas. Constituindo-se como as duas únicas versões reconhecidamente legítimas desses estandartes navais, teriam elas sido consideradas por historiadores como as verdadeiras representantes dessa expressão simbólica e, portanto, adotadas como modelo único desse universo?

Goiânia, v. 10, n.2, p. 327-339, jul./dez. 2012.

Poole, navio da marinha britânica comandado pelo capitão John Cranby, enfrentou em batalha, na região das ilhas de Cabo Verde, a embarcação do pirata Emmanuel Wynne. Segundo as informações oficiais, a referida embarcação arvorava um pavilhão negro que apresentava, em seu centro, a imagem de um crânio sobreposto a duas tíbias cruzadas, tendo, imediatamente abaixo, uma ampulheta (CORDINGLY; FALCONER, 1992). Mais ainda, essa mesma representação, com exceção da ampulheta, pode ser encontrada nos dois únicos exemplares desse tipo de cultura material reconhecidos oficialmente, até então, como genuínas relíquias piratas. Uma dessas bandeiras encontra-se no Ålands Sjöfartsmuseum em Mariehamn, Finlândia, e pertenceria ao século XVIII ou XIX, tendo sido adquirida, por um marinheiro em um porto qualquer

Goiânia, v. 10, n.2, p. 327-339, jul./dez. 2012.

Figura 2: Interpretação artística com base na Jolly Roger vermelha pertencente ao espólio particular da família Curry

Seja em maior ou menor destaque, entretanto, a morte sempre foi o principal símbolo adotado pela pirataria ocidental, dominando o conteúdo pictográfico de praticamente todas as bandeiras piratas de que temos notícia. Segundo um dos principais documentos sobre a cultura pirata do período moderno, por exemplo, a tripulação sob o comando de Edward Low (1724) navegava com um estandarte negro com um esqueleto vermelho estampado (Johnson, 2003).

Figura 3: Interpretação artística possível do estandarte de Edward Low

332

Figura 4: Interpretação artística possível da Old Roger de Spriggs, Philips e Harris

333

Bartholomew Roberts, considerado por muitos historiadores como o arquétipo do pirata, também se utilizou de um estandarte muito similar ao acima comentado. Segundo a descrição do cronista da pirataria, o Capitão Charles Johnson (1724), a versão arvorada por Roberts diferenciava-se apenas pela presença das duas tíbias cruzadas em uma das mãos do referido esqueleto, tendo logo abaixo a “lança” ou “dardo” com o coração ferido.

Goiânia, v. 10, n.2, p. 327-339, jul./dez. 2012.

Outra representação recorrentemente citada nos documentos e fontes primárias da pirataria e que parece ter sido utilizada por diferentes tripulações em diferentes momentos, o que lhe outorgaria o direito de também ser reconhecida como um símbolo da pirataria, mas à qual não estamos geralmente acostumados, é o da chamada Old Roger. Essa bandeira apresentava em sua composição gráfica a figura de um esqueleto humano centralizado, com uma ampulheta em uma das mãos e um dardo ou lança na outra e imediatamente abaixo do dardo ou lança podia-se divisar um coração vermelho respingando sangue. Esse pavilhão é mencionado por variadas fontes, sendo incluída nas referências históricas relativas ao capitão Spriggs (1725), compiladas por Charles Johnson (Johnson, 2003)3, nos relatos publicados no primeiro jornal de tiragem contínua da América Britânica, o Boston New-Letter, para a tripulação do capitão John Philips (1724) (Stephens, 1996); em reportagem do dia 22 de julho de 1723 no jornal de James e Benjamim Franklin, The New England Coast, , onde descreve-se a cena do enforcamento de 26 membros da tripulação do capitão Charles Harris em Gravelly Point, Newport Harbor, Rhode Island. Nessa última oportunidade, reconhecendo a ousadia e a importância do gesto das tripulações piratas ao formularem suas próprias insígnias náuticas, os poderes legais instituídos, como forma de chacota e ameaça, também teriam enforcado, simbolicamente, a referida bandeira, no mesmo patíbulo (DOW; EDMONDS, 1996).

Goiânia, v. 10, n.2, p. 327-339, jul./dez. 2012.

Figura 4: Interpretação artística possível da Old Roger de Bartolomew Roberts

Não sem razão, além da denominação genérica de Jolly Roger, essas bandeiras também ficaram conhecidas no meio naval e pela historiografia especializada como o “estandarte do Senhor da Morte” (The banner of the King Death) (REDIKER, 1981; CORDINGLY, 1996). Em termos simbólicos, a mensagem é simples e direta, além de extremamente eficaz: aqueles que navegam sob essa bandeira carregam consigo a própria Morte. Está implícita, ali, uma ameaça contra todos aqueles que se encontram fora do círculo imediato de relações da companhia de marítimos sob ela reunida. A Morte seria, portanto, parte intrínseca da própria atividade pirata, garantindo àqueles engajados nesse modo de vida, uma intimidade especial com esse ente sobrenatural que, em última instância deveria se reverter em vantagens práticas efetivas em caso de um possível embate. Entendido desta forma, de certa maneira o estandarte adquire também uma função mágica, servindo quase como uma espécie de instrumento de mediação/sanção de um pacto entre esse grupo muito particular de homens do mar e essa entidade sobrenatural. Em termos práticos e menos “mágicos”, essa representação quer demonstrar também que o meio de realização da pirataria era o da violência, em especial o da violência ofensiva e armada. Tal condição também é recorrentemente expressa nas cenas e imagens escolhidas para estampar tais símbolos náuticos. No estandarte identificado como Old Roger, por exemplo, isso transparece de forma evidente através da presença da lança ou dardo associado à figura de um coração respingando sangue. Essa associação entre a figura da lança em uma bandeira identificada com o nome Old Roger parece fornecer uma alternativa muito interessante à versão baseada em uma possível anglicização da expressão francesa Jolie Rouge, mencionada anteriormente. Como pudemos averiguar, segundo vários dicionários etimológicos, principalmente aqueles dedicados à discussão de nomes próprios de indivíduos, “Roger” seria um nome de origem alemã trazido para a Inglaterra através da invasão normanda e cujo significado em sua origem seria: “famoso guerreiro” ou “lança famosa”. Entendida dessa forma a expressão parece se adequar perfeitamente ao conteúdo pictográfico contido nessa bandeira, legando-lhe

334

[...] para Saint Christophers, onde esperariam pelo capitão Moor, comandante do ‘Eagle’, um inimigo visceral de Francis Spriggs. O pirata queria matá-lo, desde que assaltara George Lowther na ilha Blanco. Spriggs pretendia vingar o desaparecimento do amigo cortando a cabeça do inimigo [...] Depois, desceria a costa da Nova Inglaterra, à procura do capitão Solgard, que atacara e acabara com a companhia de seu amigo Charles Harris [...] (JOHNSON, 2003, p. 389).

335

Assim, o governador da Virgínia em 1724, Alexander Spotswood, negava-se a viajar a Londres se não fosse a bordo de um vaso de guerra, com receio das práticas de represália contra as autoridades que se dedicavam à supressão da pirataria. Em

Goiânia, v. 10, n.2, p. 327-339, jul./dez. 2012.

o significado de “velho famoso guerreiro” ou ainda, “velha lança famosa”, o que parece querer indicar uma qualificação valorativa de possíveis habilidades bélicas para aqueles que a ostentavam. Essa alternativa, no nosso entendimento, oferece ainda uma saída mais adequada para a existência de uma dupla designação, “Jolly Roger” e “Old Roger”, duplicidade essa que não pode ser explicada através da teoria da anglicização. Aqui temos a questão da “profissionalização” ou “especialização” desses homens do mar em relação aos marinheiros comuns. Tais indivíduos, ao aderirem a esse estilo de vida, pela sua prática cotidiana, logicamente deveriam desenvolver e, portanto, possuir, uma maior perícia nas artes de combate naval e em práticas de luta corpo a corpo. Verdade ou mentira, o importante é que tais símbolos apregoavam uma propaganda positiva de tais habilidades piratas, utilizando-a como forma de amedrontamento e, portanto, como arma de coerção psicológica. Outra importante referência presente nessas bandeiras pode nos parecer um tanto estranha, mas mantém uma íntima relação com o ambiente marítimo: a ampulheta. Apesar de ser um símbolo comum para representar a brevidade da vida terrena, tendo sido incorporada inclusive em lápides de cemitério (CORDINGLY, 1996), no mar esse instrumento tinha uma função muito prática, sendo uma peça importante no controle da faina marítima. Partícipes desse universo, os piratas não hesitaram em incorporar a imagem desse instrumento aos seus estandartes, colocando-a a seu serviço como um aviso às possíveis presas de que o tempo para render-se era exíguo, tão exíguo quanto sua permanência na terra caso optassem por resistir. De certa forma, a inclusão de um elemento de controle e, portanto, de poder opressivo sobre a vida dos marinheiros comuns, em um novo contexto simbólico, onde piratas, quase que integralmente oriundos das camadas mais simples de trabalhadores do mar, passavam a assumir o mando e ditar a ordem e o tempo dos acontecimentos, precisa ser entendida, sem dúvida, de forma contestadora e muito significativa. A contestação do status quo e o fortalecimento de uma identidade de grupo parecem ter sido dois lados de uma mesma moeda, no universo da pirataria. Assim, na crônica escrita pelo capitão Charles Johnson sobre os principais piratas de sua época, quando da descrição da tomada, por parte da tripulação comandada pelo pirata Edward Teach, de um navio mercante da cidade de Boston, o Protestant Caesar, consta a informação de que tal embarcação teria sido queimada porque naquela localidade muitos bons companheiros piratas já haviam sido enforcados (JOHNSON, 2003). Essa mesma fonte informa que, além de Teach, o pirata Francis Spriggs (1721-1725) mencionado anteriormente, também demonstrou a existência de solidariedade de grupo quando indicou sua intenção de seguir

carta endereçada à Junta de Comércio de seu reino esse governador se justificava da seguinte maneira:

Goiânia, v. 10, n.2, p. 327-339, jul./dez. 2012.

[...] que tratamento inumano posso esperar, caso eu caia em seu poder [dos piratas], eu que tenho sido marcado como o principal objeto de sua vingança por eliminar seu principal comandante Teach [...] e ter feito tantos de sua fraternidade balançar no ar da Virgínia [...] (REDIKER, 1981, p. 203, tradução nossa). Talvez o maior símbolo desse processo de construção identitária e retaliação contra as instituições e pessoas empossadas em cargos oficiais, ou mesmo elementos civis que mantivessem qualquer relação com casos de punição efetiva de piratas, seja justamente uma bandeira negra arvorada pela tripulação de Bartholomew Roberts. Esse pirata ficou conhecido por ter criado vários estandartes personalizados, dentre eles um com a imagem de um pirata com uma espada em uma das mãos, tendo seus pés dispostos sobre dois crânios humanos abaixo dois quais constavam as inscrições “ABH” e “AMH”, expressão inglesa cujo significado era: “uma cabeça Barbadiana” e “uma cabeça Martinicana”. Por esse tempo, os governadores de Barbados e da Martinica haviam iniciado uma campanha de combate à pirataria, tendo sido responsáveis pela captura e punição de alguns desses criminosos, além de terem dedicado esforços pessoais para a captura do próprio Roberts (JOHNSON, 2003).

Figura 6: Interpretação artística possível do estandarte de Bartholomew Roberts

ENTRE O DEMÔNIO E O GRANDE MAR AZUL PROFUNDO4: Do ponto de vista social, as noções a respeito da pirataria giram em torno de conceitos valorativos muito díspares que vão desde o hediondo e inumano até o heróico

336

bandido social. Tal oposição se justifica pelas diferentes respostas ofertadas por cada um quando confrontados com a atuação notadamente “rebelde” e combativa adotada pelos piratas frente aos valores sociais e a ordem então estabelecida. Em um universo onde

A reação a esse estilo de vida não se estruturou apenas através da fuga ou na composição de formas de convívio mais igualitárias dentro das embarcações piratas, mas também através do combate sistemático dessas injustiças e na constituição de uma cultura material e simbólica à altura de suas ambições, tendo sido a bandeira negra seu veículo de maior expressão identitária. Lembrando as palavras do historiador Marcus Rediker: A consciência de classe entre piratas manifestava-se através de um elaborado código social. Através de regras, costumes e símbolos, o código prescrevia um comportamento específico, planejado para a preservação do mundo social que os piratas haviam, de forma criativa, construído para eles mesmos […] (REDIKER, 1987, p. 281, tradução nossa ). Nesse sentido, muito mais do que um simples elemento alegórico, esse artefato congrega em sua composição material a própria consciência de classe dessa camada de excluídos do mar, uma consciência forjada na Morte, na lança e na ampulheta, como visto. Após todas as reflexões aqui apresentadas a partir da combinação da análise de fontes documentais, historiográficas e materiais, esperamos ter demonstrado que a afirmativa inicial constante do título deste artigo não deve ser levada ao pé da letra, abrindo espaço para o questionamento: será, realmente, que homens mortos não contam histórias5? DEAD MEN TELL NO TALES: THE “BROTHERHOOD” OF PIRATES THROUGH THE BANNERS OF TERROR AND DEATH Abstract: this article is a brief analysis of the practical and symbolic role of the most iconic element of material culture associated with groups of pirates during the Modern Period, namely, the banners and naval flags of the “ lord of death”. In this sense, different versions of pirate flags recorded by historical sources or preserved in memory institutions are analyzed from its role as warlike instruments of effective action, and as its importance as nonverbal speech revealing the aspirations and identity of these socially excluded groups. 337

Keywords: Piracy. Pirate’s flag. Black flag, Naval flags. Naval symbolism.

Goiânia, v. 10, n.2, p. 327-339, jul./dez. 2012.

a hierarquização ditava as regras do convívio social, as propostas piratas de eleição de seus comandantes, de participação nas decisões, de eliminação dos privilégios hierárquicos e de equidade econômica, com certeza soam contestadoras. No que diz respeito à questão da justiça, para o mundo pirata, ela encontrava-se fortemente vinculada à questão da hierarquia. Na verdade, a existência de uma geralmente impossibilitava a outra [...] Não podemos esquecer que, para as viagens marítimas desse período, a diferenciação de acomodações e da alimentação proporcionadas pela hierarquização podia significar a morte; à fartura da mesa do capitão e oficiais, contrapunha-se a miséria da alimentação do marinheiro comum (DURAN, 2011, p. 143-4).

Notas 1 Trata-se de uma expansão desse conceito. Os estados ditos propriamente nacionais só viriam a se constituir como tais a partir do século XIX e início do XX. 2 Red Jack era outra alcunha dada à bandeira pirata de coloração vermelha. 3 Trata-se de um dos acréscimos feitos à primeira edição de 1724. 4 Tradução do título em inglês do título de uma importante obra de história marítima de autoria de Marcus Rediker (1987). 5 Tradução para o português do título principal deste artigo: Dead men tell no tales.

Referências CORDINGLY, D. (Ed.). Pirates - Terror in the high seas, from the Caribbean to the South China Sea. Atlanta: Turner, 1996. CORDINGLY, D.; FALCONER, J. Pirates - Fact & fiction. London: Collins&Brown, 1992.

Goiânia, v. 10, n.2, p. 327-339, jul./dez. 2012.

DOW, G. F; EDMONDS, J. H. The Pirates of the New England Coast. 2d.ed. New York: Dover Publications, 1996. DURAN, L. D. A Construção da Pirataria: o processo de formação do conceito de “Pirata” no Período Moderno: São Paulo: Annablume, 2011. (História e Arqueologia em Movimento). ESQUEMELING, J. [1678]. The Buccaneers of America. New York: Dover Publications, INC, 1967. GOSSE, P. The Pirates’ Who’s Who: giving particulars of the lifes & deaths of the pirates & buccaneers. New York: Burt Frankling, 1924. (Essays in History, Economics & Social Science 51). HILL, C. O Mundo de Ponta Cabeça: idéias radicais na revolução inglesa de 1640. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. JOHNSON, Cap. C. [1724]. Piratas: uma história geral dos roubos e crimes de piratas famosos. Tradução e edição de E. San Martin. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 2003. MARX, J. G. (a) Brethren of the Coast. In: CORDINGLY, David (Ed.). Pirates: Terror on the High Seas From the Caribbean to the South China Seas. Atlanta: Turner, 1996. p.36-57. PLATT, R. Corsairs of the Mediterranean. In: CORDINGLY, David. (Ed.). Pirates Terror in the high seas, from the Caribbean to the South China Sea. Atlanta: Turner, 1996. p.76-99. REDIKER, M. Under the Banner of King Death: the social world of anglo-american pirates (1716-1726). The William and Mary Quarterly, third series, v.38, n.02, p.203227, April 1981. _____. Between the Devil and the Deep Blue Sea. Cambridge: Cambridge University Press, 1987. ______. Libertalia: the pirate’s utopia. In: CORDINGLY, David (Ed.). Pirates: Terror on the High Seas From the Caribbean to the South China Seas. Atlanta: Turner, 1996. p.124-139.

338

SALMORAL, M. L. Piratas, bucaneros y corsarios en América. Madrid: MAPFRE, 1992. (Coleción Mar y América). SITE:. SITE: .

Goiânia, v. 10, n.2, p. 327-339, jul./dez. 2012.

STEPHENS, John R. (Ed.) Captured by Pirates: 22 firsthand accounts of muders and mayhem on the high seas. Cambria Pines by the Sea, Calif.: Fern Canyon Press, 1996.

339

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.