Decodificando o neocapitalismo: para uma genealogia da governamentalidade neoliberal

June 3, 2017 | Autor: Thiago Mota | Categoria: Genealogy, Governmentality, Neoliberalism, Biopolitics
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DECODIFICANDO O NEOCAPITALISMO: PARA UMA GENEALOGIA DA GOVERNAMENTALIDADE NEOLIBERAL Thiago Mota

Resumo: Compreender a crise atual do capitalismo depende de nossa capacidade de elaborar uma crítica que não acabe por se tornar refém do próprio capitalismo. Nesse sentido, a crítica precisa se articular como forma de decodificação. Tal decodificação exige um mapeamento ou uma cartografia da prática e do discurso neoliberais. O objetivo deste artigo é seguir o fio da genealogia da governamentalidade neoliberal desenvolvida por Foucault no Nascimento da biopolítica (1978/1979), para desenvolver uma descrição crítica da realidade socioeconômica contemporânea, pondo em perspectiva o papel da educação neste contexto. Palavras-chave: neoliberalismo; genealogia; biopolítica; governamentalidade. Abstract: Making sense of the current crisis of capitalism demands our ability to develop a critique position that does not become hostage of capitalism itself. Thus, the critique has to be articulated as a form of decoding. Such decoding requires a cartography of neoliberal discourse and practice. Therfore, the aim of this article is to follow the lead of the genealogy of neoliberal governmentality produced by Foucault in Naissance de la biopolitique (1978/1979), in order to develop a critique description of the contemporary socio-economic reality, keeping focus on the role played by education in this context. Keywords: neoliberalism; genealogy, biopolitics; governmentality. Crise do capitalismo, endogenização e “foucaultismo” Nosso desafio é falar do indivíduo e da educação no contexto da crise de capitalismo. É preciso, portanto, começar por tentar dizer de que se trata essa “crise”. Vejamo-la, então, da maneira como ela se apresenta mais imediatamente a nós hoje, isto é, não como experiência sensível imediata, como “isto”, mas tal como ela nos é exibida instantânea e insistentemente pela mídia, ou seja, sob a forma da “crise financeira”. Por exemplo, em 15 de novembro de 2011 do Jornal da Globo divulgava a seguinte manchete: “Merkel diz que sinais de recessão e crise são os piores desde 2ª Guerra”. O mais patente disso é que não é a primeira, nem será a última vez que veremos um político correr para soar o sinal de alarme da crise econômica. De acordo com a lógica do que já sabemos que vamos ver nos noticiários em um futuro próximo e em um distante, a “crise do sistema financeiro”, a “crise do capitalismo” não significa que este esteja chegando ao fim. 

Trabalho apresentado no II Colóquio Nacional: “Indivíduo e Educação no Contexto da Crise do Capitalismo”, Programa de Pós-graduação em Educação Brasileira da UFC, 2011. Artigo publicado in: CHAGAS, Eduardo; RECH, Hildemar (orgs). Indivíduo e Educação no Contexto da Crise do Capitalismo. Fortaleza: Ed. UFC, 2012, p. 373-394.  Doutorando em filosofia pela UFC. E-mail: [email protected].

2 Pelo contrário. A retórica da crise remete antes ao fim do mundo, que ao fim do capitalismo (Zizek, em sua intervenção ao Occupy Wall Street). Trata-se, na verdade, de uma crise que repõe, a cada vez – e não sem um imenso dispêndio de esforços e sacrifícios – aquilo mesmo que entra em crise, ou seja, o capitalismo. A ideia de crise remete assim a uma temporalidade circular, em que nos debatemos em vão, do lado de dentro, de uma história que chegou ao fim. Por mais atual que possam ser, as crises do capitalismo estão em curso, pelo menos, desde a época em que Marx, na segunda metade do século XIX, descobriu o que é capitalismo (O capital). Podemos dizer que o modo de produção capitalista, esta forma de racionalidade econômica, encontra sua especificidade no fato de que vive de suas crises. E isso porque é, talvez, a invenção humana dotada do maior poder de regeneração de que se tem ideia. Em uma perspectiva mais larga do que a da mídia ou do discurso de Estado, a crise do capitalismo não parece tão relevante quanto o fato de que não saímos da crise, de que estamos perpetuamente em crise. Mais do que agonizar, o capitalismo conseguiu, nas últimas décadas, se renovar, construindo para si uma “nova cultura” ou um “novo espírito”, particularmente dotado da capacidade de responder – a responsiveness enquanto evolução da accountability1 – a ataques por meio do que chamaremos aqui de capacidade de endogenização (Boltanski fala de “cooptação-assimilação”)2. A ideia é simples: o mundo capitalista vive em crise, sendo sempre alvo de crítica, mas sempre conseguindo responder à crítica, porque ele é capaz de sobrecodificar toda crítica que lhe seja feita, isto é, ele é capaz de ingerir o veneno e convertêlo em vitamina. A esse respeito, minha ilustração predileta ainda é a de Che Guevara, incontestável ícone da luta anticapitalista, transformado em silk-screen e estampado em camisetas da C&A. O ponto de partida de uma crítica ao capitalismo que não queira se tornar refém do capitalismo consiste, portanto, de saída, em dar-se conta dessa potência de endogenização daquilo que escolhemos como alvo. O pensamento de Foucault – isso não é privilégio dele – não é imune à endogenização, pelo contrário. O que se constata na literatura sobre Foucault, por assim dizer, no “foucaultismo” é o crescimento do que já foi chamado de “clube dos amigos da subjetivação”, isto é, aqueles que se apressam por propor audaciosas “subjetivações liberadoras” nos lugares mais improváveis e que juntam o zen-budismo a uma sofisticada estilística da existência para desenvolver a ética empresarial dos gestores de

1

Sobre o vocabulário do capitalismo de espírito renovado (GALBRAITH, John Kennedy, Economia das fraudes inocentes, 2004). 2 Pelbart, 2003: citar trecho sobre “endogenização”.

3 recursos humanos mais plugados com as tendências pós-modernas.3 Portanto, não seria injusto debitar na conta da governamentalidade neoliberal a produção de modelos micropolíticos experimentais tão vagos quanto as pseudo-questões que eles produzem: “como não sermos disciplinados? como escapar da vigilância panóptica? como resistir ao assujeitamento pelas normas?” (Legrand), às quais acrescentamos para uso biopolítico: como fugir do controle a céu aberto? como se auto-gerir em um mundo governamentalizado?

Endogenização reflexiva e governamentalidade neoliberal

O dispositivo precisa ser, em primeiro lugar, cartografado. Assim, poderemos ter noção disso que se descreve, nos dias atuais, como o novo espírito do capitalismo (Boltanski & Chiapello), ou como neocapitalismo (Senneth), e que aflora nos Manegement Studies (que contam inclusive com uma versão crítica – Critical Management Studies, ou CMS), para se espraiar, pelo campo da educação, da saúde e da segurança públicas, dos direitos humanos e do urbanismo, só para citar alguns. Esse neocapitalismo encontra sua especificidade em uma potente capacidade de endogenização4, que é – esta é nossa hipótese geral – uma das características mais importantes daquilo que Michel Foucault chamou de dispositivo. Nesse sentido, mais do que partir da definição geral de dispositivo como rede heterogênea de material discursivo e não discursivo (Microfísica do poder, p. 244), me parece interessante voltar a uma observação a esse respeito que se encontra na primeira aula de Nascimento da biopolítica (10/01/1979). Em uma meditação acerca do conjunto de seu percurso, Foucault observa: “O objeto de todos esses empreendimentos concernentes à loucura, à doença, à delinquência, à sexualidade e aquilo de que lhes falo agora [a governamentalidade liberal] é mostrar como o par ‘série de práticas/regime de verdade’ forma um dispositivo de saber-poder, que marca efetivamente no real o que não existe e submete-o legitimamente à demarcação do verdadeiro e do falso.” (Nascimento da biopolítica, p. 27, grifo meu.)

Um dispositivo é um sistema de reforço mútuo entre práticas de saber e relações de poder que produz regimes de verdade, definindo o que é verdadeiro e o que é falso para certos sujeitos que, por sua vez, são produzidos por esses mesmos regimes de verdade. Em suma, dispositivos são máquinas de produzir verdade e, acima de tudo, de produzir sujeitos

3

Essa literatura prodigiosa em manuais que produziu sucessos como ASHLEY, Patrícia. Nossa intenção explícita é aproximar esta ideia de endogenização da discussão que Deleuze e Guattari fazem acerca das incorporações bilaterais entre máquinas de guerra e aparalhos de Estado. (D&G, Tratado de nomadologia). 4

4 (Darcy Ribeiro e os “moinhos de fazer gente”). A biopolítica não é senão a mobilização de diversos dispositivos de produção e de governo da vida (“fazer viver e deixar morrer”). Destinados à produção de sujeitos, dispositivos são agenciamentos de práticas discursivas e não discursivas, são tecnologias ou racionalidades. Mais do que isso, são racionalidades autopoiéticas, inteligências artificiais, autômatos que dispensam um sujeitooperador e que são capazes de otimização performativa virtualmente infinita. Como máquinas inteligentes, como racionalidades, os dispositivos são dotados de reflexividade, isto é, são capazes de auto-percepção e da auto-correção de seu funcionamento. Fica claro, então, que a função endogenizante dos dispositivos está ligada à sua reflexividade: a crítica não é percebida como um ataque; é, antes, sabiamente convertida em sugestão – a “caixa de sugestões” de qualquer supermercado – e, então, incorporada livremente, com a ressalva de que o objetivo final não deixe de ser encaminhado, isto é, desde que se produzam verdades, sujeitos, vida. Essa caracterização da capacidade de endogenização reflexiva dos dispositivos nos permite pôr em perspectiva a atual crise do capitalismo de maneira semelhante à de Foucault. Em sua principal incursão pela história contemporânea, no curso Nascimento da biopolítica (1979), Foucault estudou a evolução recente do capitalismo no Atlântico Norte como forma de biopoder, isto é, como dispositivo de produção de vida, ou mais especificamente, como tecnologia de governo, a governamentalidade neoliberal. O conjunto da análise de Foucault parece demonstrar como o dispositivo neoliberal é amplamente endogenizante, trata-se de um capitalismo “blindado”. Seu maior prodígio é o Homem concebido sob a forma específica do homo oeconomicus. Seguir os passos de Foucault na descrição biopolítica da subjetivação do homo oeconomicus nos permite, como veremos, compreender como o indivíduo se contextualiza hoje; o que nos permitirá, também, mostrar o que está de fato em jogo na atual “crise do capitalismo”.

O liberalismo não como ideologia, mas como dispositivo de produção e controle da liberdade

A governamentalidade neoliberal é a forma mais desenvolvida de agenciamento entre produção subjetiva e produção econômica (de valor abstrato de troca, isto é, de capital). A tarefa desse agenciamento é dar uma resposta à questão, característica de qualquer dispositivo de biopoder: como produzir vida útil? A utilidade é aí decodificada em termos de utilidade econômica, ou seja, é convertida em capital (valor de troca). Trata-se da equação geral entre

5 sujeitos e capital, que, no limite, se identificam. Esta é a perspectiva do que Foucault chama de liberalismo, ou seja, uma tecnologia de gestão centrada na produção da liberdade. Conceber o liberalismo como gestão biopolítica da liberdade significa, em primeiro lugar, não concebê-lo como ideologia. Assim, embora, do ponto de vista metodológico, a biopolítica implique um deslocamento da arqueogenealogia – pressentido de maneira positiva por alguns (Lenke, Legrand) – na direção de um objeto tradicional da crítica marxista, o liberalismo, é importante não compreendê-lo como uma ideologia.5 Na semântica de Foucault, o liberalismo não aparece como uma representação falsa da realidade, como consciência invertida, ou coisa que o valha, a ser dialeticamente “desinvertida” pela ciência verdadeira da sociedade (o socialismo científico), de que a crítica marxista se alimenta. O liberalismo diz, portanto, a verdade acerca de si mesmo. Ele não dissimula sua realidade; é antes um emaranhado de relações de saber-poder, um intricado complexo de práticas discursivas e não discursivas. Não gostaria de parecer trivial, mas a noção de ideologia não se confunde com a de dispositivo (ou de episteme) porque é uma noção binária. “Ideologia” está para “ciência” assim como “falsidade” está para “verdade”. Isso ajuda a esclarecer um aspecto importante do método arqueogenealógico. Epistemologicamente, não se trata de operar de maneira binária. Não que não seja importante discernir o verdadeiro e o falso, ou seja, não é que a verdade não seja uma questão; a questão da verdade simplesmente não é a questão que interessa. O que interessa à arqueogenealogia é como tais verdades funcionam como verdades para os sujeitos que delas estão convencidos e quais são os efeitos que tais verdades exercem no comportamento desses sujeitos. Nesse sentido, é preciso pensar primeiro a relação: não se trata de pensar a relação a partir de seus termos, mas de pensar os termos a partir de suas relações. Trata-se de pensar linhas, isto é, aquilo que só tem meio, a dobra. (D&G, Micropolítica e segmentaridade; Deleuze, Foucault). Em uma palavra, dispositivo não é ideologia porque a arqueogenealogia é perspectivista. (A verdade e as formas jurídicas). Cabe notar que, nesse deslocamento biopolítico em direção ao capitalismo, não é a produção econômica (de capital) que explica a produção subjetiva (de sujeitos); antes, a subjetivação, a produção dos sujeitos, sua “utilitarização” através dos dispositivos, é que dá sentido à produção de capital.6 A governamentalidade neoliberal é um dispositivo particular: ele converte de modo altamente eficaz subjetividade em valor de troca, que, desse ponto de 5

Vale registrar, entretanto, o valor de análises que se mantiveram ligadas à noção de ideologia, entre as quais: Pechêaux, Sennett, De Gaulejac, os próprios Boltanski & Chiapello, além de Zizek, em contraposição a seus usos mais desgastados do marxismo: Löwy, Eagleton, Jameson e Harvey, além de Althusser, é claro. 6 In contrario sensu: Legrand.

6 vista, são de fato são produzidos simultâneamente. Porém, há inúmeras outras formas de governamentalidade, tantos outros dispositivos movidos por objetivos tão diversos, que produzem sujeitos para fins muitos diversos. O mais importante é que sujeitos se produzam. Em suma, não é possível remeter a arqueogenealogia a uma “determinação econômica em última instância”, como algumas leituras parecem querer (Lenke, Legrand). Embora seja perfeitamente possível imaginar uma apropriação produtiva, servindo-se inclusive de Marx, da questão da produção econômica por parte da análise arqueogenealógica. Não seria exagero dizer que Foucault o fez. E o fez ao mostrar que a especificidade do dispositivo neoliberal consiste em produzir liberdade, isto é, subjetividade e capital ao mesmo tempo.

Da administração à gestão da liberdade

Há pouco mencionamos que, do ponto de vista arqueogenealógico, o liberalismo diz a verdade acerca de si mesmo, não é ideologia, não é uma representação falsa da realidade. Em Nascimento da biopolítica, Foucault escreve o seguinte: “Se utilizo a palavra ‘liberal’, é, primeiramente, porque essa prática governamental que está se estabelecendo não se contenta em respeitar esta ou aquela liberdade, garantir esta ou aquela liberdade. Mais profundamente, ela é consumidora de liberdade. (...) Consome liberdade, ou seja, é obrigada a produzi-la. É obrigada a produzi-la, é obrigada a organizá-la. A nova arte governamental vai se apresentar como gestora da liberdade, não no sentido do imperativo ‘seja livre’, com a contradição imediata que esse imperativo pode trazer. Não é o ‘seja livre’ que o liberalismo formula. O liberalismo formula simplesmente o seguinte: vou produzir o necessário para tornar você livre. (...) É necessário, de um lado, produzir liberdade, mas esse gesto mesmo implica, que de outro lado, se estabeleçam limitações, controles, coerções, obrigações apoiadas em ameaças, etc.” (Nascimento da biopolítica, pp. 86-7.)

O que se mostra mais diretamente, mesmo à leitura ingênua, o óbvio, é que liberalismo – “já diz o próprio nome” – significa gestão da liberdade. A história7 mostra que o liberalismo nasce no momento da ruptura com o Estado soberano absolutista. Nesse contexto, está em jogo, sobretudo, a limitação do poder estatal, sua constitucionalização, o que Foucault chama de “fobia de Estado” (Nascimento da biopolítica, p. 433) que permite transformá-lo em gestor de sujeitos livres, titulares de direitos naturais ou direitos humanos, que são mais tarde tornados os direitos fundamentais do Estado de Direito. O Estado liberal é o Estado de

Explicar o deslocamento da microfísica à biopolítica, isto é, a “maior atenção” que Foucault passa a consagrar à questão do Estado – e o “Foucault 2-e-meio” faz, de fato, toda uma genealogia triangular do Estado ocidental (soberania, disciplina, controle) -- em termos de micropolítica/macropolítica, molécula/molar da semântica de D&G. 7

7 Direito porque e na medida em que é o Estado da liberdade, o “governo de um país livre”. A gestão da liberdade, por sua vez, não deve ser considerada a priori ideológica. Não se trata de uma liberdade falsa ou meramente formal, não se trata de um laissez-faire, laissez-passer em última instância econômico, mas de uma liberdade material e concretizada através do Direito. O Estado liberal é uma tecnologia de governo privilegiada na produção e na gestão da liberdade. Por esta razão, as disciplinas podem ser tão facilmente agenciadas ao Estado liberal (sem se tornarem aparelhos ideológicos do Estado). A esse respeito, diga-se apenas que o Estado liberal é aquele que substitui o absolutismo do ancien régime por duas funções estatais apenas: defesa externa (o Estado Maior ou as Forças Armadas) e manutenção da ordem pública (a polícia). A igualdade (isonomia) é pensada em função da liberdade. Lei para todos significa: sanção para quem anda fora da linha; todos os demais estão livres, estão na licitude. Estamos mais próximos do “matar ou deixar viver” soberano, uma espécie de “prender ou deixar livre”, que será integrada a um “fazer viver livre ou deixar morrer”. Trata-se, por enquanto, ainda da administração da liberdade através dos dispositivos disciplinares com a finalidade de produzir subjetividade útil e livre, isto é, auto-produtiva. E, como sabemos, a disciplina é extremamente eficaz. No entanto, algo foge, vaza, escapa ao controle disciplinar. A disciplina deixa muito livre, fora de controle, fora de governo. Chega o momento da passagem, sugerida por Deleuze (Post-scriptum sobre as sociedades de controle, p. 220), de uma sociedade disciplinar (liberal) a uma sociedade de controle (neoliberal). Com efeito, a disciplina está para um molde rígido – em que se tratava de dar uma forma definitiva, formatar –, como o controle (biopoder) está para uma modulação flexível – capaz de formar e reformar, de formatar sempre sem jamais chegar a uma forma definitiva. O dinheiro é o que melhor exprime essa transição: “A velha toupeira monetária é o animal dos meios de confinamento, mas a serpente o é das sociedades de controle.” (Conversações, p. 222). Enfim, já não estamos na era da administração taylorista da liberdade; passamos para a era da gestão rizomática da liberdade. O que está em jogo para essa gestão biopolítica (neoliberal) que vem agora se acoplar à administração disciplinar (liberal) já não é o indisciplinado ou o incontrolado – para isso temos boas instituições –, mas, em certo sentido, o indisciplinável, o incontrolável. Como controlar o incontrolável? (Pelbart, p. 98) Essa é a questão. É isso que será governamentalizado com o advento da biopolítica neoliberal. O leitor terá percebido que, já faz algum tempo, formulo paradoxos. “Controle do incontrolável”, “gestão da liberdade”, etc. são, sem dúvida, paradoxos. O próprio Foucault, na

8 passagem citada acima, menciona a contradição inerente ao imperativo “seja livre!”. Ao contrário do que diz Foucault logo a seguir, creio que vale a pena insistir nesse caráter paradoxal do liberalismo. O liberalismo, em geral, mas o neoliberalismo, em particular, nos obriga a ser livres. Dizem-nos: “a igualdade de oportunidades está aí, garantida; se você não teve sucesso é porque não estudou, ou, se estudou, não foi o suficiente, ou, se já foi muito, não foi o era útil”. É assim que a individualização neoliberal assume o caráter duplo de estratégia de “desresponsabilização” por parte do Estado e da sociedade e de culpabilização do indivíduo. Voltaremos a este ponto à frente. O fato é que tanto o liberalismo quanto o neoliberalismo trabalham com paradoxos que, não obstante, se concretizam por meio do dispositivo biopolítico que eles põem em marcha. E, contrariamente ao que poderia crer certa ingenuidade dialética, esses paradoxos não tendem a se diluir em nenhuma Aufhebung. Pelo contrário, eles se reproduzem e se multiplicam. O liberalismo critica o Estado soberano fundado na razão de Estado ao denunciar que “governa-se em demasia” (Nascimento da biopolítica, p. 433), põe as liberdades sob a salvaguarda da Constituição – um “laranja” da burguesia, como Schmitt dá a entender – e, finalmente, já na era neoliberal, consegue controlar e governar mais do que nunca, dispondo inclusive do orçamento militar mais polpudo de que se tem notícia, que é empregado sem peias pelo smart power sediado na Casa Branca em guerras democráticas que se fazem à base de mísseis carregados de direitos humanos. Do mesmo modo, no campo da educação, a constatação não pode deixar de ser feita: da educação infantil, e mesmo antes, à pós-graduação, e depois, somos, ao mesmo tempo, cada vez mais livres e cada vez mais governamentalizados8, isto é, inseridos ou incluídos no cálculo geral do dispositivo governamental neoliberal. Somos, cada vez mais, titulares efetivos de um direito à liberdade, mas tal liberdade não passa de um paradoxo: é liberdade controlada.

A subjetivação do homo oeconomicus: teoria do capital humano

Não é à toa que o dinheiro diga tanto sobre nós. Há tempos, mimetizamos seu comportamento. O dispositivo de governo liberal – é de fato o que diz a economia política liberal – funciona de acordo com a lógica do mercado. O mercado torna-se, mais do que lugar de troca, lugar de produção (de prova ou de teste) de um regime de verdade específico (a

8

Citar trecho do Post-scriptum acerca da formação permanente.

9 economia política) e de uma forma específica de subjetividade: o homo oeconomicus. Daí toda a simbiose entre economia e educação: as escolas migram para o mercado, ao mesmo tempo em que o mercado migra para o interior das escolas. A esse respeito, cabe dizer que governamentalidade neoliberal é um dispositivo peculiar porque permite constatar que o biopoder se exerce tanto de modo massificante (na população) quanto de modo individualizante (Gadelha, p. 168)9. Na medida em que é, ao mesmo tempo, massa e átomo, mol e molécula, o maior prodígio da economia política neoliberal, o homo oeconomicus, constitui a figura que nos permite descrever melhor o indivíduo dos dias atuais. O conceito neoliberal de homo oecomomicus é, na verdade, uma reconstrução. Ele é o resultado de um deslocamento epistemológico operado no seio das ciências econômicas. Esse deslocamento implica uma mudança considerável nas pressuposições ontológicas da economia. Se a economia clássica concebeu seu objeto seja como o conjunto dos processos econômicos entendidos como mecanismos de produção, distribuição e consumo (Smith) e a economia neoclássica, como o resultado da interação entre tais fatores e as políticas do Estado (Keynes), o neoliberalismo (Escola de Chicago) conceberá o objeto da ciência econômica como o comportamento racional humano relacionado ao emprego de recursos escassos para atingir fins diversos (Nascimento da biopolítica, p. 306). Enquanto mercado, o mundo passa a ser povoado por atores ou agentes que não se comportam aleatoriamente, mas fazem cálculos, avaliam custos e benefícios, procuram corrigir suas balanças, reduzir despesas e aumentar receitas, almejando sempre o acúmulo de alguma forma de capital (lucro monetário e não monetário) – ainda que seja pela criação de novos capitais.10 Com essa “mutação epistemológica”, o objeto da economia torna-se a própria racionalidade do comportamento econômico, isto é a programação estratégica dos seres humanos com vistas ao lucro em sentido amplo. A tarefa que a economia (Milton Friedman, Theodore Schultz, gerações de Chicago Boys) assume, então, não é apenas descrever, mas intervir, digamos, de modo não intervencionista, isto é, por fora do Estado, mas em todo caso, governar o comportamento econômico dos indivíduos (microeconomia) e dos grupos (macroeconomia). A estratégia epistemológica posta em marcha pela governamentalidade liberal é a elaboração da teoria do capital humano (Schultz), que pode ser considerada, justamente, o marco do giro neoliberal das ciências econômicas contemporâneas. 9

Se na maior atenção dedicada ao Estado se tratava de ir do molecular (microfísica do poder) ao molar (biopoder), neste caso exemplar do biopoder que é dado pelo dispositivo neoliberal vamos, tanto numa (molar, massificação) quanto noutra direção (molecular, individualização). 10 Vale lembrar que Bourdieu os múltipla.

10 Grosso modo, podemos dizer que a teoria do capital humano é o cenário em que aparece o homo oeconomicus. Como tal ela é decisiva para a instalação de um “novo espírito do capitalismo”. Em que consiste essa “capitalização”, essa transformação do humano em valor de troca, que a noção de capital humano expressa? O humano, isto é, as capacidades, aptidões, habilidades tipicamente humanas, sua iniciativa, sua criatividade, sua afetividade, são codificadas sob a forma de competência (Gadelha, p. 149), que é sobrecodificada em termos de capital. Torna-se, portanto, intercambiável e permutável em moeda. Como tal, o capital humano pode crescer ou minguar: tudo vai depender da adoção da “política econômica de si” adequada. Essa simbiose entre indivíduos e capital explica porque, do ponto de vista neoliberal, o conselho para os governos também vale para os indivíduos – “não há mágica: sem investimento não há crescimento, e o investimento mais rentável de todos é em educação”.

Do empreendedorismo de si ao empresariamento do socius (em meio à concorrência)

A teoria do capital humano nos põe diante de um processo de subjetivação em que o indivíduo se produz por meio de investimentos em educação. A formação permanente por meio de uma educação “para a vida toda”11 é, conforme sugestão conhecida de Deleuze (Postscriptum sobre as sociedades de controle), é a encarnação do controle modular produzido pelo dispositivo biopolítico da governamentalidade neoliberal. O indivíduo se torna microempresa, se torna um empreendedor de si, sendo caracterizado pelos seguintes traços: proatividade, inventividade, flexibilidade, senso de oportunidade (Gadelha, p. 156), conectividade, pluricompetência, autocontrole (Pelbart, pp. 98-9). Ora, se a individualização conforme a lógica de mercado permite entrever um indivíduo-microempresa, se ocorre um empresariamento no plano do individual, é evidente que no plano dos grupos ocorrerá o mesmo, na família, na escola, no hospital, mas também no bar, nas rodas de poesia, nas ONGs. Tudo passa a obedecer a uma lógica transversal que vai sem peias das ciências econômicas e da administração a uma ética e a toda uma filosofia empresariais para constituir aquilo que Sylvio Gadelha (pp. 144-157) chamou de cultura do empreendedorismo, e que não é nada além da forma de produzir e controlar liberdade desenvolvida pela governamentalidade neoliberal. Até mesmo o Estado é “empresariado”, e

11

Meu projeto de doutorado: Educação para a vida toda, subjetivação permanente.

11 com isso, despolitizado, colonizado pela economia em um esquecimento da política (Novais) ou do político (Mouffe). É governamentalização do Estado.12 Um dado essencial em uma ontologia do mercado como a que esboçamos é a concorrência. A individualização do homo oeconomicus não é uma “robinsonada”, tampouco as subjetivações dos grupos-empresas é feita no vazio. Elas supõem uma gama de relações que já estavam dadas antes mesmo de elas terem vindo ao mundo. Seja como pessoas físicas, seja como pessoas jurídicas nascemos em um mundo que é concorrencial a priori. A acumulação de capital por cada unidade produtiva é sempre relacional; no final das contas, trata-se de ver quem tem mais ou quem é mais (tem mais competências úteis): ter e ser se equivalem. Em suma, a concorrência (Gadelha, p. 151) aparece como princípio normativo/normalizador, como princípio de governamentalização da sociedade de uma ponta à outra. Considerações finais: política do “nos” e desresponsabilização do Estado

Recapitulando agora nosso percurso, vemos que a análise arqueogenealógica mostra que o capitalismo foi capaz de se desenvolver de maneira extraordinária ao longo das últimas décadas através da produção de um potente dispositivo, pelo menos até aqui, anti-crise e anticrítica, uma blingadem que pode ser descrita como mecanismo endogenizador. Trata-se da governamentalidade neoliberal, tecnologia que gere a produção de liberdade controlada, isto é, governa a subjetivação do homo oeconomicus. O dispositivo de saber-poder neoliberal articula um discurso improvável, embora perfeitamente, e cada vez mais, real, tecendo um fio transversal que parece ligar todas as palavras-de-ordem

prediletas

da

nossa

contemporaneidade:

empreendedorismo,

responsabilidade sócio-ambiental das empresas (os “stakeholders”), direitos humanos da cidadania participativa, sustentabilidade bioética e governança (o Estado-parceiro). Essa complicada trama, por mais improvável que possa parecer quando tomada fora de contexto, constitui efetivamente o dispositivo do novo espírito do capitalismo – e todas as nossas críticas parecem caducas diante dele. Não creio que tal fatalismo – contra o qual devemos estar atentos, conforme a advertência de Zizek mencionada de início – seja a intenção de Foucault. Em todo caso, não é a nossa. Gostaria, portanto, de esboçar duas críticas. 12

Tocamos aqui na figura da governança, que mobiliza a ideia do Estado-parceiro, e se constitui em paradigma de uma nova filosofia do Estado e do direito.

12 Retomemos a ideia de liberdade controlada, produto empírico do liberalismo. Ela remete á ideia de empreendedorismo ou de proatividade, que por sua vez reenvia a uma longa série que vai da auto-nomia à auto-gestão. Em uma palavra, a liberdade liberal é decodificada arqueogenealogicamente em auto-normalização, em uma normalização de si que é feita por si mesmo. Capital, portanto, em forma de fluxo, em forma de vida livre. Liberdade controlada remete a um governo de si, a uma autogestão neoliberal. Esta é, em seu espírito, individualista, concorrencial, a racionalidade como cálculo estratégico dos interesses (profits) de cada um e efetuado por cada um. É claro que, na forma da liberdade controlada, todo agenciamento é clientelista (“me apadrinhe”) ou concorrencial (“tenho mais/sou mais do que você”). O agenciamento coletivo neoliberal é atomista ou molecular: um “eu” que se liga a outros “eu”, em função dos interesses individuais. É um agenciamento orgânico, uma combinação, harmônica na melhor das hipóteses, jamais um corpo sem órgãos. É uma bizarra monadologia conectiva. De fato, jamais chega a se formar um “nós” molar, jamais se chega, por aí, não a uma ética do “si”, mas uma política do “nos”. Eis uma primeira crítica, digamos, biopolitica ou “foucaultiana” (no sentido de que parte de Foucault) que dirigiríamos ao capitalismo contemporâneo: falta-lhe agenciamento coletivo. A segunda crítica vai soar mais convencional e pode mesmo parecer uma reivindicação, socialdemocrata ou até intervencionista, por mais Estado. No momento, entretanto, isso parece mais viável do que, em tempos de endogenização otimizada, tentar lançar mão, no espírito dos manuais de neomanagement, mais um micro-experimento revolucionário que, de tão abstrato, não resultará em nada. O fato é que a autogestão neoliberal – embora haja quem se engane – obviamente não tem nada a ver com a ideia de autogestão produzida pela tradição socialista, tanto comunista, quanto, principalmente, anarquista (e que talvez possa ser reencontrada na contra-conduta e na anarqueologia do derradeiro Foucault, O governo dos vivos). A autogestão neoliberal se afina antes com certo “anarcoliberalismo” que Foucault chega a creditar a Milton Friedman e à Escola de Chicago, e que hoje, nos EUA, é representado por um filósofo (Robert Nozik) e difundido por um think-tank (Catho Institute) com poder de loby no Congresso norteamericano. Para esses “ultra-neoliberais” trata-se de, em primeiro lugar – por sinal, retomando a discussão de David Henry Thoreau acerca da desobediência civil – de repudiar a competência tributária do Estado para, em uma incontinência toxicomaníaca, desregulamentar completamente a propriedade e o comércio. E tudo isso por meio de um gesto revolucionário anarquista que deporia, da noite para o dia, todo o aparelho político-burocrático do Estado.

13 Teríamos o cenário insólito de uma distopia orwelliana em que o Big Brother morreu, quem governa é o mercado. Trata-se, portanto, de um inusitado “anarco-fascismo de mercado”. Hipérboles à parte, o fato é que a tendência de radicalização do neoliberalismo em face das crises releva algo importante acerca dos sonhos distópicos do capital. Tanto o caso que nem é mais recente da Grécia – dos “pacotes de austeridade” que há dois anos vêm gerando confrontos violentos entre governados e governantes –, quanto o caso da vitória recémconquistada pelos conservadores contra os socialistas na Espanha – que alguns leem como opção espontânea da maioria da população que compreendeu a urgência do momento e não só elege programas político-econômicos neoliberais para solucionar crises neoliberais, mas se compromete a aplicar a austeridade em si mesma – mostram que o modo do governo neoliberal enquanto tal é o de um governo que se retira, que suprime leitos hospitalares e bancos escolares, que faz viver livre no abandono, que governa sem governar. A função mais prática do empreendedorismo, pode-se dizer, é revogar por completo a responsabilidade que têm o Estado e a sociedade sobre o destino dos indivíduos, fazendo-os livres apenas para que possam arcar individualmente com seu sucessos e fracassos. O Estado social mínimo e financeiro máximo do neoliberalismo é o Estado desresponsabilizado. Ou ainda, o tempo da empresa responsável é, também, o tempo do Estado irresponsável e do indivíduo culpável: “se seu empreendimento der certo, está provado que o sistema funciona; se der errado, bem, é porque você é um loser”.

Referências

BOLTANSKI, Luc; CHIAPELLO, Ève. O novo espírito do capitalismo. Trad. I. Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2009. DELEUZE, Gilles. Conversações. Trad. P. Pelbart. Rio de Janeiro: 34, 1992. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Trad. R. Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1979. _____. Nascimento da biopolítica. Trad. E. Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008. GADELHA, Sylvio. Biopolítica, governamentalidade e educação: introdução e conexões, a partir de Michel Foucault. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. PELBART, Peter P. Vida capital: ensaios de biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2003. ZIZEK, Slavoj. Primeiro como tragédia, depois como farsa. Trad. M. Medina. São Paulo: Boitempo, 2011.

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