Decomposição À Chuva: A Cidade em Blade Runner

May 22, 2017 | Autor: Vanessa Varela | Categoria: Film Studies, Film Analysis, Blade Runner, Ridley Scott, Estudos De Cinema, Postmodern City
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Mestrado em Estudos Ingleses e Americanos

Decomposição À Chuva: A Cidade em Blade Runner

Paula Vanessa Varela Cidades Reais, Cidades Imaginadas Adelaide Serras Fevereiro 2017

ÍNDICE 1.

Introdução.................................................................................................................. 3

2.

Blade Runner ............................................................................................................. 4 2.1. Género e Estética em Blade Runner ...................................................................... 5 2.2.

Los Angeles, 2019 ............................................................................................. 7

3.

Conclusão ................................................................................................................ 13

4.

Bibliografia.............................................................................................................. 14

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1. INTRODUÇÃO A ligação entre a arte cinematográfica e o ambiente circundante onde esta se realiza é intrínseca. Em qualquer filme é necessário situar o espectador no espaço em questão para haver um seguimento da narrativa e criar empatia com os personagens e as suas acções em relação ao mundo, seja um futuro próximo, passado distante ou um universo fantástico. Acima de tudo, a construção do meio torna a obra plausível aos olhos do espectador. Ao compreender o quão indispensável é o espaço envolvente, mesmo quando este adquire uma vertente mais minimalista, torna-se possível observar o primeiro cinema e datar a sua relação com a cidade. A representação da cidade é uma ideia antiga que surgiu com o cariz documental do cinema mudo e a vontade de apresentar a vida urbana de uma forma celebrativa1. Nestas obras, embora com um carácter não-ficcional, a cidade detém o protagonismo por ser um factor condicionante nas motivações e acções dos restantes personagens. No entanto, apesar de ser um conceito que remota aos princípios do cinema, a ideia da cidade como protagonista de um filme de ficção demorou mais tempo a ser concretizada2. Para tal suceder o cinema teve de sofrer alterações e evoluir em termos técnicos e narrativos, uma evolução muitas vezes ligada a contextos históricos e políticos. Só este desenvolvimento permitiu à cidade infiltrar-se e desempenhar um papel tão central no enredo e, consequentemente, no cinema em geral, tornando-se impossível pensar em filmes como Das Cabinet des Dr Caligari (1920)3 e Metropolis (1927)4 sem lembrar a arquitectura

distorcida

claustrofóbica

e

os

edifícios

oponentes

opressivos,

respectivamente. O ensaio que se segue visa explorar a cidade de Los Angeles de Blade Runner (1982). Realizado por Ridley Scott, a sua primeira longa-metragem nos Estados Unidos, Blade Runner é um dos filmes representativos da década de 80 e do género de ficção científica. Actualmente é visto como uma demonstração dos anseios de um futuro negro propiciados pela época e serve de inspiração para diversas áreas académicas, especialmente para teoria e história do cinema, e novas obras cinematográficas. Este

Geoffrey Nowell-Smith, “Cities: Real and Imagined”. Cinema and the City: Film and Urban Societies in a Global Context. Mark Shiel e Tony Fitzmaurice (ed.). (Massachussets: Blackwell Publishers LTD, 2001), 104. 2 Ibid. 3 Considerado o filme inaugural do Expressionismo Alemão. (Das Cabinet des Dr. Caligari. Real. Robert Wiene. Decla Film Gesellschaft Holz & Co., 1920). 4 Considerado o filme pioneiro da ficção cientifica. (Metropolis. Real. Fritz Lang. Universum Film (UFA), 1927) 1

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sucesso, no entanto, não é espelho do sucesso de bilheteira ou entre a maioria da população e os críticos de cinema de 1982, tornando-se um cult movie5 com uma crescente comunidade de seguidores. Blade Runner enquadra-se no tipo de obra maioritariamente filmada em estúdio cujo ambiente oferece uma visão de um futuro distópico de uma cidade que pode ou não ser identificada com um lugar real6. A metrópole anunciada na cena de abertura do filme, Los Angeles de 2019, está longe do aspecto citadino e radiante que a audiência conhece da cidade verdadeira. A perspectiva aérea do plano geral apresenta uma cidade monumental, tanto na quantidade de arranha-céus como no espaço que parece ocupar, mas as torres cuspidoras de fogo resultante da combustão de gases, a poluição aérea tão densa que se torna visível e esbate a linha do horizonte, e o céu negro criam desde logo uma atmosfera opressiva e sufocante. Segundo David Dryer, supervisor dos efeitos especiais em Blade Runner, este ambiente torna a cidade numa “personagem chave na história”7 capaz de influenciar as personagens humanas e não-humanas. A representação de Los Angeles a que Ridley Scott deu vida no ecrã serve como um estudo pós-modernista da cidade que caiu num abismo de excesso tecnológico em constante decomposição. Este estigma de ruína envolve e afecta toda a sociedade num discurso sociopolítico sobre a luta de classes, esferas públicas e privadas, a história individual ligada à memória e o questionamento da definição de ser humano. Deste modo, o presente ensaio não quer apenas explorar como a cidade influencia as motivações das personagens, mas também demonstrar a sua existência como um reflexo da sociedade.

2. BLADE RUNNER Baseado na obra literária publicada em 1968 de Philip K. Dick, Do Androids Dream of Electric Sheep?, Ridley Scott apresenta a cidade de Los Angeles do ano 2019 por um

Xavier Mendik, co-autor do livro 100 Cult Films (2011), define o conceito como sendo “50 per cent about the content and style and 50 per cent about the fans and the way they see it”, ou seja, é transversal aos géneros, desafiam as convenções dos mesmos, das técnicas cinematográficas e da narrativa, tornando-se estilizados, e dependem da audiência. (Aftab, Kaleem. Scholar devises equation for determining a cult film. 10 de Dezembro de 2010. http://www.independent.co.uk/arts-entertainment/films/features/scholar-devisesequation-for-determining-a-cult-film-2155417.html Acedido a 10 de Janeiro de 2017) 6 Geoffrey Nowell-Smith, “Cities: Real and Imagined”. Cinema and the City: Film and Urban Societies in a Global Context. Mark Shiel e Tony Fitzmaurice (ed.). (Massachussets: Blackwell Publishers LTD, 2001), 101. 7 Dangerous Days: Making Blade Runner. Real. Charles de Lauzirika. Lauzirika Motion Picture Company. 2007. 5

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prisma futurista e distópico. O enredo segue Rick Deckard, um polícia reformado, pelas ruas iluminadas por tubos de néon da metrópole onde a chuva é incessante e o ar poluído visível, na sua perseguição de quatro replicantes Nexus 6. Replicantes são humanóides, ou pessoas sintéticas, criados por Errol Tyrell para servir os humanos nas Colónias Fora do Planeta8. O seu objectivo ao regressar à Terra, local de onde estão banidos sob a pena de morte, é defrontar o seu criador. O objectivo de Deckard, contratado pela polícia como blade runner, é matá-los. A sinopse de Blade Runner alude imediatamente aos géneros e estilos que o filme engloba e a alguns dos problemas e anseios sociais da humanidade em relação à complexidade da tecnologia desenvolvida e implantada no quotidiano e as suas repercussões.

2.1. GÉNERO E ESTÉTICA EM BLADE RUNNER A chave para tornar a Ficção Científica em um dos géneros narrativos mais cativantes encontra-se na pluralidade de subgéneros que engloba e, por sua vez, na capacidade de abrir novos mundos aos seus entusiastas. Inserida no género de speculative fiction9 e dependente do grau de suspensão de descrença10, a Ficção Científica explora conceitos imaginários de forma racional, ou seja, os seus criadores especulam sobre tecnologia, viagens no tempo, universos paralelos e vida fora da Terra através de Leis da Física previamente comprovadas ou cuja possibilidade científica ainda se encontra em aberto. Segundo Christine Cornea, o fascínio por mundos e futuros alternativos advém da disposição dos aficcionados para estarem “caught between that which exists outside of the laws of a known world and that which might be read as a logical extension of the known world” (4). Da mesma forma que cria novos universos e analisa as suas potencialidades, também estuda os aspectos negativos da ciência na sociedade. As circunstâncias prejudiciais são habitualmente traduzidas em cenários distópicos onde dominam sistemas políticos e sociais diferentes da realidade. As produções de

“Off-World Colonies” no original. Género de ficção que abrange obras onde o cenário é diferente do mundo real, envolvendo elementos sobrenaturais, futuristas ou outros elementos imaginados. (em "Speculative Fiction". Oxford Dictionaries, https://en.oxforddictionaries.com/definition/speculative_fiction. Acedido a 23 de Janeiro de 2017) 10 Termo cunhado por Samuel Taylor Coleridge na obra Biographia Literaria de 1817 refere-se a uma disposição por parte do leitor para suspender o julgamento crítico e acreditar no inacreditável quando o autor insere “human interest and a semblance of truth” na sua obra. (Coleridge, Samuel Taylor. "Chapter XIV". Biographia Literaria. 1817. http://www.english.upenn.edu/~mgamer/Etexts/biographia.html. Acedido a 23 de Janeiro de 2017) 8 9

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Hollywood, das quais Blade Runner faz parte, visualizam estas distopias, ou utopias negativas11, como locais inóspitos onde a poluição ambiental parece irreversível, as ruas têm um excesso de população e as classes sociais são divididas entre o povo e os governantes autoritários e totalitários. Os motivos para esta degeneração colectiva, isto é, da sociedade e do mundo circundante, surgem do desejo por uma “melhoria social e transformação tecnológica” (Williams 196). Porém, e como é evidente no filme, em vez de gerar uma nova vida com melhores condições, as consequências são desastrosas, obrigando a população a aprender a sobreviver no caos científico e tecnológico (Williams 197 – 198). Assim, é possível concordar com Éric Dufour quando este declara “a distopia é unilateralmente crítica” (172) no cinema da Ficção Científica, uma vez que problematiza o desenvolvimento científico sem limites morais e cujo objectivo é somente de exploração económica. Além da estética distópica, a cidade em Blade Runner é considerada uma cidade expressionista12 no sentido em que integra características formais do Expressionismo Alemão dos anos 20. Erguido na sequência da derrota alemã na Primeira Guerra Mundial e do sentimento de humilhação e inquietação política e socioeconómica, este fenómeno artístico, cuja crítica social é intrínseca, procura a essência daquilo que rodeia a humanidade e transmite-a numa linguagem simbolista e metafórica em que a dimensão emocional é exteriorizada e reina a subjectividade do indivíduo. O expressionismo, como Lotte Eisner afirma, “não vê, tem visões” (19), reforçando a vertente psicológica do estilo. Ridley Scott inspira-se nesta corrente artística, por um lado, para a criação da atmosfera misteriosa da cidade dominada por sombras escuras e luminosidade nebulosa; por outro, enfatiza o contraste das classes sociais de forma arquitectónica com arranha-céus semelhantes a fortalezas a proteger os privilegiados e as massas a viverem muito mais abaixo nas ruas degradadas, tornando-se reminiscente de Metropolis (1927). Caso se olhe para a Los Angeles de 2019 do ponto de vista da maioria da população poder-se-á dizer que é simbólica de um estado psicológico oprimido e subjugado pela minoria detentora do poder económico. Por isto, o filme acompanha a linha histórica do Expressionismo ao transmitir um sentimento de mal-estar e desencantamento com o estado da sociedade (Williams 387). Raymond Williams, “Utopia and Science Fiction”. Problems in Materialism and Culture. (Londres: Verso Editions and NLB, 1982), 196. 12 Geoffrey Nowell-Smith, “Cities: Real and Imagined”. Cinema and the City: Film and Urban Societies in a Global Context. Mark Shiel e Tony Fitzmaurice (ed.). (Massachussets: Blackwell Publishers LTD, 2001), 107. 11

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Blade Runner, considerado o fundador da corrente cyberpunk no cinema13, reúne os diversos elementos característicos deste subgénero da Ficção Científica: a estética urbana, o mundo informático e o cariz político. O primeiro, retirado do film noir14, referese ao espaço urbano, permanentemente escuro e chuvoso ao qual se junta a poluição omnipresente, a difusão de culturas e onde domina o caos, “dimensões específicas da cidade futurista” (Dufour 193). Igualmente inspirado no estilo noir é o protagonista, Rick Deckard, detective reformado que vagueia pelas ruas sombrias perseguido por uma aura de derrotismo e retoma a sua profissão para uma última missão15; e Rachel, replicante do sexo feminino, sensual e misteriosa de cabelo preto, batom vermelho e com uma moral ambivalente, segue o estereótipo clássico da femme noir (Williams 387). O segundo está ligado à tecnologia, “informatização do mundo e representação de outras formas de vida” (Dufour 193). Na Los Angeles de Scott há a dicotomia homem/máquina, contudo, a autonomia avançada dos replicantes e o questionamento sobre a sua História torna a separação entre os dois tipos de seres cada vez menos nítida. O terceiro elemento expõe o herói do cyberpunk como “um revoltado que foge à ordem social e que a transgride” (Dufour 193) devido à dimensão política, “dissolvida no mundo económico” (192), e social onde vive. Deckard é esse herói que apercebe a cidade e o mundo com uma perspectiva diferente, luta contra o carácter intolerável da humanidade, com sucesso ou não, ao fugir com Rachel e ignorando tanto as normas sociais como as ordens das figuras autoritárias.

2.2. LOS ANGELES, 2019 A representação da cidade em obras visuais de Ficção Científica não seria possível sem o trabalho cenográfico, componente responsável por tornar a criação do futuro em algo realista para a audiência. A projecção de edifícios, novos veículos e armas para encaixar no novo mundo segue o ideal do género ao estar enraizado no familiar e, simultaneamente, no iconográfico16. Devido ao estilo monumental da sua concepção e pela capacidade de a cenografia tornar certas imagens em ícones, a cidade repleta de

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Éric Dufour, O Cinema de Ficção Científica. (Lisboa: Edições Texto e Grafia LDA, 2012), 193. Movimento artístico que surgiu em Hollywood no inicio da década de 40 com argumentos inspirados na ficção de crime americana, ficando conhecido pela sua vertente melodramática e cínica com um ambiente visivelmente escuro. (em “Film noir”. Film Noir Foundation, http://www.filmnoirfoundation.org. Acedido a 23 de Janeiro de 2017) 15 A primeira versão dos EUA contém voiceovers de Harrison Ford a narrar partes do enredo e pensamentos de Deckard, técnica muito utilizada no noir. 16 Keith M. Johnston, Science Fiction Film: A Critical Introduction. (Berg Publishers, 2011), 14. 14

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arranha-céus de Blade Runner transformou-se num marcador de género. Tal como Ronald D. Moore, criador da série Battlestar Galactica, afirma “you’ll talk about a Blade Runner look, a Blade Runner feel of the future and that sort of defines a certain iconography. (…) The whole landscape is now part of the conversation”17. Esta conversa surge no campo da realização de obras vindouras como tela de comparação e inspiração, mas sobretudo no diálogo de descodificação de imagens e símbolos entre enredo e cenário. Los Angeles de 2019 é caracterizada pela sua verticalidade. O contraste entre o topo e a zona baixa da cidade é evidente na sua organização e composição. Por um lado, os imponentes arranha-céus, os grandes ecrãs publicitários e os hovercars18; por outro, a degradação e a sobrelotação de massas nas ruas, rodeada por áreas comerciais e a diversidade de dispositivos tecnológicos. Enquanto visualmente notória, a disparidade não funciona somente como marca de oposição em termos de divisão de classes sociais, mas adquire também uma vertente de consequência ao colocar “o comércio numa relação estrita com a tecnologia” (Williams 384), que, continuamente, afunda a cidade e a sociedade em um ciclo de consumismo e, consequentemente, empobrece-as. Assim sendo, nesta metrópole, a arquitectura espelha o poder capitalista. No alto observam-se os logótipos cintilantes e coloridos da Coca-Cola e da Pan Am, similares em tom aos zepelins anunciadores das Colónias Fora do Planeta, aludindo ao domínio influente das corporações na cidade. Além da influência consumista, a arquitectura mostra os detentores do poder governamental. Visível pelo tamanho enorme do edifício, acessível apenas pelo topo, ou seja, por quem seja proprietário de um hovercar, a polícia é a responsável pelo controlo da ordem social. Segundo Scott, “the police form will become a kind of paramilitary” devido às “religious, political, social, and just nut-cases factions” (Kennedy 39), ou seja, a existência de uma fragmentação social torna este controlo necessário. O poder policial na sociedade estende-se ainda a ditar quem é humano ou replicante e tornar qualquer pessoa em um alvo a abater imediatamente. Rachel, replicante que só conhece a sua natureza depois de fazer o teste, questiona Deckard, “Have you ever retired a human by mistake?”, ao qual não se obtém resposta. Para diferenciar o humano da máquina, a polícia utiliza o teste Voigt-Kampff que estuda as reacções corporais, supostamente impossíveis de controlar, a questões respondidas na positiva ou negativa. A ironia deste teste cujo objectivo é identificar replicantes, especialmente Nexus 6, os

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Dangerous Days: Making Blade Runner. Real. Charles de Lauzirika. Lauzirika Motion Picture Company. 2007. 18 Literalmente carros que pairam ou voam.

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mais avançados, e tornar mais óbvia a separação entre humano e máquina, é o facto de “never confirm a human being as a human” (Doel and Clarke 156), levantando questões sobre o que diferencia realmente as duas espécies com excepção da forma como nascem. Ao observar o controlo destes dois elementos da cidade, Judith Kerman afirma “the only government we see consists of cops, advertising and garbage trucks” (18). Porém, existe outro elemento a exercer poder político. A dominar o horizonte de Los Angeles está a Tyrell Corporation, uma pirâmide colossal reminiscente da Pirâmide do Sol Maia, “reminding us of human sacrífice” (Kerman 19), uma leitura igualmente possível no filme. Sendo sede e casa de Errol Tyrell, criador dos replicantes, é um local onde o poder e a tecnologia se unem, mas unicamente acessíveis, tal como no edifício da polícia, por hovercars ou elevadores com acesso controlado, ou seja, a quem tem direito e autorização para aceder ao local, mantendo, uma vez mais, a distância entre a classe alta e baixa. Esta montanha virtual é onde é possível ver a luz do dia sem qualquer obstrução de poluição ou outro edifício, sugerindo que o Sol e a visão clara do mundo à volta são “privilégios partilhados apenas entre os ricos e poderosos” (Kerman 19). Contrariamente à sensação de espaço aberto oferecida por estes locais afastados do solo, a cidade junto ao solo, rodeada por uma escuridão enfumaçada, é “visually and acoustically intrusive” (Kerman 19). A técnica visual utilizada por Scott, particularmente os grandes planos, cria um espaço social opressivo onde o espaço pessoal não existe e o olhar do público sobre a acção é sempre interrompido por personagens, paredes ou ruínas e lixo. A impressão obtida é de um ambiente confinado e claustrofóbico abandonado pela esperança de uma vida melhor. Todavia, as luzes de néon, classificadas como invasoras sensoriais, são coloridas, brilhantes e desfazedoras do negrume permanente. De certa forma são representantes do Sol que a classe alta proíbe de ver, mas algo tornado possível para sobreviver na cidade impiedosa de Los Angeles. O tema da superpopulação é representado através do multiculturalismo encontrado na cidade, dos estilos de vida, etnias, e, particularmente, a abundância das referências orientais. Devido ao género onde se enquadra, o cyberpunk, é possível observar a influência asiática na cultura ocidental, “its seamless weaving together of the futuristic and the traditional” (Yuen 4) e a forma paradoxal como fascina a audiência no meio da miséria urbana, desde o ecrã gigante com a geisha, os néons em forma de dragão, as tendas de comida asiática ao engenheiro biológico, criador dos olhos para os replicantes, e Gaff, o polícia, que fala a língua da população denominada “cityspeak”, uma mistura de

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palavras do Japonês, Húngaro, Chinês e Francês. Los Angeles de 2019 é uma cidade esteticamente alterada tornando-se culturalmente caótica. Como Giuliana Bruno afirma: The explosion of urbanization, melting the futuristic high-tech look into an intercultural scenario, recreates the Third World inside the first. One travels almost without moving, for the Orient occupies the next block. The Los Angeles of Blade Runner is China(in)town. (66) Porém, o excesso de população é observado somente nas ruas. J.F. Sebastian, engenheiro genético que vive sozinho no decadente Bradbury Building, afirma não haver escassez de habitação. A cidade parece um vazio lotado de onde todos os elegíveis e qualificados decidiram emigrar para as Colónias Fora do Planeta, local elitista nunca apresentado, mas o qual a audiência imagina ser habitável e mais prazeroso. Para trás ficou uma multidão de Orientais e Hispânicos a viver na pobreza rodeados por edifícios vazios. O espelho do capitalismo mostra “irrational social developments” (Kerman 17), neste caso, a construção massiva de locais de habitação demasiado caros para a população empobrecida, ficando assim vazios e ao abandono enquanto as multidões ficam nas ruas. Deste modo, torna-se viável a leitura do espaço público e privado estar ligado ao estatuto social. As únicas personagens com uma habitação particular decorada com objectos pessoais e onde podem estar afastados do mundo caótico exterior são Tyrell, na pirâmide espaçosa; Deckard, no apartamento desarrumado; e Sebastian, embora localizado num edifício mais perto do solo e da população geral, ainda assim é uma área isolada, física e emocionalmente19. A restante população parece estar espalhada pelo espaço público sem uma ordem específica. Não obstante, em ambos os casos, um sentimento de isolamento e solidão do indivíduo permeia a cidade, parecendo enfatizado devido ao caos das multidões sem rosto. A cidade de Blade Runner é uma personagem omnipresente capaz de modelar a vida de todas as outras personagens nela contidas. A crueldade do ambiente opera como um método de escolha do mais forte, isto é, “the success of the characters is connected with their ability to thrive” (Carper 189). Em termos visuais, a arquitectura ganha outra vertente além de ser cenário da contínua expansão entre pobres e ricos, uma vez que, simultaneamente funciona como o reflexo da sociedade.

Steve Carper. “Subverting the Disaffected City: Cityscape in Blade Runner.” Retrofitting Blade Runner. Ed. Judith Kerman. (Popular Press, 1991. 185 – 193), 187. 19

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Los Angeles de 2019 tem uma tendência para o lado negro ao manifestar de maneira clara a decadência urbana e o lixo que se encontram debaixo das suas estruturas modernas e futuristas. O futuro limpo idealizado através do uso metódico de tecnologia é em Blade Runner transformado em uma estética de decadência devido à falta de controlo sobre os processos tecnológicos. Tal como Giuliana Bruno afirma, “the link between postmodernism and late capitalism is highlighted in the film’s representation of postindustrial decay” (63). O estado de deterioração é capturado visualmente pelo uso de retrofitting20, em que aspectos do futuro e do passado estão ligados, particularmente nos edifícios repletos de tubagens e luzes de néon nas paredes. Enquanto criador de um cenário futurista é uma referência à economia, cuja desintegração idêntica à cidade não permite a remoção de edifícios para a construção de novos devido aos custos21, obrigando a uma estética de camadas com o novo sobre o antigo. Esta decadência pós-industrial é mostrada similarmente pelo lixo tecnológico espalhado pelas ruas e é identificada por Bruno como “an effect of the acceleration of the internal time of process proper to postindustrialism” (64), dando a ideia de uma cidade degradada, desmoronando sob o peso do comercialismo e do consumismo. Em comparação, o mesmo pode ser dito e observado na população que preenche as ruas da cidade. Por um lado, a maioria Oriental é retratada de maneira anciana e decrépita; por outro, a personagem de J.F. Sebastian com 25 anos parece extremamente velho como se o seu tempo interno estivesse demasiado acelerado e a reacção biológica do corpo é o desgaste físico exterior, impossibilitando a sua emigração para as Colónias Fora do Planeta, uma vez que, mesmo sendo engenheiro genético, não acomoda as condições de saúde necessárias para ser elegível. O próprio local onde vive, Bradbury Building, anteriormente uma estrutura majestosa, é agora uma concha vazia em constante degradação exterior; espelho do seu único residente. Similarmente, aos replicantes foram dados apenas quatro anos de vida e, por isso, sofrem da patologia “accelerated decrepitude” levando-os a uma morte prematura, algo que combatem durante todo o filme. Esta falta de tempo, partilhada entre a cidade e a sua população, humana ou não-humana, gera um sentimento de efemeridade de tudo que circunda a vida, isto é, uma noção de que tudo é descartável, sendo possível relacionar com a lógica baseada na cultura consumista.

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Instalar (peças novas ou modificadas ou equipamento) em algo anteriormente fabricado ou construído. (em “Retrofit”. Merriam Webster, https://www.merriam-webster.com/dictionary/retrofit. Acedido a 28 de Janeiro de 2017) 21 Harlan Kennedy. “Twenty-First Nervous Breakdown.” Ridley Scott: Interviews. Ed. Laurence F. Knapp e Andrea F. Kulas. (University Press of Mississipi, 2005), 39.

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A tecnologia avançada em Blade Runner atingiu o clímax aquando da criação dos replicantes. Seres criados à imagem dos humanos, embora mais fortes, inteligentes e ágeis, em estado adulto e com limite de vida de quatro anos, os replicantes foram fabricados com o intuito de melhorar a vida das pessoas nas Colónias Fora do Planeta. O estatuto de escravos tecnológicos da Humanidade evoca, uma vez mais, a noção do descartável: “they are not only to be destroyed if they malfunction, but their short lives make them the ultimate in planned obsolescence” (Kerman 21). Assim, ao serem geneticamente concebidos por muitos, sugerindo uma extensiva indústria de produção e consumo, e consequentemente de poder económico, os replicantes fazem parte da máquina industrial e dos resíduos que assolam todos os recantos da cidade. Contudo, mesmo se o final da sua vida signifique serem transformados em detritos industriais, a questão do livre-arbítrio manifesta-se de forma crítica com os replicantes. Roy Batty, replicante construído segundo o clássico super-homem Ariano22, ao regressar à Terra, relembra o espectador que toda a vida de um replicante “is lived on burrowed time” (Doel and Clarke 159). Esta falha de fabrico, segundo Judith Kerman, não está relacionada com a necessidade destes humanóides terem efectivamente uma vida mais curta de forma a não terem tempo de maturação emocional, mas “as the development of control problems which make a short life convenient” (21). Ao dar memórias de uma família a Rachel, Tyrell está a exercer um poder de controlo sobre ela ao evitar a descoberta da própria em relação à sua natureza. Caso descubra e se revolte, o que acontece, terá poucos anos de vida até deixar de funcionar. Metaforicamente, Batty liberta-se deste tempo emprestado ao matar o seu criador e a imagem dominante que este tinha na sua vida. Assim, ganha uma subjectividade “defined in relation to his own death” (Doel e Clarke 160) que permitirá a sua escolha entre matar ou não Deckard. O estado decadente da cidade, juntamente com a poluição e a superpopulação, pode ser considerado um resultado de excesso económico, referido por Marcus A. Doel e David B. Clarke como “the representation of postindustrial decay, the proliferation of waste having come to serve as an index of accelerated turnover time of a new phase of capitalism” (146). É uma representação da cultura capitalista descontrolada cujo foco extremo no comércio conduziu à extinção de toda a natureza, sendo necessário fabricar animais, e a uma ininterrupta chuva ácida e corrosiva, sinal de um clima industrialmente alterado. Los Angeles de 2019 é uma capital cosmopolita, mas enquanto abraça o Judith Kerman. “Technology and Politics in the Blade Runner Dystopia.” Retrofitting Blade Runner. Ed. Judith B. Kerman. (Popular Press, 1991), 22. 22

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potencial da globalização, adere igualmente à estética decadente em escuridão perpétua do céu poluído e pilhas de lixo em ruas rodeadas por fumo.

3. CONCLUSÃO Blade Runner alude aos anseios tecnológicos da década de 1980 e, ao mesmo tempo, de assuntos actuais sobre a natureza da humanidade, as implicações da tecnologia na sociedade e a ética da manipulação genética e da propriedade humana sobre outras formas de vida. A metrópole cibernética de Los Angeles de 2019 é uma amalga de diversas culturas a rebentar com detritos encharcados pela chuva, poluição iluminada por néons e uma população com tantos sinais de decadência como a cidade que habita. A representação da cidade pós-industrial é a de uma cidade e uma sociedade em ruínas23 onde a história individual está “em imediata relação com a de uma sociedade” (Dufour 28). Outras abordagens possíveis para a leitura de Blade Runner prendem-se com o questionamento da História do indivíduo e, consequentemente das memórias de cada um, criadoras de uma identidade pessoal. Devido à inexistência de um passado e a existência de um futuro limitado, Bruno afirma “replicants are condemned to a life composed only of a present tense” (70). Porém, até que ponto é que esta vida extremamente condensada não torna os replicantes mais humanos, uma vez que vivem intensamente e procuram adquirir memórias criando, assim, um passado recente? Ou quão realmente é importante ter uma História para ser humano quando a própria cidade parece estar perdida sem vestígios de uma História? Outro tema proposto pela sociedade distópica de Los Angeles de 2019 são as questões de género. As três personagens femininas são replicantes, aí já colocadas no papel do “outro” por serem geneticamente construídas, e seguem o estereótipo de subjugação perante os homens: Pris e Zhora existem para agradar aos homens e Rachel age como o interesse amoroso submisso. É este um reflexo da sociedade da época da realização do filme ou uma chamada de atenção para um futuro que não parece alterar os seus ideais patriarcais?

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Giuliana Bruno. “Ramble City: Postmodernism and "Blade Runner".” (Outubro 1987), 65.

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4. BIBLIOGRAFIA Aftab, Kaleem. Scholar devises equation for determining a cult film. 10 Dezembro 2010. 17

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