Defensores dos direitos dos animais: o sofrimento como atributo compartilhado por humanos e animais

June 5, 2017 | Autor: Ana Paula Perrota | Categoria: Antropología, Direitos dos Animais
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IX Reunião de Antropologia do Mercosul 10 a 13 de julho de 2011 - Curitiba, PR GT: Antropologia das Emoções

Defensores dos direitos dos animais: o sofrimento como atributo compartilhado por humanos e animais

Ana Paula Perrota PPGSA/IFCS/UFRJ

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Introdução O pensamento ocidental sobre a relação entre humanos e animais é caracterizado por uma oposição entre os termos natureza e cultura. Diferentes atributos são destacados a fim de marcar a especificidade e o privilégio do homem frente às demais espécies. A posse de cultura, linguagem, alma e racionalidade são algumas características comumente apontadas para afirmar a condição e a singularidade humana em detrimento dos demais viventes. Mas, contrário a essa tendência marcada pelo processo de definição da fronteira que distingue os seres humanos dos animais, observa-se nas últimas décadas um esforço no sentido de apontar as semelhanças entre humanos e não humanos. Como será discutido, tratase de uma tentativa de questionar a singularidade humana em muitos aspectos acionados até então para demarcar os privilégios atribuídos aos humanos em relação aos animais. Observa-se então que embora a modernidade seja caracterizada pela afirmação da condição humana e sua singularidade (Ingold, 1994), o que está sendo colocado em jogo atualmente por determinados setores da sociedade é o questionamento sobre a condição de humanidade e animalidade. A produção acadêmica de cientistas sociais e naturais e a mobilização política dos chamados movimentos de libertação animal são alguns exemplos da situação atual marcada pela tentativa de problematizar a fronteira entre humanos e não humanos. Ainda que esse trabalho focalize a ação dos movimentos que lutam em favor dos animais, cabe destacar a produção acadêmica sobre esse assunto, uma vez que o movimento não só é composto também por pesquisadores das áreas humanas e naturais, como se apropria da produção científica de outros estudiosos para conferir legitimidade às suas reivindicações. Tendo em vista as mobilizações políticas dos movimentos de libertação animal, pretende-se investigar os mecanismos acionados por esses atores para a construção das semelhanças entre humanos e não humanos, de modo que estes sejam incluídos também em uma comunidade moral. Essa perspectiva que busca pensar antropologicamente sobre a concepção e a relação dos seres humanos com os animais dialoga com o trabalho de Luis Dumont (1992) a respeito da constituição da noção de indivíduo moderno. A partir da relativização da ideia de individuo e de humanidade trazida pelo autor, 2

perguntarei como esses atores representam a humanidade e sua relação com os animais através de um princípio de igualdade. Desse modo, se o autor partiu da igualdade como valor moderno para colocar em relevo o seu oposto, que é a hierarquia, a intenção nesse trabalho é partir da hierarquia (entre seres humanos e animais) como valor moderno, para pensar o seu oposto (defendido pelos movimentos de libertação animal), que é a igualdade entre esses seres. Para tanto, a dimensão das emoções, centrada na questão do sofrimento 1, será abordada nessa apresentação como um importante eixo mobilizado pelos defensores dos direitos dos animais para afirmar a simetria entre humanos e não humanos. A partir do pressuposto de que a animalidade e a humanidade não são condições biológicas, o objetivo desse trabalho é pensar sobre como a mobilização da noção de sofrimento busca re-ordenar a fronteira entre a humanidade e animalidade. Contudo, é importante deixar claro que não se pretende com essa apresentação afirmar normativamente o sofrimento dos animais e nem considerar a própria ideia de sofrimento como um dado objetivo. Trata-se antes de investigar como essa noção adquire centralidade no discurso dos movimentos de libertação animal e quais as implicações dessa mobilização política que reivindica a produção de uma nova fronteira inclusiva no que se refere à consideração moral dos não humanos. Desenvolvo essas questões com base nas pesquisas iniciais realizadas para a produção da minha tese. Além da presença em Encontros e Fóruns que debatem sobre os “direitos dos animais”, dos grupos de e-mail que circulam na internet, participo também do Grupo de Estudos Direitos dos Animais e Ecologia Profunda, da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Janeiro

Movimento de Libertação Animal: o abalo das fronteiras entre humanos e nãohumanos

Mais de 40 ativistas reuniram-se no dia 02 de outubro de 2010 para protestar o confinamento de três urubus que “compõem” a “obra-de-

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Considerando os sentidos sociais do sofrimento, o termo será usado tendo em vista que ele se constitui como produto das relações sociais. Então, embora não usarei aspas quando citar esse termo, é necessário assinalar que não o assumo como uma forma descritiva, mas como uma construção moral particular dos movimentos de libertação animal.

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arte” do pseudo-artista Nuno Ramos, acometido por tamanha falta de criatividade ao ter que recorrer a animais para ilustrar as suas obras que a sua presença na Bienal chega a ser uma ofensa aos artistas brasileiros. Usando correntes e algemas (que, aliás, não foram detectadas pelo sistema de segurança com revista de bolsas e detectores de metal que a Bienal ostenta sem sucesso), dois ativistas da ONG VEDDAS prenderam-se à estrutura adjacente à instalação onde os urubus estão confinados e aproveitaram a companhia dos outros ativistas presentes, vindos de várias frentes do movimento, para informar ao público visitante sobre os crimes que estavam testemunhando, enfatizando que não se tratava de mera polêmica ou uma simples crítica à obra, mas do testemunhar de um crime ambiental que é muito bem definido pela legislação brasileira.2

Nos últimos anos é possível observar no Brasil e em diferentes países mobilizações como estas, de organizações que defendem os “direitos dos animais”. Trata-se de movimentos que denunciam qualquer tipo de utilização dos animais para fins humanos, reivindicando o fim de toda “exploração” dos animais. Diante de diferentes formas de manifestação política em favor dos animais, consideradas mais radicais ou menos, é preciso apresentar mais detalhadamente os movimentos a que estou referindo. A partir de uma análise inicial, observamos que as ações políticas dos movimentos de libertação animal3 se direcionam radicalmente contra qualquer apropriação desses seres por parte dos humanos. Sendo assim, os movimentos que serão aqui investigados se caracterizam pela luta contrária: 1) Ao uso de animais para o consumo - por isso esses grupos postulam um estilo de vida “vegan” 4; 2) Ao uso de animais como matéria-prima. Esses grupos são contra a fabricação de vestuários de couro ou casacos de pele, por exemplo; 3) Ao uso de animais para experimentações em laboratório - por isso boicotam e protestam contra as indústrias farmacêuticas e de cosméticos ou universidades que realizam testes científicos com 2

Disponível em: http://www.veddas.org.br/noticiasmenu/32-veddas-em-24-dias-de-acoes.html Também chamados de Movimentos de Direitos dos Animais e Movimento Abolicionista Animal. 4 Os indivíduos que adotam um estilo de vida “vegan” rejeitam o consumo de qualquer produto de origem animal (leite, ovos, mel, couro, por exemplo), além de produtos testados em animais. Esse grupo classifica os vegetarianos como “ovo-lacto-acomodado” porque excluem “apenas” a carne de sua dieta, mas mantém o consumo de derivados de origem animal. 3

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animais; 4) Ao maus-tratos conferidos aos animais, incluindo animais domésticos por isso realizam campanhas, por exemplo, contra o abandono ou de adoções desses animais; 5) Por fim, ao uso de animais como entretenimento – lançando campanhas contra rodeios e circos, por exemplo. Com essa posição contrária às formas segundo as quais os animais estão submetidos, os movimentos trabalham “para promover a defesa dos direitos animais e difundir os argumentos em favor de uma alimentação e um estilo de vida livres da exploração de seres inocentes”

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. Para tanto, esses movimentos promovem

manifestações públicas, além de recorrer à legislação como estratégia para assegurar condições legais que garantam a liberdade dos animais 6. E também se articulam para conferir dignidade a esses seres através da rejeição aos princípios éticos e racionais que determinam e justificam o seu uso para fins humanos. Considerando essas estratégias, observa-se que a luta em favor da libertação animal consiste em desaprovar o modo de agir dos homens em relação a esses seres. Práticas que são reconhecidas moralmente como a produção industrial da carne ou o uso de animais em pesquisas científicas são radicalmente condenadas por esses movimentos. Assim, na medida em que os movimentos de libertação animal “estabelecem um elo de ligação entre ação ambiental e revolução cultural” (Castells, 1999, pág. 149) busca-se romper com o sistema de relação atual entre homens e animais.

Tornando a fronteira exclusiva

Justamente porque o Campo é uma grande engrenagem para nos transformar em animais, não devemos nos transformar em animais; até num lugar como este, podese sobreviver, para relatar a verdade, para dar nosso depoimento; e, para viver, é essencial esforçar-nos por salvar ao menos a estrutura, a forma da civilização (Levi, 1988, pág. 39).

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Retirado do site do VEDDAS. www.veddas.blogspot.com Em alguns municípios do país há leis que proíbem a presença de animais em circos e a realização de rodeios. E através da participação política desses movimentos está em votação uma lei federal que proíbe a apresentaçãode animais em circos de todo território nacional. 6

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Primo Levi, no romance É isto um homem? (1988), se preocupa com a destruição da humanidade realizada, segundo o autor, pelos alemães nos Campos de concentração. A reflexão na obra do autor sobre a morte do homem não no sentido literal, mas como a morte da condição humana e a transformação ou rebaixamento do homem em animal, ressaltam o ideal que marca a modernidade, que é o de se manter distante da animalidade e próximo dos atributos que constituem a humanidade. Para entendermos esse limite moral entre o animal e o homem não podemos deixar de pensar no legado do pensamento cartesiano na ciência e no pensamento ocidental. A teoria de René Descartes sobre os “animaismáquina”, que alimentou entre nós as representações do animal nos últimos séculos, é fundamental para a compreensão da noção de singularidade humana (Derrida, 2002; Ingold, 1994; Lestel 2001). Embora a teoria dos animais-máquina tenha sido secundária para o próprio Descartes, como afirma Dominique Lestel (2001), essa concepção tornou-se elemento essencial do sistema cartesiano a partir dos trabalhos de autores como Nicolas Melebranche e John Ray (Larrére, 2010; Lestel, 2001). O que se seguiu através das elucubrações de filósofos e naturalistas cartesianos ainda no século XVII foi a elaboração de ideias de diferentes naturezas a fim de demarcar a questão do animal e a sua separação frente os humanos. Nesse sentido, buscava-se comprovar que o animal é uma máquina montada de peças materiais e incapaz de sofrer. A primeira característica problematizada pelos cartesianos convictos a fim de encerrar os animais em uma condição oposta à condição humana foi o reconhecimento da posse de uma inteligência diferente dos humanos, mas semelhante às plantas e relógios. Essa inteligência atribuída por Malebranche aos animais existiria, segundo Lestel (2001) somente em razão de sua descrença no acaso. Dominique Lestel nos esclarece então o raciocínio de Melebranche:

Existe inteligência porque não há acaso e qualquer ser vivo ou não-vivo que obedece a regras revela indícios da inteligência. Não a sua, mas a de quem o concebeu. Isso se aplica também aos cereais. Consequentemente, a inteligência do animal remete sobretudo para uma outra inteligência que não a sua, na ocorrência a de Deus, tal 6

como a inteligência do relógio remete para a do relojoeiro (Lestel, 2001, pág. 18).

A reflexão sobre a inteligência dos animais levada a frente pelo pensamento cartesiano é seguida por outros questionamentos referentes à posse de linguagem, cultura ou alma. Pode-se afirmar que os argumentos que buscam demonstrar a ausência dessas quatro características nos animais e, em contrapartida, a posse singular por parte dos seres humanos são basilares da separação entre humano e animal. Os animais, a quem não é permitido a atribuição dessas capacidades, não seriam considerados mais do que autômatos. A teoria evolucionista de Charles Darwin vinda a público no século XIX ameaçou, mas somente ameaçou, desestabilizar a fronteira entre esses seres ao exprimir a origem animal do homem. Paralelamente à defesa das convicções evolucionistas houve, segundo Lestel (2001), o desenvolvimento de pesquisas sobre os sinais distintivos do homem. Tratava-se de uma forma de afirmar a singularidade humana no momento em que se constituía uma continuidade entre homens e animais. Observa-se então que as tentativas iniciais de reflexão sobre a nossa origem animal decorreu em racismo. De acordo com Lestel, a ideia evolucionista segundo a qual o homem tem origem animal, passou-se “para a convicção racista de que certos povos estão mais próximos da animalidade do que outros.” (2001, pág. 25). Portanto, a concordância com as teorias evolucionistas se deu a partir do entendimento de que certos homens, assim como determinados povos, desenvolveriam comportamentos animais, e não por meio do interesse de investigar as semelhanças entre homens e animais. Através dessa concepção sobre a fronteira que nos separa dos animais, a filosofia tanto quanto o senso comum falam da “multiplicidade de viventes” (Derrida, 2002), utilizando o termo singular e genérico “animal”. O homem se tornou uma criatura que se exclui do mundo animal em razão de suas capacidades consideradas particulares, que garantem ainda a sua condição de humano. Nesse sentido, tudo o que a humanidade é se caracteriza pelo que a animalidade não é, e vice-versa. O antropólogo Tim Ingold nos esclarece essa noção ao afirmar que qualquer

atributo

reivindicado

que

apenas

nós

o

possuímos,

“supõe-se

consequentemente que o animal não tem, portanto, o genérico conceito de “animal” é negativamente constituído pela soma dessas deficiências” (1994, pág. 3). 7

Nesse sentido, o termo animal, embora empregado também em um sentido positivo e inclusivo dos seres humanos, é empregado principalmente de forma negativa e exclusiva. A animalidade caracteriza tudo que é considerado inumano, ou seja, o estado ou condição oposta à humanidade (Ingold, 1994). O status particular dos seres humanos ocorre por oposição ao estado de ser dos animais, entendido como natural. De acordo com a concepção ocidental, o ser humano é visto como “um agente dotado de intenções e propósitos, motivados em suas ações por valores sociais e uma consciência moral” (Ingold, pág. 6). Os animais, por sua vez são entendidos pela realização de ações que não possuem direção e nem controle pela razão. A dualidade entre viventes motivados e designados culturalmente e viventes que são produtos automáticos de um mecanismo inato e geneticamente determinado se constitui como concepção que justifica o fato da condição humana ser permitida apenas aos indivíduos da espécie homo sapiens. Tendo em vista esse aspecto hierárquico entre homens e animais, Larrére afirma que “o modelo mecânico de vivente não tem somente uma importância epistemológica, ele regula as práticas e afeta o direito e a moral” (2010, pág. 93). Assim, o direito dos homens sobre a vida e a morte dos animais é considerado moralmente legítimo. Aos homens cabe assumir o papel de soberano sobre a valorização ou a desvalorização da vida dos animais. O pensamento cartesiano legitima, de acordo com Larrère (2010), a construção desse modelo mecânico de vivente e ao fazer do animal uma máquina, o homem tornou seu mestre e seu dono. Portanto, os pressupostos cartesianos de que os animais não possuem inteligência analítica, linguagem, cultura e alma engendram a fronteira restritiva e hierárquica que separa os humanos dos não humanos e a sua exclusão da comunidade moral. A partir do século XVII como afirma Bruno Latour (2004), a filosofia política inventou uma teoria da representação unicamente do mundo social humano. Desde então, a política foi definida como um problema de representação e de tomada de decisão dos humanos. No âmbito dessa discussão, a visão de que os animais não humanos podem ser considerados sujeitos autoconscientes, com pensamentos e sentimentos se constituiu como uma heresia para o pensamento científico assim como para as práticas jurídicas. No entanto, essa é a luta dos movimentos de libertação animal: reabilitar uma continuidade entre os homens e os animais de modo a fazer dos não humanos igualmente objetos de atenção moral. Para tanto, como será discutido, a 8

noção de sofrimento é mobilizada a fim de assegurar o ponto de contato entre humanos e não humanos.

Tornando a fronteira inclusiva

Conforme vimos, o pensamento científico moderno é caracterizado pelo esforço de atribuir uma separação entre os termos natureza e cultura, e paralelamente entre humanos e animais. O modelo cartesiano, através do argumento de que os animais não possuem racionalidade, linguagem, cultura e alma, definiu os atributos que os separam daqueles que estão dentro da condição humana, e, por conseguinte, dentro de uma esfera moral. No entanto, a tentativa por parte dos defensores dos animais de alargar essa fronteira, tornando os animais sujeitos de direitos, e não objetos, ocorre através da reivindicação de que os não humanos possuem igualmente a capacidade de “sofrer”. Nesse sentido, ao considerar o sofrimento dos animais, os movimentos buscam refutar a perspectiva elaborada pela teoria do “animal-máquina”, atribuindo afetividade aos viventes não humanos. De maneira mais abrangente, trata-se de um questionamento sobre o princípio defendido pelos cartesianos de que o grito do cachorro se assimilaria ao som de um órgão musical sendo tocado. Podemos ver a importância do sofrimento, enquanto parâmetro que define uma nova fronteira mais inclusiva, uma vez que pressupõe a igualdade de interesses entre humanos e não humanos, nas diferentes manifestações realizadas pelos movimentos de libertação animal. Como exemplo, observa-se o pedido feito pela Comissão de Meio Ambiente da Ordem dos Advogados do Brasil no Paraná em maio desse ano pelo fim das experiências com implantes dentários em cães da raça beagle na Universidade Estadual de Maringá (UEM). Esse pedido foi realizado com base na denúncia de que na cirurgia para instalar os implantes dentários, a anestesia era insuficiente e os cães acordavam no meio da operação. De acordo com Danielle Tetü Rodrigues, membro da Comissão que fez a denúncia à justiça do Paraná, "os animais são seres que sentem dor, medo, frio e fome. Fazer uma experiência sem que eles estejam adequadamente sedados é inadmissível e é o que parece estar acontecendo na UEM"7.

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Disponível em: http://maringa.odiario.com/maringa/noticia/420639/oab-pr-quer-fim-do-uso-de-caes/

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De igual modo, observamos que a aprovação da Lei Arouca em setembro de 2008, que regulamenta os procedimentos para o uso de animais nas experimentações científicas, a despeito das manifestações contrárias por parte dos movimentos de libertação animal, também é criticada tendo em vista a dimensão do sofrimento. Conforme as críticas do grupo intitulado Libertação Animal contra um dos pesquisadores que lideraram a campanha a favor da experimentação científica com animais, observa-se o questionamento do vivisseccionismo tendo em vista o sofrimento pelo qual os animais passariam:

Ele defende tanto os testes em animais, mas qual seria a grande descoberta que este ignóbil pesquisador teria feito? Ele simplesmente quer ser um falso ídolo. Mas a história

julgará

estas

pessoas

que

querem

se

engrandecer ás custas do sofrimento dos indefesos (no caso, os animais)8.

Além do posicionamento contrário ao uso de animais em experimentos científicos, outras apropriações dos animais pelos humanos são também denunciadas através do sofrimento pelo qual os animais passariam. Em manifestação pública contra a novela “TI TI TI”, da Rede Globo, que estreou em junho de 2010, exibindo cenas de desfile de moda com o uso de casacos de peles, os manifestantes pelos direitos dos animais expressaram repúdio ao fato, vislumbrando também o sofrimento dos animais:

Se outrora este hábito justificou-se para aquecer nossa espécie do frio, e até por simples modismo, atualmente, nossa racionalidade proporcionou-nos criar alternativas eficazes para nos aquecer. Quanto à moda, cremos ser mediocridade e futilidade em demasia a manutenção de tal prática, considerando todo o sofrimento dos animais utilizados9.

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Disponível em: http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2010/08/475476.shtml Disponível em: http://redebichos.ning.com/group/bichosnatv/forum/topics/o-uso-de-casacos-de-pelena?commentId=3060656%3AComment%3A117123&groupId=3060656%3AGroup%3A27469 9

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O protesto realizado em agosto de 2010 contra a festa religiosa realizada em Santa Catarina, “Cavalgada nos caminhos de Santa Paulina”, foi liderado pelo Instituto Nina Rosa, que divulgou uma carta pública denunciando como “lastimável e vergonhosa a decisão que permitiu as pseudo-demonstrações de fé às custas do sofrimento alheio, com a realização da Cavalgada nos Caminhos de Santa Paulina”10. O conjunto de argumentos vistos acionados pelos diferentes grupos sociais que se manifestam a favor dos direitos dos animais nos mostra, nas diversas situações de descontentamento com a questão animal, a recorrência da dimensão do sofrimento. De experimentos científicos até o abate para a retirada de pele, o fato dos animais sofrerem é mobilizado como a justificativa central para a denúncia desses eventos. Desse modo, é possível observar ainda que a percepção do sofrimento vai além da mobilização dos movimentos de libertação animal, servindo de princípio também para as práticas jurídicas. No que se refere às sentenças que se enquadram na Lei de Crimes Ambientais, observa-se que a noção de sofrimento é igualmente mobilizada como princípio que visa atestar os maus tratos conferidos aos animais. Nesse caso, é possível citar a Justiça do Paraná que determinou em abril desse ano o fechamento de uma empresa de aluguel de cães, a partir da seguinte conclusão, como pode ser vista em um trecho da sentença: "As atitudes dos requeridos demonstram a utilização dos animais em benefício próprio, sem a adequada atenção aos princípios do direito ambiental, ferindo o equilíbrio natural ao omitir cuidados e expor os cães a sofrimento11". O filósofo americano Peter Singer, considerado fundador do movimento moderno dos direitos dos animais, com a publicação do livro Libertação Animal (1975), sintetiza o reconhecimento do status moral dos não humanos por meio da noção discutida de que os animais também são capazes de sofrer. A partir da seguinte citação de Jeremy Bentham12, o autor busca argumentar que se um ser sofre, não poderia haver nenhuma justificativa de ordem moral para nos recusarmos a levar esse sofrimento em consideração:

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Disponível em: http://dogmidia.blogspot.com/2010/08/nao-cavalgada-em-sc.html Disponível em:http://www.olharanimal.net/informativos/93-clipping/1382-parana-justica-determina-fechamentode-empresa-de-aluguel-de-caes 12 A citação do filósofo Peter Singer tem apenas como referência o nome da obra e o capítulo em que consta a passagem d Jeremy Bentham: Introduction to the Principles of Morals and Legislation, cap.17. 11

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Talvez chegue o dia em que o restante da criação animal venha a adquirir os direitos dos quais jamais poderiam ter sido privados a não ser pela mão da tirania. Os franceses já descobriram que o escuro da pele não é motivo para que um ser humano seja abandonado, irreparavelmente, aos caprichos de um torturador. É possível que algum dia se reconheça que o número de pernas, a vilosidade da pele ou a terminação do os sacrum são motivos igualmente insuficientes para se abandonar um ser sensível ao mesmo destino. O que mais deveria traçar a linha insuperável? A faculdade da razão, ou, talvez, a capacidade de falar? Mas, para lá de toda comparação possível, um cavalo ou um cão adultos são muito mais racionais, além de bem mais sociáveis, do que um bebê de um dia, uma semana, ou até mesmo um mês. Imaginemos, porém, que as coisas não fossem assim; que importância teria tal fato? A questão não é saber se são capazes de raciocinar, ou se conseguem falar, mas, sim, se são passíveis de sofrimento. (Singer, 2009, pág. 67)

O esforço prévio para identificar a forma do discurso que perturba a fronteira do dualismo tradicional entre humanos e não humanos aponta a noção de sofrimento como o atributo acionado a fim de re-ordenar a oposição moderna entre homens e animais. Esse atributo é mobilizado para justificar a reivindicação de que os não humanos se constituam como portadores de direitos e ao mesmo tempo para destituir os humanos dos privilégios e poderes sobre os demais viventes. A ideia do animal como um ser vivo que tem emoções, sofre, sente alegria ou tristeza aponta, portanto, para o estabelecimento de um princípio simétrico entre humanos e não humanos. A partir desse princípio os movimentos justificam suas ações para que assim como os homens, os animais tenham um valor próprio para a sua vida e, portanto, uma consideração moral.

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Sofrimento-sensibilização-urgência

A capacidade de sofrimento atribuída aos animais se caracteriza como o aspecto central mobilizado para justificar a igual consideração entre humanos e não humanos. Contudo, o princípio de que o sofrimento dos animais deva ser levado em consideração traz como implicação também o aspecto da “necessidade de ação”. Trata-se de pensar que a sensibilização diante do sofrimento animal não só busca incluir os não humanos na esfera moral, mas também opera para despertar através da compaixão a ideia de urgência com relação à “causa animal”. No que se refere às ações políticas dos movimentos de libertação animal, seja em seus websites, em Encontros que promovam a discussão dos direitos dos animais ou nas manifestações de ruas, estão presentes imagens de animais em situações que podem ser consideradas difíceis de serem observadas em razão de suas condições físicas. O uso dessas imagens tem como objetivo manifesto pelo próprio movimento “informar as pessoas sobre a realidade dos animais”. No entanto, ao demonstrar imagens que expressam o “sofrimento animal”, observamos a tentativa por parte dos movimentos de convencimento sobre a importância da ação nas mais diversas situações: adestramento, abandono, produção de couro, carne, leite, ovos. A partir da presença no Fórum de bem-estar animal realizado em Friburgo (RJ), em setembro de 2010, que contou com quatro lideranças conhecidas nacionalmente, foi possível problematizar a tríade sofrimento-sensibilização-ação. Conforme observado no evento, a exposição dos quatro palestrantes foi marcada por uma ênfase imprimida sobre a necessidade ou imperativo da ação. A expositora Nina Rosa pautou sua palestra pela exposição fotográfica de casos considerados exemplares de animais “vítimas de maus tratos” que foram “ajudados” e tiveram sua “condição de vida transformada”. Concordando com a importância da ação, a militante buscava demonstrar através das imagens e de sua fala que “alguma coisa sempre pode ser feita”: São exemplos (as imagens) de que qualquer pessoa que vê uma situação dessa pode alguma coisa fazer, mesmo que você não possa manter o animal, mas você pode depois anunciar no olhar animal, ou em outros sites de 13

doação, você pode levar em alguma feirinha na sua cidade e promover a adoção desse animal. Alguma coisa você pode fazer para não deixar esses animais sozinhos perambulando pelas ruas que realmente precisam de ajuda.

Ainda que tenha sido repetidamente abordado o tema de que os animais são seres que sentem dor, alegria ou tristeza, como forma de despertar a compaixão para essas criaturas, as palestras não tinham unicamente o objetivo de provar aos participantes que os “animais têm sentimentos”. Os palestrantes buscavam enfatizar igualmente que a sensibilização pela “causa animal” deve se pautar também pela ação. De maneira geral, a ideia trazida era a de que sentir apenas não seria suficiente, pois a ação se faz também necessária. Portanto, as palestras buscavam convencer a platéia sobre a necessidade “fazer alguma coisa” e ainda instruí-la juridicamente sobre como efetuar denúncias. O vínculo entre a dimensão do sofrimento e a ênfase sobre a importância da ação pode ser entendido de acordo com a reflexão de Luc Boltanki no trabalho intitulado Distant Suffering, (2004). Em seu estudo observamos o que o autor chama de “tópico do sentimento”, que se trata de uma maneira de explicar o comprometimento dos atores com relação à dor dos outros. O “tópico do sentimento”, ao lado de outras duas formas13 de conversão pública e generalizada da atitude de observação à distância do sofrimento alheio, traz como particularidade a ideia de “urgência”.

Essa forma de sensibilização com a dor do outra se

fundamenta, segundo o autor, através da velocidade da entrega, ou seja, da consideração de que aquele que sofre não pode esperar. Em conformidade com a abordagem de Boltanski, observamos que os movimentos de libertação animal, buscam através da dimensão do sofrimento não só um alargamento da fronteira moral que separa humanos e não humanos, mas também “sensibilizar” as pessoas para a ação efetiva em favor dos animais. Outra dimensão trabalhada pelo autor, que diz respeito à autenticidade do comprometimento através do sentimento e ao que desperta esse comprometimento, nos ajuda a compreender outro aspecto sobre a mobilização política dos movimentos de libertação animal. Considerando essas questões, Boltanski aponta a 13

As outras duas formas são: o tópico da denúncia e o tópico da estética.

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importância do estado interno do sujeito sensível à dor do outro. Desse ponto de vista, a relação do espectador com o sofredor é considerada real e autêntica quando o espectador acessa o sofrimento moldado dentro do seu próprio coração. Trata-se de pensar em uma postura que parte da interioridade do indivíduo, da abertura do seu coração e não apenas da confrontação exterior com o sofredor. Como afirma Boltanki, “o expectador precisa volta a si mesmo e ouvir o que seu coração diz” (2004, pág. 81). A autenticidade no tópico do sentimento depende, portanto, em grande parte da “emoção”. Agindo em torno de uma situação de indignação, “o acesso a verdade não é adquirido pela exploração debatida de princípios convencionais, nem da conexão com objetos generalizáveis. Mas por uma externalização reveladora da interioridade” (Boltanki, 2004, pág. 81). Nesse sentido, é possível citar o início da palestra de Nina Rosa no Fórum, para compreendermos nesses mesmos termos a mobilização política dos movimentos de libertação animal:

Para a gente se sensibilizar com os direitos dos animais a gente precisa escutar a voz do coração. Mas, como a gente não está habituado a escutar a voz do coração a gente precisa de informação, a gente precisa de palavras. O que a gente precisa? Do contato interno para a gente realmente poder liberar a compaixão que existe já dentro de nós, de todos nós, a gente deixar que ela emirja, colocá-la na vida da gente, não ficar só com o piloto automático ligado.

As ações políticas dos movimentos de libertação animal se caracterizam pela sensibilização com o sofrimento alheio. O vínculo entre animais e humanos, ou em outras palavras, entre aqueles que “sofrem” e aqueles que lutam para colocar fim a essa situação, se configura através da distância entre ambos. Os movimentos de libertação animal se auto-intitulam como porta vozes dos animais a partir do reconhecimento de que “gritam por aqueles que não podem falar”. Portanto, há o reconhecimento de que o sofrimento pelo qual os animais passam não pode ser sentido pelos humanos, podendo ser unicamente testemunhados. Nesse sentido, observamos que a ideia de que os animais possuem capacidade de sofrer se

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constitui como aspecto mobilizado para garantir a consideração moral dos animais, além de despertar a atenção do espectador para sua condição e sensibilizá-lo para a necessidade de urgência da ação em favor dos animais.

Tornando os animais vidas que contam

Conforme estamos discutindo, os movimentos de libertação animal se organizam para reverter a condição de exclusão da comunidade moral a qual os animais estão submetidos, e que permite que suas vidas possam ser mortas e utilizadas de maneira moralmente legítima. No entanto, embora a noção de que os animais possuem capacidade de sofrer pode e tem sido tratada a partir de conceitos científicos, não podemos deixar de problematizar essa noção em termos políticos. Trata-se de um esforço de evitar a essencialização do sofrimento dos animais, conforme a discussão apresentada pelos movimentos. Em conformidade a essa perspectiva, a norte-americana Judith Butler realizou uma discussão que abrange as questões sobre a construção social de situações variadas e matizadas em torno do sofrimento. No seu livro Precarious Life. The Power of Mourningand Violence (2003), a autora discute sobre a natureza da construção de certas realidades que tornam alguns sofrimentos visíveis a despeito de outros que permanecem invisíveis. Trata-se de uma discussão em torno da violência, da vulnerabilidade e do luto, que reflete sobre a construção de posições sociais em que se inscreve o reconhecimento de vidas enlutáveis. A autora chama a atenção, portanto, para a existência de vidas que são sentidas e marcadas o luto e formas de vidas que não são. Nesse caso, estão sendo tratadas as condições sobre as quais se estabelece e se mantém que uma vida é digna de ser chorada; e através de que lógica de exclusão e de que práticas de eliminação essas fronteiras são marcadas. A partir da abordagem de Butler observamos, portanto, a construção de certas realidades sociais que se tornam “invisíveis” no campo moral. Contudo, a superação de uma crença na existência de qualquer aspecto essencial nas emoções nos permite refletir sobre as mudanças das categorias em que o sofrimento pode ser enquadrado. De maneira geral, os movimentos de libertação se identificam como organizações que lutam para tornar “visível” a “dor” que a humanidade causa aos animais e romper com a condição de sofrimento a qual 16

estão submetidos. Tendo em vista a discussão realizada por Butler, não bastaria para atingir esses propósitos apenas tornar visível aos olhos, no sentido literal, o sofrimento dos animais ou qualquer outro sofrimento denunciado para que seja reconhecido. Não se trata, como reivindicam os movimentos de libertação animal, de colocar paredes de vidros nos matadouros para que as pessoas se sensibilizem com a “causa animal”, mas de se colocar diante do desafio de lidar com a construção social de vidas que contam e vidas que não contam (Butler, 2003). Os movimentos de libertação animal apontam de forma normativa o sofrimento dos animais e lutam para por fim a essa condição, mas por outro lado, os registros etnográficos mostram que o conceito de violência que produz o sofrimento é extremamente instável. Nesse sentido, devemos partir do pressuposto de que tornar um “sofrimento visível” não é uma tarefa simples, ao contrário, trata-se de uma operação complexa. De acordo com Veena Das, “o que pode ser denominado violência é em si um signo de alguma coisa importante em jogo.” (2008, pág. 284). A dimensão do sofrimento e da violência, não são processos simples e materialmente identificáveis. Há várias implicações relacionadas como a atribuição de sentido do que é sofrimento e do que não é, do que é violência e do que não é, além do processo que faz dessa condição parte da preocupação coletiva. Portanto, a demarcação dessas fronteiras passa por processos sociais e políticos que constroem a visibilidade e a invisibilidade14 da dor não no sentido visual, mas no sentido simbólico, enquanto uma consideração moral. Uma vez entendido que o sofrimento não existe enquanto uma verdade universal, mas existe como relações que constituem as marcas diferenciadas do que pode ser considerado sofrimento, trata-se de pensar como os atores sociais constituem e negociam essas marcas. Com isso, não são apenas os muros de concreto que “escondem” os “maus-tratos” conferidos aos animais, conforme as denúncias dos movimentos de libertação animal, mas processos sociais e políticos 14

Esse processo que se refere ao não reconhecimento dos atores na vida social foi também foi discutido por Honneth (2001) através da noção de Invisibilidade intencional. Explicado como uma forma de desrespeito moral, pois não há dúvidas a respeito da visibilidade dos atores, a invisibilidade deve ser entendida, portanto, como uma expressão pública que confirma a não existência da pessoa no sentido social. Sendo assim, enquanto a invisibilidade no sentido visual significa apenas o fato de que um objeto não está presente no campo visual de outra pessoa, o reconhecimento, pensado como a contraparte positiva em relação à invisibilidade figurativa, requer que nós percebamos o objeto dentro de uma estrutura espaço-temporal como um objeto com propriedades relevantes.

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que fazem, por exemplo, do abate de animais para a produção de alimentos uma ação não violenta. O que está em jogo, portanto, não é o que não se vê, mas o que se entende por violência nesse caso: de maneira hegemônica, matar animais para a produção de carne é entendido como um processo “natural” no pensamento ocidental: não é para isso que servem determinados animais, segundo o paradigma antropocêntrico? Em um dos dias que participei do Grupo de Estudos Direitos dos Animais e Ecologia Profunda, da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Janeiro, presenciei uma situação que nos ajudar a pensar a dimensão do sofrimento e da violência conforme vem sendo discutido. Como era a última reunião do ano, o grupo fez uma pequena confraternização no fim do encontro. Para participar da confraternização foi convidado um senhor, de aproximadamente sessenta anos, que realiza o trabalho de zelador do prédio. No breve instante que ele permaneceu na sala, a conversa girou em torno dos animais e então ele proferiu uma frase que serviu posteriormente para minha reflexão em razão das impressões geradas pelo grupo: “Eu gosto de animais, mas na minha casa só não pode ter gato por causa dos meus pássaros”. No instante de sua fala nada foi dito como resposta pelos integrantes do grupo, eles se entreolharam nesse momento e posteriormente, quando o zelador deixou a sala, fizeram alguns comentários. Presumindo que os pássaros do zelador fossem criados em gaiolas, os integrantes do grupo se manifestaram, chamando atenção para a falta de “consciência” e para uma atitude – manter pássaros em gaiolas - considerada “atrasada” por parte do zelador. Entretanto, para efeitos da discussão aqui proposta, algumas perguntas ficaram rodeando meus pensamentos: será que o grupo e o zelador compartilham a mesma noção a respeito do que seja o sofrimento dos animais? Qual o entendimento do que seja a violência contra os animais por parte do zelador e do grupo? Através da compreensão de que toda violência é simbólica e, portanto, não possui uma existência física por si mesma, essa situação deve ser problematizada não como uma falta de “consciência” do zelador ou como um costume “primitivo”, e nem como uma posição adequada da vida social demonstrada pelos “protetores” dos animais. Sem buscar refutar as reflexões dos atores presentes, tais posicionamentos devem ser entendidos como duas ordens morais a respeito do que seja a “violência” cometida contra os animais. Essa discussão coloca os desafios encontrados pelos movimentos de libertação animal uma vez que a mobilização 18

política para sua inclusão na comunidade moral perpassa uma disputa e uma negociação sobre marcações distintas que definem a noção de sofrimento. Tratase, portanto, de um processo político mais complexo do que provar cientificamente o sofrimento dos animais, ou tornar visível literalmente aos olhos das pessoas as condições físicas consideradas degradantes dos animais passam. Mapeando Discursos e re-definindo fronteiras

Pensar na atuação política desses movimentos nos leva a visualizar diferentes matizes que definem o que é sofrimento e o que não é, e quem sofre e quem não sofre, além relativizar a própria ideia de humanidade e animalidade. As denúncias contra o sofrimento dos animais dizem respeito ao rompimento com a noção de indivíduo moderno, descrito por Louis Dumont. De acordo com o antropólogo, esse indivíduo “é quase sagrado, absoluto: não possui nada acima de suas exigências legítimas; seus direitos só são limitados pelos direitos idênticos dos outros indivíduos”. (1992, pág. 53). A partir da relativização da ideia de individuo e de humanidade trazida pelo antropólogo, a reivindicação sobre a “capacidade de sofrer” dos animais nos permite refletir sobre como esses atores representam a humanidade e os animais, colocando em questão a emoção. No entanto, caso essa reflexão nos leve a pensar em um esforço de humanização dos animais, este não é o caminho percorrido pelos movimentos de libertação animal. Ao contrário, o movimento é crítico sobre situações em que considera que os animais adquirem uma forma humana segundo os desígnios humanos: Quando animais são forçados a se enquadrarem nos moldes do bem-viver humano, antropomorfizados, eles são destituídos das condições de desenvolverem seu espírito. Os humanos têm, então, em sua propriedade, organismos de outras espécies animais, a quem dizem amar, mas os quais privaram do espírito. (Felipe, 2008, pág. 94).

A autora Sonia Filipe, filósofa e militante dos movimentos de libertação animal, embora considere que algumas características são compartilhadas pelos seres 19

humanos e não humanos, não defende um processo que poderia ser descrito como a humanização do animal ou a animalização do homem. A autora considera que todo indivíduo vivo, incluindo não humanos, tem um bem próprio de sua natureza. Isso significa dizer que passam por uma agregação de valor que os torna “sujeitosde-sua-vida”, onde a liberdade física e o bem-estar emocional são constitutivos do bem próprio de cada espécie animal. Tomando a posição da autora como basilar do posicionamento dos movimentos de libertação animal, trata-se de pensar que o abalo sobre a fronteira entre humanos e não humanos não provém do interesse em igualá-los, mas do interesse em equipará-los. Portanto, os pressupostos dos movimentos de libertação animal não caminham no sentido de aniquilar as fronteiras entre as espécies, mas de aniquilar as hierarquizações, tendo como princípio a noção de sofrimento. Nesse sentido, a igualdade postulada pelos movimentos de libertação animal ocorre entre os diferentes seres, que compartilham determinadas características, e não a partir de uma igualdade das espécies. Os movimentos de libertação animal consideram que humanos e não humanos em suas especificidades possuem características comuns, e é este o fato mobilizado para reivindicar os “direitos dos animais”. O que está em jogo, como aparece no discurso desses movimentos, não é a divisão entre as espécies, mas a forma como se constrói a relação entre as diferentes espécies.

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