Definindo a liberdade religiosa no Congresso Nacional brasileiro

May 23, 2017 | Autor: Emerson Giumbelli | Categoria: Secularisms and Secularities, Liberdade Religiosa
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Capítulo do livro Religião e Conflito, organizado por Christina Vital e Melvina Araújo. Curitiba: Editora Prismas, 2016

Definindo a liberdade religiosa: projetos acerca do estatuto de instituições religiosas no Congresso Nacional brasileiro Emerson Giumbelli e Jorge Scola

No ano de 2009, a Câmara Federal dos Deputados, uma das instâncias máximas do Legislativo brasileiro, aprovou projeto que ficou conhecido como “Lei Geral das Religiões”. A proposta de nova lei foi uma reação ao “Acordo entre a República Federativa do Brasil e a Santa Sé relativo ao Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil”, texto assinado pelo presidente brasileiro e o Papa em 2008 e que precisava de ratificação do Congresso Nacional para ter validade legal. Na sessão da Câmara dos Deputados em que se aprovou o Acordo, o mesmo ocorreu com a proposta de Lei Geral. No Senado Federal, o Acordo tramitou rapidamente, sendo igualmente aprovado e assim transformado em lei em 2010. Desta feita, o destino da Lei Geral foi diferente. Das quatro comissões que foram instadas a se pronunciar sobre o projeto, apenas duas o fizeram até agora (junho 2014). Na Comissão de Assuntos Sociais, o projeto motivou o requerimento para a realização de uma audiência pública, ocorrida em maio de 2013, na qual se pronunciaram representantes de grupos religiosos, acadêmicos e outras pessoas. Predominaram as críticas à proposta, mas apesar disso a Comissão, com a apresentação de algumas emendas que pouco modificam o texto original, emitiu parecer favorável. O

projeto segue em tramitação, mas provavelmente terá que esperar uma nova legislatura (2015-2018) para saber seu destino. Os detalhes da tramitação e do conteúdo – que em boa parte é uma transcrição do Acordo adaptada para condições e termos que generalizam a sua aplicação a “todas” as religiões – já foram objeto de análises e discussões de vários textos. Giumbelli (2011), que pertence ao mesmo conjunto de textos, explora alguns aspectos específicos, como o ensino religioso em escolas públicas, que é também objeto da Lei Geral. Interessa-se, ainda, pelas referências que são peculiares à Lei Geral – no pouco que ela se diferencia do texto do Acordo – demonstrando como essas referências remetem a outros projetos de lei, que tramitavam anteriormente na Câmara dos Deputados. É este aspecto que o presente texto busca aprofundar. O foco recai sobre a problematização da ideia de “liberdade religiosa”. Afinal, ao contrário do Acordo, a Lei Geral visa regulamentar a Constituição Federal, incluindo nessa pretensão o art. 5º., inciso VI, que trata da “liberdade de consciência e de crença”, do “livre exercício dos cultos religiosos”e da “proteção aos locais de culto e a suas liturgias”.1 Partindo dessa constatação, pode-se perguntar: de que modo, para além da Lei Geral, os congressistas buscaram regulamentar a liberdade religiosa no Brasil? Procuramos, assim, constituir um banco de dados reunindo referências sobre projetos e iniciativas legislativas no âmbito da Câmara Federal e do Senado Federal. Metodologicamente, efetivamos pesquisas utilizando, nos mecanismos de buscas,

1 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias; http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm, acesso em 11/06/2014.

algumas palavras-chave: laicidade, tolerância religiosa, intolerância religiosa, liberdade de culto, liberdade de credo, templos, liberdade religiosa, instituições religiosas e organizações religiosas. A busca foi realizada no final de 2013, tendo por marco inicial o ano de 1989, logo após a promulgação da última Constituição Federal. Os resultados serão analisados em dois níveis. Primeiramente, analisamos projetos que colocam como objetivo direto a regulamentação do inciso VI do art. 5º. da Constituição. A leitura dos textos de alguns projetos levou a outros, que se acrescentaram ao quadro inicial, quando não haviam surgido nas buscas gerais. Em seguida, discutimos as demais ocorrências, que mesmo não se propondo a regulamentar o artigo sobre liberdade religiosa, tratam de assuntos que incidem sobre as capacidades e qualidades jurídicas dos coletivos religiosos. O quadro mais geral em que insere a discussão aqui proposta remete aos esforços que buscam compreender as modalidades de presença pública da religião no Brasil (Giumbelli, 2008) – ou, em outra formulação, as relações entre religião e espaço público (Birman 2003, Burity, Scheliga 2010, Birman e Machado 2012, Burity 2011, Oro et al 2012; Montero 2013). Mais especificamente, trata-se de entender os mecanismos pelos quais se exerce o que conceituamos como regulação do religioso (Giumbelli 2002; 2014). A ênfase em mecanismos tem o objetivo de deslocar a discussão, situando-a não tanto – ou não somente – no plano de definições jurídicas de primeira ordem, e sim no plano em que se especificam princípios constitucionais, como é o caso da liberdade religiosa. Perguntar, portanto, sobre a estipulação das capacidades e dos estatutos civis dos coletivos religiosas significa acompanhar os processos – de que podem participar os próprios agentes religiosos – que envolvem a definição dos atributos que se associam a esses entes que são as igrejas e outras formas de institucionalização da religião. Partindo-

se da definição dos atributos chega-se à definição dos entes a que se associam: é nesse sentido que buscamos contribuir para a caracterização da liberdade religiosa no Brasil.2

1. Projetos de regulamentação do princípio constitucional de liberdade religiosa O que pretende vir a ser a Lei Geral das Religiões – correspondendo ao Projeto de Lei no. 5598/2009 aprovado na Câmara dos Deputados e ao Projeto de Lei no. 160/2009 em tramitação no Senado – apresenta-se, como se indicou, como a regulamentação de certos dispositivos da Constituição Federal. O cabeçalho da proposta assim anuncia: “Dispõe sobre as Garantias e Direitos Fundamentais ao Livre Exercício da Crença e dos Cultos Religiosos, estabelecidos nos incisos VI, VII e VIII do art. 5º e no § 1º do art. 210 da Constituição da República Federativa do Brasil”. Além do inciso sobre “liberdade de consciência e de crença”, os demais tratam de assistência religiosa em entidades de internação coletiva, de “direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política”, e de ensino religioso em escolas públicas. O artigo de Giumbelli (2011) aponta que o projeto 5598 não apenas se contrapôs ao texto do Acordo Brasil-Santa Sé, como também apresentou-se como o substituto de propostas anteriores, das quais herdou algumas formulações. Rastrear essas associações revelou-se um procedimento interessante para termos uma visão mais ampla acerca das tentativas de regulamentação da liberdade religiosa pelos deputados e senadores brasileiros. É o que faremos em seguida.

2 Os resultados dessa pesquisa específica integram projeto mais geral, de viés comparativo, intitulado ‘‘Religião, Estado e sociedade: regulação do religioso em quatro países latino-americanos’’ que tem o apoio de recursos do Edital Universal CNPq.

O projeto de lei 1553/2007 inicia-se com esta formulação: “Esta Lei estabelece mecanismos que asseguram o livre exercício dos cultos religiosos, garantindo a proteção aos locais de cultos e suas liturgias e a inviolabilidade da liberdade de crença”. O texto corresponde, exceto pelas palavras marcadas em itálico, ao art. 1º. do projeto 5598/2009, o qual ainda acrescenta, ao final da mesma frase, a expressão “liberdade de ensino religioso”. O PL 1553 faz apenas referência ao inciso VI do art. 5º. da CF e remete, por sua vez, a outros dois projetos, anteriores. De fato, ele é uma reapresentação do PL 1155/2003. E ambos incorporam formulações originalmente encontradas no PL 4163/1989. Giumbelli (2011) assinala como essa corrente de referências destaca a preocupação com os símbolos religiosos, os quais se busca proteger contra ataques. A justificativa do PL 1553 é explícita em relação a isso e a mesma preocupação pode explicar outra das diferenças entre os textos do Acordo e da Lei Geral. O último artigo deste tem a ver com tal ponto: “A violação à liberdade de crença e a proteção aos locais de culto e suas liturgias sujeitam o infrator às sanções previstas no Código Penal, além de respectiva responsabilização civil pelos danos provocados.” O Código Penal brasileiro prevê a punição a quem “escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso”.3 No presente texto, a preocupação com os símbolos será considerada um elemento dentro de um conjunto mais amplo, definido pela ideia de proteção, presente no texto da Constituição e de diversos projetos de lei. Utilizaremos como ponto de apoio para apresentar essas ocorrências o já mencionado PL 4163, de 1989. Embora não tenha se

3 Art. 208 do Código Penal vigente. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848.htm, acesso em 11/06/2014.

transformado em lei, chegou a ser enviado ao Senado, acabando por ser arquivado em 2000. Ao tramitar na Câmara, sua discussão reuniu diversos outros projetos, que foram agrupados e subsumidos ao PL 4163. Alguns desses outros projetos tratam especificamente de assistência religiosa em instituições de internação coletiva, assunto que pode ou não aparecer em textos voltados ao art. 5º. da CF. O conteúdo do PL 4163 exclui esse assunto e apresenta-se focado no inciso VI, que pretende regulamentar. Presta-se bem portanto à nossa análise, que entra em sintonia com o foco anunciado naquele projeto de lei. Consideraremos o texto do substitutivo, após cotejá-lo com o original e constatarmos que as modificações são todas de forma e não de conteúdo. O texto apresenta 10 artigos. Os dois primeiros repetem princípios aclamados na Constituição em seu art. 5º., inciso VI. Os cinco artigos seguintes passam por diversos pontos que o projeto considera compreendidos na proteção constitucional. Menciona as liturgias, “tanto no interior dos templos como nas celebrações externas”; estende a proteção ao conjunto, quando “o local de culto se situar no interior de convento, mosteiro, seminário ou colégio”, e a santuários e procissões; a “pregação religiosa em logradouros públicos”. Após o artigo que estipula “o sujeito ativo para o exercício dos direitos regulados nesta lei”, há dois últimos que tratam de penalidades, para além daquelas previstas pelo Código Penal. São quatro categorias de penalidades, que atingem, sucessivamente: os que impedem o acesso de alguém ao culto de sua religião, os que causam danos materiais a locais de culto, os que utilizam local de culto para fins que o deturpem, os que ridicularizam cerimônias, vestes ou símbolos constantes de liturgia religiosa. O autor do projeto afirma, em sua justificativa, ter dado ao tema “um tratamento sistêmico”, de onde se destaca a preocupação em definir termos – como

ocorre com “pregação religiosa” – e em prever sanções para a infringência do princípio da proteção. É a mesma lógica da proteção que está presente nos PLs 1086/88, 2026/89, 2525/89 e 3789/89 e 786/91, assim como no PLS 97/91. Com base na análise do conjunto desses processos, gostaríamos de chamar atenção para alguns pontos. Vemos no projeto 4163 que as referências para a efetivação da ideia de proteção são a liturgia e a pregação, consideradas como definidores do que sejam práticas religiosas. É um vocabulário basicamente cristão que articula essas definições. Mas o que queremos destacar é o fato de que, mesmo quando essas práticas ocorrem em espaços públicos, é a partir de locais propriamente religiosos que elas estipulam sua existência. Nos PLs 3789 e 786, apesar de mencionarem “cerimônias litúrgicas, internas e externas”, a proteção é devida “às igrejas e templos de qualquer religião”. O PL 2026 prevê cerimônias externas, mas sua primeira formulação se dirige a “ritos religiosos”, “cerimônias litúrgicas” e “Igrejas”, havendo um artigo voltado para “a edificação de templos”. O PL 1086 é mais restrito, garantindo “proteção aos locais de cultos religiosos e suas liturgias”, estabelecendo em seguida que “considera-se local de culto religioso a igreja, mesquita, sinagoga ou qualquer outro edifício em que se reúnam pessoas para praticar os ritos de sua crença ou manifestar processo de catequese por meios pacíficos ou suasórios”. Foco e definição semelhantes encontramos no PLS 97. Essa centralidade de um local propriamente de culto para a caracterização da proteção à liberdade religiosa terá implicações para as modalidades de garantias e exigências estipuladas nos projetos de lei, que, como veremos, podem até colocar condições para a realização de cerimônias externas.

Antes, contudo, deixemos claro que uma dupla feição caracteriza geralmente os projetos. De um lado, está a intenção de garantir um direito, seja a coletivos, seja a indivíduos, que podem se dedicar ao exercício de sua liberdade de consciência e de credo. Em dois projetos, aliás bastante semelhantes em tudo, essa garantia é concebida do ponto de vista do frequentador dos cultos e das cerimônias. Eis aí uma diferença entre o PL 1153 e aquele que o inspira, o PL 4163: enquanto que este menciona, como sujeitos de direitos, autoridades, coletivos e “leigos”, o primeiro acrescenta à lista a possibilidade de ser “o cidadão individualmente”. De todo modo, todos os projetos entendem “liberdade de consciência e de credo” em seus aspectos religiosos, sem mencionar a possibilidade de posições não religiosas serem protegidas.4 A proteção, por sua vez, supõe que ameaças ao exercício da liberdade religiosa podem vir de pessoas quaisquer ou, como ocorre mais claramente em vários projetos, de autoridades civis. Ou seja, a impressão com que o leitor pode ficar diante do conjunto dos projetos é a de que a liberdade religiosa era algo a ser protegido de ameaças. Isso dialoga com a segunda feição que caracteriza globalmente os projetos, como demonstra a consulta a suas justificativas: a importância que reconhecem à religião. O PL 1086 a considera “um direito da cidadania, como a educação, a saúde, as franquias cívicas [...]”, assim como o PL 4163 tem “como legítima e autêntica a necessidade da criatura humana de crer no transcendental, no infinito, numa palavra, em Deus”. O PL 2026 e o PLS 97 adotam formulações semelhantes, que encontram eco no PL 1553. Seus textos sugerem um contraponto entre laicidade e separação entre Estado e Igreja, de um

4 Há uma exceção. O PLS 156/1990 trata de convicção filosófica ou política, sancionando a discriminação motivada por deficiência física, raça ou cor, vírus da AIDS e sequelas de hanseníase. Provavelmente existem outros projetos com esse entendimento, mas esse foi o único que apareceu a partir de nossos critérios de busca.

lado, e a importância da religião, de outro. Vejamos a formulação do PL 2026: “A separação entre a Igreja e o Estado, praticada desde a Proclamação da República, não pode resultar na ignorância da existência de dezenas de religiões no Brasil, na maioria cristãs, abrangendo o número de seus praticantes mais de noventa e oito por cento da população”. Argumento semelhante é usado na justificativa do PL 1553, recorrendo a dados censitários atualizados, lembrando a invocação de Deus no preâmbulo da Constituição e fazendo a pergunta retórica: “Quem de nós não viu pessoas religiosas serem impedidas de se expressar por causa de uma suposta violação à „laicidade‟ do Estado?”. São argumentos que se juntam à longa discussão que produz, no Brasil, a compatibilização entre laicidade e reconhecimento da importância da religião. Esse reconhecimento generalizado, no entanto, não deve nos fazer desprezar uma distinção importante, que assume a forma de uma tensão que atravessa esse conjunto de projetos propostos na aurora da Nova República. Trata-se de uma tensão entre duas concepções da liberdade religiosa, uma na qual está sujeita a um contrapeso e outra na qual este contrapeso deixa de existir. Quatro projetos podem ser apresentados como ilustrações do predomínio da primeira concepção. O PL 1086, já em seu artigo primeiro, garante a proteção aos locais de culto, “desde que a confissão e a cerimônia não contrariem a segurança individual e coletiva nem a moral pública”. Em sua justificativa, como vimos, a religião é reconhecida como direito da cidadania, “desde que não haja ofensiva aos costumes e à segurança alheia”. Pensamos que se pode relacionar essas condicionantes com a restrição que o texto faz pesar sobre cerimônias em “ruas e logradouros públicos”, cuja realização precisa de “comunicação à autoridade civil”. Formulação semelhante encontramos no PLS 97, que reza: “É livre a pregação religiosa

em logradouros públicos, mediante comunicação prévia à autoridade, ressalvados casos em que se contrarie a moral e a ordem pública”. O mesmo texto assegura o livre exercício dos cultos religiosos, desde que tenham “licença de funcionamento regularmente concedida” e “desde que não atentem contra o decoro e a ordem pública”. Longe de ser incongruente, essa conciliação entre garantias à liberdade religiosa e considerações que podemos resumir (apenas para economizar termos) nas ideias de ordem e moral é um traço constante da relação entre religião e modernidade. A modernidade inventou simultaneamente a liberdade religiosa e a crítica da religião, e aquelas conciliações revelam tais dilemas históricos. Em certos casos, as limitações estão concebidas para enquadrar religiões minoritárias, mas não parece a situação aqui, pois, como notamos, a referência para a definição das práticas religiosas cobertas pela lei é basicamente cristã. A reforçar essa interpretação, temos o PL 2026, o mais generoso em suas garantias e que, mesmo assim, reitera exigências que encontramos em outros textos. O PL 2026 recusa a existência de exigências e autorizações para o exercício de cultos religiosos, mas “a prática de cerimônias, inclusive externas” deve respeitar “a segurança e a ordem públicas e a incolumidade alheia e dos seus participantes”. Em seguida, ocorre novamente a dupla formulação: “A edificação de templos e edifícios destinados às práticas religiosas não sofrerá qualquer restrição do poder público, senão as pertinentes à segurança e higiene [...]”. Voltemos, por fim, ao PL 4163. Ele também submete a pregação religiosa em logradouros públicos ao respeito “à ordem e à tranquilidade pública”. O livre exercício dos cultos religiosos, cujas ameaças sofrem diversas sanções, deve apesar disso considerar “os direitos e deveres individuais e coletivos garantidos na Constituição”. A

imprecisão da formulação (também usada pelo PLS 97) é resolvida no texto da justificativa, que recorre ao verbo “condicionou-se” para compatibilizar a liberdade religiosa com princípios “tais como os direitos à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança, à propriedade, à expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, à intimidade, à vida privada, à honra, à imagem, bem como os deveres de não submissão à tortura,a tratamento desumano ou degradante”. Vale ainda retomar o trecho onde o autor do projeto reconhece a necessidade da crença em Deus, mas completa: “há que se equipar a estrutura legal de meios capazes de submeter os desejos e exigências decorrentes da satisfação dessa necessidade ao controle social, de modo a se alcançar uma contínua eliminação, cada vez mais completa e efetiva, de atritos [...]”. É exatamente a tentativa de eliminar esses possíveis atritos pela ausência de estabelecimento de contrapesos à liberdade religiosa que vai caracterizar a segunda concepção. Esta pode ser apresentada por meio do texto do PL 3789. Seu primeiro artigo (há apenas dois e o outro pretende regulamentar a assistência religiosa) propõe: “Ninguém será tolhido no exercício da liberdade de consciência e de crença, podendo cada um frequentar, sem qualquer tipo de censura ou constrangimento, por quem quer que seja, os cultos religiosos e as cerimônias litúrgicas, internas ou externas”. Em justificativa, o autor afirma ter sido sucinto e claro ao cobrir “os diversos aspectos da liberdade de consciências e de crença”. Sem nem mesmo essa explicação, o PL 786 usa termos muito semelhantes em seu artigo primeiro. Nada, portanto, de condicionantes, de restrições, de precauções, ou termos similares introduzidos por “desde que”. Essa forma de concepção da liberdade religiosa aponta para um modo de regulação que consiste em blindar a religião de intervenções exógenas aos próprios agentes religiosos.

Tal forma pode ser encontrada também no PL 1553, apesar de suas semelhanças com o PL 4163. No PL 1553, que procura ser tão detalhado quanto o PL 4163, a expressão “desde que não contrariem a ordem e a tranquilidade públicas” aparece apenas uma vez, para condicionar a pregação religiosa em logradouros públicos. Na justificativa, a menção ao art. 5º., inciso VI da CF é contrastada com a constatação da “impunidade ao desrespeito à religião, que na verdade redunda em desrespeito ao próprio Deus”. Vemos como a necessidade da crença em Deus – formulada no PL 4163 – transforma-se aqui em obrigação de respeito ao próprio Deus. A justificativa do PL 1553 afirma que “confundese o direito à liberdade de expressão com abuso de tal direito”, enquanto que o PL4163 referia-se à liberdade de expressão entre os direitos que condicionavam a proteção à liberdade religiosa. Portanto, apesar da semelhança dos termos, ocorre uma grande mudança na concepção da liberdade religiosa. A proposta de Lei Geral das Religiões – à qual corresponde o PLC 160/2009 – retoma a primeira concepção, talvez a despeito de seus propósitos. Como notamos anteriormente, ele é o sucessor de uma iniciativa de regulamentação do art. 5º., inciso VI da CF, o PL 1553/2007, ele mesmo uma reapresentação do PL 1155/2003 – na qual predomina a lógica da blindagem da religião. O texto do artigo primeiro do PLC 160, bem como outras formulações que produzem peculiaridades em relação ao Acordo, remetem ao PL 1553.5 Mas a estrutura geral das disposições da Lei Geral das Religiões herda do Acordo a necessidade de levar em consideração – ou ao menos de manter essa possibilidade – normas e provisões já existentes na legislação brasileira acerca dos vários

5 A introdução da categoria “penhorado” no Art. 6º., #1º., remete ainda a outra proposta, o PL 4142/2008, também voltado a regulamentação do Art. 5º., inciso VI da CF, no qual se destacam as preocupações em garantir a inpenhorabilidade dos templos religiosos. O teor geral do projeto o perfila ao lado daqueles que visam blindar a religião.

tópicos abordados. Como o Acordo procura se apresentar como uma mera sistematização de regulamentações que já existiriam, sua estrutura de formulação reflete essa preocupação ou estratégia. O mesmo ocorre com a Lei Geral das Religiões e o resultado é um acúmulo de referências do tipo “observada a legislação própria aplicável”, várias vezes explícitas, ou mesmo implicitamente, na medida em que são muitos os corpos de normas evocados pela quantidade e variedade de temas contemplados pelo Acordo e pelo PLC 160. Essa estrutura, que permeia o PLC 160, gera efeitos não pretendidos por suas intenções. O texto de Giumbelli (2011) argumenta, considerando o Acordo, que é o que pode ocorrer no caso do ensino religioso em escolas públicas, cujas provisões correm o risco de se tornarem arbitrárias na sua aplicação ou de perderem validade por decisões judiciais. Outro exemplo, agora usando o texto do PLC 160, é oferecido pelo art. 15: “O vínculo entre os ministros ordenados ou fiéis consagrados mediante votos e as instituições religiosas e equiparados é de caráter religioso e não gera, por si mesmo, vínculo empregatício, a não ser que seja provado o desvirtuamento da finalidade religiosa, observado o disposto na legislação trabalhista brasileira”. Esse artigo foi analisado no relatório da Comissão de Assuntos Sociais do Senado e a conclusão foi a seguinte: “não há problemas com o art. 15 do PLC nº 160, de 2009, que, do ponto de vista trabalhista, apenas procura registrar a diferença conceitual entre as atividades religiosas e o vínculo empregatício, sem pretender, em momento algum, impedir absolutamente que o Poder Judiciário observe e faça justiça ao fato de o primeiro vínculo, se desvirtuado, transformar-se no segundo, quando for esse o caso.” Diante dessa interpretação, sempre se pode fazer a pergunta: se o texto apenas estabelece uma

“diferença conceitual”, reservando a competência do Poder Judiciário para decidir sobre os casos com base em outra legislação, para que serve? Veremos que, em uma serie de temas, os congressistas procurarão exatamente mudar a legislação que serve de base para a aplicação e julgamento de normas civis. Ao fazê-lo, retomam a segunda concepção de liberdade religiosa, ou seja, aquela que pretende blindar a religião. Comentamos agora um projeto que tem essa característica, embora não pretenda ser uma regulamentação do art. 5º. da CF. Trata-se do PLS137/2005, que busca fazer modificações na lei conhecida como Estatuto da Cidade. Tais modificações são basicamente de duas ordens: introduz a liberdade religiosa como um direito a ser considerado pelo planejamento urbano e isenta os templos de exigências que lhes seriam aplicáveis. Argumenta a justificativa do projeto: “submeter a liberdade de cultos à restrições pseudo-urbanísticas-ambientais, como, por exemplo, Estudos de Impacto Ambiental, Estudos de Impacto de Vizinhança, Audiências Públicas etc, com base em legislação infraconstitucional, caracteriza flagrante afronta ao que dispõe o art. 5º., inciso VI, da Constituição da República”. O que ocorre nessa operação é que se utiliza o art 5º., que até agora vimos ser objeto de regulamentação, para justificar alterações em legislação sobre assunto que pode interferir na vida das coletividades religiosas. É sintomática outra formulação da justificativa do mesmo projeto: “A atual Carta Magna, diferentemente das anteriores, não condicionou o exercício dos cultos à observância da ordem pública e aos bons costumes. E assim o fez o legislador constitucional pela experiência de que tais conceitos, por serem vagos e indefinidos, mais serviram para intervenções arbitrárias do que para a satisfação do interesse público”. Ao desprezar os princípios que serviram para guiar várias tentativas de regulamentação do

art. 5º. da CF, o texto do PLS137 permite lançar a questão que responderemos com os dados da segunda parte deste texto: não mais como se regulamenta a liberdade religiosa, mas esta, o que regulamenta?

2. Projetos acerca de aspectos específicos dos coletivos religiosos Analisados os projetos que se atêm a tentar regulamentar a „„liberdade religiosa‟‟ garantida na Constituição de 1988, chegamos a um outro e novo conjunto de projetos de lei. Estes projetos se caracterizam pelo conteúdo, de ambições mais modestas, e por serem autoreferenciados – distantes de uma tentativa de interpretar o que estaria previsto constitucionalmente, mesmo que se embasem por vezes no artigo quinto da Constituição. Para a Câmara dos Deputados, os projetos de lei aqui analisados são quarenta. No Senado Federal, a quantidade é menor – 9 projetos de lei. A busca no sistema do Congresso que registra as iniciativas de deputados e senadores com base nas categorias especificadas na introdução deste texto resultou em um conjunto mais amplo de registros. Consideramos apenas aqueles referentes a projetos de lei e descartamos aqueles que não podiam ser submetidos ao procedimento que julgamos analiticamente mais produtivo para se produzir uma visão geral. Efetuamos uma análise de conteúdo que considerava mais o que de fato os projetos visavam implementar do que os termos que originaram a sua ocorrência. Assim procedendo, chegamos a uma gama de oito temas frequentes e que aglomeram os assuntos dos projetos de lei. São eles: leis urbanas, impostos e tributos, patrimônio, questões de previdência social, tarifas, capacidade jurídica, relação com os fieis e direitos religiosos. Uma nona categoria, que recebeu o nome de „„outros‟‟, aglomera os projetos que, em razão de terem um foco muito específico, não puderam ser

contemplados nas temáticas anteriores. A distribuição dos projetos pode ser assim apresentada: Tabela 1 – Projetos classificados por tema em cada casa do legislativo

Impostos e tributos Leis urbanas Patrimônio Previdência Social Tarifas Direitos religiosos Capacidade jurídica Relação com fieis Outros

Câmara 9 8 8 5 5 2 2 2 2 43

Total

Senado 2 1 0 1 0 2 0 0 0

Total 11 9 8 6 5 4 2 2 2

6

49

Tabela 2 – Ocorrência dos temas dos projetos de lei em %, consideradas as duas casas legislativas Temas Impostos e tributos Leis urbanas Patrimônio Previdência Social Tarifas Direitos religiosos Capacidade jurídica Relação com fieis Outros

% 22% 18% 17% 13% 10% 8% 4% 4% 4%

Procedemos também a uma classificação dos projetos de lei quanto à postura adotada em relação às prerrogativas das instituições religiosas – se estes tendiam a aumentar ou a restringir as capacidades jurídicas e condições materiais de manutenção. Dos 49 projetos de lei analisados, uma esmagadora maioria, 42 projetos, aumenta as prerrogativas das instituições religiosas. Os sete demais projetos as restringem. Isso significa que no Congresso Nacional brasileiro predominam iniciativas, geralmente

baseadas no princípio da liberdade religiosa, que buscam expandir as capacidades jurídicas ou amenizar os custos de manutenção de instituições religiosas. Analisemos cada categoria temática para conformarmos um painel mais específico da situação. Entre os projetos de lei acerca impostos e tributos, apenas um, da Câmara, pode ser considerado restritivo. A PEC 176/1993 instituía a supressão dos dispositivos que proíbem todas as instâncias do governo brasileiro em instituir impostos sobre templos de qualquer culto. Este projeto pode ser visto como a exceção que confirma a regra: todos os demais projetos visavam à concessão de distintas isenções fiscais – em especial imunidade tributária aos templos propriamente ditos e a impostos menores para aquisição de bens pelas igrejas. No que tange às leis urbanas, os projetos que aumentam as prerrogativas religiosas quase sempre propõem a dispensa de alvarás aos templos ou das exigências de estudo de impacto de vizinhança, em tentativas de blindar as igrejas frente a essas burocracias. Os projetos relacionadas à temática do patrimônio material também se empenham neste sentido, por exemplo, propondo, quando querem aumentar as prerrogativas religiosas, a impenhorabilidade dos templos religiosos. Caso flagrante de „„consenso‟‟ são os projetos sobre previdência social. Todos eles ampliam as prerrogativas religiosas, e quase todos versam sobre a dispensa do recolhimento da contribuição previdenciária incidente sobre o valor pago aos ministros de confissão religiosa. Os projetos sobre tarifas públicas também são todos favoráveis ao aumento das prerrogativas de instituições religiosas, produzindo condições diferenciadas quanto a direitos autorais de músicas utilizadas nas cerimônias e, sobretudo, quanto à cobrança de tarifas telefônicas ou de energia elétrica.

As iniciativas de projetos sobre „„direitos religiosos‟‟ trazem apenas uma voz dissonante – o PL 1785/2007, restritivo, que previa vedar a propaganda partidária ou de candidato realizada em templos religiosos. Os outros projetos sobre o tema tentam produzir exceções para flexibilizar as datas de aplicação de provas para candidatos cujas religiões impedissem o seu comparecimento. Uma das iniciativas sobre capacidade jurídica propunha, por meio do PL 3227/2004, a legitimidade das organizações religiosas para a propositura de ação civil pública.6 Se o contrapormos ao conteúdo do citado PL 1785/2007, temos aí uma flagrante disputa acerca do lugar esperado para as instituições religiosas na grande política. A categoria enfeixada pela rubrica de „„outros‟‟ traz duas iniciativas, uma sobre o repasse de verbas públicas às instituições religiosas, qualificando-as como „„de interesse da sociedade civil‟‟ (o PL 916/1999) – aumentando as prerrogativas religiosas, portanto. Um segundo projeto está nesta categoria – restritivo, já que veda às instituições religiosas e partidos políticos a exploração exclusiva do serviço de radiodifusão comunitária. No que tange à relação com fieis, por fim, temos duas iniciativas, vindas da Câmara, que pretendem blindar as instituições religiosas garantindo-lhes a recusa à membresia de pessoas que não se adequem a seus perfis e esclarecendo o regime voluntário de certas prestações de serviço pelos fieis.

6 Deixamos de fora de nosso universo projetos que foram propostos em reação ao que foi interpretado como uma possibilidade de ingerência estatal indevida na organização das instituições religiosas, proporcionado pelo novo Código Civil brasileiro, vigente em 2003. Sobre esse assunto, algumas análises gerais já foram feitas (Mariano 2007, Giumbelli 2008). Sua complexidade e especificidade merecem uma consideração a parte. É possível afirmar, contudo, que todos os projetos procuravam impedir que sobre as instituições religiosas recaíssem as mesmas exigências que incidem sobre as associações sem fins lucrativos.

Outro ponto que atraiu nosso interesse foi a caracterização dos parlamentares registrados como autores dos projetos de lei, considerando seu pertencimento religioso.7 Analisamos as autodeclarações dos autores de iniciativa legislativa e encontramos um cenário em que predominam cristãos. A isso corresponde o número de 28 dos 49 projetos (ver tabela 3), assim especificados: um padre católico, cinco membros de Igrejas Batistas, sete membros de Assembleia de Deus, quatro membros da Igreja Internacional da Graça de Deus, dois da Igreja do Evangelho Quadrangular, dois da Igreja Universal do Reino de Deus, além de sete evangélicos sem vinculação institucional conhecida. Tabela 3 – Pertencimento religioso dos autores dos projetos Autodeclarados religiosos 22 6 28

Câmara Senado Total

Sem vínculo religioso conhecido 18 3 21

Quanto à hipótese de uma relação entre projetos de lei que aumentam as prerrogativas religiosas e autores com autodeclaração religiosa, encontramos uma associação positiva, como demonstra a Tabela 4. Tabela 4 – Autodeclarações religiosas X Efeito sobre prerrogativas (somadas as duas casas legislativas)

Projetos que prerrogativas religiosas Projetos que prerrogativas religiosas

Autores com autodeclaração religiosa

Autores sem autodeclaração religiosa

aumentam as de instituições

27

15

restringem as de instituições

1

6

7 Para considerar uma pessoa como religiosa, recorremos a biografias e, complementarmente, outras informações em que ela se declara como tal, expressando seu vínculo com uma confissão, igreja ou tradição.

Vinte e sete dos 42 projetos de lei que aumentam as prerrogativas das instituições religiosas têm autores de vínculo religioso conhecido – o que redunda numa ocorrência de 64%. Não nos pronunciamos acerca da totalidade da atuação legislativa desses parlamentares; o que podemos sugerir é que a presença de parlamentares com vínculo religioso aumenta as chances de apresentação de projetos que aumentam as prerrogativas de instituições religiosas. Os parlamentares sem vínculos religiosos conhecido são responsáveis por 15 dos projetos que intentam aumentar as prerrogativas religiosas – demonstrando que a não assunção pública de um credo não significa necessariamente a rejeição aos interesses religiosos. Vale especificar o caso destoante no quadro: trata-se do PL 2949/2000, cujo autor é membro da Igreja Batista e que propõe a interdição às instituições religiosas e partidos políticos da exploração exclusiva dos serviços de radiodifusão comunitária. Gostaríamos de salientar, ainda, a frequência com que ocorrem casos como os do parlamentar Almir Moura (PMDB/RJ), pastor da Igreja Internacional Da Graça De Deus e autor de quatro projetos de lei que expandem as prerrogativas de instituições religiosas isto em apenas um mandato. Outros que somam mais de uma ocorrência: Costa Ferreira (PSC/MA), membro da Assembleia de Deus; Lincoln Portela (PSL/MG), ministro e presidente da Igreja Batista Solidária; e Walter Tosta (PMN/MG), membro da Frente Parlamentar Mista Evangélica da Família. Estes três parlamentares são autores de dois projetos, cada. Por fim, vale retomar a referência ao projeto conhecido como Lei Geral das Religiões, cujo escopo de temas é bastante amplo.8 Quando comparamos os temas

8 Para uma apresentação dos temas contidos na Lei Geral das Religiões, ver Giumbelli (2011).

englobados no PLC 160/2009 com aqueles considerados para analisar outros 49 projetos, percebemos que há sobreposições. Elas ocorrem quanto a impostos e tributos, leis urbanas, patrimônio, previdência social e capacidade jurídica, embora raramente se trate de uma sobreposição exata. Ou seja, em muitos pontos, o PLC 160 é mais amplo em suas disposições, enquanto que outros projetos incidem sobre pontos bem específicos dentro daquelas temáticas. No caso das categorias restantes, elas tratam de assuntos que não são mencionados pelo PLC 160: tarifas públicas, direitos religiosos e relação com fieis, além de meios de comunicação. Essa análise precisa ser aprofundada. Mas o que temos é suficiente para afirmarmos que a pretensa Lei Geral das Religiões não corresponde a uma síntese de propostas anteriores em discussão no Congresso Nacional. Em vez disso, sua estrutura e conteúdo derivam imediatamente do texto do Acordo entre Brasil e Santa Sé. Portanto, o PLC 160 inova em relação a uma agenda anterior de discussão, assim como, reiterando o que concluímos na primeira parte, ele retoma uma concepção de liberdade religiosa que a considera sujeita a limitações. Seria esta, paradoxalmente, a forma encontrada para levar adiante a tendência dominante que consiste em blindar as instituições religiosas?

Considerações Finais Analisando a influência de valores religiosos na tramitação de projetos de lei, Gomes, Natividade e Menezes (2009) defendem que os discursos produzidos no âmbito da atuação política de religiosos no Brasil são uma resposta às mudanças nas configurações da vida social e novas demandas da sociedade civil, nos termos de flexibilidade e enrijecimento. Assim, a inserção na política pela eleição de candidatos de

diferentes confissões religiosas para cargos no Legislativo brasileiro relaciona-se com o que é definido pelas instituições religiosas como um ''direito'' a defender a sua ''verdade'' e atuar na esfera pública, em oposição a ações conquistadas capazes de ameaçar os valores cultivados religiosamente (Gomes, Natividade e Menezes, 2009: 17). Diferentemente da pesquisa de Gomes, Natividade e Menezes, nosso interesse recai não sobre temas que envolvem família, direitos sexuais e direitos reprodutivos, mas sobre a liberdade religiosa e os atributos e capacidades das próprias instituições religiosas. Seria preciso ver com cuidado até que ponto as conclusões atingidas no primeiro caso podem ser aplicáveis ao nosso. Respeitando os limites dos dados aqui apresentados, destacamos a conotação que adquire o conjunto dos projetos analisados na segunda parte, antes de tecer um comentário mais geral. Em todos os registros, trata-se sempre da religião em geral. Não nos deparamos nunca com o recorte ilustrado pelo Acordo entre o Brasil e a Santa Sé, concebido para incidir sobre uma confissão específica. É possível que existam projetos preocupados, direta ou indiretamente com as “religiões de matriz africana”,9 mas eles não apareceram em nossos registros. Estes estão dominados por um vocabulário e por referências cristãs. Lembremos que cristãos são também os pertencimentos da maioria dos autores dos projetos. Isso nos permite concluir que, quando se trata de “liberdade religiosa”, os argumentos levantados para sua definição no âmbito do Congresso Nacional estão vinculados ao cristianismo, sobretudo aquele de corte evangélico. Sendo assim, cabe-nos perguntar, qual a relação estabelecida entre o geral e o particular dentro dos projetos de regulação aqui analisados?

9 Afirmamos essa possibilidade com base na existência de iniciativas desse tipo no plano do Poder Executivo, cujas políticas de ação afirmativa e de combate à intolerância incidem sobre grupos e práticas afrorreligiosos (citar Mariana, bib do projeto produtividade)

Assim, é bastante significativo que o PLC 160 tenha sido apresentado como uma “Lei Geral das Religiões”. Procuramos colocá-lo em perspectiva recorrendo à análise de propostas anteriores de regulamentação do art. 5º. inciso VI da Constituição Federal e a uma caracterização global do agregado de projetos que visam definir o estatuto e as capacidades das instituições religiosas. Vimos, por um lado, que não existe uma relação de simples continuidade ou sobreposição entre o PLC 160 e outros projetos. Por outro lado, isso não impede que a Lei Geral seja defendida pelos mesmos atores e com os mesmos argumentos que vem se levantando para blindar a religião. Caso aprovado, deveremos avaliar se a Lei Geral das Religiões configurará outro capítulo na história das relações entre Estado, religião e sociedade no Brasil. Do contrário, o PLC 160 terá o mesmo destino de quase todos os demais projetos aqui analisados. Aprovados ou não, essas iniciativas legislativas, com os argumentos e as forças sociais que acionam, nos oferecem um material valioso para compreendermos a regulação do religioso.

Referências

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GOMES, Edlaine; NATIVIDADE, Marcelo; MENEZES, Raquel Aisengart. Proposições de leis e valores religiosos: controvérsias no espaço público. In: DUARTE, L. F. D.; GOMES, E.; MENEZES, R. A.; NATIVIDADE, M. Valores religiosos e legislação no Brasil. A tramitação de projetos de lei sobre temas morais controversos. Rio de Janeiro: Garamond, 2009. pp. 15-45 MARIANO, R.. A reação dos evangélicos brasileiros ao novo Código Civil. Sociedad y Religión, v. XVII, p. 41-60, 2007. MONTERO, Paula. “Religião, laicidade e secularismo: um debate contemporâneo à luz do caso brasileiro”. Cultura y Religión, v. II, p. 132-150, 2013. ORO, Ari Pedro et al (orgs). A Religião no Espaço Público: atores e objetos. São Paulo: Terceiro Nome, 2012. SCHELIGA, Eva. "Educando os sentidos, orientando uma práxis:etnografia das práticas assistenciais de evangélicos brasileiros". São Paulo: Tese de Doutorado em Antropologia, FFLCH-USP, 2010.

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