Delação Premiada… O regresso da Tortura!

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Delação Premiada… O regresso da Tortura P. Saragoça da Matta

DELAÇÃO PREMIADA… O REGRESSO DA TORTURA! “A integridade moral e física das pessoas é inviolável”1 P. Saragoça da Matta

“Os falsos, os hipócritas, os simuladores, os fraudulentos, constituem a grande, a imensa maioria.” L. Battistelli2 “Adquire a verdade, e não a vendas adquire sabedoria, instrução e inteligência” Provérbios, 23-23 “convicting the innocent is unequivocally easier in a world that permits plea bargaining” S. Schulhofer3

RESUMO No presente trabalho analisa-se a utilidade, admissibilidade dogmática, constitucionalidade, legalidade e compatibilidade intrasistemática (jurídico-penal e jurídico-processual-penal) da delação premiada, instituto consolidado no Direito penal e processual penal brasileiro, na perspectiva da sua possível introdução no quadro dogmático e normativo português. Conclui-se, inequivocamente, pela material inutilidade, inadmissibilidade dogmática, inconstitucionalidade, ilegalidade e incompatibilidade intra-sistemática da delação premiada em qualquer Estado de Direito democrático. Tal instituto, consagração de simples meio alternativo de tortura, representa um retrocesso à pré-história do Direito penal e processo penal, anterior ao próprio Génesis dos Direitos Humanos. Impedir a sua introdução no sistema jurídico português constitui um Armagedão na luta pelos Direitos Humanos em Portugal. ABSTRACT This paper analyzes the usefulness, dogmatic admissibility, constitutionality, legality and intra-systematic compatibility (regarding criminal law and criminal procedure) of the “delação premiada” (disclosure of crime, offense or fault of others, in order to take advantage of this revelation), consolidated institute in Brazilian criminal law and procedure, in the perspective of its possible introduction into the Portuguese dogmatic and normative framework. It unmistakably concludes by the material uselessness, dogmatic inadmissibility, unconstitutionality, illegality, and intra-systematic incompatibility of the “delação premiada” in any democratic rule of law system. Such an institute, consecration of a simple way torture, represents a setback to the prehistory of criminal law and criminal procedure, prior to the Genesis of Human Rights itself. Preventing its introduction into the Portuguese legal system constitutes an Armageddon in the fight for Human Rights in Portugal. PALAVRAS CHAVE Direito Penal, Processo Penal, Direitos Humanos, Tortura, Confissão, Delação, Traição, Direito premial. KEY WORDS Criminal law, Criminal procedure, Human Rights, Torture, Confession, Incrimination of others, Betrayal, Plea bargaining.

Art.º 25º da Constituição da República Portuguesa: “1. A integridade moral e física das pessoas é inviolável. 2. Ninguém pode ser submetido a tortura, nem a tratos ou penas cruéis, degradantes ou desumanos”. 2 Battistelli, Luigi, A mentira nos tribunais – estudos de psicologia e psicopatologia judiciária, 2ª Ed., Colecção Coimbra Editora, n.º 3, Coimbra Editora, Coimbra, 1977, p. 21. 3 Schulhofer, Stephen J., “Plea bargaining as disaster”, 101, in Yale Law Journal, 2007. Texto no qual, além do mais, se pode ler: “Constitutional and doctrinal objections aside, plea bargaining seriously impairs the public interest in effective punishment of crime and in accurate separation of the guilty from the innocent”. 1

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I. Introdução: a delimitação do tema da análise “Em Portugal existe uma política criminal à flor da pele”, disse um dia na Assembleia da República o Sr. Professor Manuel da Costa Andrade. A frase, veraz, precisa, actual muitos anos após ter sido proferida, leva-nos a recordá-la agora, tal como o fez o Sr. Professor Figueiredo Dias, quando, em resposta à questão sobre se gostava “de mudanças (na lei) quando ocorrem casos muito mediatizados”, foi peremptório: “Não é bom. (…) As poucas alterações que a lei tem sofrido foram motivadas por este ou aquele caso. Não posso achar mais errado. A legislação penal e processual penal são tão graves, tão pesadas, tão difíceis de mexer, que são daquelas coisas que deviam ser uma questão de regime e não de partidos”4. E chamamos à colação a frase do Professor Costa Andrade porque, neste estio-outono do ano de 2016, Portugal vive, uma vez mais, um episódio claramente patológico de política criminal à flor da pele. Desta feita o leit motiv do afã reformista impulsionado pelas Magistraturas, ordeiramente organizadas em corporações5, e de alguns Políticos mais ou menos alinhados pela mesma pauta, já não é o Caso Casa Pia nem o Caso Moderna, não é o Caso Vale e Azevedo nem o Caso Fátima Felgueiras6, não é o Caso dos Submarinos nem o Caso dos Sobreiros, não é o Caso Face Oculta nem sequer os Casos BPN, BCP, Banif ou BPP7. O leit motiv nem sequer é, oficialmente, nacional. Ou pelo menos não o é na sua génese mais pregressa. A inspiração declarada é o ultramarino Caso Lava-jato. Mas a motivação que se exuma do ambiente mediático é o Caso Operação Marquês8 e o amontoado de casos a que se baptizou de Caso BES, em todas as suas desinências e configurações, desde logo o Caso Rota do Atlântico, e,

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Dias, Jorge de Figueiredo, em entrevista à Revista Visão, publicada em 31.07.2003, a pp. 34-40. O que só por si deveria fazer-nos temer e duvidar dos argumentários que convocam para a liça supostamente dogmática, mas que verdadeiramente nada tem de doutrinal a subjazer-lhe, como adiante melhor se demonstrará. 6 Casos estes a que, aliás, alude Figueiredo Dias na entrevista já citada, como inspiradores de discussões acaloradas e supostamente estruturadas sobre a então alegada crise da justiça penal. 7 Sobre estes casos, estranhamente, nenhum escândalo público com a demonstração da falência do sistema, e que está patente aos olhos de Portugal inteiro quando se vêem inquéritos que tardam quase uma década para terminar, sem qualquer prolação de acusações, mesmo quando houve Arguidos detidos para interrogatório, mas que entretanto foram queimados em lume brando desde então até ao momento em que estas linhas são escritas. Estranha comoção causada pelo Caso Casa Pia em algumas personalidades, e mais rara ainda a inexistência, por parte dessas mesmas personalidades, sequer de um esgar perante o Caso BPN em que, v.g., foi constituído Arguido um Conselheiro de Estado… e em que todos os prazos de inquérito (razoáveis e irrazoáveis) foram ultrapassados, sem uma palavra, sem uma justificação, sem nada. 8 Em http://195.23.58.154/files/press/2016/10/66600611.pdf encontra-se confirmação expressa do afirmado, num artigo datado de 23.10.2016, subscrito por Octávio Ribeiro, Director do Jornal Correio da Manhã. 5

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até, o alegado envolvimento de alguns Magistrados nesses mesmos casos, por suposta percepção de quantias pecuniárias a que não tinham direito, e, pior ainda, em troca de favores funcionais. E, perguntar-se-á, porquê? Porque algum ou alguns destes casos tiveram a má-sina (ou boa, logo se verá) de ter contactos, pelo menos investigatórios (dir-se-á à cautela) segundo a imprensa lusa, com o mais grandioso escândalo investigado pela Justiça Brasileira nos últimos anos: o tal Caso Lava-jato!9 E, destarte, Portugal redescobriu, 516 anos passados, o Brasil. Desta feita na dimensão dos chamados meios aquisitivos de prova. Assim, a Terra de Veracruz passou a ser, para muitos, um modelo a imitar. Lá as investigações têm sucesso tal que há que encontrar a causa de tanta produtividade. Encontrada a causa, a conclusão é óbvia: importem-se os mecanismos lá vigentes, num fenómeno de aculturação totalmente acrítica, além de que completamente serôdio10. Num ápice foi ver Magistrados portugueses a defender os meios aquisitivos de prova em vigor no Brasil, Magistrados brasileiros a dar conferências e entrevistas em Portugal, cantando laudas ao respectivo regime legal11, e até políticos nacionais a afirmarem peremptoriamente que esses meios aquisitivos de prova acabarão necessariamente por “ter de ser” importados para Portugal, ou, pelo menos, que os mesmos merecem discussão em terras lusas12. 9

Nos últimos anos, posto que também no Brasil os escândalos processados pelo judiciário num momento são sempre, supostamente, mais importantes e mais graves do que os anteriores. Mas convém lembrar: antes deste houve o Mensalão, o Banestado, e uma pletora de tantos outros, com menor reflexo mediático europeu. 10 O ridículo de tal pensamento é demonstrado, à saciedade, pelo facto de assentar na ignorância de que a origem única e directa, historicamente, da Delação premiada não é o Direito brasileiro (nem o Norte Americano, como dizem os magistrados brasileiros), mas o Direito português antigo, mais precisamente as Ordenações Manuelinas e Filipinas. Aliás, no bom sentido da origem do instituto no Brasil, cfr. Valença, Thomaz Jefferson Batista e Filho, Rivaldo Salvino N., Delação premiada: aspectos jurídicos e discussões acerca da Traição, Aracaju, 2015, in http://openrit.grupotiradentes.com/xmlui/bitstream/handle/set/1294/ARTIGO%20DEFINITIVO%20PARA%20ENVI AR%20POR%20CD.pdf?sequence=1 11 Além de entrevistas a representantes do Ministério Público Federal Brasileiro ao longo de todo o verão de 2016, já em Outubro fez capa de Jornal uma entrevista dada pelo próprio Procurador-Geral da República brasileiro, Dr. Rodrigo Janot, sob o sugestivo título: “Rodrigo Janot: ‘É pecado não usar delação. A PGR portuguesa concorda comigo”! Alguns dos sound bites do entrevistado sobre a delação premiada foram estes: “Na administração da justiça penal ou se parte para um acordo penal ou se inviabiliza a Justiça”; e “é um pecado que Portugal não tenha a delação premiada. Um instrumento jurídico desenvolvido em países anglo-saxónicos, mas que já foi incorporado em países de estrutura jurídica com a do Brasil ou de Portugal” (o que não é, em rigor, verídico). 12 Defendendo uma postura de Estado, de um Estado de Direito democrático, leia-se a entrevista de Consuelo Martínez Pereda, Procuradora-Geral do Reino de Espanha, quando afirma: “há muito que precisamos de um novo processo penal, mais moderno, mais ágil e igualmente garantista” (in Jornal I, edição de 12 de Outubro de 2016, p. 25). Curioso que a agilidade e modernidade desejada pela cúpula da Fiscalía General de España para o processo penal, encontra travão na necessidade de manter o processo igualmente garantista… Especificamente sobre delação premiada afirma: “É preciso ter cautela quando se fala de delação premiada, mas por vezes é conveniente. Se um acusado não só reconhece os atos – o que já é uma grande colaboração porque aceita as consequências – como ainda aceita restituir os fundos desviados isso tem de ser reconhecido, valorizado. E se, além disso, o suspeito trouxer para o processo dados relevantes para a continuação dos trabalhos, com a possibilidade de deter outras pessoas e ter acesso a novas provas, tem de se tomar a atitude em conta para uma atenuação da pena”. Curiosa a sobriedade, nada afirmando 3

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Como alguém afirmou, “é uma questão de tempo”, seguro que está do sucesso que terá a pressão estrategicamente implementada pelos responsáveis pela investigação criminal em Portugal, e que segue sempre o mesmo receituário: agita-se o fantasma de um suposto inimigo do colectivo13 (responsável por todos os males dos tempos de crise, esquecendo que a “crise” é um mal em que Portugal é reincidente), alardeia-se a falta (perpétua) de meios de investigação por parte dos “bons” e os imensos poderes dos “maus”, pressiona-se o poder político ao ponto de este temer ser confundido, pelos votantes14/15, com o tal inimigo “mau”. E assim se consegue lestamente que seja posto em forma de Lei algo que até pode ser um rematado disparate16. Pior: um disparate totalmente avesso ao espírito do sistema jurídico-processual-penal português, contrário aos mais básicos direitos de defesa de todo e qualquer ser humano, representando uma regressão histórica impensável no pensamento do que é, e deve ser, o Direito.

sobre os efeitos que tal comportamento do acusado terá para os delatados. Quanto à aplicação em Espanha deste instituto, responde: “Sim, mas excepcionalmente, e nunca se traduz numa absolvição”. Veremos, infra, que em Portugal algo semelhante já existe, mas apenas para casos, precisamente, muito excepcionais (368º-A e 374º-B do CP e art.º 5º Lei n.º 52/2003). 13 Dois bons exemplos deste tipo de justicialismo popular, e populista (aqui potenciado pelas próprias instâncias formais de controlo no Brasil), podem encontrar-se nas chamadas “10 medidas contra a corrupção”, que em Outubro de 2016 já tinham conseguido recolher em petição online dois milhões de assinaturas, http://www.mppr.mp.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=6192 e http://www.dezmedidas.mpf.mp.br/. Sobre a desadequação deste tipo de medidas se posicionaram, contudo (e bem), alguns agentes do próprio Ministério Público brasileiro, como Celso António Três (por mero acaso o primeiro Procurador Federal a investigar a trilha de dinheiro supostamente desviado na investigação que culminou no Escândalo Banestado), e o próprio Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, entre muitos criminalistas (falando aquele Instituto num verdadeiro “retrocesso punitivista”). 14 Jornal Sol, edição de 3 de Outubro de 2016 – “Delação premiada. Ministra quebra o silêncio e diz que debate é importante – Francisca Van Dunem diz que não está pensada nenhuma iniciativa legislativa, mas considera o debate sobre delação ‘importante e possível’.” (!). Neste artigo se enunciam, aliás, jornalisticamente, é certo, vários dos argumentos que se digladiam sobre o tema. 15 Que são a base de sustentação do poder político, tão facilmente manobrável pelas máquinas da propaganda e da demagogia fácil, acolitadas por uma comunicação social avessa à verdadeira discussão técnica dos problemas… não tem interesse mediático discutir seriamente as questões! Para a imprensa de escândalo o juridiquês só é inadmissível para discutir qualquer caso seriamente… já não se for para discussões ensanguentadas e espectaculares… 16 A este propósito recorde-se que o Jornal Público de 3 de Junho de 1995, p. 3, noticiava: “Justiça e ‘colarinhos brancos’ Defendida a inversão do ónus da prova”. Em texto lia-se: “O Desembargador Noronha do Nascimento defendeu ontem a inversão do ónus da prova nos crimes do ‘colarinho branco’, ao intervir num colóquio sobre Justiça, realizado no Porto…”. Recorde-se que à data Noronha do Nascimento era não só Juiz Desembargador, como Presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses. O bom senso, porém, nunca permitiu semelhante ideia, totalmente violadora de todas as regras e princípios civilizados, vingar. Citando o próprio Magistrado tal como o foi no referido jornal, “uma coisa é opinar em sondagens ou debitar ideias à mesa do café e outra bem diferente é ter alguém à sua frente cujo destino será marcado pelas nossas mãos”. A inversão do ónus da prova em processos criminais, porém, nem à mesa do café deveria ser objecto de conversas, quanto mais em colóquios. 4

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E esta é a história da legiferação em Portugal nos últimos vinte anos, nesta área tão difícil, na expressão de Figueiredo Dias, como é a do direito penal e do processo penal. Legisla-se em política criminal, novamente lembrando Costa Andrade, à flor da pele. *** Quem tenha chegado até aqui, bem percebe que o que se pretende discutir não são os meios aquisitivos de prova vigentes na legislação processual penal brasileira, em geral. Pelo menos não todos eles, posto que a grande maioria dos mesmos é idêntica aos usados nos países de matriz “democrática ocidental”. Ninguém pretende, no estado actual da civilidade processual penal, questionar da bondade, necessidade e constitucionalidade (dentro dos limites – pelo menos formalmente17 – existentes na lei portuguesa) das buscas e apreensões, até em escritórios de advogados, das intercepções telefónicas, da utilização de agentes infiltrados, das chamadas acções policiais controladas, e dos demais meios ocultos de investigação (como a intercepção de correspondência postal ou electrónica, as escutas ambientais, as vigilâncias policiais – também ditos “seguimentos” –, etc.). Mas também ninguém duvidará, no mesmo ambiente, que nem de iure condendo o sistema português pudesse ser compatível com o chamado agent provocateur, com os meios agressivos de interrogatório que ponham em causa a integridade física, psíquica ou intelectual dos arguidos ou das testemunhas, com as intercepções telefónicas, de correspondência, e informáticas descontroladamente realizadas como instrumentos pré-processuais de vigilância pelas entidades policiais, como se de rotineiras “acções policiais de giro” se tratasse, na detecção, não de evidências de crimes, mas da eventual e hipotética comissão de possíveis crimes em curso (por este ou aquele indivíduo mais ou menos malquerido), etc. O que se visa aqui discutir, tão-somente, é a utilidade, admissibilidade dogmática, constitucionalidade, de um instrumento instituído no processo penal brasileiro sob a designação de delação premiada18. Cfr. o nosso Voto de Vencido no Acórdão de 3 de Setembro de 2015, no Caso Sérvulo & Associados – Sociedade de Advogados, RL e outros vs. Portugal, do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, consultável em http://hudoc.echr.coe.int/eng#{"itemid":["001-156519"]}. 18 Para outra sede se deixará a análise de uma série de outras práticas ilegais: - entidades ignotas que se dirigem a instalações de serviços postais, sem qualquer mandato, para violar correspondência sob o olhar atónito dos funcionários postais (caso publicamente denunciado na imprensa, no ano de 2015, por uma Advogada portuguesa, e que pode encontrar-se em https://www.leituras.eu/je-ne-suis-pas-charlie-je-suis-avocat/); - entidades ignotas que, sem qualquer enquadramento legal, promovem escutas telefónicas ou ambientais, quando não mesmo seguimentos, fotografias, intrusão em espaços vedados ao público, intrusão em sistemas informáticos. Tudo com o propósito de farejar informações que possam vir a ser úteis para posteriores acções desencadeadas já dentro dos quadros legais vigentes. Não deixando de, nesses processos assim nascidos de aparente geração espontânea, ficar sempre por 17

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Assim, com este programa, avancemos na análise da delação premiada.

II. Distinções dogmáticas Convém distinguir com precisão, para evitar críticas injustas, o que sejam institutos de direito premial, perfeitamente admissíveis à luz de qualquer sistema processual penal de Estados de Direito democrático, daquilo a que se tem chamado de delação premiada. Como os institutos de direito premial lusos são sobejamente conhecidos, não perderemos tempo a referi-los aqui ex professo. Apontaremos apenas diferenças entre delação premiada, colaboração premiada, confissão e acordos de leniência.

II.1. Colaboração premiada vs. Delação premiada No Brasil faz-se questão de, expressamente, distinguir a colaboração premiada (designação usada pela Lei) da delação premiada (designação usada pela Doutrina e pelo vulgo), se bem que com critérios que não podemos acompanhar integralmente. Assim, no dizer de Cinthia de Souza e de Fillipe Rodrigues, “ao denominar o instituto, a Lei n.º 12.850/13 fez uso da expressão colaboração premiada, no entanto no Brasil o instituto passou a ser chamado popularmente por ‘delação premiada’. Para Luiz Flávio Gomes (2010 s.p.) não se pode confundir colaboração premiada com delação premiada, pois a colaboração premiada é um gênero do qual a delação premiada é uma espécie. Segundo ele, na delação, o delator apenas aponta os sujeitos envolvidos, enquanto na colaboração, o colaborador confidencia elementos sobre a infração penal, como também colabora com informações vitais para desmantelar a organização criminosa. Segundo Gomes (2015, p. 2011), a Lei n.º 12.850/13 preferiu adotar a denominação ‘colaboração premiada’ como gênero, por ser uma expressão mais ampla, e, em razão dessa amplitude, torna-se mais adequada”19.

esclarecer de onde emergiu a informação originária que deu origem ao procedimento investigatório. Mas enquanto não forem totalmente proibidas as averiguações preliminares imunes às garantias do processo criminal (Cfr. o nosso “Old Ways and New Needs”? ou “New Ways and Old Needs”? – uma perspectiva das reformas necessárias ao Processo Penal português, in Revista do Ministério Público, Ano 31, n.º 122, pp. 9-40, maxime p. 22), e enquanto não forem criminalmente punidos todos quantos praticam o justicialismo e não a justiça, nunca se conseguirá por termo a toda uma plêiade de actuações ilegais levadas a cabo ninguém sabe bem por quem… 19 Souza, Cinthia Danielly Nepomuceno e Rodrigues, Fillipe Azevedo, “Os jogos da Colaboração Premiada”, in RJLB, Ano 2 (2016), n.º 4, pp. 355-356, citando: Gomes, Luiz Flávio, “Justiça Colaborativa e Delação Premiada”, disponível em http://www.lfg.com.br; e Gomes, Luiz Flávio e Silva, Marcelo Rodrigues, Organizações criminosas e técnicas especiais de investigação, Salvador, Bahia, Juspodvm, p. 211, 2015. 6

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Compreende-se o que os autores querem significar: colaboração premiada é expressão que aparenta ter, linguisticamente, um alcance mais amplo do que delação premiada. Mas a questão que aqui se põe não é linguística, mas jurídica. E no plano jurídico o que importa aferir é se a delação premiada, tal como legalmente prevista no Direito brasileiro, se traduz no mero apontar dos sujeitos envolvidos, ou se antes exige que o colaborador confidencie elementos sobre a infracção penal e colabore com informações vitais para desmantelar a organização criminosa. Ora, como veremos, na Lei brasileira a delação premiada apenas existe enquanto modalidade de direito premial se o delator fizer tudo isso, i.e., se fizer tudo quanto os referidos autores fazem subsumir na designação de colaboração premiada. Assim que seja óbvia a razão pela qual os citados autores afirmem que no Brasil “o instituto passou a ser chamado popularmente por ‘delação premiada’.”. É que no rigor conceptual, no Brasil inexiste qualquer delação premiada que não integre a totalidade dos requisitos que a doutrina aponta àquilo a que crisma de colaboração premiada. O simples apontar dos comparsas não constitui em caso algum relevante comportamento merecedor de prémio, não tendo qualquer dos efeitos premiais previstos na Lei. Porém, se sairmos do quadro legal brasileiro e problematizarmos a questão de um ponto de vista dogmático e abstracto, é óbvio que a colaboração premiada terá de, teoricamente, abranger situações muito mais vastas do que a da delação premiada. Deverá, pois, conceptualmente, reconduzir-se ao conceito de colaboração premiada muitas situações gerais admitidas pelos sistemas penais e processuais penais de vários países do mundo, que nada têm que ver com a delação premiada do direito brasileiro. Dito por outras palavras, delação premiada será uma sub-espécie de colaboração premiada, sendo que a admissibilidade abstracta destas formas de colaboração premiada, mesmo à luz do direito português, não implica – de modo algum – a admissibilidade daquela concreta subespécie de colaboração a que no outro lado do Atlântico se chama, popularmente, de delação premiada. Deverá, pois, concluir-se, no mesmo sentido que os autores citados, mas por razões totalmente distintas das que os mesmos apontam. Tanto mais que, se a definição se exumar dos conceitos usados pela lei brasileira, há uma coincidência absoluta entre colaboração premiada e delação premiada.

II.2. Acordos de leniência vs. Delação premiada

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Outra realidade que cumpre distinguir da delação premiada é a dos acordos de leniência. Estes surgiram pela primeira vez, nos moldes que hoje são conhecidos, nos Estados Unidos da América, por volta do ano de 1993, tendo o objectivo confesso de constituírem uma ferramenta a mais para o processo de arrependimento dos infractores em matérias de direito sancionatório. Neste âmbito estritamente jurídico, os acordos de leniência foram pensados para permitir que uma entidade “visada” num processo sancionatório pudesse participar, cooperando, na investigação, mais especificamente no âmbito das chamadas infracções económicas. Com características claramente premiais, ainda que, como veremos, num domínio administrativo e não judicial, o que se pretendia através deste instrumento era a eliminação ou diminuição dos danos causados com a infracção praticada. Nestes termos, o visado que obtenha um acordo de leniência, tem não só de contribuir para a eliminação dos males gerados com a infracção, como tem de se comprometer a não voltar a infringir a Lei, tendo ainda de colaborar na descoberta de outros responsáveis pela infracção ou por infracções semelhantes ou paralelas. A troco desta mansidão do sistema sancionatório administrativo, obterá benefícios no que respeita às consequências sancionatórias legalmente previstas, habitualmente reduções dos montantes pecuniários a cujo pagamento estaria sujeito a título sancionatório, se o sistema não se suavizasse. O Brasil inspirou-se neste instrumento do direito Norte-americano, e no respectivo sucesso no combate administrativo às infracções económicas. Veio, assim, a incorporar no seu Direito um programa de acordos de leniência no domínio jurídico-administrativo sancionatório20. Tal sucedeu através da Lei n.º 12.529/11, de 30 de Novembro (Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência) o qual previu a possibilidade de a Secretaria de Desenvolvimento Económico, o Conselho Administrativo de Defesa Económica, e os visados por infracções no âmbito económico, subscreverem este tipo de acordos de leniência. O mesmo regime previa, como recompensa para os visados beneficiários da leniência, que estes pudessem beneficiar da extinção da acção sancionatória administrativa e ainda de uma redução, entre um e dois terços, das penalidades abstractamente previstas para a infracção.

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Curiosas estas importações do direito Norte-Americano, quando nesse próprio sistema se discutem nos últimos anos institutos tão “cristalizados” como o do próprio plea bargain. A esse propósito, de extrema utilidade, o trabalho de Hessick III, F. Andrew e Saujani, Reshma M., “Plea Bargaining and Convicting the Innocent: the role of the prossecutor, the defense counsel and the judge”, in Brigham Young University Journal of Public Law, Vol. XVI, pp. 189-242. 8

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Cabe, porém, explicitar que tais acordos de leniência estavam pensados e reservados a pessoas colectivas, a instituições, não sendo aplicáveis às pessoas singulares. Estas poderiam apenas, no âmbito de um acordo de leniência subscrito por uma determinada “pessoa jurídica”, vir a aderir ao programa no mesmo acordo previsto, beneficiando subsequentemente da suavização da reacção sancionatória. Posteriormente, com a aprovação da Lei n.º 12.846/13, de 1 de Agosto (Lei anticorrupção), vieram a ser melhor precisadas várias das características e das definições conceptuais deste sistema de estabelecimento de acordos de leniência. Foi precisamente com esta evolução legal que chegámos ao cenário dogmático e regulamentar actual, o qual nos permite enunciar algumas das características essenciais deste instrumento de diversão e consenso… A primeira característica de um Acordo de Leniência é exigir dos visados que forneçam informações e apresentem provas relevantes, não só para a investigação que esteja em curso, mas especialmente para a descoberta de outros infractores. A segunda característica, emergente do art.º 16 n.º IV da citada Lei Anticorrupção, é a de que “a pessoa jurídica se comprometa a implementar ou a melhorar os mecanismos internos de integridade, auditoria, incentivo às denúncias de irregularidades e à aplicação efetiva de código de ética e de conduta”. Ou seja, a manifestação de um arrependimento. Atente-se, a este respeito, que relativamente a este programa de compliance, no sistema jurídico Brasileiro, se afirma que o respectivo objectivo é evitar que ocorra a prática de novos actos ilícitos, usando-se amiúde a expressão (totalmente impensável no sistema jurídico português, dado o apelo que faz a ordens normativas outras que não a ordem jurídica), “actos que faltem com a ética e moral na administração pública”. No sistema jurídico brasileiro, ao nível Federal, o órgão responsável por celebrar os acordos de leniência é a Controladoria-Geral da União. Equivalente competência era já atribuída, na citada Lei de Defesa da Concorrência, ao Conselho Administrativo de Defesa Económica. Como consequência sinalagmática da eliminação dos danos causados com a infracção, do arrependimento pelos factos praticados no passado, do compromisso de não voltar a delinquir, e da contribuição relevante para a descoberta de novos factos ilícitos e seus responsáveis, a empresa beneficiária da leniência poderá conseguir: a) ver-se totalmente isenta da multa legalmente prevista, ou a sua redução até dois terços do valor total; 9

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b) ver-se totalmente isenta da proibição de receber incentivos económico-financeiros, subsídios e empréstimos por parte do Governo Federal; c) ver-se totalmente isenta da obrigatoriedade de publicação da punição; e, d) ver-se totalmente ou parcialmente isenta da proibição de contratar com a Administração Pública.

Acordos de leniência, porém, não se confundem com Delação premiada. Certo é que ambos consistem em acordos firmados entre infractores e instâncias formais de controlo. E certo é também que as instituições têm de colaborar na descoberta de outros infractores. Mas ficam-se por aqui as semelhanças entre os dois institutos. É que enquanto os acordos de leniência, como visto, são negociados e firmados por um órgão integrado no poder executivo ou por um órgão regulador, já as delações premiadas são usadas não no âmbito de procedimentos administrativos sancionatórios, mas no campo de processos criminais, sendo os seus outorgantes, por parte do Estado, autoridades judiciárias hoc sensu, i.e., um agente do Ministério Público21, com posterior intervenção de um Magistrado Judicial. Dir-se-á existir ainda semelhança no facto de, em ambos os institutos, o visado ter de colaborar com as investigações em curso aos factos ilícitos em que participou. Mas não só tal não é verídico, como as delações premiadas mais mediáticas têm demonstrado (a colaboração exigível pelas autoridades judiciárias vai muito para além dos factos ilícitos em que participou e que constituem objecto do processo), como o facto de se estar em sede de procedimento administrativo sancionatório ou em processo criminal coloca nos antípodas uma da outra estas colaborações. Tudo o que resultará mais claro quando infra, e ex professo, no Ponto V, se apreciar da admissibilidade legal e constitucional da delação premiada.

II.3. Confissão no Direito brasileiro vs. Delação premiada Sob a autoridade de Jeferson Botelho diga-se: “Confessar, no âmbito do processo penal é admitir contra si, por quem seja suspeito ou acusado de um crime, tendo pleno discernimento, voluntária, expressa e pessoalmente, diante da autoridade competente, em ato solene e público, reduzido a termo, a prática de algum fato criminoso. Deve-se considerar confissão apenas o ato voluntário (produzido livremente pelo agente, sem qualquer coação), expresso (manifestado, sem sombra de

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Directamente ou através de um órgão de polícia criminal em nome e representação do Ministério Público. 10

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dúvida, nos autos) e pessoal (inexistente confissão, no processo penal, feita por preposto ou mandatário, que atentaria contra a segurança do princípio da presunção de inocência). Além disso, é incorreto dizer que alguém, não suspeito, nem acusado pelo Estado, ao admitir a pratica de um fato considerado criminoso, está confessando. Na realidade, nessa hipótese, trata-se da autodenúncia ou autoacusação. O ato precisa de ser solene, público e reduzido a termo, justamente porque o interrogatório é o momento ideal para a sua ocorrência, o que se faz respeitadas as formalidades legais”22. Já delação premiada, para a mesma doutrina, é algo totalmente diverso. A propósito refere-se: “Delatar significa acusar, denunciar ou revelar, falamos em delação, quando alguém admitindo a prática criminosa revela que outra pessoa também o ajudou de qualquer forma. É feito pelo indiciado ou acusado. Porém, quando o réu nega a prática do crime ou sua autoria e indica ter sido outro o autor, está, em verdade, prestando autêntico testemunho, mas não se trata de delação. Pode estar agindo desta forma para proteger-se, indicando qualquer outro para figurar como autor do crime. Naturalmente, a delação tem valor probatório especialmente porque houve admissão de culpa pelo delator”23. Curiosamente, os autores não ligam a necessidade de requisitos e cautelas com que dotam a confissão, com a total ausência deles para a delação…desde logo, é curioso não detectarem a contradição substancial dogmática emergente do facto de a confissão ter de ser pessoal, e não – sequer – por mandatário, e a delação, por essência, ser uma confissão de factos alheios, i.e., confissão de terceiros que por definição não é pessoal. Ou seja, a diferença é patente e óbvia: a confissão é a assunção da responsabilidade própria, a delação é a imputação de responsabilidade a outrem. Desta tão singela diferença emergirão todas as consequências que nos Capítulos IV e V se retirarão acerca da inadmissibilidade da delação premiada num Estado de Direito democrático, como Portugal. III. Origens históricas da delação premiada – história de uma involução III.1. Introdução

Botelho, Jeferson, “Direito e Justiça”, in http://www.jefersonbotelho.bom.br, onde publica o trabalho citado, elaborado por Bemvenuto dos Reis Cabral Júnior, Joice Costa Maciel e Rosane Lopes Santos, sob sua orientação. Também sobre a diferença entre confissão e delação, Silva, F. Muniz, A delação premiada no direito brasileiro, in http://aplicação.mpmg.mp.br/xmlui/bitstream/handle/123456789/1017/R%20DJ%20Dela%C3%A7%C3%20Premia da%20%0fernando%20muniz.pdf?sequence.1. 23 Idem, ibidem. 22

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Como a história ensina, a actual República Federativa do Brasil proclamou a sua independência em relação à Coroa Portuguesa no dia 7 de Setembro de 1822. Até essa data, e desde 1500, enquanto colónia portuguesa, vigorava nesse território a legislação lusitana. Durante esse período histórico estiveram em vigor, em Portugal e suas colónias, as Ordenações Afonsinas (cuja conclusão remonta a 1446, mas que na versão divulgada inclui diplomas de 1454), as Ordenações Manuelinas (que remontam a 1512-1514) e as Ordenações Filipinas (1595-1603). As Ordenações Filipinas, apesar de muito alteradas ao longo de 300 anos, constituíram a base fundamental do direito português até às grandes reformas do Século XIX – principalmente ao nível, precisamente, do direito processual civil e penal (Reforma Judiciária, Nova Reforma Judiciária e Novíssima Reforma Judiciária) –, sendo que no Brasil mantiveram vigência em muitas áreas até ao Século XX. Este sumaríssimo excurso histórico permite concluir algo extremamente interessante: as Ordenações Filipinas estiveram em vigor no Brasil mesmo depois de 7 de Setembro de 1822, i.e., já após a Declaração de independência do Brasil. E este acontecimento histórico não é de somenos importância na análise que se empreende. É que a 22 de Setembro de 1822, catorze dias após o mítico Grito do Ipiranga, foi aprovada nas Cortes portuguesas a primeira Constituição, verdadeiro marco revolucionário do Direito português, que pondo termo à Monarquia absoluta, estabelecia uma Monarquia constitucional lusitana. Este documento, verdadeiramente progressista para a época, constituiu um marco na história democrática de Portugal24. Esta primeira Constituição portuguesa inspirava-se na Constituição de Cádis de 1812 e nas Constituições francesas de 1791 e 1795, caracterizando-se pelo profundo liberalismo e pela primeira consagração de direitos e deveres individuais de todos os cidadãos (no sentido que tal categoria tinha à época), nomeadamente a garantia da liberdade, da igualdade perante a lei, da segurança e da propriedade, a separação dos poderes com primazia para o legislativo, a eleição dos deputados para as Cortes, a independência do poder judicial, etc.

Segundo Joaquim de Carvalho, com a Constituição de 1822 Portugal iniciou “a organização jurídica da democracia” (in http://www.arqnet.pt/portal/portugal/liberalismo/const822.html). 24

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E toda a inovação deste diploma fundamental, que nunca vigorou no Brasil e que inflectia profundamente os princípios até então vigentes em matéria processual penal, se encontra plasmada no art.º 11º da Constituição25. Nele se afirma, sem tibiezas, “Fica abolida a tortura, a confiscação de bens, a infâmia, os açoites, o baraço e pregão, a marca de ferro quente, e todas as mais penas cruéis ou infamantes”. Todos estes comandos chegaram ao universo jurídico português sob inspiração do liberalismo político revolucionário emanado da dogmática emergente da França revolucionária. E se é certo que expressamente se proibia a tortura, os açoites, a marca do ferro quente, mais certo é que os princípios subjacentes à Constituição nunca admitiriam qualquer forma de extorsão de confissões a “réus” de processo criminal.

III.2. A vigência no Brasil do direito português prévio à Revolução Liberal de 1821 Tendo vigorado no Brasil as Ordenações Manuelinas, ali se aplicou a Regra constante do Livro V, Título LXXIV, que tinha por epígrafe: “D’aquelles, que dam aa prisam os malfeitores”26.

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A leitura de alguns dos primeiros artigos da Constituição Portuguesa de 1822 é imprescindível para a compreensão do que se afirma: “Art.º 1 A Constituição política da Nação Portuguesa tem por objecto manter a liberdade, segurança, e propriedade de todos os Portugueses. Art.º 2 A liberdade consiste em não serem obrigados a fazer o que a lei não manda, nem a deixar de fazer o que ela não proíbe. A conservação desta liberdade depende da exacta observância das leis. Art.º 3 A segurança pessoal consiste na protecção, que o Governo deve dar a todos, para poderem conservar os seus direitos pessoais. Art.º 4 Ninguém deve ser preso sem culpa formada, salvo nos casos, e pela maneira declarada no artigo 203, e seguintes. A lei designará as penas, com que devem ser castigados, não só o Juiz que ordenar a prisão arbitrária e os oficiais que a executarem, mas também a pessoa que a tiver requerido. (…) Art.º 9 A lei é igual para todos. Não se devem portanto tolerar privilégios do foro nas causas cíveis ou crimes, nem comissões especiais. Esta disposição não compreende as causas, que pela sua natureza pertencerem a juízos particulares, na conformidade das leis. Art.º 10 Nenhuma lei, e muito menos a penal, será estabelecida sem absoluta necessidade. Art.º 11 Toda a pena deve ser proporcionada ao delito; e nenhuma passará da pessoa do delinquente. Fica abolida a tortura, a confiscação de bens, a infâmia, os açoites, o baraço e pregão, a marca de ferro quente, e todas as mais penas cruéis ou infamantes. (…) Art.º 18 O segredo das cartas é inviolável. A Administração do correio fica rigorosamente responsável por qualquer infracção deste artigo”. 26 “Estabelecemos, e mandamos, que nom seja ninhuu tam ousado, que tenha, nem encubra em sua casa, em em outro luguar, pessoa algua que queira matar, ou fazer outro mal a outro ninhuu em Nossos Reynos, e Senhorios, e se alguus pousarem, ou se acolherem encobertamente em algua casa, ou em outro lugar, o Senhor da casa, ou quem em ella morar, sendo dello sabedor os deite loguo fóra, e façam saber aa Justiça da Terra ante que se o mal faça; e os que assi o nom fezerem, se de suas casas sahirem pera matar, ou fazer outro mal, ajam aquela pena que merecer aquelle, ou aquelles que o mal fezerem. E posto que os que o dito mal fezerem, se possam escusar, e defender, que o fezeram, se possam escusar, e defender, que o fezeram por Dereito, non sejam porem escusos da dita pena os que os encobrirem; salvo se aquelles de cujas casas sahirem, ou encobrirem, forem taees pessoas, a que o Dereito permita de poderem seer nos taes feitos com elles”. 13

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Tal como vigorou o disposto no Livro V, Secções VI parágrafo 13 e CXVI das Ordenações Filipinas, respectivamente sob as epígrafes: “Do crime de Lesa Majestade”27 e “Como se perdoará aos malfeitores, que derem outros à prisão”28. E foi este o Direito que continuou vigente no Brasil após 7 de Setembro de 1822, sem que surgisse qualquer proibição de tortura e de outros métodos de extorsão de informações por parte de “réus” de processos criminais. Pior ainda: a experiência da utilização de meios agressivos de investigação criminal, como a tortura, os açoites, a delação, previstas nas então vigentes Ordenações Filipinas, e que vinha d’antanho, manteve-se. Não pode, com honestidade histórica intelectual, esquecer-se que o movimento independentista brasileiro, que culminou com o mítico “Liberdade ou Morte!” de D. Pedro IV de Portugal, o Primeiro do Brasil, remontava a mais de um século antes29. De referir que, de 1788 a 1792 a Coroa Portuguesa, então ainda absolutista, enfrentou um movimento social de libertação e independência que ficou conhecido por Inconfidência Mineira.

“13. E quanto ao que fizer conselho e confederação contra o Rey, se logo se algum spaço, e antes que per outrem seja descoberto, elle o descobrir, merece perdão. E ainda por isso lhe deve ser feita mercê, segundo o caso merecer, se elle não foi o principal tratador desse conselho e confederação. E não o descobrindo logo, se o descobrir depois per spaço de tempo, antes que o Rey seja disso sabedor, nem feita obra por isso, ainda deve ser perdoado, sem haver outra mercê. E em todo o caso que descobrir o tal conselho, sendo já per outrem descoberto, ou posto em ordem para se descobrir, será havido por commettedor do crime de Lesa Magestade, sem ser relevado da pena, que por isso merecer, pois o revelou em tempo, que o Rey já sabia, ou stava de maneira para o não poder deixar de saber”. 28 “Qualquer pessôa, que der à prisão cada hum dos culpados, e participantes em fazer moeda falsa, ou em cercear, ou per qualquer artificio mingoar, ou corromper a verdadeira, ou em falsar nosso sinal, ou sello, ou da Rainha, ou do Príncipe meu filho, ou em falsar sinal de algum Vedor de nossa Fazenda, ou Dezembargador, ou de outro nosso Official Mór, ou de outros Officiaes de nossa Caza, em cousas, que toquem a seus Officios, ou em matar, ou ferir com bésta, ou espingarda, matar com peçonha, ou em a dar, ainda que morte della se não siga, em matar atraiçoadamente, quebrantar prisões e Cadêas de fóra per força, fazer furto, de qualquer sorte e maneira que seja, pôr fogo ácinte para queimar fazenda, ou pessôa, forçar mulher, fazer feitiços, testemunhar falso, em soltar presos por sua vontade, sendo Carcereiro, em entrar em Mosteiro de Freiras com proposito deshonesto, em fazer falsidade em seu Officio, sendo Tabellião ou Scrivão; tanto que assi der à prisão os ditos malfeitores, ou cada hum delles, e lhes provar, ou forem provados cada hum dos ditos delictos, se esse, que o asi deu à prisão, participante em cada hum dos ditos malefícios, em que he culpado aquelle, que he preso, havemos por bem que, sendo igual na culpas, seja perdoado livremente, postoque, não tenha perdão da parte. E se não fôr participante no mesmo maleficio, queremos que haja perdão para si (tendo perdão das partes) de qualquer maleficio, que tenha, postoque grave seja, e isto não sendo maior daquele, em que he culpado o que assi deu à prisão. E se não tiver perdão das partes, havemos por bem de lhe perdoar livremente o degredo, que tiver para Africa, até quatro anos, ou qualquer culpa, ou maleficio, que tiver commettido, porque mereça degredo até os ditos quatro anos. Porém, isto se entenderá, que o que der à prisão o malfeitor, não haja perdão de mais pena, nem degredo, que de outro tanto, quanto o malfeitor merecer. § 1. E além do sobredito perdão, que assi outorgamos, nos praz, que sendo o malfeitor, que assi foi dado à prisão, salteador de caminhos, que aquelle, que o descobrir, e dér à prisão, e lho provar, haja de Nós trinta cruzados de mercê”. 29 Aqui cabe apenas anotar que os primeiros conflitos em que se manifestaram instintos independentistas, remontam à Revolta de Beckmann, de 1684 (nascida da insatisfação dos nativistas com a Coroa portuguesa), à Guerra dos Emboabas, de 1707 (opondo Bandeirantes e Reinóis), e à Revolta de Vila Rica, de 1720 (nova revolta nativista, em Ouro Preto, por força da obrigatoriedade da cobrança dos “Quintos” pela Coroa). 27

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Ora, os representantes dos interesses coloniais de então, lançaram mão de todos os mecanismos legais que tinha ao dispor, nomeadamente os previstos nas referidas Secções VI e CXVI do Título V das Ordenações Filipinas. Mecanismos que integravam, além do mais, um verdadeiro instituto de delação premiada, aplicável a muitos crimes, nomeadamente os de Lesa-majestade, em que se subsumiam, inequivocamente, os movimentos independentistas. Ficou célebre, como delator, José Silvério dos Reis, que voluntariamente delatou os actos preparados e executados pelo movimento independentista, bem como a identidade dos inconfidentes. Em troca da colaboração, recebeu como prémio as benesses previstas nas Ordenações, a saber, o perdão da Coroa pelas dívidas acumuladas, o foro de Fidalgo da Casa Real, o hábito da Ordem de Cristo e um importantíssimo cargo público (Tesoureiro em Minas Gerais!). Não bastasse esta experiência histórica, tão relevante até hoje no imaginário brasileiro colectivo, outros momentos posteriores da história do processo penal brasileiro voltaram a ser conhecidos pela utilidade da utilização deste tão profícuo instituto da delação premiada como modo de dominação de organizações criminosas. Com efeito, um lustre passado sobre a Inconfidência Mineira ocorreu um novo episódio emancipacionista, defensor da abolição da escravatura, da independência do Brasil, da instauração de um Governo republicano e democrático com liberdades plenas para todos os cidadãos. Este movimento, Conjuração Baiana ou Revolta dos Alfaiates, ocorreu em 12 de Agosto de 1798 na Capitania da Bahia, sob forte influência maçónica, com inspiração nos princípios da anterior revolta de Minas Gerais e de outros movimentos independentistas Sul-Americanos. O termo da Conjuração ocorreu precisamente nos mesmos moldes da Inconfidência Mineira, fruto de centenas de denúncias, i.e., de delações, muitas premiadas, ao ponto de apenas 49 revoltosos terem sido condenados nos moldes exemplarmente cruéis que na época se praticavam. Durante as décadas de ’80 e ‘90 do Século XVIII, e além das referidas, verificaram-se ainda, pelo menos, a Conjuração dos Pintos, a Conjuração Carioca, a Conjuração dos Suaçunas e a Conjuração Pernambucana30. De referir que, já em 1821, pouco antes da decisão independentista de D. Pedro IV, a Conjuração Baiana renasce plenamente na Guerra da Independência da Bahia. Tudo factos que fortemente indiciam a génese da “patriótica decisão” de D. Pedro I do Brasil, mas que também bem

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Foi tão relevante na história este episódio, em que o Delator foi Domingos Fernandes Calabar, que Chico Buarque e Ruy Guerra escreveram em 1973 (em plena ditadura militar), a peça de teatro musical com o título: Calabar – o elogio da traição! 15

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demonstram a ciclicidade com que a delação premiada foi sendo usada pelas autoridades políticas e judiciárias no Brasil durante o final do Século XVIII e o início do Século XIX. Mas essa perenidade da delação como instrumento ao serviço da investigação manteve-se na história do Brasil durante todo o período de vigência do Livro V das Ordenações Filipinas, que expressamente a autorizava31/32. Período que durou para além da independência da Colónia.

III.3. Do Código Criminal do Império de 1930 ao Regime Democrático de 1985 Com a aprovação do Código Criminal do Império, de 1830, e do Código de Processo Criminal de 1832, o Brasil viu-se dotado de um sistema legal penal moderno e liberal. As penas infamantes desapareceram da lei, assim como os métodos de investigação que contendessem com a integridade física, e até moral, das pessoas, posto que para a confissão ser relevante teria de ser livre (assim o dizia a Lei). Aliás, o afastamento em relação à anterior filosofia que autorizava as delações premiadas surge a toda a luz no art.º 109 do Código Criminal do Império, quando relativamente ao crime de conspiração isentava de responsabilidade quem se afastasse da conspiração, sem lhe exigir qualquer delação da existência da mesma e/ou da identidade dos comparsas. Este sistema mais humanizado do que o herdado das Ordenações manteve-se com a aprovação do Código Criminal dos Estados Unidos do Brasil, de 1890. Porém, a doutrina brasileira reconhece ainda hoje os defeitos, e até excesso de severidade, deste diploma. Apesar dos graves defeitos que se apontavam a este Código, das variadas tentativas de reforma “urgente” do mesmo (como foi expressamente escrito em 1916, pelo Ministro Esmeraldino Bandeira), da imperiosa consolidação (em 1932) dado o enorme volume de legislação extravagante, das alterações sucessivas, etc., o mesmo foi-se mantendo até momento posterior ao Golpe de Estado ocorrido em 10 de Novembro de 1937. Surge assim um novo Código Criminal apenas em 1940, com as características próprias da época, em especial uma grande

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Cuano, Rodrigo Pereira, História do Direito Penal Brasileiro, afirma, coincidentemente com a opinião vertida no texto: “A permanência da corte Portuguesa no Brasil, por mais de treze anos, não trouxe nenhuma alteração à nossa legislação penal. Mesmo as Bases da Constituição Política da Monarquia baixadas com o decreto de 10 de março de 1821, e que continham normas gerais que regulavam a matéria punitiva de maneira mais liberal, segundo as idéias já em vigor na época, ficaram sem aplicação entre nós, diante da validade que a velha legislação, ainda gozava” (http://uj.novaprolink.com.br/doutrina/884/historia_do_direito_penal_brasileiro). 32 Idem, ibidem: “Nem o fato da independência da Colônia, veio marcar o início de um novo período na história do nosso Direito Penal. A lei de 27 de setembro de 1823 revigorou as disposições do Livro V das Ordenações, e a lei de 20 de outubro do mesmo ano, restabelecia penas graves cominadas naquele Livro.” 16

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margem para discricionariedade no que respeitava à escolha da pena por parte do Juiz, bem como na aplicação de medidas de segurança. Porém, apesar do direito posto, durante todo este século que medeia entre 1830 e 1937, a law in action era particularmente complacente com meios de investigação mais agressivos do que os que o legislador liberal tinha tido em mente. O que, aliás, não é de estranhar, posto que velhos hábitos não se mudam por Decreto, muito menos rapidamente. E, pior que isso, o Estado Novo fundado por Getúlio Vargas, e que durou de 1937 a 1945, era fortemente autoritário, caracterizado por censura à imprensa, forte repressão de direitos civis e políticos e admissibilidade de meios de defesa do Estado contra o inimigo então eleito: o comunismo. Este Estado musculado amparou-se na Lei da Segurança Nacional, estando amplamente descrita na literatura e na história brasileiras a utilização indiscriminada da tortura como modo de defesa do Estado33. Isto apesar de ser fonte de polémica a afirmação de que fosse uma prática autorizada pelas altas autoridades do Estado34. Menos de vinte anos passados sobre o fim da Era Vargas, dá-se o Golpe Militar de 1964, instaurando o período conhecido como da Ditadura Militar, e que durou até 1985… i.e., há cerca de 30 anos.

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Aliás, ficaram tristemente célebres as torturas ocorridas na Chefatura de Polícia da cidade do Rio de Janeiro, durante a gestão de Filinto Muller (1933-1942). Sobre essa polícia civil do Rio de Janeiro, o próprio Getúlio Vargas afirmou: “A Polícia Civil do Distrito Federal, sob o governo revolucionário, redimiu-se perante a opinião pública; era, em verdade, um dos departamentos que mais baixo desceram no conceito geral do país. Esse departamento deixara, há muito, de ser o aparelho da ordem, para se transformar numa organização terrorista, cuja fama já se estendia, com o prestígio de coisas sinistras, para além de nossas fronteiras” (Vargas, Getúlio, A Nova política do Brasil, volume 1, página 172, Livraria José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1938). 34 Sobre a utilização da tortura no Brasil do Século XX são interessantes as seguintes referências: "A perseguição implacável do regime de Vargas a seus opositores (reais e imaginários), cujos métodos envolviam fartamente o emprego da tortura, violência, deportação e assassinato, foi apenas uma das facetas, talvez a mais conhecida, desse período" (Prunes, Cândido, A Era Vargas, in http://opiniaoenoticia.com.br/brasil/serie-a-era-vargas/); "com o advento do Estado Novo, no denominado período Getuliano, iniciado em 1937, o Brasil vivenciou uma ditadura que espargiu o terror e edificou a barbárie em todo o seu território, suprimindo todas as garantias individuais, fechando o parlamento federal, estadual e municipal. Também estabeleceu acentuada censura aos órgãos de imprensa e fortaleceu, sobremaneira, os departamentos policiais destinados à repressão política e social" (Toffolli, Marina Pasquini, in http://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/2070/Tortura,); e "durante o domínio de Vargas, a qualidade e quantidade de abusos contra os direitos humanos atingiram níveis sem precedentes. A violência, como meio de coagir o povo, era evidente em todos os setores do aparato de segurança... As forças policiais da nação redefiniram e em alguns casos reinventaram a tortura que já ocorria no Brasil desde os tempos coloniais. A crueldade de seus métodos foi equiparada apenas pelo fervor com que esse exemplo foi seguido pelas gerações posteriores." (Rose, R.S., Uma das coisas esquecidas: Getúlio Vargas e o controle social dos brasileiros - 1930-1954, Ed. Companhia das Letras, São Paulo, 2001.) 17

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Ora, segundo a doutrina brasileira publicada especificamente sobre a delação premiada, este regime ditatorial militar “contava com o apoio de colaboradores para apurar os crimes e desvendar os criminosos”35. Mais ainda, a ditadura militar, segundo vasta literatura, caracterizou-se pela violação dos direitos políticos e pela supressão de direitos e garantias individuais através de sucessivos “Atos Institucionais” e diplomas decretados pelos chefes do regime. Entre 1968 e 1978, sob vigência do Ato Institucional n.º 5 e da Lei da Segurança Nacional de 1969 (de Pedro Góis Monteiro), viveramse os chamados Anos de Chumbo do Brasil, caracterizados por um estado de excepção total e permanente, controlo de imprensa e da educação, sistemática censura, utilização adrede da prisão e da tortura como meio de obtenção de confissões, etc. Verificaram-se centenas de assassinatos e milhares de desaparecimentos de opositores do regime. A prisão sem tempo fixado, a prisão arbitrária, com desaparecimento do próprio habeas corpus, acabaram por ser as melhores armas de defesa do regime 36. Segundo relatos obtidos já após a reposição do regime democrático, os detidos eram sujeitos a choques elétricos, afogamentos, "suicídios" e agressões físicas violentas, tudo como modos rotineiros de investigação criminal e de controlo e defesa do Estado37. Em suma, desde o magnífico Código Criminal do Império, de 1830, que procurava afastar-se dos horrores da tortura e dos demais meios agressivos de obtenção de prova dos tempos das Ordenações, como o era a delação premiada, o Brasil passou, já no Século XX, por dois longos períodos de Ditadura, em que esses mesmos instrumentos de investigação criminal, tortura e delação, eram usados em defesa do Estado contra as organizações criminosas “subversivas” que punham em causa a segurança nacional. Sendo que o último dos referidos períodos terminou apenas em 1985. Não será, pois, de estranhar, o hábito ou normalidade com que, neste cenário histórico, houvesse quem clamasse pela reintrodução, junto ao final do Século XX, da delação premiada como meio

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Souza, Cinthia Danielly Nepomuceno e Rodrigues, Fillipe Azevedo, op. cit., pp. 352-353. Aliás, data de 1 de Julho de 1969 a criação da Operação Bandeirante, pelo Governador de São Paulo, Abreu Sodré, cujo propósito era reprimir e perseguir todos os opositores do Regime. 37 Não será, pois, de estranhar a existência no Recife do “Monumento Tortura Nunca Mais”, em homenagem a todos quantos enfrentaram os processos criminais destes 20 horrendos anos de ditadura da segunda metade do Século XX brasileiro. 36

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normal de obtenção de prova. De estranhar, sim, que uma elite jurídica tão capaz como a brasileira tenha deixado que tal sucedesse imediatamente após o fim da última Ditadura38.

III.4. A delação premiada contemporânea Talvez esquecendo a história, afirma a Doutrina brasileira que a delação premiada foi introduzida no Direito brasileiro em 1990, com a Lei n.º 8.072/1990, denominada Lei dos Crimes Hediondos. Em rigor, não foi uma introdução, mas uma repristinação de um instituto com fundas raízes históricas no Brasil, como vimos, e cuja prática nunca foi realmente erradicada. Nesta lei, logo no art.º 2º, determinava-se que “os crimes hediondos, a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e o terrorismo são insuscetíveis de: I - anistia, graça e indulto; II – fiança”. Na listagem dos crimes hediondos encontramos, entre outros, o genocídio, o latrocínio, a extorsão qualificada pela morte ou mediante sequestro, a epidemia com resultado morte, o envenenamento de água potável, etc. Ou seja, crimes de extrema gravidade e alguns deles com tal volume que se tornaram quase uma imagem de marca do Brasil (assim se compreendendo a necessidade social de lhes conferir um tratamento especial de um ponto de vista jurídico-processual)39. E talvez, precisamente, ponderando a gravidade extrema dos tipos a que se destinava, no parágrafo único do art.º 8º, estabelecia-se que “O participante e o associado que denunciar à autoridade o bando ou quadrilha, possibilitando seu desmantelamento, terá a pena reduzida de um a dois terços”. Ou seja, não se tratando apenas de um caso de desistência ou arrependimento activo por parte do agente do crime, situação essa, aliás, que é estabelecida em múltiplos tipos penais portugueses e de tantos outros Estados de Direito democrático, do que se tratava era de um prémio pela denúncia

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Seria injusto, contudo, não lembrar que houve quem combatesse este tão inaceitável instituto, de que se recorda aqui (entre tantos outros), dada a qualidade de Promotor de Justiça em São Paulo, no Brasil, Marcelo Mendroni. Aliás, muitos apresentaram contestações “éticas” à utilização da delação premiada, por recordar os métodos medievais e da inquisição, como as “bocas da verdade” em que se recolhiam denúncias anónimas, por ser um retrocesso quase absolutista, equivalente à aniquilação autoritária dos direitos constitucionais, por entenderem que com tal instituto o Estado abandona princípios éticos fundamentais para barganhar incentivando a traição, por ser a admissão formal de que o Estado viu o seu aparelho repressivo falir, por, enfim, pregar uma doutrina segundo a qual “trair pode render resultados positivos”. Para uma listagem da doutrina brasileira avessa ao instituto, ainda hoje, bem como para uma discussão interessante sobre a traição ínsita neste instituto, cfr. Valença, Thomaz Jefferson Batista e Filho, Rivaldo Salvino N., op. cit., p. 15. 39 Aliás, o latrocínio e a extorsão qualificada pela morte ou mediante sequestro são, pelo imaginário colectivo, ligados ao quotidiano brasileiro, referindo-se amiúde sequestros constantes, roubos violentos com morte das vítimas, condomínios gradeados, utilização em grande escala de segurança privada por quem tenha posses para o efeito, etc. 19

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à autoridade da existência do bando ou quadrilha responsável pelos crimes hediondos. Não de um prémio pela desistência no propósito de delinquir. Mas a ratio de política legislativa que levou à reintrodução do instrumento ainda se conseguiria compreender, apesar da experiência histórica que deveria ser de má memória vivida pelo Brasil ao longo de todo o Século XX. Em rigor, destinava-se a prevenir a criminalidade muitíssimo grave que se vivia, violentamente, no Brasil (como atrás referido, os sequestros com extorsão eram uma verdadeira praga no país, tendo aliás ganho grande repercussão internacional)40. Porém, logo após a introdução da delação premiada neste diploma, que diríamos excepcionalíssimo, a mesma foi consagrada também numa série de outros diplomas legais, os quais estatuem sobre tipos penais que, nem de longe, se podem considerar hediondos, i.e., de tal sorte graves e/ou estatisticamente com tal dimensão que justifiquem um tão flagrante afastamento do princípio da inviolabilidade da integridade psíquica, intelectual ou emocional dos visados (tema este a que voltaremos). Assim, surgem novos epifenómenos de delação premiada, entre outros diplomas que constituem desinências da Lei dos Crimes Hediondos, na Lei n.º 8.137/1990 (que p. e p. crimes contra a ordem tributária, económica e relações de consumo), na Lei n.º 9.034/1995 (sobre Crimes organizados e meios operacionais para a prevenção e repressão desses delitos), na Lei n.º 9.613/1998 (que p. e p. sobre crimes de branqueamento de capitais ou ocultação de bens, direitos e valores), na Lei n.º 9.807/1999 (relativa a Protecção a vítimas, Testemunhas e ao Réu Colaborador) 41. Ou seja, aberta a porta ao instituto, a mesma escancarou-se, tendo sido um verdadeiro rastilho que permitiu o alastramento da utilização da delação premiada a áreas totalmente distintas daquela para a qual, inicialmente, se abriu a excepção. Áreas em que de modo algum podemos considerar que se justificasse tal afastamento em relação aos princípios. De sublinhar que todos estes diplomas citados remontam ao período de 15 anos que mediou entre o fim da Ditadura Militar e o fim do Século XX. A pluralidade de diplomas extravagantes levou até a que os requisitos legais exigíveis para a relevância da delação premiada tenham variado,

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Aliás, a gravidade dos índices de criminalidade altamente violenta no Brasil continua a ser conhecida. De acordo com dados estatísticos divulgados a 28.10.2016, em notícia do Canal de televisão português SIC, durante o ano de 2015 ocorreu no Brasil um homicídio a cada 9 minutos, sendo que para tal concorre em esmagadora maioria a criminalidade organizada ligada aos tráficos de droga, de armas, de seres humanos, aos raptos com extorsão, etc. (http://sicnoticias.sapo.pt/mundo/2016-10-28-A-cada-nove-minutos-uma-pessoa-foi-morta-no-Brasil-em-2015). 41 Análise desta sucessão de diplomas em Silva, F. Muniz, op. cit., pp. 22 e ss. 20

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chegando nalguns deles a omitir-se como requisitos da delação a sua voluntariedade ou espontaneidade42. Mas além da legiferação extravagante, a consagração máxima da delação premiada acabou por acontecer com uma alteração introduzida ao art.º 159 do Código Penal brasileiro, que p. e p. a extorsão mediante sequestro, através da Lei n.º 9.269/1996. Após esta alteração, o tipo passou a conter no respectivo parágrafo 4º a seguinte previsão: “Se o crime é cometido em concurso, o concorrente que o denunciar à autoridade, facilitando a libertação do seqüestrado, terá sua pena reduzida de um a dois terços”43. Vive, pois, o Brasil, o mesmo cenário que atrás descrevemos para o período que mediou entre o Código Criminal de 1890 e a aprovação do Código de 1940, em que dado o acervo incomportável de legislação criminal extravagante, teve mesmo em 1932 de se proceder a uma consolidação da legislação criminal brasileira de então.

III.5. A consagração de um regime geral da delação premiada Porém, a “evolução” (!) epidémica da utilização da delação premiada veio a atingir o seu apogeu com a Lei n.º 12.850/2013. Este diploma, nos termos do respectivo artigo 1º, “Define organização criminosa e dispõe sobre a investigação criminal, os meios de obtenção da prova, infrações penais correlatas e o procedimento criminal a ser aplicado”. E aqui o instituto da delação premiada adquiriu uma consagração no Direito brasileiro que se diria universal e ao nível da teoria geral da investigação criminal. É que, nos termos do respectivo artigo 2º da mesma lei, “Considera-se organização criminosa a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que

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A título meramente exemplificativo, analise-se a norma que prevê a delação premiada no último diploma referido, i.e., a Lei n.º 9.807/1999. O art.º 13 da Lei n.º 9.807/99 apresenta o seguinte teor: "Poderá o juiz, de ofício ou a requerimento das partes, conceder o perdão judicial e a consequente extinção da punibilidade ao acusado que, sendo primário, tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e o processo criminal, desde que dessa colaboração tenha resultado: I – a identificação dos demais co-autores ou partícipes da ação criminosa; II – a localização da vítima com a sua integridade física preservada; III – a recuperação total ou parcial do produto do crime. Parágrafo único: a concessão do perdão judicial levará em conta a personalidade do beneficiário e a natureza, circunstâncias, gravidade e repercussão social do fato criminoso". Já o art.º 14º do mesmo diploma legal estatui: "O indiciado ou acusado que colaborar voluntariamente com a investigação policial e o processo criminal na identificação dos demais co-autores ou partícipes do crime, no caso de condenação, terá sua pena reduzida de um a dois terços". 43 Em bom rigor de modo totalmente inútil, posto que este mesmo tipo já beneficiava de regime de delação premiada desde a atrás referida Lei dos Crimes Hediondos, Lei n.º 8.072, de 25 de Julho de 1990. 21

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informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional”44. Ora, crimes cujas penas máximas sejam superiores a 4 anos de prisão, são a esmagadora maioria dos crimes em qualquer sistema penal, que o mesmo é dizer que a delação premiada prevista como primeiro meio de obtenção de prova no artigo 3º desta Lei, foi massificada para a generalidade dos tipos penais, bastando, para ser admissível a utilização de tal meio de obtenção de prova, que tais crimes sejam cometidos por um conjunto de 4 pessoas. Num País com as características populacionais e sociológicas do Brasil, dir-se-ia que este requisito numérico de associados para a prática de crimes será, inequivocamente, o mais fácil de preencher. Bastante expressiva da natureza ínsita confessada pela doutrina brasileira sobre este instituto, é a afirmação disseminada segundo a qual a delação premiada “é uma espécie de troca de favores entre o juiz e o réu”. Caso este forneça informações relevantes sobre outros membros da “quadrilha” ou dados que ajudem a deslindar um crime, o Estado, através do Juiz, poderá premiar o “réu”. Daí entender-se a delação premiada como um prémio para o visado que delate os comparsas, assim facilitando as investigações. De referir, porém, que a possibilidade de redução de pena fica dependente de um poder totalmente arbitrário de quem aprecia se as informações fornecidas pelo delator são de molde a realmente ajudarem a investigação. Vejamos, pois, o que estabelece o regime geral da delação premiada no sistema processual penal brasileiro. A tal respeito dispõem os art.ºs 4º a 7º da Lei n.º 12.850/2013: Art. 4o O juiz poderá, a requerimento das partes, conceder o perdão judicial, reduzir em até 2/3 (dois terços) a pena privativa de liberdade ou substituí-la por restritiva de direitos daquele que tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e com o processo criminal, desde que dessa colaboração advenha um ou mais dos seguintes resultados: I - a identificação dos demais coautores e partícipes da organização criminosa e das infrações penais por eles praticadas; II - a revelação da estrutura hierárquica e da

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De referir, porque interessante de um ponto de vista de evidência da coerência do sistema penal brasileiro, que a associação criminosa prevista no art.º 288 do código penal brasileiro, na redacção – precisamente – de 2013, se basta com a associação de 3 ou mais pessoas… Nesta lei extravagante de 2013 já se exige, utilizando o conceito paralelo de organização criminosa, um maior número de associados... têm de ser 4 ou mais pessoas… 22

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divisão de tarefas da organização criminosa; III - a prevenção de infrações penais decorrentes das atividades da organização criminosa; IV - a recuperação total ou parcial do produto ou do proveito das infrações penais praticadas pela organização criminosa; V a localização de eventual vítima com a sua integridade física preservada. Logo quanto a esta norma deve referir-se que a experiência mais recente vivida no Brasil demonstra claramente que, apesar do teor da Lei, a investigação não se basta com uma colaboração que se limite a oferecer um dos resultados, antes exigindo mais do que um. O que a lei autoriza, porquanto o accionar do regime de prémio não constitui poder vinculado do Ministério Público. Por outro lado, o que seja colaboração efectiva e voluntária não constitui conceito fechado, prédeterminável pelo delator quando decide colaborar, entendendo-se mesmo que pode ser verdadeiramente equívoco senão enganador. Dito de outro modo, alguém pode convencer-se a colaborar, delatando, sem qualquer garantia legal de que a sua delação seja considerada efectiva! É que a efectividade da delação é apreciada pelas autoridades judiciárias livremente. Por outro, a voluntariedade da mesma não pode senão ser entendida, para quem conheça como funcionam os processos criminais na prática forense, cum grano salis. Conforme analisaremos infra, é muito duvidoso o carácter livre da delação em algumas circunstâncias, precisamente aquelas que a própria Lei reconhece como ponderáveis no parágrafo 1º deste mesmo artigo, a que em seguida daremos atenção (v.g. “repercussão social do facto criminoso”). Acresce que outros factores surgem na mesma norma que são geradores de inarredáveis arbitrariedades no plano prático da tentativa de obtenção do benefício por parte do delator. Tudo quanto resulta dos §§ 1o e 2º do mesmo artigo 4º45. Duas simples questões o demonstram: a “repercussão social do fato criminoso e a eficácia da colaboração” são levadas em conta para a concessão do benefício em que moldes? É mais facilmente concedível o benefício se o facto criminoso tiver pouca ou muita repercussão social? Que volume de informações é necessário fornecer às autoridades para que o delator possa confiar em que a sua colaboração será julgada eficaz, podendo legitimamente esperar a concessão do 45

Art.º 4º § 1o Em qualquer caso, a concessão do benefício levará em conta a personalidade do colaborador, a natureza, as circunstâncias, a gravidade e a repercussão social do fato criminoso e a eficácia da colaboração. § 2o Considerando a relevância da colaboração prestada, o Ministério Público, a qualquer tempo, e o delegado de polícia, nos autos do inquérito policial, com a manifestação do Ministério Público, poderão requerer ou representar ao juiz pela concessão de perdão judicial ao colaborador, ainda que esse benefício não tenha sido previsto na proposta inicial, aplicando-se, no que couber, o art. 28 do Decreto-Lei n.º 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal). 23

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benefício? (principalmente se se atentar no teor completamente impensável do § 10º do mesmo artigo, que abaixo analisaremos)46. Também demonstrativo de que a partir do início de um processo de delação o Arguido fica totalmente “nas mãos” do Ministério Público, é quanto consta do § 3º, posto que as medidas de colaboração impostas terão de ser julgadas integralmente cumpridas pelo Ministério Público e/ou pela Polícia, que podem durante um período relativamente lato, de seis meses, suspender o prazo para o oferecimento da denúncia, sem que tal prazo sequer conte para efeitos prescricionais47. Por seu turno, atentando liminarmente contra o conceito (dogmaticamente preferível) de autoria e respectivas regras de punição, bem como contra o princípio da igualdade e da prevalência do princípio da legalidade sobre o da oportunidade (este típico de jurisdições de matriz anglosaxónica e com todos os defeitos que o direito processual penal continental lhe atribui), surge o § 4º deste mesmo artigo 4º48. Tal norma claramente cria duas situações inadmissíveis a vários títulos: por um lado, põe os diversos coautores do crime em concorrência entre si para serem os primeiros a delatar, assim os pressionando necessariamente na escolha livre e sem reservas de delatar ou não o fazer; por outro lado, trata os diversos comparsas de modo diferente, consoante um seja considerado cabecilha da quadrilha e outros não, pondo novamente os coautores do crime a empurrarem uns para os outros

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Souza, Cinthia Danielly Nepomuceno e Rodrigues, Fillipe Azevedo, op. cit., p. 358, citando: Silva, Fernando Ferrer Correia, O uso da Delação premiada no Brasil no Combate ao Crime Organizado, Universidade Potiguar, Natal, 2013, p. 24; e Mendonça, Andrey Borges, “A colaboração premiada e a nova Lei do Crime Organizado (Lei 12.850/2013)”, in Revista Eletrônica do Ministério Público Federal, v. 4, 2013, pp. 1-38, afirmam, respectivamente: “não há que se confundir, pois, efetividade das declarações prestadas com a sua eficácia: é possível que o colaborador preste auxílio efetivo às autoridades, esclarecendo os fatos de seu conhecimento, atendendo a todas as notificações e participando das diligências necessárias para a apuração do crime, sem que, contudo, tal empenho possibilite os resultados exigidos pelo legislador”; e “ademais, não basta a mera confissão para caracterizar a colaboração premiada. Embora esta pressuponha, em regra, a confissão, vai além, pois exige a efetiva colaboração para alcançar um dos resultados previstos no art.º 4º”. 47 “Artigo 4º § 3o O prazo para oferecimento de denúncia ou o processo, relativos ao colaborador, poderá ser suspenso por até 6 (seis) meses, prorrogáveis por igual período, até que sejam cumpridas as medidas de colaboração, suspendendo-se o respectivo prazo prescricional”. 48 “Artigo 4º § 4o Nas mesmas hipóteses do caput, o Ministério Público poderá deixar de oferecer denúncia se o colaborador: I - não for o líder da organização criminosa; II - for o primeiro a prestar efetiva colaboração nos termos deste artigo”. 24

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o papel principal na organização criminosa, o que também pressionará necessariamente a veracidade, liberdade e integralidade desta delação confessória49/50. Que o regime da delação premiada não constitui nenhum meio de obtenção de prova para a investigação em curso, sendo antes uma via de pesca de arrasto para toda e qualquer conduta delitual, seja a investigada, seja qualquer outra, é confessado pela própria Lei em apreço quando, no respectivo § 5o dispõe51 sobre a possibilidade de haver colaborações posteriores à Sentença… se são posteriores à Sentença, então só poderão ter que ver com factos outros que não os que constituem objecto do processo que levou à condenação de alguém. A menos que se admita como regra que os mesmos factos, praticados por uma pluralidade de agentes, possam livremente ser julgados em processos separados. E se assim for, então confessada está, do mesmo passo, a mera formalidade do julgamento superveniente dos delatados pelo delator post sentença… é que se a sua colaboração foi julgada relevante, mesmo em momento posterior à Sentença, então é porque se lhe atribui uma valia probatória de tal forma grande que no julgamento dos delatados que ocorrerá a seguir, existe muito pouco conteúdo para a valia do princípio da livre apreciação da prova. Dir-se-ia mesmo que os delatados a ser julgados no processo subsequente entram em audiência já condenados… a menos que, invertendo o sacrossanto princípio do ónus da prova a cargo da Acusação, façam prova da sua inocência, e da falsidade da delação de que foram alvo. Quanto ao regime instituído nos §§ 6º a 8º, escapa-se-nos totalmente o respectivo sentido: então depois de o delator relatar tudo quanto o Ministério Público, ou a Polícia, consideraram relevante, eficaz e suficiente para a investigação, além de delatado voluntariamente, tudo de molde a terem

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A propósito afirma Essado, Tiago Cintra, Delação premiada e idoneidade probatória, in Revista Brasileira de Ciências Criminais, Vol. 21, n.º 101, Março de 2013, São Paulo, p. 6: “A voluntariedade pressupõe a vontade do imputado em se manifestar, sendo incompatível com qualquer meio de coação física ou psíquica. Por vontade livre, inicialmente há que se ponderar sobre as condições físicas do próprio imputado. Se o imputado, ao tempo da delação, padece de comprometimento mental que venha a prejudicar o entendimento da natureza do ato, isto vicia a vontade, podendo ser declarada a nulidade do ato, por ausência de voluntariedade, sem qualquer consequência para o imputado. A higidez psíquica ou mental deste, pois, revela-se circunstância inicial obrigatória para a validação do ato”. Ora, nada disto está em questão. Só faltaria dar valor a confissões e delações de mentalmente incapazes. O que está em causa na aferição da liberdade da delação é saber se há ou não medo instilado pelos investigadores na tomada de decisão por parte do delator. Mas sobre essa questão, que é “a questão”, nenhuma consideração. 50 A não aplicabilidade dos prémios aos cabecilhas não pode deixar de lembrar as Escrituras Sagradas, quando relata a posição de Judas, perante o Sumo-sacerdote e o Sinédrio, por comparação com a de Cristo. O comparsa delator premiado, o cabecilha condenado e cruxificado. 51 “Artigo 4º § 5o Se a colaboração for posterior à sentença, a pena poderá ser reduzida até a metade ou será admitida a progressão de regime ainda que ausentes os requisitos objetivos”. 25

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chegado a celebrar um “acordo”52, o Juiz – principalmente num sistema de tipo para-inquisitório como é o brasileiro – pode recusar a homologação53, posto que não participou54 ele próprio nas “negociações realizadas entre as partes”? Pior ainda: se cabe nos poderes-deveres do Juiz verificar a regularidade, legalidade e voluntariedade da delação55, que fazer a todo o teor factual do “acordo” escrito que já consta do processo se a homologação for recusada? É prova nula? É desentranhada dos autos e erradicada do mundo do Direito? Ou serve de prova indiciária para a continuação das investigações contra todos os delatados? Também pouco compatível com um sistema de efectivo controlo judicial da regularidade, legalidade e voluntariedade da delação é o facto de o Juiz não ter de ouvir o Arguido, mas apenas de o poder fazer. Norma completamente incompreensível, para nós, na economia do diploma e no entendimento da marcha do processo é a que emerge do § 9º… depois de celebrado o acordo entre Ministério Público e Delator; depois de homologado o acordo pelo Juiz; “o colaborador poderá, sempre acompanhado pelo seu defensor, ser ouvido pelo membro do Ministério Público ou pelo delegado de polícia responsável pelas investigações”! Pergunta-se: para quê? Escapa-se-nos a ratio da norma em qualquer cenário que não seja o da continuação da obtenção de mais… informações!

Os termos deste Acordo vêm previstos no art.º 6º deste diploma legal: “Art. 6o O termo de acordo da colaboração premiada deverá ser feito por escrito e conter: I - o relato da colaboração e seus possíveis resultados; II - as condições da proposta do Ministério Público ou do delegado de polícia; III - a declaração de aceitação do colaborador e de seu defensor; IV - as assinaturas do representante do Ministério Público ou do delegado de polícia, do colaborador e de seu defensor; V - a especificação das medidas de proteção ao colaborador e à sua família, quando necessário”. 53 O processo de homologação pelo Juiz vem regulado no art.º 7º do mesmo diploma: “Art. 7o O pedido de homologação do acordo será sigilosamente distribuído, contendo apenas informações que não possam identificar o colaborador e o seu objeto. § 1o As informações pormenorizadas da colaboração serão dirigidas diretamente ao juiz a que recair a distribuição, que decidirá no prazo de 48 (quarenta e oito) horas. § 2 o O acesso aos autos será restrito ao juiz, ao Ministério Público e ao delegado de polícia, como forma de garantir o êxito das investigações, assegurando-se ao defensor, no interesse do representado, amplo acesso aos elementos de prova que digam respeito ao exercício do direito de defesa, devidamente precedido de autorização judicial, ressalvados os referentes às diligências em andamento. § 3o O acordo de colaboração premiada deixa de ser sigiloso assim que recebida a denúncia, observado o disposto no art. 5 o”. 54 “Artigo 4º § 6o - O juiz não participará das negociações realizadas entre as partes para a formalização do acordo de colaboração, que ocorrerá entre o delegado de polícia, o investigado e o defensor, com a manifestação do Ministério Público, ou, conforme o caso, entre o Ministério Público e o investigado ou acusado e seu defensor”. 55 “Artigo 4º § 7o Realizado o acordo na forma do § 6o, o respectivo termo, acompanhado das declarações do colaborador e de cópia da investigação, será remetido ao juiz para homologação, o qual deverá verificar sua regularidade, legalidade e voluntariedade, podendo para este fim, sigilosamente, ouvir o colaborador, na presença de seu defensor. Artigo 4º § 8o O juiz poderá recusar homologação à proposta que não atender aos requisitos legais, ou adequá-la ao caso concreto.”. 52

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Aliás, igual perplexidade gera o § 11º, ao demonstrar que apesar da delação, do acordo, da homologação, surge uma fase judicial de Sentença56… será necessariamente redundante uma Sentença depois da Homologação, a menos que se admita que aquela possa alterar o teor desta, o que apenas contribuirá para uma ainda maior surpresa. Se assim fosse, então as garantias processuais do delator teriam sido totalmente cilindradas no processo penal brasileiro; se não tiver essa potencialidade, então a Sentença do Juiz, post homologação do Juiz, é um passo totalmente inútil (pelo menos para a parte do processo relativa ao delator). Merecedores de breve nota são os §§ 12º e 13º57, porquanto prevêem que o delator perdoado, ou nem sequer denunciado, possa ser ouvido em juízo, a requerimento das partes ou por iniciativa da autoridade judicial. Se bem se entende o mecanismo instituído, esta audição em juízo só poderá ter que ver com o julgamento de todos quantos, no âmbito do mesmo processo, não obtiveram um acordo de delação premiada, seja porque o recusaram, seja porque o tentaram mas falharam os seus objectivos (por recusa do MP ou do Juiz). Sendo assim, a questão que se impõe é: estas declarações de coarguido, além do mais registadas por meios de gravação magnética, estenotipia, digital ou técnica similar, inclusive audiovisual, destinados a obter maior fidelidade das informações, ficam sujeitas a um regime de livre produção, ou reprodução, em audiência contra os Arguidos que exerceram o direito ao silêncio? Sendo também livremente apreciadas pelo julgador, não constituirão proba probantíssima dos factos imputados aos não perdoados? Não será um tipo de confissão por boca alheia, ou confissão em nome de outrem, totalmente violadora dos direitos dos arguidos, que estão a ser julgados, ao silêncio e a um julgamento livre e imparcial por parte do julgador? São questões fulcrais impostas por aquilo a que soe chamar-se de processo penal justo, e que remanescerão seguramente sem resposta, posto que as exigências postas por um sistema processual penal de Estado de Direito democrático totalmente conflituariam com tal tipo de mecanismo. Mas isso melhor se verá no Capítulo V infra.

“Artigo 4º § 11. A sentença apreciará os termos do acordo homologado e sua eficácia”. “Artigo 4º § 12. Ainda que beneficiado por perdão judicial ou não denunciado, o colaborador poderá ser ouvido em juízo a requerimento das partes ou por iniciativa da autoridade judicial. Artigo 4º § 13. Sempre que possível, o registro dos atos de colaboração será feito pelos meios ou recursos de gravação magnética, estenotipia, digital ou técnica similar, inclusive audiovisual, destinados a obter maior fidelidade das informações”. 56 57

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Por outro lado, surge o § 1058. Diz-nos esta norma que “as partes”, ou seja, quer o “réu” quer o Ministério Público e/ou as Polícias, depende de quem intervém no concreto “acordo”, podem “retratar-se da proposta”, i.e., da proposta de acordo com base na colaboração havida. Tal possibilidade, além de manifestar mais uma vez a instabilidade em que se coloca o colaborador-delator durante toda a marcha do processo deste a obtenção da colaboração até à fixação do prémio-benefício, gera ainda um problema hermenêutico que não estamos certos de conseguir resolver. É que, diz a lei, nesse caso de retratação da proposta, “as provas autoincriminatórias produzidas pelo colaborador não poderão ser utilizadas exclusivamente em seu desfavor”... lida correctamente a norma, não pode senão concluir-se que, havendo retratação da proposta, ainda que por parte do Ministério Público, as provas autoincriminatórias podem ser utilizadas em desfavor do delator, desde que também possam ser utilizadas em seu favor… Ou seja, as autoridades formais de controlo podem com toda a facilidade – pois nem ao nível da lei há mecanismo de controlo dessa decisão – conduzir o processo até obter a confissão e a delação, retratar-se da proposta de acordo que firmaram (pelo menos liminarmente), podendo depois usar livremente a prova assim obtida, conquanto que o façam em toda a plenitude da prova, i.e., seja a favor, seja em desfavor, do colaborador-delator. Ora, isso não é favor nenhum ao colaborador-delator, sendo simples aplicação de um velhíssimo princípio de direito probatório, o princípio da indivisibilidade da prova: se de um meio de prova se extraem consequências positivas e negativas para alguém, todas se terão de extrair, e não apenas as que lhe são desfavoráveis. Ou seja, não só o arbítrio possível é total, como a sanção para a retratação feita por qualquer das partes redunda na aplicação da regra geral de direito probatório – a prova é indivisível, dela tendo de se tirar todas as conclusões, favoráveis ou desfavoráveis, aos arguidos. Mas o mais chocante é precisamente o grau de arbitrariedade total da opção pela retratação da proposta, por qualquer das partes. Se fosse um direito do arguido, ainda se aceitaria, mas sendo poder de qualquer das partes, a situação é, a nosso ver, totalmente inadmissível. Por fim, para ficarmos com um quadro global deste sistema de colaboração premiada brasileiro, cabe atentar nos parágrafos 14 a 16 deste mesmo diploma legal.

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§ 10. As partes podem retratar-se da proposta, caso em que as provas autoincriminatórias produzidas pelo colaborador não poderão ser utilizadas exclusivamente em seu desfavor. 28

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Deve sublinhar-se a cores fortes logo o disposto no § 14, dada a total excepcionalidade do respectivo teor na economia de todo e qualquer direito processual penal moderno. Reza assim tal parágrafo: “Nos depoimentos que prestar, o colaborador renunciará, na presença de seu defensor, ao direito ao silêncio e estará sujeito ao compromisso legal de dizer a verdade”. Em suma, o colaborador-delator, sendo Arguido em processo penal, para poder colaborar tem de renunciar na totalidade ao seu sacrossanto direito ao silêncio, e, mais do que isso, jurar dizer a verdade, que é o que se quer dizer com o eufemismo “estará sujeito ao compromisso legal de dizer a verdade”. I.e.: não lhe bastará, para poder ser considerado colaborador-delator, confessar “um facto” ou “um conjunto de factos” relativamente aos quais pretenda realmente colaborar. Não! Tem de renunciar totalmente ao direito ao silêncio, o que vale para todo o processo, e sujeitar-se ao dever fundamental a que estão obrigadas as testemunhas, que é o dever de falar com verdade. Esta questão, já de si totalmente impensável em qualquer Estado de Direito democrático, coenvolve um problema prático que qualquer jurista conhecedor da prática forense não pode esquecer. É o problema das chamadas certidões. Basta imaginar que há uma renúncia do direito ao silêncio e uma obrigação de falar com verdade, e saber que tal acontece num processo judicial do qual podem, e são amiúde – principalmente em processos de grandes dimensões, como é a regra na matéria em que a delação premiada é considerada tão importante –, extraídas certidões para outros processos. Então o que temos é uma renúncia ao direito ao silêncio e uma confissão e delação com verdade a ser exportável para tantos quantos os processos que o Ministério Público deseje abrir, seja contra quem for, por que objectos for, em que momento for. Com o que não cabe senão por concluir que todos os arguidos confessores-delatores, para o serem (pois é exigência legal deste §14), terão de abdicar ad aeternum e urbi et orbi ao seu direito ao silêncio, para todo e qualquer processo judicial que exista, ou venha a existir, e que com a sua colaboração-delação premiada possa ter qualquer ligação, por mais tímida que seja. O juízo que um processo penal justo faça deste instituto é de tal forma flagrante que nos bastamos sem qualquer consideração adicional.

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Em face disto, afigura-se particularmente irrelevante, para não dizer que é mesmo perverso, quanto vem estatuído no § 1559. Com efeito, só pode este formalismo jogar contra o Arguido… que nem poderá nunca invocar que não estava esclarecido60, que foi coagido física, psicológica, intelectual ou emocionalmente, etc. Por último, de referir algo que supostamente pretende “temperar”, mas ainda assim de modo insuficiente a nosso ver, este brutal instituto que vem de ser descrito. Pensamos na norma constante do § 16. Com efeito, afirma-se aí que “Nenhuma sentença condenatória será proferida com fundamento apenas nas declarações de agente colaborador”. Porém, como resulta bom de ver, atenta a extensão da colaboração exigida para que a mesma seja efectiva, obviamente que será norma sem qualquer real valia prática: com acesso à colaboraçãodelação o Estado acederá sempre, por definição, a muito mais do que as declarações (e a lei refere expressamente, apenas, as declarações), pois que as mesmas terão implicitamente que referir prova outra, mormente documental. Com o que este requisito do parágrafo 16 estará sempre preenchido por definição. Por último, deve referir-se que o mesmo diploma legal enuncia uma série de direitos dos colaboradores, os quais vêm consagrados no respectivo artigo 5º61. Desses direitos respigam-se os seguintes: ter nome, qualificação, imagem e demais informações pessoais preservados, participar das audiências sem contato visual com os outros acusados e não ter sua identidade revelada pelos meios de comunicação, nem ser fotografado ou filmado, sem sua prévia autorização por escrito. Os demais são prerrogativas típicas, encontradas em vários sistemas, reservadas às testemunhas que careçam de protecção especial, regime este, aliás, reservado a casos muito contados de

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§ 15. Em todos os atos de negociação, confirmação e execução da colaboração, o colaborador deverá estar assistido por defensor. 60 É sabido que até em interrogatórios “normais” de sistemas processuais penais que não autorizam a delação premiada, a criação de cenários de erro, dolo ou engano são um método de investigação usado comumente pelas polícias, pelo Ministério Público e até por alguns Juízes de instrução. Aliás, a célebre situação crismada de dilema do prisioneiro assenta, precisamente, na lógica de, separando Arguidos, sugestionar o conhecimento, pelo investigador, de factos que desconhece, invocando que lhe foram revelados por outros, e oferecer-lhe um plea bargain na eventualidade de confessar, confirmando aquilo que a investigação desconfia, desconhece, mas quer ver apurado. 61 “Art. 5o São direitos do colaborador: I - usufruir das medidas de proteção previstas na legislação específica; II ter nome, qualificação, imagem e demais informações pessoais preservados; III - ser conduzido, em juízo, separadamente dos demais coautores e partícipes; IV - participar das audiências sem contato visual com os outros acusados; V - não ter sua identidade revelada pelos meios de comunicação, nem ser fotografado ou filmado, sem sua prévia autorização por escrito; VI - cumprir pena em estabelecimento penal diverso dos demais corréus ou condenados.” 30

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protecção de testemunhas em tipos de criminalidade que possam por em risco a vida e/ou a integridade física da testemunha. Ora, o que cabe perguntar, é o que nos revela a prática brasileira no que concerne a estes direitos do colaborador? E a resposta à questão é, no mínimo, devastadora para a pretensa vigência efectiva desta norma. Sem necessidade de volver a tempos e processos pretéritos, basta atentar no que tem sido a revelação, via meios de comunicação social, fotografias e filmagens, dos delatores, em todos os meios de comunicação social escrita e televisionada brasileiros. Pior ainda, o próprio teor das alegadas declarações são, como em Portugal sucede em casos sujeitos a segredo de justiça, amplamente difundidas na imprensa. Até folhas dos processos surgem difundidas via internet62. E há até blogs profissionalizados63 que descrevem, coloram, apimentam e discutem não só o nome dos delatores, como o teor das suas delações, problematizando as ligações entre as declarações de vários delatores entre si, etc. Numa devassa da respetiva vida privada, do mesmo passo em que publicitam integralmente o teor do que serão as respectivas versões das histórias. Fazendo-se logo julgamentos mediáticos e populares sobre as histórias relatadas. Em suma, é totalmente vazia de qualquer conteúdo prático a norma em apreço, posto que os colaboradores-delatores vêem diariamente o seu nome, qualificação, imagem e demais informações pessoais amplamente difundidas na imprensa, na televisão, na internet, vendo ainda a sua identidade (e dos familiares, bem como domicílios, bens, etc.) revelada pelos meios de comunicação, além de serem fotografados e filmados, tudo sem sua prévia autorização por escrito. Por outro lado, não sendo testemunhas sujeitas a regime de protecção especial, nem podendo sêlo, porque são Arguidos, o facto de poderem participar das audiências sem contato visual com os outros acusados, inexistindo as cautelas próprias da apreciação de declarações de co-arguidos, será tudo menos de fácil compaginação com um regime que garanta todos os direitos de defesa, conforme é imposto pelo sistema jurídico-constitucional português64.

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Cabe não esquecer que em Portugal, já em 2016, se iniciou um tipo de jornalismo televisivo que emite urbi et orbi o teor dos interrogatórios gravados (vídeo e áudio) pelo Ministério Público em sede de inquéritos criminais, ainda que sujeitos a segredo de justiça externo. 63 De todos, o mais conhecido, o Blog “Estadão”, de Fausto Macedo, em permanente actualização sobre o caso Lavajato. Cfr. http://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/. 64 Sobre a inadmissibilidade, tal como está, do instituto da delação premiada no Brasil, cfr. Silva, F. Muniz, op. cit., p. 38: “São medidas necessárias à consolidação do instituto a sistematização da delação premiada, com previsão mais precisa sobre hipóteses de cabimento, requisitos e consequências…”. 31

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*** Em face de todo o exposto, caberá avançar na análise dos prós e contras da delação premiada, para a final concluir com uma apreciação sobre a respectiva admissibilidade num sistema jurídicoconstitucional-penal assente nos princípios emergentes da Constituição da República portuguesa e na estrutura constitucional plasmada na própria legislação ordinária processual penal, na parte em que é, e disso ninguém duvida, direito constitucional aplicado65.

IV. Análise dos prós e contras da delação premiada Uma análise das vantagens e desvantagens da delação premiada deve, por uma ordem lógica de abordagem do problema, começar por uma enunciação das suas utilidades. Como resultará óbvio, se de um meio inútil ou irrelevante, de um ponto de vista de busca da verdade, se tratar, nem sequer valerá a pena aferir da respectiva admissibilidade dogmática, constitucionalidade, etc. Assim que comecemos por tentar perceber se a delação premiada tem ou não alguma vantagem, alguma utilidade, para a fase investigatória em processo penal, na perspectiva da busca da verdade material. Ora, a utilidade da existência de um mecanismo geral de delação premiada como instituto geral do processo penal é (numa abordagem ligeira, não técnica, irreflectida, dir-se-ia mesmo, irresponsável e desconhecedora do que é a natureza humana e a tendência absolutista de todo o poder) inequívoca. Termos quem, a troco de um prémio66, nos entrega não só a história de um crime, como dos seus agentes, partícipes, fundamentos, consequências, resultados, produtos, e respectivas localizações, só pode ser fantástico, fabuloso, genial. As investigações, que porventura nunca levariam a lado nenhum, passarem a produzir resultados, descobrindo-se a verdade, e toda a verdade, é o sonho de qualquer honesto defensor da Lei e da Ordem67.

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Célebre frase constante do preâmbulo da obra de Henkel, H., Strafverfahrensrecht, ein Lehrbuch, 2ª Ed., 1968. E, diríamos nós, mesmo sem qualquer prémio, pois basta que depois da delação a mesma seja considerada insuficiente, ou se houver uma retratação por parte do Ministério Público, ou uma não homologação por parte do Juiz. 67 Exuma-se, com perfeição, este tipo de pensamento, das palavras do Juiz de Instrução Criminal do Tribunal Central de Instrução Criminal, Dr. Carlos Alexandre, em entrevista que concedeu ao Canal Televisivo SIC, emitida no dia 8 de Setembro de 2016, quando defende a importância, utilidade e bondade da delação premiada (minutos 9:28 a 10:36), in https://www.youtube.com/watch?v=jnaan19sNuY. O certo é que este pensar teve amplo eco na imprensa, v.g. Henriques, Ana, “O combate à corrupção pode sobreviver sem premiar envolvidos?”, in Jornal Público, 19.09.2016, p. 10. 66

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E quem diga o contrário põe-se, necessariamente, na posição dos salmões que escalam cascatas para chegar ao local da postura… além da dificuldade da escalada, da força da contracorrente, ainda se arriscam a ser abocanhados pelos “bons” que combatem os “maus”, fortalecidos pela fúria justicialista mediaticamente construída. Tudo porque – e isto é inequívoco – é fundamento e fim de todo o processo penal, imposto pela lei e defendido por toda a doutrina, a busca da verdade material. Ninguém em seu são juízo poderia defender coisa outra que não esta: a de que no processo penal se procura, tanto quanto possível, encontrar a verdade. E assim é em sistemas de matriz europeia continental, na mesma e exacta medida dos sistemas de matriz anglo-saxónica68. Logo, a previsão legal com carácter geral e abstracto de um instrumento que permita atingir esse fim, só pode – numa primeira olhadela para o terreiro da discussão – ser desejável e defendido. Só pecando, dir-se-ia, por nunca ninguém se ter lembrado disso em Portugal, após a revogação das Ordenações Filipinas e normas que as substituíram, ou, pelo menos, desde a aprovação da Constituição Republicana Democrática de 1976. Em suma, afigura-se compreensível, quase que linear, principalmente se estivermos a falar de pessoas que integram a investigação criminal e todos aqueles, de outras formações e condições, que vivam mais preocupados com os fins a atingir do que com os meios a utilizar, defender a utilidade do instituto da delação premiada, e inaceitável combatê-lo ou rejeitá-lo69. Se o crime é um flagelo para a sociedade, se através deste instituto se pode (supostamente) obter a verdade sobre a respectiva prática e participantes, bem como resultados, proveitos ocultos, etc., se por sobre tudo isto ainda permite acelerar os procedimentos criminais com uma rapidez e

Cfr. por todos, Laudan, Larry, Truth, Error, and Criminal Law – na essay in legal epistemology, Cambridge studies in philosophy and law, Cambridge University Press, Cambridge, 2006, nota introdutória: “the principal function of a criminal trial is to find out the truth about a crime”. O mesmo autor cita vários Acórdãos do Supremo Tribunal Norte Americano, onde exactamente a mesma ideia está plasmada. Assim, e a título de dois meros exemplos de duas décadas muito diversas, Ac. Bullington v. Missouri, 451, US 430 (1981), em especial o voto de vencido do Conselheiro Lewis Powell; Ac. Tehan v. US, 383 US 406 at 416 (1966) – (neste último pode ler-se: “the basic purpose of a trial is the determination of the truth”). 69 Assim se compreende existirem tantos autores que elogiam a utilidade do instituto, nomeadamente na própria República Federativa do Brasil. Neste sentido, Souza, Cinthia Danielly Nepomuceno e Rodrigues, Fillipe Azevedo, op. cit., pp. 341-368. Destes autores, sublinha-se logo a introdução ao texto referenciado: “A colaboração premiada vem auferido nos últimos tempos bastante popularidade no cenário brasileiro. Dispositivo utilizado em investigações e combate ao crime organizado, tem a finalidade de auxiliar o Estado no trabalho de investigação criminal, contribuindo assim para acabar com o flagelo do crime organizado na sociedade brasileira. Por meio desta técnica de investigação do Direito Penal, o Estado incentiva o suspeito, seja coautor ou partícipe, a denunciar e esclarecer os fatos relevantes acerca de atos ilícitos cometidos por ele e por outros criminosos envolvidos, mediante colaboração voluntária. Com está atitude (sic) de colaborar com as investigações, o agente colaborador poderá ganhar um prémio, obtendo desde o perdão judicial até a redução ou substituição da pena” (pp. 342 e s.) / (sic). 68

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precisão factual muito superiores àquelas que se atingiriam sem a delação premiada, não cabe sequer discutir nada mais, senão consagrá-la em todos os sistema processuais penais do Mundo que, como nós, entendem que o processo criminal visa a descoberta da verdade material, uma justiça célere, uma determinação factual precisa e uma sanção exemplar. Assim se reduzirá amplamente o flagelo social que é o crime70. Pior ainda (ou melhor, depende da perspectiva): “tendo em vista que as organizações criminosas vêm crescendo de forma desenfreada e sempre bem revestidas de instrumentos tecnológicos avançados e sofisticados, faz-se necessário que o Sistema de Justiça procure também se aprimorar, ou seja, aperfeiçoar seus métodos de investigação criminal. A colaboração premiada, assim como os outros meios ocultos de investigação, torna-se cada vez mais necessária e primordial para o combate ao crime organizado, pois, por intermédio desses métodos, é que o Estado poderá desmantelar as redes criminosas de forma mais célere, evitando com isso maiores danos para a sociedade”71. Porém, atrevemo-nos a dizer, com toda a frontalidade e correndo o risco dos salmões da imagem convocada supra, nada disso é assim. Desde logo porque a delação premiada não é nenhum método de investigação, nem muito menos um meio oculto de investigação, nem no Brasil, nem em parte nenhuma do Mundo. O que se explica com muito pouca tinta. A delação premiada não é nenhum método de investigação, como melhor se explicitará infra. Mesmo que seja legalmente previsto como meio oculto de investigação, não só não se consegue garantir – na prática72 – que o mesmo seja oculto, como, se se admitisse que a delação premiada outorgasse a protecção da opacidade da identidade do delator, estar-se-ia a montar um esquema totalmente falacioso que nem sequer permitiria nunca dizer que servia para a descoberta da

E, diríamos nós, que tal argumentário seria particularmente compreensível – e até aceitável, confessemo-lo já, numa perspectiva de utilidade – na criminalidade altamente violenta, aquela que põe em risco a vida e a integridade física de muitos, a segurança geral de toda a colectividade ou a própria subsistência do Estado de Direito democrático. Mas já o não é, em caso algum, para a generalidade da criminalidade, nem muito menos para aquele tipo de criminalidade a que, por décadas, se chamou de criminalidade limpa, por não ter efeitos nefastos violentos para a colectividade, mas apenas efeitos económica ou financeiramente danosos para o sistema fiscal, financeiro, económico, etc. Mesmo que sendo complexa, transnacional, organizada, a gravidade de um crime tributário ou de um crime económico, não viola os bens jurídico-penais fundamentais tutelados pelo sistema penal. O que decorre da simples estrutura do Código Penal, e da apreciação comparativa das respectivas molduras penais, se é que esta graduação ainda tem qualquer valia num sistema de lei penal justa e assente na tutela de bens-jurídicos. 71 Souza, Cinthia Danielly Nepomuceno e Rodrigues, Fillipe Azevedo, op. cit., p. 343. 72 E os casos emblemáticos que o Brasil tem para nos oferecer bem o demonstram diariamente, na imprensa, na internet, nas televisões, etc., conforme atrás demonstrado. 70

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verdade. Porque logicamente não podem aprimorar-se supostos meios de investigação que, como veremos, não são meios de investigação coisa nenhuma, sendo mera via de extorsão de declarações de suspeitos. Porque a necessidade da utilização da delação premiada, nem sequer teoreticamente nada tem que ver com os instrumentos tecnológicos avançados e sofisticados utilizados pelas grandes organizações criminosas a que os autores apelam como fundamento para as laudes a tal medieval “método investigativo”. Vejamos: A delação premiada, ao invés de ser um método de investigação, é um mecanismo que, sendo usado nas investigações, tem por função, precisamente, autorizar as autoridades formais de controlo a prescindirem de investigar, lançando mão de confissões a troco de 30 dinheiros. Certo é que, se em todos os crimes, os criminosos confessassem, muito mais célere seria a Justiça, e, espera-se, muito mais justa seria a decisão final, assumindo que as confissões eram verídicas, livres, integrais e sem reservas de qualquer espécie73. E seria mais célere, sublinhe-se, porque as investigações deixavam de ter o que fazer: limitavam-se os investigadores a receber o criminoso arrependido, fazer uma assentada das suas declarações, juntar-lhe um punhado de elementos documentais ou reais, e instruir o corpo de delito. Com ou sem cadáver, confrontado com o desaparecimento de alguém, o investigador, topando com o assassino confesso, tem a dita de o mesmo relatar espontaneamente todo o procedimento por si usado: desde o planeamento do crime, à motivação, à execução da morte e até à destruição do cadáver com ácido. Qual a extensão de matéria probatória convocada para estes autos? A confissão do homicida e o patente e óbvio desaparecimento do assassinado. Que o mesmo é dizer que a delação premiada não é, por definição, qualquer meio de investigação, mas antes um meio de ultrapassar a necessidade de a realizar. Havendo delação, o que temos é uma confissão da prática, por si e por terceiros, de um crime. Com o que a única investigação a haver, quanto ao criminoso delator, é a tomada da assentada das suas declarações. Coisa outra é a de ir ter com os comparsas do crime por aquele delatados, e confrontá-los com o que a investigação sabe… o que é diferente de ter descoberto. E este: ou confirmará, e temos nova confissão, com eventual delação de novos factos e novos autores e partícipes; ou não confirmará, 73

Como mais céleres seriam se o processo penal não tivesse fases diversas e decisores formalmente distintos dos investigadores, se não tivesse Defensores de Arguidos, se não houvesse Recursos, se houvesse permissão para a utilização de detectores de mentiras, de soro da verdade ou mesmo de tortura. Tudo seria mais célere! E a verdade material em alguns casos até era capaz de se descobrir mais facilmente (salvo nos casos em que os torturados preferissem a rapidez do cumprimento da pena ao sofrimento dos suplícios por que teriam de passar). 35

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e aí sim, os investigadores terão que reunir prova necessária que implique este segundo (ou terceiro, ou quarto) agente naquele crime originariamente confessado pelo primeiro delator. Se a isto juntarmos que o delator, como vimos suceder no regime brasileiro, não pode limitar-se a dar nomes, tendo por via de regra prática contra legem que contribuir com outros elementos, então dir-se-á que mesmo esta segunda parte da investigação, também já estará particularmente reduzida à assentada das declarações deste segundo Arguido. Em suma, e sem quaisquer dúvidas, delação premiada é um modo de descoberta de factos que um delator entende relatar74, mas não um método de investigação, pelo menos no sentido próprio que esta última expressão tem nos nossos dias. É certo que ninguém duvida que a extorsão de confissões por tortura física de um suspeito é um método de investigação. De tal modo que não é oficialmente aceite por nenhum sistema civilizado, preocupando-se as Constituições, e não apenas as leis ordinárias, em proibi-la!75 Mas em rigor, na tortura física ainda havia um procedimento demorado, um conjunto de instrumentos utilizados para a extracção da confissão e da delação dos demais envolvidos76. Daí ainda poder ser

“Entende relatar” que tem de ser entendido cum (maximo) grano salis, pois que, como vimos, a Lei brasileira exige que o mesmo renuncie ao direito ao silêncio e se obrigue a falar com verdade, como se de mera testemunha fosse. 75 Convém, porém, não esquecer, a “normalidade” da tortura como meio legalmente regulado de obtenção de prova desde os alvores dos tempos. A esse propósito, de muito interesse recordar, até pela dúvida de Cícero da valia dos depoimentos obtidos através de tortura, bem como da evolução no sentido de que a tortura não poderia ser admitida em casos menores: “The torture of Roman slaves in order to reveal the "truth" of their testimony in criminal matters was standard, widespread, and expected in the central period (200 B.C. - A.D. 200). It didn't end or get better in 200 A.D., that's just around the time period where most of the texts I'm familiar with end. I wouldn't say that the reasoning was grounded in the belief that slaves would be "virtuously loyal." That may have been the belief of some, and there are cases of Roman writers relaying stories of slaves loyally bearing torture to avoid incriminating their masters, the belief that slaves were notorious liars was widespread in Roman society and tied up with the policy as well. Romans were not unaware of how this practice could be abused. There were instances in which slaves were tortured so brutally and for such lengths of time that observers commented that the goal must have been to induce false testimony. Lawyers, such as Cicero in his defense of Faustus Cornelius Sulla, might argue that testimony extracted under torture was suspect. However, the right of masters or the state to torture slaves went unchallenged. Slaves couldn't be freed in order to avoid torture. Some undertakers offered private slave torturing services, with options including flogging, burning, racking, and crucifying. In the city of Puteoli, regulations proscribed that each torturer be paid 4 sestertii (the cost of a couple liters of wine) for their services. Some masters kept torturers on as part of their household staff. Typically, slaves tortured for testimony would be tortured publicly or semi-publicly. Augustus argued that torture shouldn't be used in minor cases, though later emperors would approve of torture for issues as minor as corroborating a master's claim that he owned the slave if he didn't have the necessary documentation with him. Slaves were not to be tortured into providing evidence against their masters, though this was sometimes sidestepped through an emperor forcing the sale of the slaves to the state before they were tortured. Sometimes protections existed for young children or pregnant women (who would be tortured after giving birth), but these were not consistent and young children were tortured in some cases” (Bradley, Keith. Slavery and Society at Rome. Cambridge: Cambridge University Press, 1994. pp 165-70). 76 De grande utilidade, para perceber que na tortura física há um “processo de investigação” complexo e que até pode ser particularmente demorado, a consulta, entre centenas de outras possíveis, das seguintes obras: Edward Peters, História da Tortura, Ed. Teorema, 1985 ; Michel Terestchenko, Du bon usage de la torture, Ed. La Découverte, 74

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considerado um método (meta-odos) investigativo. Mas na delação premiada nem esse procedimento, nem os instrumentos de tortura física, são necessários. E porquê? Porque o delator se convence a delatar, por motivos (muitos e variados) que abaixo se abordarão, perante a autoridade, no decurso de um interrogatório, ou dirigindo-se a esta sabedor da existência e extensão da investigação, propondo-se a colaborar a troco do prémio. Os tais 30 dinheiros a que já aludiam os Evangelhos77. Feita a assentada, pergunta-se: que meio de investigação representa este acto? Uma tomada de declarações de um suspeito ou arguido. Em suma, sendo formalmente um meio de investigação, um acto processual inserido na investigação, como o são todas as tomadas de declarações a qualquer arguido e todas as inquirições de testemunhas, a delação premiada não implica, bem ao invés, qualquer acto de investigação verdadeiro e próprio, emergente da astúcia, engenho, inteligência, procura, da investigação. Dirse-ia ser um meio de investigação tão básico, que na nossa prática, relativamente à generalidade dos crimes, só excepcionalmente é feito por um Juiz. Mas não só! Mesmo dando de barato que se trata formalmente de um meio de investigação, caberia sempre analisar se pode ser entendido como um meio oculto de investigação, a par dos demais enunciados pela Doutrina brasileira (captações ambientais de sinais electromagnéticos, ópticos ou acústicos; intercepção de comunicações telefónicas e telemáticas; controlo de tráfego telefónico e telemático; quebra de sigilo fiscal e bancário, de segredo comercial e outros; acesso a dados inseridos em bases públicas ou privadas (registos, etc.)…). E a resposta é linear e inequívoca: a delação premiada nada tem de meio oculto de investigação. Trata-se, pura e simplesmente, de uma tomada de declarações ou de depoimento a um arguido ou a uma testemunha, logo convolada, no nosso sistema (por imperativo constitucional), em arguida. Nada tem de meio oculto de investigação. E, pior que tudo, nem poderia nunca ter. Como passa a demonstrar-se. Nada tem de oculto, antes de mais, pela tão simples razão de que as declarações que constituem a declaração delativa têm de integrar os autos em plena luz, nunca podendo, num processo criminal de matriz democrática, constituir meio de prova em segredo perpétuo, i.e., oculto às defesas dos demais Arguidos. Aliás, nunca poderiam ter um regime sequer semelhante ao de alguns dos outros meios verdadeiramente ocultos a que a doutrina e a lei aludem, como a da identidade do agente

Collection Cahiers Libres, 2008 ; e Marcocci, Giuseppe e Paiva, José Pedro, História da Inquisição Portuguesa 15361821, 2ª Ed., Esfera dos Livros, Lisboa, 2016. 77 Evangelho segundo S. Mateus 26, 14-16. 37

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infiltrado que serve para recolha de elementos que permitam a subsequente realização de actos de investigação por definição públicos. Se se admitisse que a delação premiada outorgasse ao delator a mesma protecção emergente da opacidade da identidade, como acontece em Portugal no excepcionalíssimo regime da protecção das testemunhas, estar-se-ia a gerar um monstro de tal magnitude que poderíamos estar certos e seguros de que a verdade – a tal verdade material que o processo criminal não pode deixar de buscar, sob pena de perder a sua própria matriz genética e constitucional –, teria desaparecido totalmente dos julgamentos criminais. Dito numa palavra, posto que ao tema voltaremos abaixo, a partir do momento em que legal e doutrinalmente se admitisse que um arguido delator poderia desaparecer do processo, passando a figurar como uma testemunha protegida (como o sistema brasileiro oficialmente prevê, mas na prática não garante, nem pode garantir), então toda a verdade material que o processo pretende encontrar, estaria definitivamente arredada do veredicto final. Tudo pela tão simples razão de que, sabendo-se inerme em tudo quanto dissesse fosse sobre o que fosse e sobre quem fosse, o delator diria tudo quanto bem lhe aprouvesse, isento de contrainterrogatórios, dispensado de confronto com documentos, exonerado até de exames às suas características psíquicas, físicas, emocionais, etc. Mas não só! É que, como já demonstrado, até de um ponto de vista prático, nunca ao autor da delação premiada se pode garantir, efectivamente, que a mesma seja oculta, e muito menos a sua identidade, residência, identificação de familiares, etc. E a prova disso é, precisamente, a tão louvada experiência brasileira, em que a identidade dos delatores e o teor, palavra por palavra, da delação, aparece no próprio dia em que ocorre publicada na imprensa, comentada em blogs na internet, em livros “jornalísticos” sobre o tema78, etc. Apesar de a lei lhe garantir tudo o que garante. Por outro lado, a instituição generalizada de um instrumento como a delação premiada, ao contrário do que se lê em tanta doutrina brasileira, e se ouve em tanta entrevista e declaração pública de responsáveis lusos e de responsáveis brasileiros em veraneio jurídico por Portugal em 2016, nada tem que ver com o carácter altamente organizado da criminalidade, nem com

A título de mero exemplo, Netto, Vladimir, Lava Jato – o Juiz Sérgio Moro e os bastidores da operação que abalou o Brasil, Ed. Primeira Pessoa, Rio de Janeiro, 2016. Nesta obra, v.g., encontramos inclusivamente 32 páginas (além das páginas numeradas) de fotos de arguidos, de delatores, de figuras públicas envolvidas, de magistrados, de políticos, etc. 78

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organizações criminosas ou transnacionalidade do respectivo crime, nem, muito menos, com os instrumentos tecnológicos avançados e sofisticados que possa usar. Instituir esta figura, ainda que fosse reservada para um catálogo de dois ou três tipos de crime gravíssimos, na perspectiva da sobrevivência da sociedade, logo levaria, em muito poucos anos, à generalização da mesma. Isso aconteceu no Brasil, com a delação premiada, e cá aconteceria também, como foi o caso de um dos mais insidiosos meios de investigação, sc., as intercepções telefónicas. Inicialmente reservadas para os crimes mais graves do catálogo, e ainda hoje legalmente rodeadas de oficiais cautelas que, se exigíveis na prática, nunca autorizariam a maioria das escutas telefónicas ordenadas e autorizadas, passou a ser um meio corriqueiro de investigação em todo e qualquer tipo de crime… além dos do catálogo nominativo, todos o que sejam puníveis, em abstracto, com mais de 3 anos de prisão79. Que o mesmo é dizer que, de meio excepcionalíssimo, a “escuta telefónica” se tornou no mais banal meio oculto de investigação que possa imaginar-se. Até porque, em vez de ser admissível apenas nos casos em que, cumulativamente, seja indispensável para a descoberta da verdade e que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter, o legislador em vez de usar uma copulativa usou uma disjuntiva: “ou”. Logo, basta que seja indispensável para a descoberta da verdade, e isso dir-se-á que é requisito “sempre” susceptível de dar por verificado, para que se proceda a intercepções telefónicas, mesmo que a verdade seja fácil de obter por outra via. Por outras palavras, tantas cautelas houve, inicialmente, em admitir uma via sinuosa, sibilina e traiçoeira de investigação, e com o devir das reformas legislativas, alterou-se o texto da lei de molde a torna-la uma via comum de investigação. Aliás, não existe processo criminal mediático em Portugal digno desse nome, que não esteja apimentado por milhões de escutas telefónicas. A maioria delas totalmente irrelevante para a descoberta da verdade material80.

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Art.º 187º Código de Processo Penal. O que nos remete, aliás, para uma outra discussão, em que aqui não entraremos, mas que não pode, por ‘mor da verdade, deixar de referir-se. É que se é certo que as escutas telefónicas estão legalmente sujeitas a um muito estrito controlo de legalidade e da relevância do respectivo conteúdo para os fins da investigação por parte de um Juiz de Instrução Criminal, o certo é que, na prática, tal controlo é totalmente formal, para não dizer quase que inexistente. Prova disso são os milhares de horas de conversas escutadas e gravadas que se limitam a ser conversas banais entre maridos e mulheres sobre a sua vida conjugal, de pais e filhos sobre o quotidiano familiar, de pessoas que mantêm relacionamentos amorosos secretos, que nada tendo que ver com a investigação, e muito menos sendo para a mesma relevantes, passam nos crivos que a Lei obrigatoriamente manda cumprir, chegando a julgamento para gáudio de todos quantos, “voyeuristicamente”, os comentam, difundem, exibem, etc. Tudo isto porque, apesar de a Lei mandar que sejam eliminadas porque irrelevantes para a investigação, além de por contenderem com a vida íntima ou privada dos escutados, ninguém cumpriu a obrigação de as mandar destruir. Como, por seu turno, ninguém consegue garantir o 80

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Isto que é hoje manifesto e patente em dezenas de processos mediáticos em Portugal, pretéritos e actuais, será precisamente o que acontecerá ao segredo da identidade do delator e conteúdo da delação se um dia também esse instrumento vier a ser integrado no catálogo legislativo português. Por outro lado, como vimos, se não é um verdadeiro meio de investigação, nem sequer cabe falar em supostos aprimoramentos de meios de investigação. Há é que, com total transparência e frontalidade, assumir que o sistema processual penal deseja e aprova um mecanismo de extorsão de declarações de suspeitos, nem que seja essa mesma extorsão temperada com a outorga de um prémio ou benefício. Caberá assumir, como se disse frontalmente, que se deseja alargar o campo do direito processual penal premial, admitindo um instrumento novo… mas aí impor-se-á discutir da admissibilidade dogmática, constitucional e sistemática de tal instrumento. Em quarto lugar, porque, como visto no sistema brasileiro, é inadmissivelmente ampla a margem de discricionariedade, para não dizer arbitrariedade, deixada nas mãos das instâncias formais de controlo. Ora, quanto a isto convém lembrar que não pode nunca, num due process of law, deixarse um mecanismo de tal importância, de modo totalmente arbitrário, nas mãos de simples homens…81. Sendo simples homens a quem o Estado de Direito democrático investe nas funções que investe, então tem sempre de existir um sistema de controlo que evite as arbitrariedades, na prática. Mas nunca, em caso algum, se poderia logo no plano legal, antes de chegar às dificuldades inventadas pela prática, consagrar portas abertas à arbitrariedade82/83.

segredo de justiça (nem o mesmo pode existir a partir de certo momento do processamento dos autos), tais elementos de prova que nunca poderiam constar dos autos se as autoridades formais de controlo cumprissem o seu dever, acabam por permitir devassar a vida íntima ou privada dos escutados e de todos quantos com eles contactaram telefonicamente durante o período de vigência deste meio de obtenção de prova. 81 E a este propósito recordem-se as palavras de Figueiredo Dias quando disse: “Donde é que vem a legitimação de um juiz para me meter na cadeia? É por ter um curso de Direito? Isso também eu tenho. É por ter frequentado o Centro de Estudos Judiciários? Não pode ser. Só pode porque há um órgão de cúpula que cobre, embora sem poder hierárquico, todo um órgão de soberania que tem de ter uma legitimação democrática” (in Revista Visão, publicada em 31.07.2003, a p. 40). 82 Assim violando o comando básico para a introdução da matéria premial dentro do Direito, no dizer de Ihering (Ihering, Rudolf Von, A luta pelo Direito, 23ª Ed., Forense, Rio de Janeiro, 2004, p. 73, quando escreveu: “Um dia os juristas vão ocupar-se do direito premial. E farão isso quando, pressionados pelas necessidades práticas, conseguirem introduzir a matéria premial dentro do Direito, isto é, fora da mera faculdade e do arbítrio. Delimitandoo com regras precisas…”). 83 Arbitrariedades, aliás, que a Lei portuguesa já consente, v.g., no regime da Suspensão Provisória do Processo penal. Com efeito, basta ao Ministério Público não desencadear a aplicação do regime, ou opor-se, ainda que sem justificação concreta, à aplicação do mesmo pelo Juiz de Instrução, para que o mesmo não seja aplicado. Bom exemplo disso se encontra num processo com pluralidade de arguidos, em que o Ministério Público entendeu que dois deles, uma pessoa colectiva e uma pessoa singular estrangeiras haviam colaborado com a investigação, e os demais arguidos, pessoas singulares portuguesas, o não tinham feito (quando alguns destes tudo tinham feito para o esclarecimento da verdade, requerendo actos de inquérito múltiplos, todos indeferidos pelo MP), para impedir o Juiz de Instrução de aplicar tal 40

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Será talvez temerário afirmá-lo nesta sede, mas o Direito não é feito para ser aplicado por anjos nem por demónios, mas precisamente por homens normais. Com as mesmas qualidades, defeitos, características, problemas, medos, alegrias, tristezas, angústias, esperanças e preconceitos que todos os demais. Porém, muitas vezes, esses mesmos homens têm, até por força da corporação que os enquadra e protege84, uma noção de estatuto pessoal, de superioridade moral e de dogma de infalibilidade e de bondade de agir com a qual nenhum sistema Justo pode conformar-se. É, obviamente, de esperar que ninguém ao serviço da justiça aja dolosamente contra Direito, mas é uma estultícia achar-se que se acerta sempre85. Ninguém acerta sempre. E se acha que sim, então é porque seguramente não tem sequer a capacidade de autoanálise suficiente para admitir a própria humanidade, que é caracterizada pela possibilidade de erro. De mal fazer. Ainda que inconscientemente. E é também por isso que todo o sistema deve e tem de ser de checks and balances. Reais e efectivos, e não meramente “para inglês ver”! Para que nunca possa nenhum julgador dizer: eu nunca errei na apreciação da prova!86/87 Por fim, cabe discutir, pelo menos frugalmente, a fiabilidade das declarações dos delatores, para que consiga aquilatar-se, em abstracto, da real valia e utilidade deste instrumento. E para tanto não pode deixar de recorrer-se às considerações tecidas sobre a mentira nos tribunais num dos mais clássicos trabalhos científicos sobre o tema88 (apesar da época em que foi escrito e

instrumento de diversão e consenso. A posição do MP foi totalmente não fundamentada (sem argumento concretizado para a alegada “falta de colaboração”), além de que desmentida pelo teor dos autos (identificação do processo que aqui se não indica por ainda não transitada em julgado a decisão final dos autos). 84 Novamente sob autoridade de Figueiredo Dias (cit.), lembre-se a resposta que deu à pergunta “Vamos a caminho de uma ‘república dos juízes’?”: “Que casos como o da Casa Pia, da Moderna, de Vale e Azevedo ou até de Fátima Felgueiras levem a uma república de juízes? Não. Que em todos os regimes democráticos haja o perigo disso acontecer? Há. E porquê? Os juízes formam uma corporação, e quanto mais corporativos forem maior o perigo. É uma corporação que exerce poderes de soberania. E deve ser assim.”. 85 Novamente aqui julgamos importante conferir a este respeito as palavras do Juiz de Instrução Criminal do Tribunal Central de Instrução Criminal, Dr. Carlos Alexandre, em entrevista que concedeu ao Canal Televisivo SIC, emitida no dia 08.09.2016, quando afirma sobre o uso, por si próprio, dos conhecimentos que obtém nos processos e dos poderes que a lei lhe confere. Diz sobre isso: “se fosse para o mal, é que eu era realmente muito perigoso”… (minutos 12:18 a 12:35), nem sequer pondo a hipótese de haver um negligente ou meramente casual e involuntário “uso para o mal”, mesmo com as melhores intenções do Mundo – cfr. https://www.youtube.com/watch?v=jnaan19sNuY. 86 O que é diferente de dizer que, em consciência e de boa-fé, acredita nunca ter errado… e mesmo assim, será sempre uma manifestação de tão grande auto confiança, como a de qualquer um de nós afirmar o mesmo quanto aos “julgamentos” que diariamente faz dos comportamentos alheios. 87 Battistelli, Luigi, A mentira nos tribunais, cit., pp. 11 afirma: “…através da minha já longa prática de perito psiquiatra, pude verificar que a ânsia (…) destinada a objectivar a verdade judicial, só muito raramente é compreendida por quem administra a justiça – onde o dogma persiste e com ele o erro –…”. 88 Battistelli, Luigi, op. cit. 41

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do estado da ciência de então), maxime no que respeita àquilo a que o autor chamava de “mentira dos acusados”. Battistelli chamou-nos a atenção, antes do mais, para os diversos tipos substanciais de mentira, quando escreveu: “em face da mentira do criminoso, que, para afastar de si a suspeita de um crime por ele cometido, acusa um inocente, em face da mentira da testemunha falsa que sabe estar a cometer um acto abominável, há, também, a mentira imposta pela suprema vontade da natureza, que é o instinto de querer viver a todo o custo, graças à qual, em situações altamente perigosas, sem prejudicar ninguém, o mentiroso pode salvar a vida”89. Acrescentaríamos, apenas, que esta última mentira imposta pelo instinto de viver a todo o custo, também pode surgir prejudicando alguém. A todas elas chama o autor de mentiras egoístas. Também de relevo as considerações tecidas pelo insigne neuropsiquiatra sobre a evolução da espécie e da vida em sociedade e a mentira. Diz-nos, a respeito, que: “a evolução do indivíduo, em vez de dar lugar a uma regressão, provocou uma maior difusão da mentira, devido, verosimilmente, à decadência dos costumes, em resultado da qual os valores morais vão perdendo cada vez mais o seu mérito, e também à multiplicação das relações sociais e à influência que sobre cada um de nós exerce o ambiente social, que, fazendo pressão sobre nós mesmos, para irmos em auxílio dos nossos semelhantes e para socializarmos progressivamente o nosso ‘eu’, nos induz, como reacção natural, a escapar a essa pressão contínua, recorrendo à falta de sinceridade, à simulação e à dissimulação”90. Mas não só. O mesmo autor, de modo lapidar, põe em letra de forma algo que todos sabemos e que é totalmente indesmentível: “cada um de nós, sem distinções, em tempo e lugar conveniente, diz a sua mentira”91. Com o que se demonstra, inequivocamente, que dependendo das circunstâncias de tempo, modo e lugar com que uma determinada declaração ocorre, ou é imposta, ela pode normalmente ser viciada de mentira. E é aqui que a questão da mentira se centra no âmbito da nossa investigação: como pode e deve ser apreciada a delação premiada no âmbito dos processos criminais, maxime de processos de grande repercussão social ou mediática, sabendo-se que a mentira egoísta existe, e, o que mais é, que ela é francamente potenciada por factores externos ao ser humano que delata.

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Op. cit., pp. 15-16. Op. cit., p. 21. 91 Op. cit., p. 24. 90

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A este propósito, e sob a mesma autoridade científica de Battistelli, diga-se que “só no delito passional, no homicídio honoris causa e em legítima defesa, o réu confessa candidamente a sua acção; (…) Não se exclui de um modo absoluto que, algumas vezes, se possam obter confissões aparentemente espontâneas através das quais o Juiz acaba por conhecer todos os pormenores de um delito que, por falta de provas, teria ficado envolto em mistério. Mas convém ter sempre presente que essas confissões estão muito longe de constituir o evangelho da verdade; e quando são interessadas, ou demasiadamente comprometedoras, devem chamar (…) a atenção do Magistrado para o estado mental do acusado, e sobre as causas que o levaram àquela confissão”92. Ou seja, a conclusão é óbvia: mesmo em casos de confissão, as confissões estão muito longe de constituir o evangelho da verdade, mais ainda quando interessadas, i.e., e diríamos nós, quando feitas interessadamente em busca do prémio coenvolvido na delação. Tudo quanto será ainda mais exacerbado, pela natureza das coisas e pela natureza humana, se estivermos a falar de confissões por outrem, além de confissões próprias. Mas não só! Para poder ter uma visão completa do problema, cabe ainda pensar em todas as causas que o levaram àquela delação. E essas causas, na delação premiada, são muitas e todas elas negativas, mesmo em tese geral93: o pânico do delator em relação ao castigo (principalmente atenta a repercussão mediática que assume o processo e o castigo nos processos em que a delação é mais implementada e desejada); o ignoto nível de conhecimento pelo processo quanto ao seu envolvimento (resultante de eventuais outras delações prévias94); a quase certeza segura de que os demais envolvidos não terão sido resilientes às pressões dos investigadores (o que será a causa operante próxima da resolução de delatar); a dúvida sobre se os demais falaram com verdade ou se efabularam, de molde a diminuir

92

Op. cit., pp. 29-30. Dir-se-á serem possíveis razões que animam a delação, v.g., as seguintes: “vou, mas não vou sozinho”; “se outro se escapa, eu também posso escapar”; “se der qualquer coisa, pode ser que me tratem melhor”; “mentindo, poderei salvar a pele”; “se carregar noutros, alivio a minha posição”. Isto para já não esquecer que é da natureza humana ocultar as partes dos factos que nos não interessam, pintando a traços negros os que mostram a nossa bondade, principalmente se do mesmo passo for possível acentuar a maldade ou responsabilidade dos demais (o proverbial sacudir a água do capote, que a nossa cultura autonomizou em aforismo). 94 Como vimos, no regime em vigor no Brasil, não só se premeia quem primeiro delata, como premeia apenas quem não seja o cabecilha da quadrilha, pelo que o que tenha sido dito sobre o papel do delator por outro delator necessariamente que condiciona a liberdade de cada um deles a escolher delatar ou não. 93

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a sua própria intervenção e a majorar a dos demais; a dúvida sobre se, apesar de colaborar delatando, a sua colaboração vai ser julgada útil e eficaz; etc95. E tratando-se de um sistema conforme está previsto no Direito brasileiro, há ainda outras causas, ainda mais negativas do que as gerais atrás enunciadas, a saber: a dúvida sobre se o Ministério Público aceitará a sua colaboração, depois de ele falar, ou não; a dúvida sobre se o Juiz a homologará, ou não; a dúvida sobre se vai ou não haver retratação por parte das autoridades ou não; etc. Tudo circunstâncias que referimos, a par de tantas outras que omitimos, que levam a que consideremos que a decisão final de confessar ou não confessar e de delatar outros ou não o fazer, é tudo menos livre, integral e sem reservas96. Battistelli, Luigi, op. cit., pp. 53-54, escreve: “Quando, por exemplo, tivermos presente a sagaz observação de Tanzi, um dos mais ilustres psiquiatras do nosso tempo, ao escrever: ‘Há indivíduos tímidos, emocionáveis, confusos, facilmente sugestionáveis, que não conseguem resistir durante muito tempo a um interrogatório inquisitorial, cheio de armadilhas insidiosas, de exortações a uma confissão completa, de lisonjas e de intimidações, e que por um mal entendido, por impulsividade emotiva, por errado cálculo de defesa, acabam por confessar um delito que não praticaram…’, que glória, perguntamos, pode derivar, para o Magistrado inquiridor, de uma confissão arrancada dessa maneira?.”. 96 A propósito dos interrogatórios dos arguidos, em geral, relembrem-se as palavras sapientíssimas de Battistelli: “Ainda que emocionado e dominado por uma evidente tensão nervosa, que o torna céptico acerca da perfeita equanimidade do seu inquiridor, procura aparentar uma certa serenidade de espírito, consegue dominar-se e, respondendo cautelosamente às perguntas, para não cair em alguma armadilha ou em qualquer emboscada, mantémse fiel ao sistema de defesa que congeminou no silêncio das longas noites de prisão. Resistirá ao tormento das perguntas sugestivas ou capciosas, das lisonjas suspeitas, das exortações a uma confissão aberta e sincera, das benévolas intimidações ou das ameaças peremptórias, conforme a táctica do magistrado inquiridor, ora agressiva e quase sádica ao atingir, com perguntas cada vez mais penetrantes, como outras tantas picadelas de alfinetes, a consciência do acusador; ora orientada por critérios de uma racional penetração psicológica e de piedade humana; ora, pelo contrário, encoberta por uma subtil hipocrisia, como a daquele Juiz russo, Porfírio Pietrovitch, do ‘Crime e Castigo’ de Dostoievsky, que, declarando-se amigo do estudante homicida Raskolnikoff, assim como admirador da sua inteligência, enquanto o entretém, numa longa e amigável conversação, obtém, através de perguntas habilmente estudadas, uma infinidade de elementos, com os quais consegue dar à instrução um carácter de evidência matemática. Quando não se tenha de tratar com um verdadeiro culpado, mas com um presumido réu – isto é, com um inocente –, estabelecem-se, geralmente, durante o interrogatório, dois regimes de ordem psicológica: o do inquiridor, que pode, por vezes, ser o involuntário inspirador da mentira, e do interrogado, que se defende. Neste dualismo, mais frequente do que se pode pensar, tem a sua origem, muitas vezes, a ‘mentira do inocente’. Efectivamente, este, cheio de apreensões, sentindo-se envolvido por uma aparente, mas cada vez mais maciça, concretização de fraude a seu cargo, acaba por deixar de ter confiança na verdade. Parece-lhe que a sua verdade, mascarada, confundida ou desviada, por todo um conjunto de infelizes combinações aptas para gerar a convicção da sua culpa, não persuadirá o Juiz, e então é levado a substituir a verdade pela mentira; aquela mentira que lhe pareça mais adequada ao seu caso; mas, naturalmente, esta sua valoração, inteiramente pessoal, terá a marca da fácil caducidade. O Juiz, por sua vez, mediante aquela capacidade de penetração resultante da sua mais alta maturidade de pensamento, e devido à própria experiência, não tardará a descobrir a mentira, o que servirá para o confirmar na funesta suspeita da culpabilidade. É assim que a mentira, invocada em defesa de uma verdade substancial, acaba por desviar por completo a investigação do recto caminho da verdade. O estado de espírito e as condições psicológicas do acusado, modificam notavelmente e assumem, por vezes, uma teatralidade verdadeiramente sensacional, quando o processo, já completamente instruído, chega ao julgamento com a presunção de que, durante a instrução, todas as questões tenham sido resolvidas, todas as dúvidas esclarecidas, e que se conseguiu apurar a verdade. Mas esta verdade quase nunca será a verdadeira, porque foi manipulada pelo acusado, inocente ou culpado, e pelo defensor, se antes da prisão teve maneira de dar ao cliente oportunos conselhos; e também pelo Magistrado instrutor, que, através de 95

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Pior que tudo o que referimos, em desabono deste instrumento processual, é porém o seguinte: o saber que a decisão de colaborar delatando, impõe por força de lei, que renuncie ad aeternum e urbi et orbi para todos os processos vindouros possíveis, ao seu direito ao silêncio, obrigando-o a partir daí a falar com verdade, sob pena da prática de novos crimes, e ainda de perder os benefícios que eventualmente tenha conseguido com a delação. A todos estes problemas que constrangem fortemente a fiabilidade do teor das delações, há ainda que somar aqueloutros de natureza puramente formal: “tudo quanto se lê nos autos de notícia dos primeiros inquiridores, constitui, quase sempre, o credo e o evangelho do acusador”97. Com o que queremos significar que o delator fica não só “agrilhoado” ao que disse, mas, principalmente, ao modo como o disse e ficou gravado.

Por tudo isto, em nosso ver, é particularmente duvidosa a potencialidade efectiva de a delação premiada ser um meio apto a atingir aquele objectivo que mais fortemente se quis assegurar com a sua consagração legal, i.e., garantir que se atinge a verdade material no processo penal. Que o mesmo é dizer que, com ou sem delação premiada, continuar-se-á com fortes probabilidades a estar na mesma situação que foi descrita em 1935 pelo eminente Advogado transalpino Bentini: “a verdade, a verdadeira verdade, não é nunca aquela que chega até nós… Por mim, convencime de que a verdade não entra nas salas dos Tribunais, nem mesmo nos processos de grande repercussão. Ela fica sempre pelas escadas, ou pelo caminho”98. Sempre assim foi, com ou sem tortura, e sempre assim será, com ou sem delação premiada. Termos em que a utilidade da delação premiada é seguramente muito menor do que aquela que, simplisticamente, nos têm querido vender99. longos e enervantes interrogatórios, conseguiu surpreender algumas contradições ou arrancar ao acusado alguma resposta, promotora de novas incertezas, de novas dúvidas, que concorrerão para complicar e falsear ainda mais a história genuína do facto delituoso, e que, por isso, serão objecto de acesas discussões na audiência de julgamento.” (op. cit., pp. 43-45). 97 Op. cit., p. 39. E, diríamos nós, que tudo isso acontece ainda mais fortemente se estivermos a falar de autos de colaboração premiada, seja nos autos em que são elaborados, seja naqueles para os quais sejam extraídos em forma das tão costumeiras e úteis certidões. 98 Bentini, Genuzio, Consigli ad un Giovane Avvocato – parole in un orecchio, Ed. La Toga, Napoli, 1935. 99 Battistelli, Luigi, op. cit., pp. 45-47: “A celebração de um julgamento penal é sempre um espectáculo bastante emotivo. Aquela austera e inflexível dureza que dimana do acinzentado das paredes, umas vezes completamente nuas, outras decoradas com símbolos alusivos ao rigor da lei (…), aquele gélido aparato de togas e de uniformes, que mete medo até a quem nada tem a censurar-se à face da lei, não pode deixar de encher de terror o desventurado, inocente ou culpado, que tem de responder em juízo. Se há criminosos, completamente destituídos de senso moral, que chegam a não sentir qualquer respeito pela majestade da lei, a ponto de se atreverem de fazer espírito e a troçar do Presidente do Tribunal – (…) – há também os facilmente impressionáveis que, dotados de fraca memória, rapidamente esquecem as mentiras ditas na instrução e, por isso, procuram remediar o caso com novas mentiras, comprometendo ainda 45

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Acresce, ainda, que para os gravíssimos casos de branqueamento de capitais, de corrupção e de financiamento do terrorismo – crimes que realmente justificam, dada a sua extrema gravidade, a tomada de medidas extremamente excepcionais –, já existe um mecanismo de colaboração premiada suficiente e apto a atingir os propósitos que pudessem tentar visar-se com a introdução da delação premiada. Basta, para tanto, conferir os artigos 368º-A n.º 9 e 374º-B n.º 2 al. a) do Código Penal, bem como o art.º 5º-A n.º 3 da Lei n.º 52/2003 de 22 de Agosto100, na redacção hoje em vigor. *** Posto tudo quanto antecede, as conclusões só podem ser: 

a delação premiada é realmente uma via útil para aumentar a celeridade processual e reduzir o trabalho dos investigadores;



os resultados probatórios encontrados com a delação premiada não são, contudo, de incensar como garantindo a descoberta da verdade, sendo inúmeras as vias pelas quais o

mais a sua sorte. Outros são tão tímidos e reflexivos que, receando comprometer-se, param de falar e esperam que o Magistrado lhes dê o sinal, para se libertarem do enorme peso que lhes sobrecarrega a consciência. É precisamente nestes casos que se revela a habilidade do Juiz, consistindo em não fazer dizer ao acusado mais do que aquilo que ele deve dizer. E isto só pode obter-se quando, no apuramento da verdade, o interrogador emprega os meios convenientes, para impedir que as suas perguntas demasiadamente insistentes, e talvez involuntariamente intimidativas, possam provocar no interrogado um estado emocional capaz, também ele, de falsear a verdade. Não raro se tem dado caso (e as crónicas judiciárias muitas vezes o têm posto em evidência) de indivíduos indiciados, incapazes de resistir a longos e extenuantes interrogatórios, depois de terem proclamado em altas vozes a sua inocência, tendo cedido, uma primeira vez, a respeito de um pormenor – de que, talvez por distracção ou por errado cálculo defensivo, não foi a tempo compreendida a enorme importância –, num momento de desorientação, enredados nas espirais de sucessivas perguntas, tão sugestivas como agressivas, acabaram por confessar um delito que não cometeram. Estas confissões, vulgaríssimas no tempo em que, para se conhecer a verdade, era uso recorrer à tortura, tornaram-se hoje muito raras, e quando elas aparecem, o Juiz – que não seja totalmente ignorante em assuntos de fisiopsicologia –, em vez de tirar de cada uma delas a convicta confirmação de que a confissão é o evangelho da verdade, deveria antes pensar se aquela confissão não esconde uma eventual e transitória perturbação mental.” 100 Art.º 368º-A n.º 9 CP – “A pena pode ser especialmente atenuada se o agente auxiliar concretamente na recolha das provas decisivas para a identificação ou a captura dos responsáveis pela prática dos factos ilícitos típicos de onde provêm as vantagens”; art.º 374º-B n.º 2 al. a) CP – “A pena é especialmente atenuada se o agente: a) Até ao encerramento da audiência de julgamento em primeira instância, auxiliar concretamente na obtenção ou produção das provas decisivas para a identificação ou a captura de outros responsáveis”; e Art.º 5º-A n.º 3 da Lei n.º 52/2003: “A pena é especialmente atenuada ou não tem lugar a punição, se o agente voluntariamente abandonar a sua actividade, afastar ou fizer diminuir consideravelmente o perigo por ele provocado ou auxiliar concretamente na recolha de provas decisivas para a identificação ou a captura de outros responsáveis”. Atente-se, porém, que voluntariamente auxiliar na recolha de provas decisivas para a identificação de outros responsáveis não é pura delação… é recolha de provas decisivas para a identificação, o que tem um sentido muito mais amplo que delação. E mesmo que de mera delação se esteja a falar, é concretamente regulada, obrigatoriamente voluntária, integrada no espírito do sistema penal e processual penal vigente, e, o que mais é, aplicada a casos de criminalidade de gravidade extrema, e não uma cláusula geral e abstracta de delação premiada aplicável a qualquer crime punível com mais de 4 anos de pena de prisão! Daí que nem sequer se perceba a ratio dogmatica da discussão que agora se gerou. 46

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resultado obtido pode ser totalmente falso, pelo que qualquer efeito processual cominatório retirado da delação premiada ou a isenção de sujeição das declarações de arguido assim obtidas a todos os procedimentos de discussão e valoração da prova serão sempre de excluir; 

admitindo-se a utilização de um instrumento de tal jaez, teria de ser para um catálogo fechado, reduzidíssimo e inultrapassável, per saecula saeculorum, de tipos criminais muito especiais, e ainda assim apenas na estrita medida em que o quadro constitucional e legal actualmente vigentes o admitam inequivocamente.

Sendo este último tópico o único que falta apreciar para concluir a nossa análise.

V. A delação premiada como instrumento constitucional e legalmente intolerável

Depois de tudo quanto visto até ao momento (e mesmo considerando ser, a nosso ver, bastante reduzida a utilidade da delação premiada para o suposto propósito de descoberta da verdade material), caberá necessariamente avaliar da admissibilidade dogmática, constitucionalidade e legalidade intra-sistemática da delação premiada num enquadramento jus-constitucional, juspenal e jus-processual-penal como o português. Antes, porém, de iniciar a análise, recordem-se apenas as conclusões a que já em 2013 chegou um estudo jurídico-psicológico anglo-saxónico relativo às relações entre o plea bargain e a inocência. Nesse estudo foi revelado que mais de metade dos participantes nesse estudo que eram inocentes estavam dispostos a falsamente admitir a culpa em troca de um benefício101. Ça va sans dire! ***

Dervan, Lucien E. e Edkins, Vanessa A., The Innocent Defendant’s Dilemma: an innovative empirical study of plea bargaining’s innocence problem, in Journal of Criminal Law and Criminology, Vol. 103, Issue 1, Article 1, Winter 2013, p. 1, onde no sumário do texto afirmam: “The study (…) revealed that more than half of the innocent participants were willing to falsely admit guilt in return for a benefit. These research findings brings significant new insights to the long-standing debate regarding the extent of plea bargaining’s innocence problem. The article also discusses the history of bargained justice and examines the constitutional implications of the study’s results on plea bargaining, an institution the Supreme Court reluctantly approved of in 1970 in return for an assurance that it would not be used to induce innocent defendants to falsely admit guilt”. Sublinha-se: o próprio Supremo Tribunal Americano apenas admitiu o instituto do plea bargaining sob garantia de que não seria usado para induzir inocentes a falsamente admitir a culpa. Mutatis mutandis, o que não exigirá o mesmo Supremo Tribunal para delações premiadas, em vez de confissões. Exactamente concluindo nos mesmos moldes dos autores atrás citados, cfr. Hessick III, F. Andrew e Saujani, Reshma M., op. cit., p. 233, quando aludem à vasta doutrina que citam e que “have called for radical reforms to the plea bargaining process. Easterbrook sums the premise by recommending complete abolishment of plea bargaining, replacing it with a return to na exclusively trial system”. 101

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Posto isto, e num primeiro momento de análise constitucional à luz da Constituição portuguesa, cabe convocar quanto estabelece o art.º 25º n.º 1 CRP: “a integridade moral e física das pessoas é inviolável”102. Já o n.º 2 do mesmo art.º concretiza a inconstitucionalidade da submissão seja de quem for a tortura, a tratos ou penas cruéis, degradantes ou desumanos103. A clareza do normativo é de tal sorte que não nos perderemos em grandes analíticas, arrimandonos nos comentários inequívocos e indiscutíveis da Doutrina Constitucional uniforme a tal respeito. Assim, afirmam Jorge Miranda e Rui Medeiros: “A protecção da integridade pessoal é assegurada constitucionalmente em duas dimensões essenciais: a física e a moral. a) O reconhecimento e a tutela da integridade pessoal surgem indissociavelmente ligados ao reconhecimento constitucional absoluto da dignidade da pessoa humana (artigo 1º da Constituição). A importância constitucional da tutela da integridade pessoal está bem evidenciada na referência à sua inviolabilidade, na inexistência de autorização expressa de leis restritivas e na proibição de afectação do direito à integridade pessoal nas situações de suspensão de direitos fundamentais em estado de sítio ou de emergência (artigo 19º, n.º 6, da Constituição). b) O direito à integridade pessoal não é (…) um direito imune a quaisquer limitações, podendo, pelo menos, ser objecto de autolimitações. Todavia, (…) a intensidade da tutela constitucional da integridade pessoal está bem evidenciada na interdição absoluta das formas mais intensas da sua violação (n.º 2 do artigo 25º). c) O artigo 25º, nas suas implicações constitucionais, deve ser articulado com outras dimensões da protecção de direitos pessoais. (…) A tutela constitucional da integridade pessoal resulta outrossim das garantias asseguradas nos artigos 30º e segs., com particular destaque para as garantias do processo criminal constantes do artigo 32º, nomeadamente (…) a imposição da nulidade de provas obtidas mediante violação da integridade física e moral da pessoa. II – Na sua expressão mais simples a protecção da integridade física e moral consiste no direito a não agressão ou ofensa ao corpo ou espírito, por quaisquer meios (físicos ou não)”104.

102

Este texto constitucional encontra paralelo e antecedentes históricos nos art.º 11º da Constituição de 1822, art.º 145º § 18 da Carta Constitucional de 1826, art.º 21º da Constituição de 1838, art.º 3º n.º 22 da Constituição de 1911, art.º 8º n.ºs 1 e 11 e § 2º da Constituição de 1933. 103 Iguais comandos vigoram em Portugal ex vi dos art.ºs 5º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, 7º, 8º e 14º n.º 3 al. g) do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, 3º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 3º e 4º da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia, e 1º a 16º da Convenção contra a Tortura e outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos e Degradantes. 104 Miranda, Jorge e Medeiros, Rui, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra Ed., Coimbra, 2005, Anotação ao art.º 25º, p. 268. Desta anotação pouco mais se exuma de útil para a reflexão que empreendemos, posto que a quase totalidade da mesma acaba por se limitar à análise da integridade física, limitando-se a referir como 48

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Daqui resulta, desde logo, que a violação da integridade física ou moral das pessoas, além de violar o art.º 25º da Constituição, violará também os art.ºs 1º e 2º do diploma fundamental, além de violar, se praticado no âmbito de um procedimento criminal, o art.º 32º n.ºs 1, 2, 4, 6 e 8105. Por outro lado, apesar da inexistente análise feita nesta anotação às mais importantes desinências da tutela da integridade moral das pessoas, desde logo nem sequer explicitando o significado que a CRP quis atribuir nesta sede ao substantivo feminino “moral”, da análise que faz à tutela da integridade física ressuma desde logo um critério hermenêutico que não se pode descartar para utilização futura. Com efeito, dizem os autores, a dado passo, o seguinte: “merece igualmente reservas a inadmissibilidade de transplantes entre cônjuges ou amigos. O legislador terá pretendido assegurar um consentimento livre – que, aparentemente, poderia não existir no caso do cônjuge (…).” Tal afirmação permite, sem lugar para dúvidas, conexionar dois polos do raciocínio que aqui cabe empreender: que a violação da integridade física, que pode ser consentida, carece sempre, como limite de admissibilidade constitucional, que seja resultado de um consentimento livre, com tudo o que daí decorre. A saber, e para os nossos efeitos, que qualquer consentimento excludente da ilicitude, em casos de violação da integridade moral ou física das pessoas, terá de ser necessariamente livre, por imperativo constitucional. Mas aqui voltaremos adiante. Por ora tente determinar-se o significado do art.º 25º n.º 1, quando estabelece a inviolabilidade da integridade moral das pessoas. E para tanto conte-se com a lição de Gomes Canotilho e Vital Moreira, que expressivamente afirmam que “Consiste, primeiro que tudo, num direito a não ser agredido ou ofendido, no corpo ou no espírito, por feios físicos ou morais”106, logo em seguida dizendo que “o direito à integridade física e psíquica é um direito pessoal irrenunciável, a não ser nos casos em que o consentimento seja aceitável (…)”107, mas aqui integrando apenas as

reflexos da tutela da integridade moral (“consubstanciadas, designadamente, em quaisquer formas de denegrir a imagem ou o nome de uma pessoa ou de intromissão na sua intimidade…” – p. 269). 105 Na vertente genérica das garantias de defesa (aqui não só replicando a dignidade da pessoa humana, mas também, e principalmente, no direito ao silêncio ou não autoincriminação), na vertente da presunção de inocência, na vertente da proibição da prática de actos processuais que se prendam directamente com direitos fundamentais por entidade outra que não um juiz, na vertente da excepcionalidade da ausência do arguido na audiência de julgamento, na vertente expressa da nulidade de todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, etc. 106 Canotilho, J. J. Gomes e Moreira, Vital, CRP – Constituição da República Portuguesa Anotada, art.ºs 1º a 107º, 4ª Ed. Revista, Coimbra Ed., Coimbra, 2007, pp. 454-455. 107 Idem, ibidem. 49

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situações relativas às intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos adequados e levados a cabo por médicos ou pessoas legalmente autorizadas de acordo com as legis artis108. Sob a mesma autoridade conclui-se que esta norma “vale contra o Estado mas, igualmente, contra qualquer pessoa. No que respeita ao Estado (e aos poderes públicos em geral), são vários os planos em que ele é relevante: (a) no plano da legislação, não podendo a lei penal determinar qualquer pena cruel, degradante ou desumana (penas que eram comuns até às revoluções liberais); (b) no plano da investigação criminal, não sendo lícitas, nem a tortura, nem nenhuma prática atentatória da integridade moral (v.g., administração de ‘soro da verdade’) ou física (agressões), com nulidade das provas eventualmente obtidas por esses meios…”109. Mas o mais relevante no que ao nosso tema concerne surge quando se afirma de modo indiscutível: “a tortura constitui a forma mais agravada de tratamento cruel e desumano, pelo que a Constituição automiza-a (n.º 2), para salientar a proibição específica de qualquer acto originador de dor ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, intencionalmente infligidos a uma pessoa para dela obter informações, a intimidar ou a punir. A densificação de tratamentos degradantes levanta algumas dificuldades mas o desenvolvimento jurisprudencial do conceito aponta para tratamentos susceptíveis de causar nas vítimas sentimentos de medo, angústia e inferioridade de forma a humilhá-las e revoltá-las”110. Das inequívocas considerações da Doutrina, portanto, conclui-se ser especificamente proibido, porque vedado enfaticamente pelo art.º 25º CRP, qualquer acto originador de dor ou sofrimentos físicos ou mentais, intencionalmente infligidos a uma pessoa para dela obter informações, a intimidar ou a punir, sejam tais actos de que natureza forem, conquanto aptos a causar nos visados sentimentos de medo ou angústia. O paralelo entre obtenção de informações ou intimidar através da criação de sentimentos de medo ou de angústia por via de tortura física ou psíquica é aqui particularmente significativo. Em suma, a inviolabilidade da integridade moral afirmada na Constituição, refere-se à dimensão da atemorização ou criação de angústia psíquica, emocional, intelectual ou espiritual, com o intuito de obtenção de informações ou intimidação111. 108

A inexistência de outras situações idênticas, i.e., com a mesma potencialidade justificativa, referidas pelos autores é particularmente significativa, a nosso ver. 109 Idem, p. 455 (sublinhados nossos). 110 Idem, p. 456 (sublinhados nossos). 111 Battistelli, Luigi, op. cit., p. 57, afirma expressivamente sobre o que pode ser um interrogatório de arguido: “Não podemos, por outro lado, deixar de reconhecer que, com muita frequência, certas confissões são a negação da verdade. Sim… porque é devido à tortura de um interrogatório demasiadamente longo, enfadonho e fastidioso, que 50

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Ora, a conclusão a retirar do comando constitucional é inequívoca: a ameaça com um mal, in casu a punição pela medida máxima possível, no caso de não colaboração ou delação, para obter informações, é inequivocamente, à luz da Constituição, uma dessas vias especificamente proibidas. Mas não se fica por aqui a proibição jus-constitucional da delação premiada em Portugal. É que igual inadmissibilidade resulta do disposto nos n.ºs 1, 2, 4, 6 e maxime 8 do art.º 32º da Constituição. Antes de tudo o mais, não se enquadra, sob nenhuma perspectiva, no assegurar todas as garantias de defesa de um arguido em processo penal, a admissibilidade da causação de sentimentos de medo e angústia susceptíveis de ser aliviados em caso de colaboração e/ou delação. O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, numa manifestação de civilidade que é a todos os títulos incompatíveis com a chantagem ínsita no jogo do isento-te da pena, ou alivio-ta, se, colaborando, delatares todos os outros que participaram no ilícito. E isso é patente e óbvio, sem mais considerações! Porém, como alguma doutrina e jurisprudência, erradamente – até do próprio Tribunal Constitucional –, pretende sempre apoucar a valia expansiva do n.º 1 do art.º 32º CRP112, cabe

um inocente, não podendo resistir por mais tempo, depois de haver negado, negado e tornado a negar, acaba por responder: ‘Sim, está bem, é verdade tudo o que quiserem!...’. E nessa altura, se lhe são pedidos mais pormenores, outros nomes, outras informações, ele, no desejo de escapar àquela tortura, inventa e conta patranhas, socorrendose de elementos provenientes de suspeitas, de ditos, de histórias que correm entre os que o rodeiam. Não foi por distracção que me fugiu da pena a palavra ‘tortura’, porque, na verdade, o tormento do inocente, levando a falsear a verdade para satisfazer o excessivo zelo do seu interrogador, não difere muito do tormento físico da tortura arcaica, do cavalete, dos tratos de polé e das voltas de parafuso, que os Juízes costumavam, noutros tempos, mandar aplicar nos Tribunais da Santa Inquisição e que foram largamente utilizados nos processos contra as bruxas…”. 112 No sentido correcto, porém, e por todos: Miranda, Jorge e Medeiros, Rui, op. cit., p. 354 (anotação ao art.º 32º), afirmando: “o n.º 1 era um preceito introdutório, mas constituía já então uma cláusula geral que incluía não só todas as garantias explicitadas nos números seguintes mas também todas as demais que decorressem da necessidade de efectiva defesa do arguido em processo penal. É esse o seu significado actual, a que acresce a explicitação do direito ao recurso, acrescentada na Revisão de 1997. (…) A fórmula da primeira parte do n.º 1 não traduz uma norma meramente programática a desenvolver pela lei; significa antes que há-de ser perante as circunstâncias concretas de cada caso que se hão-de estabelecer os concretos conteúdos dos direitos de defesa, no quadro dos princípios estabelecidos por Lei. Todas as garantias de defesa não são as garantias que a lei formalmente concede, mas, no quadro dessas garantias e dos princípios estabelecidos pela Constituição e pelas leis, todos os meios que em concreto se mostrem necessários para que o arguido se faça ouvir pelo juiz sobre as provas e razões que apresenta em ordem a defender-se da acusação que lhe é movida. O preceito deve ser interpretado à luz do denominado processo equitativo…”; e Canotilho, J. J. Gomes e Moreira, Vital, op. cit., p. 516: “A fórmula do n.º 1 é, sobretudo, uma expressão condensada de todas as normas restantes deste artigo, que todas elas são, em última análise, garantias de defesa. Todavia, este preceito introdutório serve também de cláusula geral englobadora de todas as garantias que, embora não explicitadas nos números seguintes, hajam de decorrer do princípio da protecção global e completa dos direitos de defesa do arguido em processo criminal. Em ‘todas as garantias de defesa’ engloba-se indubitavelmente todos os direitos e instrumentos necessários e adequados para o arguido defender a sua posição e contrariar a acusação (…). Este preceito pode, portanto, ser fonte autónoma de garantias de defesa”. 51

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conferir se as especificações deste mesmo artigo nas demais normas autorizariam, a alguma luz, a delação premiada. E não a autorizam, como passamos a ver. Desde logo, o art.º 32º n.º 2 da CRP expressamente garante a presunção de inocência de todos os arguidos em processo penal. Assim que a presunção de culpa coenvolvida na colocação do arguido na situação de ter de escolher entre demonstrar a sua inocência num julgamento justo ou fugir ao calvário que é um processo penal a troco da delação seja totalmente inadmissível. É que, convém não esquecer, tal como nos narra a história que os torturados físicos preferiam confessar e acabar com o suplício, oferecendo-se directamente à pena de morte, a sofrer os actos “de inquérito”, também cabe admitir que, pelo menos algumas pessoas, prefiram admitir uma culpa que não têm e contar o que sabem sobre outros, a ter de enfrentar um processo criminal, ou, pelo menos, a enfrentá-lo sem uma “almofada” que amorteça as consequências últimas. Que o mesmo é dizer que a presunção de inocência se tem logo por violada pelo simples facto de psicologicamente se coagir ao bargaining com o acenar de um suposto prémio… principalmente quando é apenas um acenar, que pode ser retirado depois de confissão e delação de terceiros ter acontecido! Aí o Arguido não renunciou apenas ao direito ao silêncio e não assumiu apenas a obrigação de falar com verdade, como no sistema brasileiro sucede. O que fez foi renunciar à presunção de inocência e, assim, ao direito de tentar demonstrar a sua irresponsabilidade criminal (que é diferente de inocência) no decurso do processo criminal que continuará. E este aspecto é de particular relevância: é que a não aplicação de uma sanção criminal não ocorre apenas quando se está perante um comportamento inocente. Ocorre também sempre que não estejam verificados todos os pressupostos dessa responsabilidade criminal, ou quando não se verifiquem todas as condições de procedibilidade. Ora, é a todos estes mecanismos de defesa, protegidos pela presunção de inocência, que o Arguido tem de renunciar num sistema em que a delação premiada seja admitida. Termos em que, a segunda conclusão é a de que a delação premiada não é só vedada pelo art.º 32º n.º 1 CRP, mas também pelo n.º 2113, quando estabelece a presunção de inocência, analisada esta

Miranda, Jorge e Medeiros, Rui, op. cit., p. 355 (anotação ao art.º 32º): “Nas suas origens, o princípio teve sobretudo o valor de reacção contra os abusos do passado e o significado jurídico negativo da não presunção de culpa. No presente, ainda que possa também significar reacção aos abusos de um passado mais ou menos próximo, representa sobretudo um acto de fé no valor ético da pessoa, próprio de toda a sociedade livre e democrática. Esta atitude político-jurídica tem consequências para toda a estrutura do processo penal que, assim, há-de assentar na ideia-força de que o processo deve assegurar todas as necessárias garantias práticas de defesa do inocente e não há razão para não considerar inocente quem não foi ainda solene e publicamente julgado culpado por sentença transitada em julgado. Daqui resulta, entre outras consequências, a inadmissibilidade de qualquer espécie de 113

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na perspectiva de um direito de utilização livre pelo Arguido ao longo de todo o iter processual, num verdadeiro e próprio direito a gerir o se, o como e o quando de qualquer tipo de colaboração114. Também violado, com o sistema brasileiro da delação premiada que agora se defende importar acriticamente para Portugal, resulta o n.º 4 do art.º 32º CRP. Com efeito, é inequívoco o imperativo constitucional de que todos os actos instrutórios (que hoc sensu significam, como sabemos, actos de recolha de prova) que se prendam directamente com os direitos fundamentais (como é o caso da confissão e/ou da delação premiada), são da competência de um Juiz. Nunca, por ser nunca, se admitiria em Portugal, por inconstitucional, um procedimento de confissão / delação premiada a cargo do Ministério Público, e muito menos de OPC’s sob delegação da autoridade judiciária (fosse ela qual fosse)115. Ou seja, não fora por tudo o mais que se deixou escrito e se escreverá (e que demonstra a inadmissibilidade constitucional da delação premiada), a haver um procedimento de delação premiada em Portugal, o mesmo nunca poderia ter as características que manifesta no processo penal brasileiro, onde a intervenção do Juiz é meramente homologatória, para não dizer totalmente oca e fictícia. Também incompatível com o regime da ausência regra do Arguido que delatou da audiência de julgamento, é o imperativo emergente do art.º 32º n.º 6 CRP. Certo é que, numa leitura apressada do texto constitucional, se pode concluir que a norma o que estabelece é um direito do arguido a estar presente na audiência do seu julgamento116. Porém, uma leitura atenta, e que pondere que num processo criminal existe, ou pode existir, pluralidade de Arguidos117, não deixará de concluir em sentido mais lato: o direito de presença do Arguido no julgamento não é apenas um direito ‘culpabilidade por associação’ ou ‘colectiva’ e que todo o acusado tenha direito de exigir prova da sua culpabilidade no seu caso particular”. 114 Battistelli, Luigi, op. cit., p. 57 : “quando se repete o caso de uma confissão arrancada à força, essa confissão, em vez de corresponder fielmente à verdade (…) reveste o aspecto da mentira determinada, segundo o que nos ensina a dialogia, pela necessidade, transcendental para o indivíduo, de escapar ao tormento de uma dor insuportável”. 115 Canotilho, J. J. Gomes e Moreira, Vital, op. cit., p. 521: “… sempre se deve entender, pelo menos, que na fase préinstrutória carecem de intervenção do juiz os actos que afectem os direitos, liberdades e garantias”. 116 Que é, aliás, a leitura comum dada pela Doutrina: Miranda, Jorge e Medeiros, Rui, op. cit., p. 360 (anotação ao art.º 32º), quando dizem: “fica vedado à lei a dispensa da presença do arguido, sempre que seja possível, pois a defesa pessoal é componente essencial do direito de defesa que o n.º 1 garante nos mais amplos termos e nunca para a impedir ou dificultar. A dispensa da presença tem de ser ponderada com o efectivo exercício da defesa, o que impedirá que o arguido que nunca teve conhecimento da instauração do processo contra si possa ser definitivamente julgado como impedirá também que uma decisão condenatória possa transitar sem se assegurar ao arguido a possibilidade de defesa pessoal”. Na mesma linha Canotilho, J. J. Gomes e Moreira, Vital, op. cit., p. 523. Esquece-se, porém, nesta linha de pensamentos o mais que em seguida faremos constar no texto. 117 Como é dos livros, apenas teoreticamente o processo é pensado como procedimento para julgamento de um Arguido pela prática de um crime, sabendo-se que a pluralidade de sujeitos e de actos sub judicio até é a regra de um ponto de vista estatístico. 53

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próprio do Arguido a não estar ausente, é um direito de todos os co-arguidos a que todos os demais estejam presentes. É que o pleno exercício do direito de defesa de um arguido pode passar, e passa tantas vezes, precisamente pelo confronto com a presença do ou dos demais arguidos. Na verdade, o apuramento do real e efectivo grau de participação de cada arguido nos actos ajuizados, que o mesmo é dizer “o apuramento da verdade material sobre a participação”, assenta fundamentalmente no confronto de todos os Arguidos, em audiência, com os factos e uns com os outros. E até com as versões de facto que cada um traz para a audiência. Logo, a dispensa, como prémio e (alegada) protecção, de um Arguido à audiência, necessariamente prejudica o exercício do direito de defesa dos demais. E assim tanto mais será quanto estivermos em face de um arguido ausente que é a fonte da acusação do ou dos demais, mercê da delação. Que contraditório existirá desse fundamental meio de prova por parte das defesas dos demais arguidos, os delatados, se se admite que parte do prémio para o delator é, precisamente, a inexistência de sujeição da versão do mesmo a qualquer contraditório? Com o que se conclui, linearmente, que também uma leitura completa do teor do art.º 32º n.º 6 inviabilizaria qualquer tentativa de importação do regime brasileiro da delação premiada para Portugal. Por fim, o art.º 32.º n.º 8 CRP é a rematada e concludente afirmação da inconstitucionalidade de qualquer delação premiada num Estado de Direito democrático que se reja efectivamente por norma equivalente ao art.º 1º da nossa Constituição. “A eficácia da Justiça é também um valor que deve ser perseguido, mas, porque numa sociedade livre os fins nunca justificam os meios, só é aceitável quando alcançada lealmente, pelo engenho e arte, nunca pela força bruta, pelo artifício ou pela mentira, que degradam quem os sofre, mas não menos quem os usa. Por isso a lei repudia em absoluto a obtenção de provas mediante tortura, coacção e ofensa da integridade física ou moral da pessoa, cuja inviolabilidade é primariamente garantida nos artigos 24º e 25º da Constituição, e limita aos casos expressamente previstos na lei em conformidade com a Constituição (artigos 26º e 34º) a sua obtenção mediante a intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações”118. Sublinhe-se a traço grosso: a busca da verdade material só é aceitável quando alcançada lealmente, pelo engenho e arte, nunca pela força bruta, pelo artifício ou pela mentira, e, de igualmente modo, pela força insidiosa, da chantagem, do engodo, da compra de uma verdade a

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Miranda, Jorge e Medeiros, Rui, op. cit., p. 361. 54

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troco de uma imunidade, que pode até vir a nunca ser concedida (o que a delação premiada, como visto, permite que aconteça!). Dito por outras palavras, em rigor o art.º 32º n.º 8 CRP não impede que se utilize a delação premiada, mas fere claramente de nulidade toda e qualquer prova obtida mediante tal instrumento. Nulidade que deve ser “considerada em sentido forte, ou seja como proibição absoluta da sua utilização no processo; seria intolerável que para realizar a Justiça no caso fossem utilizados elementos de prova obtidos por meios vedados pela Constituição e incriminados pela lei”119. Com o que se atinge, com esta norma, o mesmo fim que retirámos ser o da Constituição nas demais normas citadas: inviabilizar qualquer instrumento semelhante à delação premiada. Iguais ensinamentos resultam das lições de Gomes Canotilho e Vital Moreira. Efectivamente, escrevem estes autores que “os interesses do processo criminal encontram limites na dignidade humana (art.º 1º) e nos princípios fundamentais do Estado de direito democrático (art.º 2º), não podendo, portanto, valer-se de actos que ofendam direitos fundamentais básicos. Daí a nulidade das provas obtidas sob tortura ou coacção (…) obtidas com ofensa da integridade pessoal, (…). A interdição é absoluta no caso do direito à integridade pessoal (cfr. AcTC n.º 616/98); (…).” E por isso a conclusão que tiram é linear: “debaixo da alçada deste preceito caem ainda hipóteses como as seguintes: (a) meios de prova que representem grave limitação da liberdade de formação e manifestação de vontade do arguido, transformando este em meio de prova contra si próprio (ex.: uso do polígrafo, da narcoanálise); (…). No caso de existirem, elas deverão ser consideradas provas de valoração proibida.”120.

Por outro lado, uma breve nota para afirmar que os art.ºs 5º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, 7º, 8º e 14º n.º 3 al. g) do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos121, 3º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 3º e 4º da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia, e 1º a 16º da Convenção contra a Tortura e outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos e Degradantes, reforçam com substância tudo quanto acaba de afirmar-se122. 119

Idem, p. 362. Canotilho, J. J. Gomes e Moreira, Vital, op. cit., p. 524. 121 É muito expressivo este art.º 14º n.º 3 al. g) do PIDCP: “Qualquer pessoa acusada de uma infracção penal terá direito, em plena igualdade, pelo menos às seguintes garantias: g) A não ser forçada a testemunhar contra si própria ou a confessar-se culpada” (em plena igualdade, o que bem demonstra a complexidade da questão na coautoria). 122 De referir, para desmistificar algumas afirmações amplamente divulgadas, que nem a Convenção de Mérida de 2003, elaborada e assinada sob a égide das Nações Unidas, nem a Convenção de Palermo, de 2000, em momento algum recomendam, aconselham ou sugerem a implementação da delação premiada. Falam, isso, sim, na protecção dos denunciantes, vítimas e peritos, e defendem a promoção pelos Estados da cooperação, não da colaboração a 120

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Há, porém, quem afirme que a admissibilidade da delação premiada vem expressamente admitida no art.º 37º da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, conhecida como Convenção de Mérida. Ora, da leitura de uma das versões em idioma oficial, constata-se linearmente que nunca ali se admite, sequer, qualquer prémio para quem indique parceiros na prática da infracção. Rectius: nunca se refere, sequer, a delação de partícipes na prática de qualquer ilícito criminal123. Além de que faz depender as suas recomendações dos princípios fundamentais dos direitos nacionais. Também apenas em jeito de anotação tópica, recorde-se que o art.º 1º da Convenção contra a Tortura e outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos e Degradantes faz equivaler a tortura física à tortura psicológica, emocional, intelectual ou espiritual, quando define a tortura que proíbe ao longo de todo o diploma nos moldes seguintes: “qualquer acto por meio do qual uma dor ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são intencionalmente causados a uma pessoa com os fins de, nomeadamente, obter dela ou de uma terceira pessoa informações ou confissões, a punir por um acto que ela ou uma terceira pessoa cometeu ou se suspeita que tenha cometido, intimidar ou pressionar essa ou uma terceira pessoa, ou por qualquer outro motivo baseado numa forma de discriminação, desde que essa dor ou esses sofrimentos sejam infligidos por um agente público ou qualquer outra pessoa agindo a título oficial, a sua instituição ou com o seu consentimento expresso ou tácito”. A definição ampla de tortura que é dada por esta Convenção, abrange necessariamente a sujeição de alguém à chantagem, dilema, angústia, medo que está subjacente ao procedimento de colaboração ínsito à delação premiada. qualquer título, muito menos a delação premiada. Não espanta, contudo, que haja erradas afirmações a respeito, quando a própria tradução “oficial” do texto daquela para português do brasil tem sido acusada de ser dolosamente incorrecta (https://jus.com.br/artigos/12361/a-norma-fantasma-do-artigo-47-da-convencao-de-merida). 123 Article 37. Cooperation with law enforcement authorities 1. Each State Party shall take appropriate measures to encourage persons who participate or who have participated in the commission of an offence established in accordance with this Convention to supply information useful to competent authorities for investigative and evidentiary purposes and to provide factual, specific help to competent authorities that may contribute to depriving offenders of the proceeds of crime and to recovering such proceeds. 2. Each State Party shall consider providing for the possibility, in appropriate cases, of mitigating punishment of an accused person who provides substantial cooperation in the investigation or prosecution of an offence established in accordance with this Convention. 3. Each State Party shall consider providing for the possibility, in accordance with fundamental principles of its domestic law, of granting immunity from prosecution to a person who provides substantial cooperation in the investigation or prosecution of an offence established in accordance with this Convention. 4. Protection of such persons shall be, mutatis mutandis, as provided for in article 32 of this Convention. 5. Where a person referred to in paragraph 1 of this article located in one State Party can provide substantial cooperation to the competent authorities of another State Party, the States Parties concerned may consider entering into agreements or arrangements, in accordance with their domestic law, concerning the potential provision by the other State Party of the treatment set forth in paragraphs 2 and 3 of this article. 56

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Com o que cabe concluir que Portugal, enquanto Estado de Direito democrático que é, vinculado pela Convenção contra a Tortura de 1984, confrontado com um instituto como o da delação premiada, em vez de pretender importá-lo, deveria utilizar os mecanismos do artigo 21º da Convenção em ordem a denunciar a violação do direito internacional público por parte da República Federativa do Brasil (que a tal Convenção está vinculada desde 1998!).

Mas não são só instrumentos supra-legais que inviabilizam a importação-introdução de um instituto como o da delação premiada em Portugal. Até o próprio sistema do direito penal tal como em vigor, e bem, em Portugal, é incompatível com um instituto de tal jaez. Introduzir a delação premiada imporia repensar vários tipos do próprio Código Penal, criando para os mesmos causas de justificação, causas de exculpação, situações de inexistência de condições de procedibilidade, excepções à regra, ou chame-se-lhe o que quiser. Com uma consequência certa e segura: seria outro, e irreconhecível, o universo dos direitos, liberdades e garantias emergentes da Lei penal, bem como até a caracterização de muitos bens jurídicos subjacentes a vários tipos penais. Pensamos, apenas a título exemplificativo, em tipos penais como os seguintes: ofensas à integridade física (que abrangem as ofensas à saúde, sem distinção da saúde física, mental, psíquica, emocional, etc.), e regime de aferição da contrariedade aos bons costumes (respectivamente art.º 148º e 149º n.º 2 CP); ameaça (153º CP), aqui relevando o conceito de causação de medo ou inquietação ou de prejudicar a liberdade de determinação; coacção (154º CP), que implicaria que integrasse situação de não censurabilidade a dos agentes de autoridade que convencessem à delação, seguramente porque teria de passar a ser um caso em que o fim justificava o meio (o que implicava igualmente alterar toda a doutrina sobre a agravação emergente do art.º 155º n.º 1, al. d) CP); perseguição (154º-A CP), etc. Mas mais grave ainda, implicaria necessariamente a revogação dos dois tipos p. e. p. nos art.ºs 243º e 245º do CP. Com efeito, dispõe o art.º 243º n.º 3 do CP, artigo que tem por epígrafe Tortura e outros tratamentos cruéis, degradantes ou desumanos, o seguinte: “Considera-se tortura, tratamento cruel, degradante ou desumano, o acto que consista em infligir sofrimento físico ou psicológico agudo, cansaço físico ou psicológico grave ou no emprego de produtos químicos, drogas ou outros meios, naturais ou artificiais, com intenção de perturbar a capacidade de determinação ou a livre manifestação de vontade da vítima”. 57

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Conforme resulta do já afirmado atrás a propósito da análise à definição constante do Art.º 1º da Convenção contra a Tortura de 1984, infligir sofrimento psicológico com intenção de perturbar a capacidade de determinação ou a livre manifestação de vontade de alguém é situação em que incorre quem submete alguém ao dilema subjacente e ínsito à delação premiada: colocar o suspeito ou o arguido no dilema de escolher entre enfrentar o processo criminal para provar a sua inocência, ou para nele se ver condenado, e livrar-se do processo, seja definitivamente seja porque abreviado nos seus termos, conquanto confesse e delate…124 Logo, parece inequívoco que, quer para a Convenção de 1984, quer para o Código Penal português, delação premiada é comportamento que se subsume ao conceito de tortura. Mas não só! É que cabe atentar para que realidade se preocupou o n.º 3 do art.º 243º do CP em definir tortura, com o que se concluirá que foi precisamente para evitar a admissibilidade, no nosso sistema de investigação criminal, de delações premiadas tal como previstas no Direito brasileiro. Reza assim o n.º 1 do mesmo tipo penal125: “Quem, tendo por função a prevenção, perseguição, investigação ou conhecimento de infracções criminais, contra-ordenacionais ou disciplinares, a execução de sanções da mesma natureza ou a protecção, guarda ou vigilância de pessoa detida ou presa, a torturar ou tratar de forma cruel, degradante ou desumana para: a) Obter dela ou de outra pessoa confissão, depoimento, declaração ou informação;

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Souza, Cinthia Danielly Nepomuceno e Rodrigues, Fillipe Azevedo, op. cit., p. 361 afirmam sobre a teoria dos jogos e o dilema dos prisioneiros: “A teoria dos jogos é aplicada em diferentes modelos de jogos, mas é no clássico jogo do Dilema dos Prisioneiros que a teoria se estruturou tornando bastante conhecida e de fácil compreensão. Um jogo simultâneo onde cada jogador, de modo independente, busca aplicar uma estratégia dominante par aumentar suas vantagens. O dilema dos prisioneiros é elucidado da seguinte forma: dois criminosos, conhecidos como Tício e Mévio, são presos pela polícia, no entanto não existe provas suficientes para condená-los pela autoria do crime. Com intuito de obter a confissão de um dos envolvidos a polícia decide colocá-los em salas distintas, incomunicáveis, para interrogá-los. A ambos é oferecido um mesmo acordo de ‘colaboração premiada’ onde se colaborarem poderão ter suas penas reduzidas. Especificamente, o acordo prevê as seguintes condições: a) se um confessar (delatar o outro) e o outro permanecer em silêncio, o que confessou receberá um ano de prisão e o que não confessou a pena será de 10 anos de prisão; b) se ambos ficarem em silêncio, não confessarem (…), pela ausência de provas, a pena será de dois anos de prisão; c) se ambos confessarem serão condenados a cinco anos de prisão. Desconhecendo a decisão que será tomada pelo outro, ambos (…) buscam sua estratégia dominante, aquela que traga melhores resultados que irão minimizar sua pena” (sic). Esta simples descrição daquilo em que pode converter-se um processo penal não pode senão fazer brotar de qualquer sã consciência jurídica um sentimento de repulsa totalmente indizível. 125 Já o n.º 2 do mesmo tipo dispõe: Na mesma pena incorre quem, por sua iniciativa ou por ordem de superior, usurpar a função referida no número anterior para praticar qualquer dos actos aí descritos. 58

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b) A castigar por acto cometido ou supostamente cometido por ela ou por outra pessoa; ou c) A intimidar ou para intimidar outra pessoa; é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal. Em suma, o tipo foi pensado126, precisamente, para quem tendo por função a prevenção, perseguição, investigação ou conhecimento de infracções criminais, e tendo em vista obter de alguém confissão, depoimento, declaração ou informação, ou ainda para a intimidar ou para intimidar outra pessoa, pratique actos que possam considerar-se, nos termos do n.º 3, de tortura… que como visto abrangem inequivocamente a causação de medo ou a inflição de sofrimento psicológico com intenção de perturbar a capacidade de determinação ou a livre manifestação de vontade… Que o mesmo é dizer que, mais do que desajustado da Lei penal portuguesa, o instituto da delação premiada constitui, em Portugal – e bem, à luz dos Princípios e regras Constitucionais e de Direito Internacional –, um crime… Termos em que terão de ser muito rigorosas, excepcionais e bem delimitadas, as situações de utilização dos artigos 368º-A n.º 9 e 374º-B n.º 2 al. a) do Código Penal, bem como o art.º 5º-A n.º 3 da Lei n.º 52/2003 de 22 de Agosto. E ainda assim não se afastarão totalmente as questões de inconstitucionalidade destas normas, nos termos e com os fundamentos que atrás deixámos enunciadas127. O que, porém, o Tribunal Constitucional ainda não foi chamado a apreciar, talvez, precisamente, por não serem normativos utilizados128. 126

Iguais conclusões tiradas no texto, quanto à incompatibilidade com o instituto da delação premiada, se terão de tirar do art.º 245º CP (“O superior hierárquico que, tendo conhecimento da prática, por subordinado, de facto descrito nos artigos 243.º ou 244.º, não fizer a denúncia no prazo máximo de 3 dias após o conhecimento, é punido com pena de prisão de 6 meses a 3 anos”). 127 A Procuradora-Geral do Reino de Espanha, Consuelo Martínez Pereda, afirmou sobe a previsão da delação premiada no Reino de Espanha, que não tem de ser alterada para uma forma mais estrutural, por já existir nos casos necessários e com muito rigor. Em rigor, lê-se na entrevista: “E acha que se deveria alterar a lei em Espanha para prever a delação de forma mais estruturada? Não, está previsto na lei. Mas com muito rigor” (in Jornal I, edição de 12.10.2016, p. 27). 128 E não utilizados, não só porque avessos à cultura e estrutura axiológica portuguesas, mas seguramente, também, por alguma consciência das instâncias formais de controlo da problematicidade que a sua utilização envolverá. Aliás, problematicidade que surge a toda a luz nas considerações que em texto seguidamente se apresentam, relativas à operacionalidade prática dos direitos de defesa dos demais responsáveis que sejam identificados por via destes normativos. 59

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Mas ainda que tudo isto não fosse bastante para demonstrar a inadmissibilidade dogmática, constitucional e legal da delação premiada, para exaurimento de análise cabe, por último, recordar-se quanto atrás se foi deixando anotado no Capítulo III.4 relativamente à incompatibilidade do direito processual penal posto em Portugal com o instituto da delação premiada tal como configurado no sistema brasileiro. E olhando nesta perspectiva dir-se-á que nada no processo penal português é compatível com semelhante instituto: o facto de o delator ter de renunciar ao direito ao silêncio e obrigar-se a falar com verdade; o facto de tal ser feito perante OPC’s ou perante o Ministério Público, e não perante um Juiz; o facto de ter de delatar sem concreta e pré-determinada garantia de merecimento de benefício; o facto de o procedimento ficar integralmente nas mãos do sujeito processual contra parte, sem controlo por parte do próprio; o facto de o Juiz poder recusar a homologação, ficando a prova confessória nos autos para ser livremente apreciada pelo Tribunal; o facto de o delator ser arredado da sala de audiências, beneficiando de total ausência de contraditório dessa parte por banda dos demais Arguidos; o facto de a delação ser materialmente uma confissão em nome de outrem; e um sem número de outras situações que nunca um due process of law admitiria à luz do travejamento mestre do processo penal português129. Ora, esse mesmo processo penal, tal como posto, assenta em princípios e limites que são inultrapassáveis, porque, e na medida em que, constituem direito constitucional material. Enxertar um instituto como o da delação premiada no sistema processual penal português não seria fazer-lhe um acrescento, não seria introduzir uns artigos por entremeio dos existentes, mas revolvê-lo profundamente, descaracterizando-o130. Não seria uma reforma do processo penal, seria instaurar um novo processo penal, com fases com conteúdos novos, com novos poderes para

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Enumerando simplisticamente dir-se-ia que a delação premiada conflitua, directamente, com os seguintes institutos processuais penais inultrapassáveis: o direito ao silêncio (próprio e dos demais arguidos, e que aliás se exuma também do art.º 343º CPP); o regime a que está sujeito o procedimento de leitura das declarações prestadas em fase anterior pelo Arguido em audiência, que apesar de ter sido alterado em sentido considerado inconstitucional por violador do art.º 32º n.º 1 CRP (e violador do art.º 14º, n.º 3 al. g) do PIDCP) no Parecer de 5 de Janeiro de 2012 pela Ordem dos Advogados, ainda assim expressamente considera que dessas declarações não se pode retirar qualquer valor confessório; o regime jurídico da confissão, que tem de ser livre, integral e sem reservas para ter efeitos cominatórios processuais em processos por crimes puníveis com penas leves e desde que não haja dissenso entre arguidos; o regime específico das declarações de coarguidos; o princípio geral de igualdade entre autores do crime, resultante do art.º 26º do Código Penal (estatuindo a mesma pena para todos os autores, não distinguindo prémios para quem seja autor mediato ou imediato, nem para cabecilhas ou comparsas, etc.). 130 Battistelli, Luigi, op. cit., p. 58: “…ressurgem, de tempos a tempos, sistemas e métodos que já se consideravam abandonados para smpre e estavam quase esquecidos”… assim sucedeu agora, em Portugal, com a delação premiada. 60

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alguns sujeitos processuais e diminuição de garantias e direitos de outros, com novas regras probatórias, com novas consequências jurídicas para o facto (para além das conhecidas e admitidas pelo direito premial), enfim, seria um “Delenda est Chartago!” do processo penal português conhecido!

Por fim, uma última palavra para desmistificar totalmente o argumento de que o plea bargain dos sistemas anglo-saxónicos equivalem, nesse sistema, quer ao instituto da confissão, quer ao instituto da delação premiada. Tal afirmação não corresponde à verdade, nem nunca correspondeu. Bem ao invés, a jurisprudência norte-americana tem sido constante, ao longo dos anos, no sentido de que a aceitação de um plea bargain não implica qualquer confissão de culpa: bem ao invés, é perfeitamente compatível com a manutenção da afirmação da inocência. Isso, e apenas isso, é o suficiente e o bastante para aquilatar da insustentabilidade dogmática e constitucional do regime vigente no Brasil mesmo num quadro normativo como o dos EUA, bem como da total incongruência de utilizar tal instituto do common law para defender a introdução da delação premiada em sistemas de matriz de civil law, e muito menos para interpretar o já existente instituto da confissão em processo penal português131.

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Dervan, Lucien E. e Edkins, Vanessa A., op. cit., p. 44, escrevem, clarificando a questão, e recordando um Acórdão do Supremo Tribunal Norte-Americano de 1970 no Caso North Carolina vs. Alford: “…the Supreme Court stated that it was permissible for a defendant to plead guilty even while maintaining his or her innocence. The Court stated, however, that there must be a ‘record before the judge contain(ing) strong evidence of actual guilt’ to ensure the rights of the truly innocent are protected and guilty pleas are the result of ‘free and intellingent choice’. Forty years later, three men serving sentences ranging from life in prison to death would use this form of bargained justice to walk free after almost two decades in prison for a crime they may never have committed”. Já a páginas 48 insistem, demonstrando que mesmo esta posição cautelosa do Supremo Tribunal estava errada, devendo tal Tribunal rever a sua posição tornando inaceitável o procedimento. A respeito afirmam, então: “the Court made clear that this form of bargained justice was reserved only for cases where the evidence against the defendant was overwhelming and sufficient to overcome easily the defendant’s continued claims of innocence. Where any uncertainty remained, the Supreme Court expected the case to proceed to trial to ensure that ‘guilty pleas are a product of free and intelligent choice’, rather than overwhelming force from the prosecution. The same language requiring that plea bargaining be utilized in a manner that permits defendants to exercise their free will was contained in the 1978 case of Bordenkircher v. Hayes. In Bordenkircher, the Court stated that the accused must be ‘free to accept or reject the prosecution’s offer’. (…) As is now evident (…), the Supreme Court was wrong to place such confidence in the ability of individuals to assert their right to trial in the face of grave choices. In our research more than half of the study participants were willing to forgo an opportunity to argue their innocence in court and instead falsely condemned themselves in return for a perceived benefit. That the plea-bargaining system may operate in a manner vastly different from that presumed by the Supreme Court in 1970 and has the potential to capture far more innocent defendants than predicted means that the Brady safety valve has failed. Perhaps, therefore, it is time for the Court to reevaluate the constitutionality of the institution with an eye towards the true power and resilience of the plea-bargaining machine”. Esta conclusão final é, assuma-se claramente, devastadora para todo e qualquer sistema de plean bargain, e, ainda mais, de delações premiadas, enquanto confissões por boca alheia. 61

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Aliás, se algum caminho o sistema de common law está a começar a trilhar, ao nível da doutrina, é precisamente em sentido inverso àquele que se poderia pensar: é o da reflexão acerca da inconstitucionalidade do sistema do plea bargain. *** Por tudo quanto fica dito, não pode senão concluir-se que a delação premiada, principalmente com os contornos do instituto que se pretende importar do Brasil, se trata de meio próprio de tempos da pré-história do Direito penal e processual penal, de momentos prévios ao próprio Génesis dos Direitos Humanos132. Ou seja, um instrumento que em caso algum poderá ser introduzido no sistema processual penal português, sob pena de produzir um terremoto de proporções inimagináveis nos princípios e institutos cardeais do sistema. E tudo para tentar atingir uma miragem de descoberta da verdade material, que corresponderá seguramente e na esmagadora maioria dos casos, por força da natureza da própria psique humana, a uma simples ilusão óptica que não saciará a sede da comunidade pela verdade. O combate impõe-se, pois, qual Armagedão na luta pelos Direitos Humanos em Portugal.

Lisboa, 1 de Novembro de 2016. 132

Cuano, Rodrigo Pereira, op. cit., descreve o sistema penal português, aplicável no Brasil, na época áurea em que a delação também era um meio admissível de obtenção de prova: “A pena de morte era, por assim dizer, a punição normal dos crimes. A esse quadro se juntava o horrível emprego de torturas para obter confissões, também ao arbítrio do juiz, a infâmia transmitida aos descendentes no crime de lesa-majestade, que podia consistir até no fato de alguém, em desprezo do rei, quebrar ou derrubar alguma imagem de sua semelhança, ou armas reais, postas por sua honra ou memória. Havia transmissão da infâmia aos descendentes, ainda, nos crimes de sodomia. Não vigorando o princípio do nulla poena sine lege, compreende-se que para alguns delitos cominassem nas Ordenações a chamada pena crime arbitrária, ou seja, aquela que ficava ao talento do julgador fixar, conforme "lhe bem e direito aparecer, segundo a qualidade da malícia, e a prova, que dela houver" (Livro 5.°, título CXVIII, § 1.°). A matéria criminal está disposta de forma assistemática e irracional: os comportamentos incriminados, em número excessivo, referem-se à tipos difusos, obscuros, derramados, por vezes conflitantes; as penas são desproporcionais e, sempre, por demais cruéis; multas são cominadas não para atender a exigências de política criminal mas com o evidente intuito de locupetrar o fisco; admitem-se os tormentos, as provas semiplenas, os indícios, especialmente nos delitos mais graves. Eram assim as legislações penais naqueles primeiros anos do século XVII, algumas pondo ainda maiores excessos em acentuar esse seu caráter de instrumento de terror na luta contra o crime. O absolutismo dos reis, a pressão da ordem religiosa, a mescla íntima entre essas duas forças sociais, confundindo o príncipe os seus próprios interesses com os da Divindade, porque divina era também a origem dos seus privilégios; a necessidade de manter submissos e dentro a ordem os homens, não por convicção ou claro entendimento das coisas, mas pela força do temor dos castigos; as ambições e egoísmo de uns e o sentimento de insegurança e insatisfação de quase todos, tudo isso refletia naqueles tempos sombrios, nas leis penais, confusas, despóticas e cruéis. Humilhante para a cultura dos dois povos e que ela tenha podido prevalecer até então, com as suas normas extravagantes do campo próprio do Direito Penal, na sua confusão de moral, religião e Direito, como era corrente nas leis penais da Idade Média, injustas na distinção de tratamento entre fidalgos e plebeus, desumanas e por vezes ridículas nas suas penas. Segundo Batista Pereira, era "um misto de despotismo e de beatice, uma legislação híbrida e feroz, inspirada em falsas idéias religiosas e políticas.”. 62

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