Delimitação do problema do \'desencantamento do conceito\' na Dialética Negativa

July 22, 2017 | Autor: Mariana Fidelis | Categoria: Adorno, Teoría Crítica, Negative Dialectics
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Nota preliminar Estes livros são o resultado de um trabalho conjunto das gestões 2011/12 e 2012/3 da ANPOF e contaram com a colaboração dos Coordenadores dos Programas de Pós-Graduação filiados à ANPOF e dos Coordenadores de GTs da ANPOF, responsáveis pela seleção dos trabalhos. Também colaboraram na preparação do material para publicação os pesquisadores André Penteado e Fernando Lopes de Aquino. ANPOF – Gestão 2011/12 Vinicius de Figueiredo (UFPR) Edgar da Rocha Marques (UFRJ) Telma de Souza Birchal (UFMG) Bento Prado de Almeida Neto (UFSCAR) Maria Aparecida de Paiva Montenegro (UFC) Darlei Dall’Agnol (UFSC) 
 Daniel Omar Perez (PUC/PR) 
 Marcelo de Carvalho (UNIFESP) ANPOF – Gestão 2013/14 Marcelo Carvalho (UNIFESP) Adriano N. Brito (UNISINOS) Ethel Rocha (UFRJ) Gabriel Pancera (UFMG) Hélder Carvalho (UFPI) Lia Levy (UFRGS) Érico Andrade (UFPE) Delamar V. Dutra (UFSC)

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Filosofia contemporânea: ética e política contemporânea F487 / Organização de Marcelo Carvalho, Vinicius Figueiredo. São Paulo : ANPOF, 2013. 826 p. Bibliografia ISBN 978-85-88072-09-1

1. Filosofia contemporânea 2. Ética e política contemporânea 3. Filosofia - História I. Carvalho, Marcelo II. Figueiredo, Vinicius III. Encontro Nacional ANPOF CDD 100

Delimitação do problema do “desencantamento do conceito” na Dialética Negativa Mariana Fidelis Jerônimo de Oliveira*

* mestranda, UFMG.

Resumo A Dialética Negativa (1966) de Theodor Adorno estabelece como tarefa da Filosofia a aproximação ao não-idêntico e não-conceitual. Desse modo instaura-se uma relação antinômica entre seu projeto e a atividade conceitual: ora de crítica do conceito forjado sob o princípio de Identidade; ora de valorização do conceito como organon necessário do conhecimento. Como resposta a esse impasse encontramos a necessidade de um desencantamento do conceito como via de reconfiguração da atividade conceitual e, com ela, da própria filosofia. Este artigo tem por objetivo delimitar o problema configurado como desencantamento do conceito, pretendendo responder sobre o que leva Adorno a concluir, em face do problema do conceito, pela necessidade de seu desencantamento; como se desenvolve propriamente este processo; e, por fim, quais seus resultados e seu papel dentro do projeto da Dialética Negativa. Palavras-chave: Adorno; Dialética Negativa; Conceito; Não-idêntico.

Dialética Negativa: A filosofia em direção ao não-idêntico

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onsiderada uma das mais importantes obras de Theodor Adorno do ponto de vista de seu diálogo com a tradição, a Dialética Negativa, de 1966, inicia-se no confronto com a questão sobre a possibilidade e a legitimidade de continuação da própria filosofia, enquanto atividade intelectual. Esta questão se coloca à medida que o fracasso dos projetos filosóficos marcados pela promessa de coincidir com a realidade terminou, senão por deslegitimar, ao menos pôr sob suspeita o papel da teoria. De fato, para Adorno, a situação da Filosofia de seu tempo estaria marcada por essa impossibilidade, ou bloqueio, de adequação entre pensamento e realidade, Delimitação do problema do “desencantamento do conceito” na Dialética Negativa

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entre Razão sistemática e Ser como totalidade e, frente a essa situação, a única possibilidade de sobrevivência da Filosofia é a partir da crítica de si mesma.

Esta autocrítica, portanto, inicia-se justamente em relação à pretensão de apreensão da realidade como todo presente nos projetos filosóficos configurados como “Sistema”, submetendo a realidade à Identidade como princípio lógico da Razão, que garante a totalidade da adequação entre pensamento e ser. Para Adorno, a filosofia que persiste como Sistema padece da ingenuidade de tratar aquilo do qual depende sua verdade como um objeto totalmente disposto e, portanto, subjetivamente determinado por uma lógica da posição, desnudada por Kant e reiterada desde então. Nesse sentido Adorno promove uma crítica à filosofia desenvolvida sob o signo da racionalidade esclarecida que, não tanto ingenuamente, quanto perniciosamente, se afasta do objeto, na intenção de compreendê-lo: A ratio que, para se impor como sistema, eliminou virtualmente todas as determinações qualitativas às quais se achava ligada caiu em uma contradição irreconciliável com a objetividade que violentou, pretendendo compreendê-la. Ela se distanciou tanto mais amplamente dessa objetividade quanto mais plenamente a submeteu aos seus axiomas, por fim, ao axioma da identidade. (ADORNO, 2009, p.27)

A razão regida pelo princípio de identidade e pela pretensão de sistema, procedendo através de uma supressão das distinções qualitativas do objeto, termina por se distanciar de sua materialidade, deixando nesse movimento o rastro de violência de uma atitude dominadora. Enquanto unidade da qual nada está fora, um sistema filosófico é representação do pensar como dominação e repressão na medida em que elimina aquilo que não se submete ao princípio de identidade (Cf. Adorno, 2009, p. 29).

Porém, é justamente o reconhecimento desse conteúdo que não se submete ao princípio de identidade que possibilita tal crítica adorniana e, dessa forma, a continuidade da filosofia é colocada em termos de um movimento em direção ao “filosofar concreto”. Quer dizer, a denúncia de que o modelo de racionalidade da modernidade se distancia do concreto, ao invés de compreendê-lo, só é possível a partir da pressuposição de um conteúdo pertencente ao objeto que não se deixa apreender pelo aparato categorial apriorístico através do qual é articulada a intenção de compreensão no corte sistemático de uma filosofia do sujeito - um conteúdo pertencente ao objeto que excede, ou se subtrai, a sua posição pelo sujeito. Assim, o desenvolvimento de uma Filosofia que se volte para o concreto significa abrir mão tanto da pretensão de se estabelecer como sistema, quanto da utilização a priori de axiomas ou esquemas dedutivos. Na tentativa de expressar o conteúdo a ser pensado, o “filosofar concreto” se realiza na medida em que a razão possa visar aquela concretude que escapa ao processo de identificação do conceito, obrigando “o pensamento a permanecer diante do mais ínfimo” (ADORNO, 2009, p.36).

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Nesse sentido, a continuidade da Filosofia apenas se justifica a partir da aproximação ao “âmbito do não-conceitual, do individual e particular” (ADORNO, 2009, p.15). E, apesar de negar o “espírito de sistema”, Adorno (2009) enfatiza que essa aproximação deve ser empreendida ainda a partir de um “espírito sistemático”, que marca a exigência de coerência e rigor do pensamento lógico e conceitual. Assim, a Dialética Negativa se estrutura a partir do objetivo de “... com meios logicamente consistentes, [...] colocar no lugar do princípio de unidade e do domínio totalitário do conceito supraordenado a ideia daquilo que estaria fora do encanto de tal unidade” (ADORNO, 2009, p.8).

II. Antinomias entre a Dialética Negativa e a atividade conceitual

Ao chamar atenção para algo que se localiza fora do conceito, Adorno promove uma crítica à própria noção de conceito subsistente na tradição filosófica que, partindo da identidade lógica como requisito para a apreensão conceitual, se configura como unidade abstrata sob aqual estão subsumidos todos os entes por ela definidos. Sua crítica dirige-se justamente a essa pressuposição de unidade/ totalidade do conceito em relação aos objetos singulares. Nesse sentido, a conceituação equipara-se a uma espécie de ilusão/encantamento que confere a si mesma uma (falsa) aparência do que é em si (Cf. Adorno, 2009, p.18), e pressupõe sua autossuficiência em relação ao objeto, determinando-o mesmo que independente de sua experiência. De acordo com esta concepção, o conceito torna-se o principal instrumento que possibilita a efetivação da tendência de dominação da razão para com os objetos sobre os quais se coloca e, mais amplamente, da vontade de dominação do homem sobre a natureza e sobre os próprios homens. Desse modo Adorno denuncia uma relação intrínseca entre a necessidade de uniformização e identificação no nível do pensamento e a indiferença e desprezo pelo indivíduo, transformando em tarefa política a crítica do caráter totalitário que subsiste na atividade filosófico-conceitual. Epistemologicamente, a recusa do princípio de identidade acaba por revelar que “os objetos não se dissolvem em seus conceitos” (ADORNO, 2009, p. 12). A referência a um conteúdo que estaria fora da unidade conceitual leva à constatação de que existe uma face do objeto que a conceituação não consegue abarcar. Marcado até então por uma pretensão de autossuficiência e, assim, dominação para com o objeto, o conceito se revela insuficiente em relação a este conteúdo individual e particular, que escapa ao processo de identificação. A isso que escapa ao conceito em sua função descritiva e que, no entanto, talvez ainda possa ser expresso, Adorno chama de não-conceitual ou não-idêntico. Na consideração deste conteúdo “não-idêntico” se realiza o pressuposto de que não há identidade total entre pensamento e ser, ou seja, entre o conceito e a coisa conceituada. Porém, é necessário observar que a identidade é negada apenas enquanto totalizada como princípio para o pensamento (ou seja, como determinante lógico Delimitação do problema do “desencantamento do conceito” na Dialética Negativa

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para o conhecimento). Quer dizer, não é o caso de que não há identidade alguma entre conceito e conceituado; o que Adorno nega é que essa identidade seja total, e que o conceito (e assim, o sujeito) defina o objeto em todas as suas propriedades. O que o pressuposto da não-identidade revela é que há limites em relação ao alcance do objeto: ele é e não é alcançado ao mesmo tempo, e essa é a contradição que constitui a realidade – e, necessariamente, dá origem ao pensamento dialético.

Por isso, não obstante sua crítica, a atividade conceitual persiste como constituinte da atividade filosófica no projeto da Dialética Negativa. Enquanto “organon do pensamento” (ADORNO, 2009, p.22), o conceito permanece como a única maneira de levar o não-idêntico à expressão – pois, de outro modo ele seria conduzido à irracionalidade e novamente desprezado. Adorno enfatiza a necessidade de aproximação ao não-conceitual, mas sem abrir mão da elaboração conceitual, porquanto “somente uma conversão do olhar teórico – não sua renúncia – [...] pode tornar relevante o que até então aparentava ser desprezível e insignificante” (CHIARELLO, 2006, p. 91).

Permanecer fiel ao seu próprio teor significa, para a Filosofia, não abrir mão da mediação conceitual (Cf. Adorno, 2009, p. 21) na sua relação cognitiva com o mundo. Dessa forma se estabelece uma relação antinômica entre o projeto filosófico da Dialética Negativa e a atividade conceitual: por um lado, critica a insuficiência do conceito forjado sob a pretensão de unidade e, por outro, assinala como indispensável à continuidade da atividade conceitual. Daí seu projeto filosófico ser caracterizado, como diz Adorno (2009), pelo esforço de ir além doconceito por meio do conceito, apesar da aporia aí engendrada. É justamente a autoconsciência desta aporia que instaura o objetivo do conhecimento como uma utopia do conhecimento: “abrir o não-conceitual com conceitos, sem equipará-lo a esses conceitos.” (ADORNO, 2009, p.17). Para Adorno, essa esperança utópica torna-se condição de possibilidade para a própria Filosofia, ainda que assumindo seu caráter aporético.

A partir dessa ambiguidade, Adorno é levado “a pensar aprópria atividade conceitual no limite de sua possibilidade” (NEVES SILVA, 2006, p. 39). Se o conteúdo não-conceitual “só pode ser visado com o instrumentário do conhecimento, por meio da reflexão sobre os seus próprios meios” (ADORNO, 2009, p.16), então, considerando o conceito como organon do pensamento (e por isso, do conhecimento), a realização de uma filosofia concreta, voltada para o âmbito do além do conceito, está atrelada a uma tarefa de reflexão crítica a respeito do próprio conceito. Isto é, se a aproximação ao não-conceitual deve ser empreendida através do conceito, é necessário se reconfigurar a noção de conceito para que possa realizar a tarefa que lhe compete: “Como o ente não é dado de modo imediato, mas apenas por meio e através do conceito, seria preciso começar pelo conceito e não pelo mero dado. O conceito do conceito mesmo tornou-se problemático” (ADORNO, 2009, p.134-135).

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III. O Desencantamento do Conceito O desencantamento do conceito, processo anunciado por Adorno já na introdução da obra em questão, seria então uma resposta a essa problematização, uma via de reconfiguração da atividade conceitual no sentido de conservá-la, porém negando a pretensão de autossuficiência com a qual o marcara, até então, a própria atividade filosófica: À consciência do caráter de aparência inerente à totalidade conceitual não resta outra coisa senão romper de maneira imanente, isto é, segundo o seu próprio critério, a ilusão de uma identidade total. [...] Chocando-se com os seus próprios limites, esse pensamento ultrapassa a si mesmo. (ADORNO, 2009, p.13)

Torna-se necessária então uma crítica imanente da atividade conceitual, no sentido de desfazer sua aparência ilusória de identidade total em relação ao conceituado.

Tendo em vista que o processo de conceituação se baseia justamente na atividade de identificação do pensamento, é irresistível que se revista pela aparência de identidade “intrínseca ao próprio pensamento em sua forma pura” (ADORNO, 2009, p. 12). Porém, diante da falsidade da identidade total entre pensamento e ser, esta aparência revela-se igualmente falsa, e a pretensão de unidade conceitual, como encanto ou mito. É necessário, portanto, o desencantamento do conceito como uma crítica imanente da atividade conceitual, promovendo uma autorreflexão sobre os resultados que alcança em relação aos objetivos a que se propõe: apenas assim o pensamento conceitual é capaz de identificar sua insuficiência necessária em relação ao objetivo de definir o objeto. Se o desencantamento do conceito é uma crítica imanente do conceito em que este se estende até seus limites, gostaríamos de destacar ao menos dois aspectos que aparecem como relevantes nesse processo, pois se aproximando de suas fronteiras a atividade conceitual depara-se, por um lado, com o primado do objeto, e por outro, com a mímesis.

A distinção de que parte Adorno entre conceito e conceituado tem como consequência para o processo de conceituação a constatação de que há uma dependência do sujeito em relação ao objeto na medida em que a elaboração conceitual apenas se realiza dentro e a partir do cenário promovido pelo não-idêntico. Se o objeto põe as condições a partir das quais ocorre o processo de conceituação, isto é, este só se realiza a partir do horizonte estabelecido pelo objeto (Cf. Adorno, 2009, p. 17), então é possível dizer que mesmo aquele conteúdo que de fato é apreendido pelo processo de identificação conceitual só alcança seu momento de verdade na medida em que é mediado pelo não-conceitual. A relação dialética que estabelece com o não-conceitual fundamenta o processo de conceituação: Delimitação do problema do “desencantamento do conceito” na Dialética Negativa

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Que o conceito seja conceito […] não altera nada quanto ao fato de estar por sua vez entrelaçado em um todo não-conceitual do qual só se isola por meio de sua reificação […]. Ante a intelecção do caráter constitutivo do não-conceitual no conceito dissolve-se a compulsão à identidade que, sem se deter em talreflexão, o conceito traz consigo. (ADORNO, 2009, p. 17)

O desencantamento do conceito seria, portanto, este momento de “se deter em tal reflexão”, de encarar esta “intelecção do caráter constitutivo do não-conceitual no conceito”. Só a partir daí é possível então negar a identidade lógica como princípio determinante da conceituação, e direcioná-la para o não-idêntico. A partir do enfrentamento da relação com o não-conceitual, que altera o sentido da conceitualidade para o não-idêntico, instaura-se a necessidade de transformação da relação epistemológica entre sujeito e objeto, em direção ao primado do objeto. Uma vez que o conceito necessariamente aponta para algo que está fora dele, quer dizer, que o conceito surge do contato com algo que difere dele mesmo, instaura-se o primado do objeto, enquanto constatação de que “a constituição impositiva da realidade, que o idealismo tinha projetado para a região do sujeito e do espírito, deve ser reportada para um espaço fora dessa região” (ADORNO, 2009, p.17), vale dizer, para o espaço da não-identidade do objeto (ou, do objeto na sua não-identidade). Assim o desencantamento do conceito contribui para a possibilidade de desfazer o impulso de dominação que forja a aparência ilusória de identidade total para com o objeto: “Por meio da autoconsciência desse fato [o fato do primado do objeto na determinação do conceito], eles [os conceitos] conseguem se libertarde seu fetichismo. A reflexão filosófica assegura-se do não-conceitual no conceito.” (ADORNO, 2009, p. 18).

Já a relação entre conceito e mímesis pode ser tomada como elemento constitutivo do processo de desencantamento à medida que a virada que propõe a primazia do objeto impele a atividade conceitual a uma relação de exposição e entrega ao objeto - o que marca sua aproximação, em certo aspecto, ao procedimento mimético. Partindo do pressuposto de que a mímesis, dentro da atividade estética, é animada pelo não-conceitual, quer dizer, é capaz de visar o não-idêntico da objetividade, então, o conceito deve abrir espaço para o comportamento mimético (mesmo que não possa ultrapassar sua condição de mediação): “O conceito não consegue defender de outro modo a causa daquilo que reprime, a da mímesis, senão na medida em que se apropria de algo dessa mímesis em seu próprio modo de comportamento, sem se perder nela” (ADORNO, 2009, p. 21). Desse modo, o desencantamento do conceito se configuraria como esse processo de contínua aproximação e afastamento dialéticos em relação à mímesis, e, mais amplamente, da filosofia em relação à arte.

IV. Resultados e Alcance do Desencantamento do Conceito

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Quanto aos resultados do processo de desencantamento, isto é, a respeito da pergunta sobre que características devem ser incluídas no arcabouço conceitual para que ele se aproxime do ideal de realização da utopia do conhecimento, propomos Mariana Fidelis Jerônimo de Oliveira

menos uma resposta definitiva que uma problematização. Em relação àquilo que seria um “conceito desencantado” fica claro que, uma vez instaurada a distinção entre o conceito e aquilo que é conceituado, a própria noção de conceito deve ser repensada fora da pretensão de esgotamento das determinações do objeto, ou seja, o conceito deve ser repensado através de uma recusa ao estabelecimento de definições. Isso não quer dizer que o conceito seja uma simples aparência em relação ao objeto, com o qual não estabeleça relação de verdade. Longe disso, seu momento de verdade existe justamente a partir daquela face do objeto que é capaz de ser apreendida pela identificação; porém fica vetada ao conceito a possibilidade de definir o objeto, porque há uma face que não se submete a essa identificação. Na medida em que o sujeito não reconhece a relação contraditória com o objeto (de que o alcança e não alcança ao mesmo tempo), se afasta de sua concretude, e se aproxima de Ideologia porque constitui o objeto apenas a partir de um ponto de vista, o da identidade entendida como total. Ao contrário, a possibilidade de conceituação do objeto aproximando-se de sua concretude é alcançada pela consciência de sua não-identidade total e, portanto, da negação determinada de sua identidade.

O conceito, enquanto instrumento do pensamento, é incapaz de se desfazer do processo de identificação, porém se desfaz de seu impulso de dominação na medida em que procede através de uma contínua negação de si mesmo, ou seja, é preciso estar sempre e novamente se negando, e nunca pronto e acabado. E é nesse sentido que Adorno afirma a necessidade de o objeto ser “inesgotavelmente proposto” (ADORNO, 1995, p. 193). Por isso talvez possamos falar em um contínuo desencantamento de conceitos: estes se encontram em permanente autonegação porque devem identificar e, ao mesmo tempo, reconhecerem-se como diferentes, insuficientes, e por isso ao mesmo tempo em que o conceito identifica o objeto, nega, e reconhece sua limitação. Por isso, uma das perspectivas que ficam abertas pelo desencantamento, enquanto processo de recolocação da atividade conceitual, é a consideração da constelação como forma de organização do pensamento conceitual que prioriza sua articulação e dependência em relação a outros conceitos: “a possibilidade de uma imersão no interior necessita desse exterior. (ADORNO, 2009, p. 141)”. Assim, o desencantamento do conceito completa-se por sua composição em forma de constelações, como possibilidade de não os hipostasiar, e assim, alcançar o horizonte da não-identidade. Nesse sentido, pode-se dizer que a categoria de constelação, como princípio composicional, “é condição de possibilidade dos conceitos sob o esquema dos modelos de pensamento.” (NEVES SILVA, 2006, p. 86).

V. Considerações finais: a importância do Desencantamento do Conceito

Por fim, deparamo-nos com a questão sobre o lugar do desencantamento do conceito dentro do projeto filosófico da Dialética Negativa, isto é, o papel que assume no sentido da realização da utopia do conhecimento. Pergunta que pode ser Delimitação do problema do “desencantamento do conceito” na Dialética Negativa

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respondida com as palavras do próprio Adorno naquela que é a única ocorrência da expressão em toda a obra: “O desencantamento do conceito é o antídoto da filosofia. Ele impede o seu supercrescimento: ele impede que ela se autoabsolutize” (ADORNO, 2009, p.19). O processo de desencantamento é necessário porquanto impede o desenvolvimento da filosofia em direção ao impulso de dominação subsistente epistemologicamente na atividade de conceituação baseada nos princípios de identidade e totalidade. Ainda que intrinsecamente conceitual, abre-se para a Filosofia a possibilidade de aproximação ao não-idêntico e não-conceitual, desde que permaneça no esforço do desencantamento de seus conceitos. Nesse sentido, é necessário destacar que o desencantamento do conceito, assim como a Dialética Negativa como um todo, permite não mais que a crítica do Estado Falso, porque revela como insuficiente e como ilusão necessária justamente aquele procedimento que identifica razão e dominação. Ou seja, não é o caso de que a Dialética Negativa seja ela mesma a via de uma experiência não-danificada com a realidade, uma vez que ainda são necessárias transformações reais que levem do Estado Falso para uma situação de emancipação, mas essa reconfiguração da atividade cognitiva contribui para a possibilidade dessa experiência.

Por isso tal processo pode ser considerado como chave de leitura e interpretação da obra em questão, uma vez que se constitui como momento incontornável do núcleo de transformações necessárias que resguardam a possibilidade de sobrevivência da própria filosofia. E, nesse sentido, o desencantamento do conceito pode ser tomado como momento central no desenvolvimento do projeto filosófico adorniano, na medida em que representa e expõe de forma ainda mais acentuada o caráter aporético que perpassa todo seu projeto filosófico (falar através de conceitos sobre o não-conceitual), concentrando essa tensão dialética no interior da elaboração conceitual.

Referências

Obras de Theodor W. Adorno

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CHIARELLO, M. Natureza-morta: finitude e negatividade em Adorno. São Paulo: Edusp, 2006.

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