Demarcação e Gestão Ambiental e Territorial de Terras Indígenas (TIs): o futuro por um fio

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Demarcação e Gestão Ambiental e Territorial de Terras Indígenas (TIs): o futuro por um fio. “As vítimas são sempre os primeiros a saber como o sistema opera” (Anuário 1988 do IWGIA - Grupo de Trabalho Internacional para as Questões Indígenas).

O aniversário de um ano de decretação da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (PNGATI – Dec. nº 7.747 de 05.02.2012) ocorre em uma conjuntura lúgubre: o luto pelo segundo assassinato de indígena em confrontos com a Polícia Federal, em menos de sete meses – primeiro um Mundurucu, em novembro de 2012, e há dias, em maio, um Terena – em diferentes circunstâncias. Essa melancólica coincidência é sintoma dos atuais impasses da política indigenista – de resto, periférica na agenda dos sucessivos governos (sejam mais ou menos “populares” e/ou “democráticos”) – e colocam em grave risco a consolidação da PNGATI. A atenção que a PNGATI galvaniza e o interesse que desperta entre os povos indígenas, seus aliados e parceiros no governo e fora deste, deve-se, em larga medida, ao fato dela ser, hoje, praticamente a única agenda positiva da política indigenista – em um contexto de refluxo e/ou inércia das políticas de atenção à saúde e de educação diferenciadas endereçadas a esses povos. A PNGATI foi elaborada de modo coletivo e participativo, por meio de um grupo de trabalho interministerial (GTI) paritário, composto por representantes do governo e do movimento indígena, e após uma série de consultas públicas regionais com os povos indígenas, suas comunidades e associações. Esse processo levou cerca de dois anos e foi modelado a partir de experiências anteriores de construção coletiva, quais sejam, a da formulação do Projeto de Gestão Ambiental e Territorial de Terras Indígenas (GATI/FUNAI PNUD BRA 09/G32) e a da elaboração da proposta do novo Estatuto dos Povos Indígenas conduzida no âmbito da – hoje inerte – Comissão Nacional de Política Indigenista. O fato da proposta do novo Estatuto estar mofando em alguma gaveta bolorenta do Congresso Nacional e do Decreto nº 7.747/2012 ser uma versão depauperada da minuta de decreto originalmente submetida pelo referido GTI ao Palácio do Planalto em novembro de 2010 (onde foi revisada de ponta a cabeça ao longo um ano e meio até ser finalmente promulgado), é só um sintoma das limitações dos processos participativos na formulação de políticas públicas no país. Apesar dessas limitações, reconhece-se a PNGATI como mais um passo em um longo processo de conquistas emancipatórias protagonizado pelos povos indígenas no país: desde a emergência do moderno movimento indígena, nos anos 1970; passando pela mobilização em prol da Constituição Cidadão de toda a legislação infraconstitucional e internacional relativa à garantia e promoção de seus direitos (territoriais, culturais e outros), desde meados dos anos 1980; até a concepção dos programas de apoio à demarcação de TIs e de fomento a iniciativas indígenas de proteção territorial, regeneração cultural e atividades produtivas, a partir de meados dos anos 1990. Nesse período se avançou muito no reconhecimento dos direitos territoriais indígenas, de quilombolas e demais povos e comunidades tradicionais, movimento este que é parte e parcela do processo mais amplo da moderna democratização da sociedade brasileira. A PNGATI se alicerça em tais conquistas e, por isso mesmo, conta com o apoio ativo de várias organizações de distintos setores da sociedade em sua implementação. Comprometer tais conquistas é, portanto, fragilizar toda a estrutura em que a PNGATI se assenta e pode fazê-la ruir como um castelo de cartas. Assim sendo, é com profunda inquietação que assistimos hoje a um movimento intencional de desmonte de todo esse arcabouço, do marco regulatório às instituições e práticas administrativas concernentes a povos e terras indígenas no país. Tal movimento é visível para o observador mais palmar em normas recém-editadas e em inúmeras proposições legislativas que hoje tramitam no

Congresso Nacional e que têm o claro intuito de desconstituir os direitos territoriais indígenas, tanto no plano constitucional, quanto no da legislação infraconstitucional – seja simplificando o procedimento de licenciamento ambiental de grandes obras, seja alterando todo o procedimento de demarcação de suas terras, seja liberalizando a exploração de recursos naturais nas mesmas (como no caso da mineração), seja tornando possível a posse indireta das TIs à produtores rurais na forma de concessão, entre outras medidas. Que tais proposições sejam apresentadas e defendidas por representantes dos interesses econômicos cujos planos de expansão se projetam sobre as terras públicas ainda disponíveis – entre as quais as TIs, as tituladas para os quilombolas, as reservadas para outros povos e comunidades tradicionais, e as unidades de conservação – é compreensível, ainda que inaceitável. Que elas avancem, contudo, com a cumplicidade silenciosa, quando não com a conivência ativa das autoridades de um governo que se apresenta como “democrático e popular” e comprometido com “um país de todos”, é sinistro. A Confederação Nacional da Agricultura (CNA) desejar que o governo suspenda todos os procedimentos de demarcação em curso no país, até que o Supremo Tribunal Federal julgue os embargos de declaração propostos na Petição nº 3.388-4 (processo que trata da TI Raposa/Serra do Sol), é gramatical, ainda que pavoroso – pois significa instar o Estado a desobrigar-se temporariamente de um mandato constitucional (já que compete à União demarcar as TIs, proteger e fazer respeitar todos os seus bens – Art. 231 da CF/1988). Seria mais ou menos como suspender, por exemplo, a vigência do Art. 228, que determina a inimputabilidade penal dos menores de dezoito anos, até que se concluísse a tramitação no Congresso das duas propostas de emenda à constituição (PEC), que dispõem sobre a redução da maioridade penal. Também é previsível que a CNA minta descaradamente, contra todas as evidências empíricas, ao dizer que os estudos de identificação de TIs conduzidos pela FUNAI não sejam públicos, nem acessíveis – quando todas as etapas do procedimento são, por força da norma, tornadas manifestas por meio de atos formais publicados nos DOU e DOE, sendo facultado o contraditório em todas as fases e havendo previsão legal da participação de representantes dos entes federados (estados e municípios) nos estudos de identificação e delimitação de TIs. É igualmente previsível que a CNA lance tais estudos na vala comum da suspeição, por sua suposta falta de isenção e pelo emprego de critérios subjetivos, demonstrando desconhecimento crasso dos procedimentos teórico-metodológicos das diferentes disciplinas postas em jogos nos estudos de identificação – cujos grupos técnicos instituídos pela FUNAI são, por definição, multidisciplinares, envolvendo, comumente, o concurso de antropólogos, profissionais das ciências da terra (geógrafos, geólogos, engenheiros agrônomos e/ou florestais) e/ou da vida (biólogos, ecólogos), via de regra oriundos de universidades e institutos de pesquisa, além da colaboração usual de agrimensores, cartógrafos e técnicos do INCRA e/ou dos institutos de terras estaduais (especialistas em questões fundiárias). A ideia de que é necessário ouvir outras instituições e especialistas é, assim, supérflua porque redundante, posto que distintos saberes e instituições já se fazem representar nos grupos técnicos tal como eles são rotineiramente compostos. É assombroso, contudo, que o governo, por meio da Ministra-Chefe da Casa Civil e do Ministro da Justiça (MJ), caia nessa esparrela, evidenciando ou desconhecimento desses elementos básicos (o que é especialmente grave no caso do segundo), ou intenção dolosa. Mais grave ainda é ter-se decidido suspender os procedimentos de demarcação em dois estados da federação, Paraná e Rio Grande do Sul, nos quais o Artigo 231 da Constituição Federal simplesmente deixou de vigorar – sabe-se lá desde quando exatamente e por meio de que inédito dispositivo tal determinação se materializou. Ao fazerem isso, subordinam o mandato constitucional à vontade dos governos de ocasião, retardando intencionalmente e/ou renunciando-se a cumprir com a sua responsabilidade histórica de fazer valer os direitos coletivos das minorias, abandonando-as à sanha dos seus detratores. Tudo isso, como de

praxe, é contrafeito na linguagem benigna de que é preciso mudar e aperfeiçoar o procedimento de demarcação, algo que nos acostumamos a ouvir desde 1983 – desde quando referido procedimento foi modificado pelo menos quatro vezes. Em todas essas mudanças normativas do procedimento de demarcação de TIs há algo em comum, que já se vê repetir nos “estudos” que o governo Dilma fará até o final de junho nesse sentido: a completa ausência de consulta aos diretamente interessados nessa matéria, os povos indígenas, cujos direitos territoriais são materializados por meio desse procedimento. Sendo que agora com o agravante de que, tendo ratificado a Convenção nº 169 da OIT em 2002, o Estado brasileiro se comprometeu a “consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados e, particularmente, através de suas instituições representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente” (Art. 6º) – e não há nenhum sinal de fumaça de que isso esteja ocorrendo agora. São igualmente supérfluas porque redundantes as exortações de ambos os Ministros de que, no procedimento de demarcação de TIs, é necessário garantir o direito de manifestação das partes interessadas, o pronunciamento de especialistas e de outras instituições, e outras platitudes análogas. Como dito antes, tudo isso já está de algum modo previsto no procedimento estabelecido pelo Decreto nº 1.775/1996 e na prática administrativa rotineira da FUNAI nessa matéria. Fazer um processo bem feito, como têm urgido recentemente ambos os Ministros, não deveria implicar no esvaziamento da FUNAI e na fritura de seus dirigentes – o que ambos têm feito em seus pronunciamento públicos; mas, ao contrário, em garantir para esta, seus técnicos e colaboradores, condições adequadas, dignas e seguras para o desempenho de suas funções, com quadro de pessoal e dotações orçamentárias compatíveis à magnitude do desafio. Deste modo, são assaz preocupantes as informações que circulam, segundo as quais o MJ teria determinado à FUNAI que esta paralisasse os procedimentos de demarcação de TIs e que o Ministério estaria constituindo internamente uma instância revisora para analisar os referidos procedimentos – sem que estejam claros a previsão legal dessa instância, sua composição (os índios, por exemplo, participarão dela?), em que momento do procedimento de demarcação ela incidirá, qual o seu lugar na hierarquia deste (o que inclui a definição da relação desta com a própria FUNAI) e o alcance do seu poder revisor. Apesar da aparência técnica que se quer dar a essa instância, corre-se o grave risco de se reeditar um dos dispositivos mais intransitivos da transição democrática: o famigerado “grupão”, i. é, o grupo de trabalho interministerial que durante quase uma década, entre 1983 e 1992, funcionou como instância de incidência e controle políticos sobre os procedimentos de demarcação de TIs no Brasil, composto por representantes de um conjunto de órgãos hoje já extintos e dos quais ninguém tem saudade (Secretaria Geral do Conselho de Segurança Nacional, depois Secretaria de Assessoramento da Defesa Nacional da Presidência da República, Ministérios do Interior e Extraordinário de Assuntos Fundiários). Ao se propor constituir tal instância revisora, o Poder Executivo projeta um espectro de suspeição sobre todas as demarcações já concluídas e saneadas – ora, exatamente as terras cuja gestão a PNGATI tem como objetivo apoiar – insinuando assim uma cumplicidade do governo para com a estratégia dos que reivindicam o poder de “ratificar as demarcações já homologadas” – tal como previsto na PEC 215 como competência exclusiva do Congresso Nacional. Concluindo, o ambiente de insegurança jurídica que se está produzindo de modo artificial em torno das TIs, tem extraordinário potencial de minar todos os esforços recentes dos povos indígenas, suas comunidades e associações, visando à gestão ambiental e territorial sustentável de seus espaços vitais. Desobrigar-se do compromisso para com a defesa rigorosa dos direitos indígenas e dos arcabouços legal e institucional que os sustentam, calando-se diante das proposições legislativas que visam alterálos e da elaboração a portas fechadas de novas regras para a demarcação de TIs pelo Poder Executivo,

processos nos quais a participação dos próprios povos indígenas tem sido sistematicamente vedada (quando deveria ser garantida), é contribuir para a erosão dos alicerces da PNGATI, abandonando-a a um destino miserável e desonroso: o de se transformar em mera propaganda institucional de governo em conferências internacionais de sustentabilidade, uma cortina de fumaça para dissimular a desconstituição dos direitos indígenas no país – quando ela deveria ser mais um ingrediente para o enfrentamento desse cerco. Brasília, 05 de junho de 2013 IEB (Instituto Internacional de Educação do Brasil)

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