Democracia, Constituição e realidade

May 29, 2017 | Autor: J. Leite Sampaio | Categoria: Direito Constitucional, Teoria da Constituição
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RAUL MACHADO HORTA

O federalismo cooperativo exprime inovadora concepção federal de nossos dias. Substituiu o retraimento e as reservas nas relações intergovernamentais do federalismo clássico pela cooperação entre a União e os Estados, por meio da ajuda financeira, a atuação de &pás de desenvolvimento regional e a participação das unidades federadas em parcelas da tributação da União, ou das entidades municipais nos percentuais da arrecadação estadual, como se pratica no federalismo brasileiro. A implantação de Comunidades, agregando Estados soberanos, para realizar os objetivos comunitários de nova organização internacional, tornou-se, também, responsável pela redução da competência monopolística da União ou da Federação, no domínio das relações internacionais, de forma a permitir o acesso do Estado-membro às relações desse nível, a nteriorrnen I e deferidas, pela Constituição Federal, com exclusividade, ao Governo da União.

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A mudança de concepção no quadro das relações internacionais distancia o federalismo contemporâneo do federalismo clássico e insere o Direito Constitucional de nossos dias no universo desafiador da globalização. José Adércio Leite Sampaio Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela UFMG. Professor de Graduação e Pós-Graduação da PUC/MG. Procurador da República.

Democracia é unia daquelas palavras que se referem a muitos sign i cados, ora considerados demasiadamente óbvios, ora obscuros ao extremo, desestimulando, em qualquer forma, incursões .teóricas mais aprofundadas. Porém, de tanto dizer, democracia finda às vezes por dizer nada. A ponto de a coragem teorética de investigá-la virar um imperativo e um desafio obstinado. Mas é 'preciso estar preparado desde a saída para abrir mão de qualquer recurso a mapas "noumenthis" ou a bússolas de conceitos a priori. Ao contrário, o estudioso que sucumbe ao desafio tem que se deixar conduzir pela seiva da história, tentando discerni-la (des-velá-la), como sugere Dallmayr (2001), na narrativa de um suposto autogoverno popular realizada como um "conto" sobre democracia (I). Vê-se, no entanto, que a aventura democrática não oferece monopólio a um

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sentido exato a posteriori, sendo lida e concebida de tantas maneiras quanto sejam o olhar, o sentimento, e a relação que exista entre o intérprete e seu objeto de estudo e encantamento ( II). Mas a empreitada ainda precisa prosseguir, com vistas a situar as várias leituras nos processos existenciais de uma comunidade concreta, como a nossa, processos pretensamente guiados pela Constituição (III).

italianas a partir de 1100 d.C, especialmente nos séculos XIV e XV. Retém-se'em comum nessa historiografia, de maneira mais ou menos esparsa, a idéia de alternância no poder, o governo das leis, a igualdade perante a lei, em meio a um léxico comum, trolha?, Res publica, demos, populus, eleições. O Medievo, como se sabe, embora abrisse aqui e ali espaços para que florescesse, do ponto de vista filosófico, o nominalismo ocanniano e, do ponto de vista político, a defesa cia soberania popular por Marsílio de Pádua, foi marcado por formas políticas pouco simpáticas à plebe e guiadas por objetivos materiais, que desde Aristóteles, diziam respeito à"boa vicia" e "ao bem comum", imersos num cosmos organizado por Deus. Sem falar da defesa agostiniana de vida contemplativa sobre a vicia ativa.

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I. UM CONTO SOBRE A DEMOCRACIA A palavra democracia foi empregada pela primeira vez por Flerodoto no ano V a.C. Demos (povo) e Kratein (governar) ou kratos (poder político) indicavam uma forma especial de governo do povo.' Desde então passou a ser usada • com 'muita freqüência na literatura ocidental. Mas, por mais incrível que possa parecer, a história do Ocidente tem sido marcada mais por episódios de democracia do que por uma forma permanente de a plebe governar. As exceções estão presentes nos Séculos V e IV a.C. na Grécia' na Res Publica romana, em algumas experiências de aldeamentos vikirtgs da alta Idade Média e de cidades-Estados

' • Platão (1960), após renunciar a uma distinção séxtupta das formas de governo, passou a tratar apenas de duas, o governo de uma autoridade soberana por direito próprio (monarquia) e o governo do povo, mas por esse delegado a autoridades (policia). Aristóteles (2000) fala em monarquia como governo de um, democracia (equivalente à poliria) como governo do povo, e a aristocracia, governo dos melhores. Montesquieu (2002) distinguia entre governo hereditário, subdividido em despótico (monarquia absolutista) e governo monárquico (monarquia constitucional), e governo republicano (democrático ou aristocrático). Clístenes em 507 a.C. fundou a"democracia ateniense". Pouco antes, Iságoras, com apoio da aristocrática Esparta, expulsou a família de Pisístiato do poder e tentou construir em torno de si um novo governo. O povo de Atenas se rebelou, marchando contra a Acrópole, onde se refugiavam Iságoras e seus adeptos. A democracia que surgiu desde então foi marcada por lutas imperiais, além de ter sido sempre desafiada pela oligarquia espartana. Apenas no século V a.C. surge um período de pacificação, sobretudo na época de Solou, o legislador dos ricos e dos pobres", e no apogeu dos tempos de Péricles. As linhas gerais da cidade eram dadas pela igualdade dos cidadãos perante a lei (em meio à classe dos não-cidadãos formada por escravos, mulheres e estrangeiros) e pela dedicação cívica ao espaço público para solução dos problemas comuns. A democracia direta se dava com assembléias populares periódicas, que reuniam entre 6 mil a 8 mil pessoas, deliberando por maioria dos votos dos presentes. Para condução dos negócios ordinários, especialmente no período em que dão havia reuniões, eram sorteados cidadãos, ditos magistrados, anualmente. A área militar ficava entregue a generais eleitos para um man. dato de um ano. Cf. Loizou e Lesser: 1990; Brisson. 2000.

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Foi no século XVII e notadamente no século XVIII com o seu turbilhão de mudanças, precipitadas pela Renascença e aprofundadas com a virada racional ista do cogito cartesiano, que se resgatou o sentido de governo do povo, muito embora duas observações precisem ser feitas. Grandes pensadores modernistas e revolucionários não pareciam seduzidos pelos encantos das formas democráticas. Para Diderot, seria a propriedade que definiria o cidadão e até Sieyès, que algum tempo depois passaria a defender a democracia representativa, chegou a afirmar que a França não se deveria converter em um Estado democrático. Aliás, os doutrinários franceses da Monarquia de Julho repudiavam a forma anárquica de governo que propiciava a demagogia e a perda de sentido de unidade nacional (Guizot, Constam). Em terras norte-americanas, Madison (1961) se mostrava demasiadamente reticente com o poder cia maioria (de pobres) sobre a minoria (de ricos) ucom o efeito desagregador das facções. Eles preferiam o emprego da palavra "república", com instrumentos cie representação das classes abastadas, à "democracia", então, identificada como o "governo da multidão e da desordem", como "panem et circenses". Ou quando muito como uma forma política sem condições cie viabilidade prática. Montesquieu, escrevendo em 1754 (2002), até a via com bons olhos: unia forma de governo popular e virtuosa do passado. Mas a cultura de seu tempo já não mais abria espaço para reunião de pessoas decididas a resolver o problema do bem comum, pois todos visavam a interesses comerciais, à riqueza e à fama particulares. De outro lado, a sobrecarga do virtuosismo democrático em sociedades completas e as oportunidades que se abriam aos demagogos tornavam a democracia uma alternativa arriscada e impraticável. Por isso mesmo, triunfaram, na prática, modelos políticos mais estáveis, dominados por elementos aristocráticos, como na Inglaterra, ou oligárquicos, corno na Polónia e Suíça. Parecia-lhe forma mais :ide' quada a seu tempo uma monarquia com poderes limitados ou uma aristocracia hereditária. Rousseau (1991), que fora outro inspirador dos revolucionários —

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mais na França que nos Estados Unidos —, professava um certo descrédito na civilização que embrutecia os homens e defendia sociedades políticas menores onde fosse possível a prática da democracia direta, marcada por vínculos de solida-, riedade. Em sociedades maiores, a democracia não tinha chances.

uma vontade geral, absoluta, indivisível e inalienável, a teoria voluntarista de Rousseau foi uma referência muito mais mítica do que real.

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Boa parte dos iluministas defendia uma espécie de "despotismo esclarecE r' do", em que a arte de bem governar em prol do interesse geral abriria as fronteiras para tempos mais promissores. Nessa perspectiva de governo a favor do povo; mas sem povo, estiveram engajados nomes como Voltaire, Diderot e d'Alembery Desilusões com resistências dos déspotas letrados levaram-nos a abandonar 'o projeto e a pensar em uma direção de base mais popular. De toda forma, estava posto o problema: como superar os obstáculos das formas institucionais jurídicas e políticas estabelecidas? Na Inglaterra, assumiu-se o modelo evolucionista em que as três ordens medievais (coroa, nobreza e povo), encarnadas em instituições governamen2 tais (monarca, Câmara dos Lordes e Câmara dos Comuns) representativaà clO ideal de "constituição mista", foram convergindo para o centro gravitacional de um parlamento supremo, fundado na idéia de uma "constituição das tradi ções" e "do poder", oriunda de um acordo entre as ordens e não de um ato de soberania do povo (Sampaio. 2003:45 et seq). Também por lá a palavra demo) cracia não era a preferida e o processo de "democratização" foi lento, tanto que por volta de 1860, a Câmara dos Comuns era quase inteiramente composta pcir' parentes dos membros da câmara dos lordes (cf. Ryan. 2001:121). O modelo revolucionário foi seguido pela França e pelos Estados Unidos; por meio de uma adoção particular, no primeiro caso, da doutrina de Rousseau; no segundo, das lições de Locke; e, em ambos, dos trabalhos de Montesquieu Com efeito, Montesquieu influenciou, do lado francês, Marat, Mercier, Brissot e Saint-Just; e do lado norte-americano, Thomas Jefferson e os federalistas. Mas eles leram Montesquieu com os mesmos olhos enviesados com que Montesquieu olhara a Inglaterra, pois se lhe coubera o mérito de diferenciar as três funções dé governo, não tratou propriamente da independência orgânica com atribuição específica de funções a cada uma delas, tampouco defendeu um poder represen-, tativo superior aosoutros..Foram os enciclopedistas, na França, e os federalistas, nos Estados Unidos, que inventaram o mito da separação dos poderes de Montesquieu (cf. Althusser. 1964). Mesmo Rousseau foi apropriado pelos iluministas, porque, a "vontade geral" não fora concebida por eles como a vontade direta de todos, mas como um jogo de maiorias representativas que o genebrino tanto criticara. A não ser com os jacobinos que buscaram retomar o sentido de

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A revolução americana objetivara, na visão do pai fundador Thomas Jefferson (1976), atiçar o "fogo sagrado da liberdade e da democracia". Seu ideal de cidadão era o Yeomar Farmer, o fazendeiro republicano. Não havia, contudo, outros nomes de expressão teórica que impulsionassem o fervor democrático. Havia, sim, práticas coloniais de voto relativamente consolidadas.' Não que não se houvesse herdado da Inglaterra a m democracia das posses", com tons lockianos, mas em terras tão extensas a posse era aberta a todos e havia à época uma certa igualdade material entremeada com a escravidão e com elementos da "aristocracia colonial", tanto que Tocqueville (1987) se referira aos Estados Unidos como uma nação de classe média. Por lá também a palavra democracia era envolta com preconceitos. O representante da Virgínia, Edmund Randolph, chamava atenção para os acontecimentos na França que denotavam como a democracia poderia descambar para a violência e ingovernabilidade. O temor da plebe levou à adoção de um sistema político excludente de grande parte da população adulta e de formas eletivas indiretas para o senado e para a presidência da República. A democracia norte-americana era, no fundb, uma república oligárquica." Na Europa, a restauração veio reforçar o sentido negativo da democracia, identificando-a também com o Terror. O romantismo, todavia, abriu as portas para um povo glorioso que deveria ser respeitado nem que fosse à custa de barricadas e conspirações militares. Levantaram-se as bandeiras da liberdade de imprensa e de consciência, de universalização do voto, de afirmação da democracia, enfim, com termo e como prática. Aspirava-se a unia forma política que

A revolução norte-americana, para alguns autores, é o exemplo de .co mo o constitucionalismo e a democracia são tributários do pensamento puritano em pelo menos dois aspectos: no sentido contratual, levando-se em conta a idéia de que o povo firmou um pacto com Deus (tese congregacionista de Robert Browne. A Booke wich Shweth the Life and Manners of All True Christians, 1582) que marcou depois, no plano político, a idéia de poder constituinte e de constituição escrita; além do sentido democrático do poder supremo do povo e de eleições, primeiramente no período inglês de Cromwell, depois com os planlation covenánts dos colonos norte-americanos que, nos moldes dos pactos eclesiásticos defendidos por Browne, fundaram formas de governo populares firmados em documentos escritos como a Fundamental Orders of Connecticut de 1638-39. Cf. Sampaio. 2002a 11 et seq. 4

Sobre as bases do republicanismo renascentista na formação do pensamento norte-americano, v. o texto adiante, mas antecipadamente: Pocock. 1975; Bailyn. 1992.

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tinha por base a "nação", palavra de origem romana que era identificada com o antigo terceiro estado, ou com o povo - contraposto a outras ordens no passado e agora herdeiro da soberania que fora de Deus e dos Reis. A nação também veio a ser convertida em "pátria", com as lutas travadas contra outras nações. A Nação-povo era, portanto, aface interna da soberania e a base da democracia do povo eleitor, enquanto a Nação-pátria era o símbolo da soberania externa e do povo guerreiro. Como o povo era o mesmo, logo a democracia se converteria,e i n nacionalismo (Baaeque. 1995; Malia. 2001;73). 5

Estados Unidos em 1870, 6 na Alemanha em 1871, na Inglaterra em 1884, no Chile em 1885, no Brasil em 1889, na Grécia em 1894, na Rússia de 1905, na Finlândia em 1906, na Áustria de 1907, na Suécia em 1909, em Portugal em 1910, na Argentina em 1912, na Noruega em 1919, no Peru e Canadá em 1920 e no Japão em 1925.0 voto das mulheres foi estabelecido pela primeira vez no Estado norte-americano de Wyoming em 1869; seguindo-se por Nova Zelândia em 1893, Austrália em 1901, Finlândia em 1906, Noruega em 1915, Holanda em 1917, Alemanha em 1918, Áustria e Holanda em 1919, Estados Unidos em 1920, Irlanda em 1923, Espanha em 1931, Brasil em 1932, na França de 1944, na Itália e Japão em 1946, Argentina e Venezuela de 1947, Chile em 1949, Índia em 1950, Suíça em 1971, Portugal e San Marino em 1974. Sabemos também que os partidos políticos eram renegados pelos revolucionários (Washington e Saint-Just, por exemplo). Todavia a prática política terminou por reconhecê-los como elemento indispensável à democracia. Nos Estados Unidos, Andrew Jackson fundou em 1928 o primeiro partido político . - o Partido Democrata, seguido tempos depois pelo Whig Party que se denominaria depois Partido Republicano.

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Somente por volta dos anos quarenta do século XIX as demandas democráticas se convertem em programas políticos amplos. A escravidão foi abolida na Inglaterra em 1833, nos Estados Unidos em 1867 e no Brasil em 1888. A universalização do voto começou com a inclusão dos homens brancos nos Estados Unidos em 1850, dos adultos masculinos na França, episodicamente em 1792 e 1848, e como regra em 1875, Uruguai em 1830, Suiça em 1848, na Colômbia em 1853, na Austrália em 1856, Venezuela em 1858, Equador em 1861,

"Povo" é outro conceito ambíguo. Para Burdeau (1987:107, 112 et seq), povo foi urna noção elaborada a partir da realidade, mas com fortes propásitoS políticos na estruturação do Estado constitucional, podendo assumir quatro sentidos: a) concepção francesa "povo-nação" é um corpo coletivo (esquematizado racionalmente na nação), formado por indivíduos (qualificados esquematicamente como cidadãos) que possuem duplo título, de serem nacionais e de serem unidos por uma identidade natural; b) concepção anglo-saxônica - coletividade unida pela prática das liberdades; c) concepção fascistapovo é uma comunidade espiritual e real (povo-comunidade) que, como define o art. 1° da Carta del Lavoro de 1927, "possui fins, vida e meios de ação superiores aos dos indivíduos e grupos que a compõem. Constitui uma entidade moral, política e económica que se realiza integralmente no Estado fascista"; e d) concepção marxi s ta - povo é a classe proletária em que se realiza plenamente a consciência emancipadora do homem em seu contexto real de vida. Para 131ackenforde (2000), povo é o "conjunto de seres humanos que são reunidos no seio do Estado no que respeita à unidade de ação e quem juridicamente lhe dá suporte" (P. 283): Há uma discussão européia, particularmente desenvolvida na Alemanha, entre a modernidade de uni povo homogéneo, fixado em um território (Crina m. 1995) e pós-modernidade de um povo como um complexo de segmentos sociais que resolvem habitar um mesmo território sob premissas jurídicoconstitucionais de regulação da vida comum (Habermas. 1995). Paulo Bonavides (2001:51) distingue três dimensões conceituais de povo: (a) política - de participação nos processos de deliberações coletivas vinculantes; (b) jurídica - da cidadania vinculada a urna determinada ordem jurídica e (c) sociológica-que enfatiza os laços étnicos e culturais constitutivos da "consciência nacional" e da equiparação entre povo e nação. Ver ainda Müller. 1998.

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A democracia que já se havia unificado com os direitos liberais entre os séculos XVIII e XIX, surge na'virada do século XIX para o XX como uma democracia parlamentar e como vimos tendentemente universal (Duverger. 1985). Essa democracia política ainda haveria de se completar com elementos sociais igualizantes, em uma procura existencial de justiça, fosse por meio da generalização e gratuidade do ensino fundamental, fosse com a franquia da constitucionalização dos sindicatos e do reconhecimento dos partidos operários. Esse processo, todavia, gerou uni sentido ambíguo de democracia não-liberal, totalitária, de conquistas sociais e nacionalistas impostas de cima para baixo e com bases organicistas (Rússia de 1917 e, especialmente, Itália de 1922 e Alemanha de 1933). 7

A Emenda Constitucional n. XV de 1870 proibira a,discriminação em razão de raça, cor ou anterior condição de escravo. Todavia, em muitos Estados do Sul, criaram-se barreiras tributárias e testes educacionais que terminaram por excluir os negros dos processos eleitorais durante quase um século. Por isso, muitos autores entendem que a universalização do voto nos Estados Unidos somente ocorreu em 1964 com a supressão de taxas de alistamento (Emenda Constitucional n. 24) e com as leis sobre direitos civis, destacando-se a Voting Act de 1965 que proibiu os testes educacionais. Cfr. Duhamel. 2001:184. A Europa foi tomada por uma onda autoritária: Pilsudsky na Polônia,l-lorthy na Hungria, Primo de Rivera na Espanha, Carmona em Portugal, Dollfuss na Áustria. Também a América Latina é sacudida por essa ventania, por exemplo, com Getúlio Vargas no Brasil. Com uma perspectiva histórica elucidativa: Moore. 1966.

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Para muitos teóricos, a modernidade trouxe a semente do totalitarismo ao conceber o homem como centro de tudo, sem fronteiras morais fora do próprio homem, e a democracia como vontade majoritária de qualquer conteúdo, inclusive o de legitimar um tirano ou o genocídio. Assim também a crença em uma razão científica se transformou em um produto de emancipação humana como razão natural de raças ou classes superiores. Vaclav Havei, nesse sentido, chama-o de "espelho convexo de toda civilização moderna", produto inevitável do racionalismo. 8 Na visão de Malia (2001:73), o "totalitarismo é nem mais nem menos um produto da era da democracia universal". Esse pensamento é em parte tributário da leitura de Talmon (1956), para quem o caráter individualista, burguês, imperial e relativista da democracia oitocentista foi que desaguou no "totalitarismo democrático" com pretensões de verdades unânimes e absolutas.

estatismo, pela absorção da esfera privada e pelo suposto domínio 'da"raçaarittrirf1 ou da "classe proletária", identificadas como povo, tão escolhido quantolosfisi raelitas. A lei não tinha mais a pretensão de uma previsão estável das condutas humanas, pois se identificava com a própria ideologia e expressão do movimentO de combate ao "inimigo objetivo" da história, da natureza, da classe ou da raça, que não tinha possibilidade de redenção, havendo de ser exilado em campos de concentração, fuzilado ou dizimado em câmaras de gás (Brademos. 2001:209).

De fato, a "democracia" socialista e a "democracia" nacionalista buscavam a • justiça social e a auto-estima nacional, abalada a primeira por uma crise econômica de grandes proporções e a segunda pelos espólios dos derrotados na chamada "I Grande Guerra pela Democracia': Marcam-se ambas as formas pelo unipartidarismo, pela propaganda oficial, pela restrição da liberdade de imprensa, pelo

Seja corno for, mostra-se hoje contraditório reputar democrático um regime total, porque a memória relembra a tragédia do racismo e da prepotência stalinista, e traz à tona a idéia de democracia como regime do equilíbrio entre liberdade e igualdade, sob o mediana da linguagem constitucional. A democracia requer, portanto, a base racional e uma busca de validade intersubjetiva, ao contrário do totalitarismo, que desvirtua propósitos racionais com mentiras panfletárias em nome de projetos coletivos desenvolvimentistas e igualitários. Mas essas frases, sob o ângulo da modernidade tardia, parecem esconder o "ser do ente" heideggeriano. O pensamento político moderno, embora laico e antimetafisico, criou uma ontologia que apenas substituiu outra. Povo, nação e Estado viraram, como bem anota Leford (1988), categorias universais e essencialistas, substancializando, como antes, o espaço público, a polity em que se opera o mise-en-scène da política (estratégias, personagens e eventos reais), confundindo ambas as noções e abrindo o caminho para fundamentalismos totalitários. Laclau e Mouffe (1985) já se haviam dado conta de que o marxismo-

"States grow ever more machine-like; people are transfonned into cast of extras, as voters, producers, consumers... In politics, good and evil, categorias of the natural world — and therefore obsoleta remmants of past — lose ali absoluta meaning; the sole method of politics id quantifiable success 1.. .] This impessoal power has achieved its most complete expression in the totalitarian systems 1... ). They are a convex mirror of ali modero civilization. They are, most of ali, a convex mirror of the inevitable consequentes of rationalism, a grotesquely magnified image of its own deep tendencies, an extreme outcropping of its own development and ao ominous product of its own expansion." Havei. 1988: 388-389. Interessante também a leitura de Giorgio Agaben (2002), que relê a história da política como sendo uma história do homem ou categoria do homem que se insere, como nos romanos no interior e no exterior do sagrado (Mana sacer), como uma "entidade" do indiferenciado, ao mesmo tempo renegado pela dimensão jurídicopolítica e tipificado ou qualificado por essa dimensão: a 'doutrina da soberania, se permite pensar em poderes políticos legítimos, porque representativos de todos, termina entregando o destino do homem ao Estado. 0 soberano é boroa sacar, porque pode decretar o estado de exceção, segundo fórmulas jurídicas, ou mesmo suspendê-las para se arvorar de poder constituinte; assim como os condenados e o povo o são. O descumprimento da lei é sua condição de validade. Povo é a totalidade e identidade, mas é também o que há de mais fraco e de excluído: é conceito ambíguo, pois "não pode ser incluído no todo de que faz parte". Semelhantemente, os campos de concentração serão o campo do indiferenciado de um outro homo sacer, o judeu, um "povo não povo".

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O intervalo dessa antinomia seria, em parte, superado com o fim da "II Guerra pela Democracia", remanescendo, sem embargo, a concorrência entre as várias faces da democracia liberal e o apelo igualitário das "democracias populares" que só se resolveria com a queda do muro de Berlim' e o suposto triunfo da liberdade e do mercado sobre o Estado (Pukuyama. 1992).

Essa é uma forma muito sucinta de apresentar um período complicado pelo domínio da guerra fria. Do lado soviético, continuavam os expurgos embora em menor grau, e sempre que necessário intervinha em países-satélites quando se desenhava um projeto mais ou menos democrático como foi o caso da Hungria de 1956 e da Tchecoslováquia em 1968; nos Estados Unidos, o clima anticomunista colocou em xeque as estruturas democráticas, sobretudo no período marccartiano, e, externamente, patrocinou governos autoritários envoltos com tortura e desrespeito aos direitos fundamentais. As potências européias também travaram lutas (muitas das quais sanguinárias) com suas até então colónias, que terminaram independentes, mas francamente autoritárias. A Espanha continuou sob as rédeas de Franco, e em Portugal, Salazar manteve-se no poder.

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leninismo também ontologizara a classe trabalhadora, centraria na ilusão de uma vontade coletiva unitária e política a se guiar por um destino histórico inexorável. A linguagem e os conceitos parecem evaporar de nossas mentes, deixando uma impotente sensação de vazio e um mal-estar indefinido. Mas essa ainda é uma história inconclusa, pois a palavra democracia continua a despertar amplo debate em torno de seu significado, de seus pressupostos e alcance, de sua substância e de sua forma. Um regime que para uns seria oligárquico para outros seria democrático, tudo pela ligação que se faz entre regime e ideologia, entre Dogmática e precompreensão. Um regime-camaleão que se acomoda às mais variadas formas e sistemas de governo: presidencialismo, parlamentarismo, diretório, monarquia e república; um regime que é ao mesmo tempo o vazio de um povo que se representa ausente e fonte comum de emancipação. São essas misturas, essas nuanças que contribuem mais ainda para espalhar ambigüidades. Basta que se tente catalogar algumas das suas concepções para depararmos com o labirinto das teorias. Mas o desafio é provocador, e com a licença da pressa nos arvoramos a fazer uma síntese dessas múltiplas percepções. 2.

CONCEPÇÕES DE DEMOCRACIA

Democracia é um conceito de muitas concepções, e por tantos países se auto-proclamarem democráticos, ora com a desfaçatez de tiranos incorrigíveis, ora com níveis flutuantes de igualdade política e econômica, ela parece hoje se ter convertido em gênero das formas políticas. Podemos, com um mínimo grau de segurança mesmo dentro de nevoeiro todo, traçar linhas definidoras de "tipos" ou "concepções" democráticos que, como todo esforço classificatório, contêm certa dose de arbítrio dignem o faz. Assumimos como critério o paradigma das liberdades, de modo a delimitar as teorias liberais (1), que elevam as liberdades ao centro do sistema jurídico-político e concebem os direitos políticos como um direito periférico, embora o estruturem como um dos direitos de liberdade; as teorias não-liberais (2), que dão ênfase à igualdade ou privilegiam os direitos de participação sobre os de liberdade; e as teorias mistas (3), que conjugam elementos das duas anteriores.'

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Não menos grave é identificar uma tipologia dos regimes não-democráticos. Vergottini (1985:111 - 112) adota uma visão quadripartite: 1) ditadura:- governo provisório que rompe com as regras institucionalizadas do regime precedente; 2) Estado tradicionalista —

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Concepções liberais de democracia •

As concepções liberais de democracia estão intimamente associadas ao sentido de sociedade civil atribuído pelo liberalismo. Como sabemos, sociedade e Estado são concebidos como zonas independentes, entendendo-se este como centro de poder político e da esfera pública, e aquela como reino apolítico formado por indivíduos que definem suas preferências e gostos na busca da felicidade. A sociedade, além do mais, serve como barreira contra as tentativas de invasão ou de domínio do Estado e contra o estabelecimento impositivo de uma "vida boa" ou "receita pública de felicidade" (Gellner. 1995:192). Se economicamente essa doutrina se assenta na idéia de progresso e de interesses puramente egoísticos, politicamente ela requer a instituição de um governo limitado por uma- Constituição para proteção das liberdades. A Constituição, nesse ambiente, é comumente definida como um sistema de precauções ou de competências negativas. Já a democracia é urna aliada quase necessária do projeto liberal, embora possa assumir uma variedade de subespécies: (a) teoria pluralista; (h) teoria elitista; (c) teoria da democracia econômica e (d) teoria da democracia social. a) Teoria pluralista de democracia

Para a teoria pluralista, a democracia deve refletir a heterogeneidade e o pluralismo da sociedade. Hegel [1997] já havia criticado a abstração dos Modernos,

compreende o subtipo de "democracia oligárquica" e do "sultanato", em que não há partidos e a sociedade é atrasada e despolitizada; 3) Estado autoritário — que reúne tanto aqueles que detêm algum grau de pluralismo política, mas restringem o número de partidos Ou adotam o sistema unipartidário, quanto os que adotam uma ideologia oficial, com a prevalência de um líder ou de uma elite restrita, subdividindo-se em (a) Estado burocrático-militar— com uma elite dirigente formada por burocratas, militares e tecnocratas, (b) Estado estatista-orgânico — em que há estruturas corporativas com monopólio da representação, (c) Estado de mobilização — que se instaura após a crise de ordenamentos democráticos (fascismo) ou depois da independência do pais, adotando unipartidarismo, ideologia oficial e, no último caso, uma liderança nacional, (d) Estado totalitário imperfeito — próprio daqueles Estados cuja aproximação ao totalitarismo se interrompeu e (e) Estado pós-totalitário — que.decorre de uma modificaçãd do ordenamento totalitário anterior; 4) Estado totalitário —que possui uma ideologia desenvolvida e abrangente, partido único e concentração de poder nas mãos de um líder ou de uma elite, mantendo a sociedade em estado de mobilização permanente e adotando práticas de terror contra opositores. Ver também Duverger. 1985: 333 et seq.

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demonstrando que a liberdade se nutre do conflito e não da concórdia ou da homogeneidade. Podemos distinguir pelo menos duas correntes pluralistas. Uma que sobrepõe a qualquer conteúdo o caráter procedimental da democracia como governo do povo (i); outra que realça a relação complementar dos direitos humanos (ii).

minoria (Holden. 1988). Segundo Ely (1980), no entanto, a proteção deve ser assegurada por um sistema de garantias político-jurídicas que também funcionem como tutoras das próprias regras do jogo.

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i) o pluralismo procedimental ou democracia metodológica Essa teoria parte da premissa de que "ao invés de uni único centro de soberania popular, deve haver múltiplos centros de poder, nenhum deles podendo ser totalmente soberano" (Dahl. 1967). Suas atenções vão se voltar para definir as condições ou índices de "democraticidade", que combinam as tradicionais instituições liberal-democráticas, com destaque para o método ou os aspectos da seleção dos representantes e do processo legislativo de governo (Dahl. 1971), preocupando-se pouco ou nada com o conteúdo e com as finalidades das decisões tomadas (Bobbio. 1987). Embora esses índices sejam variáveis e nem sempre aceitos pela totalidade dos teóricos, anotam-se em geral a existência de: (a) governantes eleitos; (h) eleições livres, oficiais, limpas e periódicas; (c) participação e voto livremente assegurados aos adultos de ambos os sexos (sufrágio universal), além de seu caráter igual (one mau, one vote) e secreto;'' (d) liberdade de associação e concorrência partidária em condições de igualdade, sendo os partidos políticos os veículos de 'representação dos interesses (Key. 1964; Duverger. 1964); (e) livre fluxo e pluralidade de fontes de informação — de forma a haver, nas palavras de Dahl (2001:110-111) uma "compreensão esclarecida" e um controle popular da agenda política, de modo que os cidadãos sejam os melhores juízes de seus próprios interesses; (f) regra da maioria — a vontade da maioria é o instrumento concreto e factível que mais de aproxiMa da vontade geral» (g) proteção das minorias — deve sempre haver espaço para a minoria converter-se em maioria (Tocqueville. 1987:193 et seq). Para alguns autores, essa proteção seria dada pela manutenção das regras do jogo devido ao medo de a maioria se converter em

Há quem afirme que a única forma de identificar o 'conteúdo da vontade popular" é por meio do sistema de votação: Riker. 1982. G. B. Powell (1982), de seu turno, exige que o voto não seja coercitivo. A tentação de quantificar é recorrente na teoria democrática. Para Bryce (1931), pelo menos três quartos da população deveriam ter direitos cívicos para que o Estado fosse reputado democrático. Apenas 20% das 100 maiores nações do mundo podem ser qualificadas de democráticas seguindo todos os critérios acima indicados.

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Há outros autores que, em nome do pluralismo, destacam ainda a exigência de neutralidade da política dada pela exclusão de questões de caráter ético ou pela aceitação e tolerância das "vá rias concepções de vida". Para Kelsen (2000), por exemplo, a crença metafísica em verdades últimas ou absolutas é inimiga mortal da democracia. Tocla a herança da Antiguidade clássica (Heráclito, Platão e, de certa form a, Aristóteles), dos regimes teocráticos, passando pela escolástica medieval e por alguns modernos (Leihnitz e até Kant), terminava por defender uma forma autocrática, monárquica e conservadora cio Direito e do Estado. Ao contrário, a democracia pressupõe uma filosofia relativista, pois reconhece como iguais todas as crenças, credos e convicções políticas, abrindo alternativas para uni exercício público de convencimento e de busca de adesões, orientadas para vitória eleitoral e conseqüentemente para a loção de leis e formas institucionais que representem a proposta política vitoriosa nas urnas (p. 105-106,203). Esses critérios são realizados de maneira aproximada, mas o "nível de aproximação" deve ser "satisfatório" e "razoável" para que se possa definir um sistema como uma "poliarquia", entendida como governo de muitos (Dah1.1989:117). Para seu próprio contentamento, as três vias que auxiliariam a identificação de uma "democracia em larga escala" (instituições existentes em países chamados comumente de democráticos, instituições efetivamente adotadas por "países em processo de democratização" e "experimento hipotético" relativo à definição de quais instituições seriam necessárias — idealizadas nos critérios acima referidos) convergem para as mesmas instituições democráticas (2001:136, 219)» ii) O pluralismo com direitos humanos Muitos autores destacam a necessidade de intangibilidade da esfera privada dos indivíduos, acompanhada da tutela dos direitos fundamentais. Pensemos uni pouco com Dworkin (2001) sobre a relação entre democracia e direitos humanos. Suas armas estão postas contra umà concepção formalista de povo entendido como maioria. Em primeiro lugar porque o próprio sentido de maioria se enfraquece nas práticas políticas dos Estados contemporâneos, recordando, por exemplo, que a maior parte das democracias possui dois corpos legislativos, sen-

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Ver ainda Bentely. 1967.

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do um deles menos representativo e dotado do poder de controle sobre as decisões tomadas pelo outro. Depois, porque não se vislumbra nada na idéia do poder legislativo ou político majoritário que um indivíduo governe ou de que possa vetar decisões que o afetem sem unia justificativa universalizante. Para ele, o "povo" não pode ser reduzido a um conjunto de indivíduos agindo isoladamente, mas deve ser visto como um time, uma equipe, uma orquestra tocando uma sinfonia, cada um podendo dizer "nós o fizemos": ° [democracia] é a forma de governo na qual os cidadãos agem corno parceiros de um co-empreendimento governamental — mesmo quando protestam ou votam contra os representantes que ganham ou a política estabelecida" (p. 160).

direitos humanos abstratos selavam o suicídio, porque tantas seriam as crises.e instabilidades governamentais e tamanhas as repetidas frustrações dos eleito-, res que as portas se abririam com tapetes vermelhos estendidos para ditadores e lideranças carismáticas. Já para Habermas (1997,11: 59), a teoria do pluralismo se inscreve no "modelo normativo do liberalismo", substituindo os indivíduos e seus interesses por organizações e interesses organizados, mas mantendo a mesma ficção de igualdade competitiva. Por outro ângulo, autores como Poulantzas (1971) e Miliband (1982), nas linhas escritas por Marx (1983 e 2000), denunciam a farsa e a dominação capitalista que se ocultam atrás do pluralismo democrático. A ficção de que todos igualmente podem concorrer a cargos eletivos e mesmo votar livremente turva o monopólio do poder decisório exercido, de fato, pelos grupos capitalistas.

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Os parceiros dessa joint ventre política respeitam-se mutuamente e cada um considera-se parte no todo. Seria absurdo, portanto, achar que os judeus se sentissem parceiros do governo nazista. Esse respeito recíproco se projeta no reconhecimento dos direitos individuais antidiscriminatórios (não há cidadãos de segunda classe), na liberdade de expressão ("Não sou parceiro se a maioria considera minhas opiniões ou meus gostos tão perigosos, chocantes ou indignos que ninguém esteja autorizado a ouvi-los"), em certas liberdades de consciência (liberdade de religião ou de ética pessoal atinentes a decisões de caráter eminentemente pessoal como o aborto e a eutanásia); e alguns direitos econômicos, destinados a evitar a extrema miséria de alguns. Há um outro núcleo de pensadores, alguns ligados à concepção pluralista, que procura realçar a importância dos direitos humanos que mais diretamente afetam a esfera pública, especialmente da liberdade de expressão, de imprensa, associação e reunião (Truman. 1951; Dahl. 1956 e 2001; Ely. 1980; Bobbio. 1987). Sem prejuízo da esfera privada garantida, certas correntes liberais destacam a necessidade de um resgate cívico da cidadania, o que poderia ser designado como uma linha republicano-liberal, por mais que esse binômio pareça antitético. O mais comum entre eles é contentar-se com o simples apelo simbólico da virtude cívica e do amor à pátria (13obbio. 2002). Mas há quem, a exemplo de Viroli (2002), defenda como elemento importante da democracia a existência de uni povo organizado em uma comunidade política orientada por justiça e bem comum. A democracia pluralista recebe críticas das mais variadas correntes do pensamento político. Para Schmitt (1992), por exemplo, o pluralismo e a demagogia eram vetores da autodestruição da democracia e da:própria unidade do Estado. A democracia, para ele, assentava-se em um "povo homogêneo", que, pela capacidade de discernir "amigos" de "inimigos", não se deixaria seduzir por forças sociais invisíveis e irresponsáVeis (p. 241). O relativismo e os discursos de

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ti) Teoria elitista de democracia

As teorias democráticas elitistas têm origens remotas no preconceito contra as massas. Lembremos que Platão defendia uma sociedade na qual os mais sábios; os filósofos, seriam os govern antes (1994) e mesmo Aristóteles (2000), no estudo das 'formas políticas ideais, imaginava um governo em que se deveria excluir os trabalhadores da participação política. A teoria censitária ou meritocrática de representação é outra faceta do elitismo. Até mesmo Rousseau imaginava (1991) um corpo de técnicos que assessorariam o povo nas decisões. Caberia a eles redigir tecnicamente as leis e ao povo aprová-las ou rejeitá-las. O temor da ingovernabilidade se todo o povo tivesse voz ativa aparece na desconfiança de Madison (1961: 77 et seq, 81) que declaradamente preferia o "governo representativo" composto por um número pequeno de cidadãos eleitos, denominado por ele de "república", à "democracia", regime e espaço propícios para a paixão se sobrepor à razão, tanto quanto em Bagehot (1978), que apontava a confusão e a indecidibilidade na Câmaiii dos Comuns formada por 658 pessoas de todas as partes da Inglaterra, com temperamentos, aparências e sotaques diferentes. Tocqueville (1987:220) afirmava que as aristocracias seriam menos corruptas que as democracias, porque os aristocratas, por serem ricos, só desejariam poder, enquanto na democracia, os homens de Estado seriam pobres, valendo-se de seu poder para fazer fortuna e disseminando entre todos a permissividade do lucro fácil. Essas observações não são muito diferentes das conseqüências que adviriam do ganho de complexidade das sociedades ocidentais, anunciadas por Weber (1999). A racionalização nos processos de decisões políticas terminaria por implicar a elitização de um corpo político competitivamente eleito, que, em

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tese, deveria comandar a burocracia estatal, gerando apatia do eleitorado, oligarquização orgânica e predominância do Executivo (Niskanen. 1971; Bachrach. 1980). Hauriou (1927: 218) dizia que na democracia existiam duas classes de elites: a dos funcionários públicos, investidos nos cargos por concursos, destinada a impulsionar o desenvolvimento das instituições governamentais; e a dos homens políticos, escolhidos em procedimentos eleitorais, que colaborariam com as instituições governamentais. Robert Michels em 1915 (1978), com nítida influência weberiana, chamava a atenção para os impactos sociais e políticos causados pela industrialização. Com níveis de complexidades sem precedentes na história, a nova sociedade industrial exigia cada vez mais especialistas, fenômeno que também se aplicava à política. Os líderes políticos surgiam no cenário como expertises de gestão pública, que amparados em uma burocracia estatal, monopolizavam o poder. Embora o exercício desse poder devesse servir ao interesse do povo, na prática a elite política havia passado a buscar a realização de seu próprio interesse — manter-se no poder. A inevitabilidade desse processo, denominado por Michels como "iron law of oligarchy", fazia-o descrente de uma democracia que verdadeiramente fosse resultado de uma vontade popular ou responsável por atender a seus anseios, afinal:

processo eleitoral'" Para os adeptos dessa variante;.kcaptaçãoidd6VotoiPopuláã não estaria amparada na correção das propostas ou na preocupagab,plopulande conhecer os candidatos e seus programas, mas em discursos ;de Écai - átehMais emotivo e cênico (Lipset. 1967; Sartori. 1987). 1 " Essa teoria tem claramente 'uru sentido econômico ou de eficiência concorrencial nos moldes do mercado,:tanto que, do lado da elite, vira refrão "vícios privados, virtudes públicas'? e, do lado do povo, assimila-se a idéia de cidadão à de cliente ou consumidor. Downs (1957) é o grande nome da chamada "teoria econômica de democracia" que dará grande impulso aos perfomáticos. Ele define o processo eleitoral como um meio estratégico de conquista de votos, já que as motivações individuais da ação são incompatíveis com preferências coletivas mesmo quando estas são bem definidas. Nesse sentido, vence o pleito não necessariamente o candidato mais preparado para o cargo, mas aquele que esteja mais preparado, mais estrategicamente armado, para a disputa.

"... a maioria dos seres humanos, em condição de eterna tutela, está predestinada pela trágica necessidade de se submeter à dominação de uma pequena minoria; e deve se contentar em constituir o pedestal. de uma oligarquia" (p. 390). Todos esses precedentes, ampliados pela luta partidária que se aprofundou no curso do século XX, influenciaram o surgimento de teorias que, dando razão a Michels, apontavam os equívocos dos liberais clássicos ao superestimarem o desejo e a capacidade de o povo se envolver com assuntos políticos. Na verdade, já existiam elites, formadas em torno dos partidos políticos, que concorriam entre si pelo apoio do povo. Cabia, portanto, aos cidadãos apenas a escolha, em momentos eleitorais, da elite que os governaria (Schumpeter. 1947:269).' 4

Se vencer é a finalidade da democracia, os candidatos devem observar algumas regras básicas. Primeira: o candidato deve ocupar uma posição intermediária entre duas alternativas extremadas, porque é em torno dessa posição que se aglutinará o maior número de votos ou a média de uma normal distribuição de eleitores. Segunda: os eleitores não se sentem estimulados a votar, porque não reconhecem a importância de .seu voto para o resultado do pleito ou avaliam que a relação entre o custo de votar (enfrentar filas, transtornos, dispêndio de tempo) e os benefícios que possam advir é negativa. Terceira: os cidadãos não se dispõem a saber o bastante ou ter suficientes informações para votar, mesmo que seja para otimizar os seus interesses (cf. Olson. 1965). Essa perspectiva concorrencial de democracia abriu espaço para uma série de teorias comportamentais e de marketing político, que procuram definir as melhores estratégias para a vitória eleitoral. Podemos indicar, dentre outras, a lei de Gresham: poucas informações sobre um candidato podem ser mais

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Uma decorrência natural ao elitismo pode ser identificada na variante "performática" de democracia que dá ênfase à dominância da razão instrumental no

" De acordo com Held (1987) e Dunleavy-O'Leary (1987), o pensamento de Schumpeter opera um amálgama do modelo pluralista e da teoria clássica elitista de democracia, instituindo uma espécie de paradigma "neopluralista".

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Uma segunda variante não explorada no texto pode ser vista no funcionalismo sistêmico de Luhmann (1985), que retira centralidade do Estado, do Direito e da Política para situá-la nos fluxos de comunicação intra e inter-sistémicos. Cada sistema se especializa em funções especificas, se autonomiza, se auto-regula e não consegue entender a linguagem dos outros, a não ser por uma tradução ao seu código. A democracia, nesse sentido, perde qualquer sentido de legitimidade e a conexão com aspectos valorativos e contextos não avança além de tradutores automáticos. Cf. Habermas. 2000, II: 53 et seq. A teoria das elites tem suas bases em Mosca (1939) e Pareto (1963).

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importantes do que uma grande quantidade de dados sobre seu passado ou história. A razão segue mais ou menos a segunda estratégia de Downs, pois quanto menos informações, menor será o custo, de tempo e de paciência, para obtê-las. Em razão disso, Popkin (1994) chama a atenção para condutas otimistas dos candidatos, mesmo diante de cenários desfavoráveis, porque, corno os eleitores são relativamente ignorantes, eles tenderão a mudar facilmente seu voto diante de novas informações que surjam no curso do processo. Essa atenção também se põe ao candidato bem à frente nas pesquisas, pois seu esforço em municiar os eleitores com dados e programas de governo será sempre um risco.' 7

outro capítulo da narrativa histórica, sem prenunciar o epílogo? Se . olharmoS atentamente, a"democracia liberal" não foi uma "democracia política", seja pelo voto restrito, seja pela idéia de direitos negativos, de separação de poderes e mesmo pelo principio da legalidade (que podem complementar a forma política de democracia, mas não compõem seus elementos essenciais), seja pela desigualdade empiricamente constatada e normativamente relegada ao plano formal, seja enfim porque a "vontade geral" não passava de um mito ou discurso de legitimação. As teses de um "pluralismo concorrencial" ou de uma "oligarquia governista", especializada em programas públicos eficientes, apenas ratificam e reforçam essa afirmação.

O pragmatismo deve ser a tônica para se ter sucesso político em uma democracia, segundo Barry (1980), de modo que é melhor ter sorte e estar com a maioria do que ter algum poder ou influência na definição de políticas públicas, afinal seu benefício advirá da realização das políticas e não da sua escolha. Burnheims (1985) chegou a pensar em um plano mais evoluído e eficiente de uma democracia elitista, denominado de "demarquia", que se compunha de uma "representação estatística" não eleita pelo povo, descentralizando em diversos órgãos autônomos a tomada de decisão, segundo um critério de distribuição mais funcional e eficientista que territorial. Também autores supostamente pósmodernos postulam um recurso a especialistas para enfrentamento das questões cada vez mais complexas e a substituição das ilusões metafísicas e objetivantes de correspondência das ações dos representantes com os anseios dos eleitores ou com algo tão etéreo como "interesse público" e "vontade do povo", por uma entrega da esfera política inteiramente ao Estado e a assunção do poder por um "esteta estilista" que, com criatividade e retórica, faça crer ao povo que age de acordo com os seus anseios maiores, estabilizando as instituições da sociedade (Ankersmit. 1996: 38, 94, 210). Está aqui o lado mais liberal da concepção liberal que tem o tom do jogo capitalista como móvel do destino do homem tanto na esfera privada, quanto na esfera pública, além da recusa do Estado como agente promotor da solidariedade, reduzindo-o às funções de segurança interna e externa, de diplomacia e justiça. A democracia, assim como o mercado, só haveria de prosperar onde o Estado fosse mínimo e neutro. Essa onda foi aclamada corno última verdade que triunfou de acordo com Fukuyama (1992): a democracia liberal marcada pela economia de mercado e o governo representativo eram o fim da história. Mas até que ponto chegamos ao programa final da história? Ao afirmar o fim, não estaremos abrindo um

I 7 Ver ainda Demsetz. 1990; Schlesinger. 99r.

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c) Teoria da democracia econômica, "operária" ou industrial

Parte da doutrina tem pensado em formas de corrigir as distorções do mercado e de revalorizar a decantada "liberdade do trabalho", expandindo o processo democrático às relações entre capital e trabalho por meio de instrumentos como a negociação coletiva (socialismo fabiano de Sidney e Beatrice Webb. 1897), existência de delegados sindicais e conselhos de trabalhadores, incumbidos de negociar com o empregador (Brueginann. 1981), gerenciamento participativo sob diversas formas ("desenvolvimento organizacional" e "comitês de qualidade", dentre outros), a co-gestão, a participação dos trabalhadores nos lucros e capital das empresas, bem como a afirmação de elementos cooperativos (Monat e Sarfate. 1986) e gremiais (o "socialismo gremial" de Cole. 1972) das organizações econômicas. I-lá vieses dessa teoria que fogem do quadrante liberal. É o caso da "autogestão dos operários", defendida por Kardelj (1978) e que teve certo grau de experiência bem-sucedida na Iugoslávia dos anos setenta do século passado. Essa mistura de tendências se deve às suas origens igualmente ecléticas. Os chamados "socialistas utópicos", como Rohert Owen, são apontados como fonte primeira desse ideário, tendo por seguidores os humanistas, religiosos e filantrópicos, e as várias expressões do movimento operário (Blumberg. 1967; Abel. 1968; Széll. 1996). Por mais paradoxal que possa parecer, também J.S. Mill (1991), um liberal convicto, defendia um sistema de autogestão industrial ao lado da democracia política com voto secreto e universal. 14á sérios argumentos que duvidam da utilidade prática de se conduzir a democracia a um mundo que não se rege por sua lógica. Perda de eficiência, demagogia gerencial e desmantelamento da estrutura científica da empresa são lembrados nesse sentido. Organismos internacionais, como a OCDE e a OIT, têm procurado estimular, de qualquer sorte, adoção de instrumentos

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democráticos no âmbito das relações empregaticias, pondo fé na parceria entre capital e trabalho como forma de redução de custo, aumento de produtividade e de salários!' A propósito, Lyon-Caen (2001) destaca em trocadilhos a importância de se reconhecerem os trabalhadores como "cidadãos da empresa", assegurando-lhes instrumentos de participação na vida empresarial, na definição de seus objetivos e metas; e como "cidadãos na empresa", mediante o respeito no seu ambiente de trabalho aos direitos fundamentais; além de anunciar a "empresa cidadã", comprometida com políticas e responsabilidades sociais, como a redução das desigualdades, programas inclusivos e defesa do meio ambiente. d) Teoria da democracia social

Há quem oponha a democracia social à democracia liberal (Ryan. 2001). • Maine (1887), de toda forma, temia, como bom liberal, que a democracia social conduzisse a uni novo feudalismo e a um retrocesso do contrato ao estatuto. A bem da verdade, a preocupação socializante conduzirá tanto à vertente liberal da social democracia quanto à vertente socialista, esta sim antiliberal, como veremos. Mas o que significa a democracia social? A democratização da ordem económica, social e cultural, assegurando-se, para além da igualdade política, a igualdade material dos cidadãos com a remoção de obstáculos econômicos e sociais (Beaud e Prévost. 1995; Verdú. 1986:262). O próprio Dahl (1989:252) constatou, em suas análises empíricas, que a democracia somente florescera nas 'sociedades MDP (modernas, dinâmicas e pluralistas), onde havia condi: ções sociais e econômicas favoráveis." Como o crescimento económico não importava necessariamente distribuição da riqueza produzida, a democracia social exigia uma remodelação do papel do Estado com vista a se transformar em provedor de serviços destinados a compensar as mazelas do mercado. Os direitos sociais se convertem, assim, na grande pauta reivindicatória e logo ocupam os textos constitucionais (Sampaio. 2002a: 677 et seq; e 2002c). O Estado do bem-estar social (welfare state) ou Estado providência surge nesse contexto, com os prenúncios da época b ismarckiana na Alemanha, e ganhará contornos mais claros na Constituição mexicana de 1917 e na de Weimar de 1919, angariando cada vez mais adeptos que o con-

le Ver: http://www.ilo.org ; http://www.un.org/documents/; http://www.oecd.org . " Também Galbraith. 2001: 366.

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sideravam instrumento de correção — salvação — do mercado e'dásidesigiralda::: , .4 desocia.NRnUd,porexmlRatóiBverdg,ncoméa do por Churchill e publicado em 1942, aconselhava uma atuação estatal em favor dos pobres, com políticas de saúde, educação, moradia e assistência social: Keynes (1927) já havia defendido antes a tese de que a economia somente superaria seu ciclo de crise com uma maior intervenção do Estado, inclusive em favor dos mais necessitados. Após o fim da II Guerra Mundial, os .países do Ocidente passaram a adotar essas recomendações, ampliando de maneira sensível os gastos públicos. Em 1962, Charles de Gaulle afirma: • "Não devemos ficar cegos diante do mercado. Não devemos supor que ele resolverá sozinho todos os problemas. O mercado não está acima das nações e do Estado. O Estado, a nação é que devem estar acima do mercado" (cf. Peyrefitte. 1999:523).

Por volta desse tempo, o presidente dos Estados Unidos, Lindon Johnson, cria os programas Medicare e o Medicai(' para assistir aos idosos e aos pobres. A alavancagem dos dispêndios públicos, associada a outros fatores que surgiram na onda neoliberal do final dos anos 70, como a globalização, a perda do controle efetivo de políticas macroeconômicas no âmbito nacional, o enfraquecimento dos sindicatos, a desregulamentação, além da revolução da informática, levaram à crise do Estado-providência e, conseqüentemente, da democracia social. Corno lembra D. Cohen (2001:395), repetindo Paul Krugman, o enfrentamento da crise financeira do Estado durante os anos 80 se deu com a brusca redução do nível salarial, no caso norte-americano, ou com a elevação do nível de desemprego, no caso europeu. Ou com ambas as coisas, além de um quadro inflacionário e recessivo, na América Latina. Neste início de século, percebe-se um crescimento das desigualdades tanto entre os países do Norte e do Sul, quanto entre os próprios países nortistas e entre seus concidadãos. Uma desigualdade que coloca em dúvida se há uni sentimento de solidariedade entre os seres humanos ou se essa foi uma invenção cultural que esgotou suas possibilidades práticas. As críticas endereçadas à concepção liberal de democracia, além das já indicadas anteriormente, apontam o caráter desmaterializado ou (des)moralizado de uma preocupação que visa apenas fundamentar o conflito de interesses privados no espaço público ou que, especialmente nas vertentes plural e elitista, mas que poderiam muito bem ser estendidas às demais, destina-se a completar o mercado, operando com a sua lógica eficientista e com o fim único de mantê-lo iate-

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gro (Havei. 1988). O processo democrático, nesse sentido, apenas trataria de conferir legitimidade processual à alternância do poder. Assim também, as propostas, de bases empírico-históricas, de Dahl colocam a "poliarquia" como uma alternativa à democracia e não como uma espécie desta, tanto que o próprio autor indaga "how then is polyarchy related to democracy?" (1989:221). Tanto é mais séria a crítica quanto mais se adote um modelo decisório centrado em preferências e interesses individuais, sem qualquer atenção a contextos e orientações axiológicas, pois os dados empíricos a longo prazo têm desmentido suas predições (Mansbridge. 1990).

não haverá como aplicar a regra da maioria para resolver o problema. Mesmo se houver possibilidade de alternativida de, haverá soluções inconsistentes: imagine-se que José prefere AaBeBa C; Pedro prefere B a C e C a A, e Maria prefere C a A e A a B. No cômputo final, a maioria prefere A a BeB a C, mas, paradoxalmente, a maioria prefere C a A.'

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Capilongo (2000: 45 et seq) arrola uma série de "limitações técnicas" à regra ou técnica central da proposta liberal de democracia, à regra ou técnica da maioria, dentre as quais se enumeram os problemas atinentes: a) à definição de "povo" e da instância decisória; b) ao objeto da decisão, com a tendência de questões de natureza técnica ou privadas e de as próprias regras básicas do jogo democrático, além do conteúdo e características dos direitos fundamentais, fugirem do âmbito político e, conseqüentemente, da solução de maioria; c) ao âmbito temporal e pessoal de vinculação, postulando, com Offe (1984), a restrição da regra da maioria a um quadro juridicamente definido, não podendo arvorar-se sobre direitos e decisões de futuras maiorias; e d) à justificação racional fundada apenas em quantidades. Assim, como se poderia fundamentar que 51% de eleitores indiferentes ou apáticos pudessem bloquear a vontade de 49% do colégio eleitoral? A expressão puramente numérica de povo, como uma quantidade majoritária, pressupõe uma massa desorganizada e atomizada de indivíduos alienados (Dewey. 1930), e tende a privatizar a política. Como assinala Sandel (1996:72), muitas vezes as melhores e mais justas políticas não conseguem superar a vontade majoritária, de forma que os sistemas políticos devem associar ao critério numérico justificações de natureza moral. Para Habermas (1997), a regra da maioria é tributária do subjetivismo ético moderno que atribui validade à norma a partir da vontade de seus destinatários, além de ser decorrência do conceito liberal de indivíduo, que, se se impõe como faticidade em comunidades políticas concretas, não prescinde de complementos de validade de outra ordem. Um argumento adicional indica a incoerência do princípio maioritário e, por extensão, de todas as teorias democráticas que o tomam como critério decisório. Trata-se do "teorema de Arrow". De acordo com Arrow (1963), a regra da maioria simples pode conduzir a maiorias cíclicas e não genuínas. Imaginemos uma assembléia formada por três pessoas, José, Pedro e Maria, que estejam diante de três opções A, B e C. Se José preferir A a B; Pedro, BaCe Maria, C a A,

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2.2 Concepções não liberais -

Reunimos sob o rótulo "não-liberal" as teorias da democracia popular (a) e republicana (b), pela prioridade que conferem à igualdade (no caso da democracia popular) ou à participação política (no republicanismo) sobre os direitos de liberdade. a) Teoria da democracia popular

Presente na variante comunista e de países do terceiro mundo, segundo Macpherson (1965), essa linha teórica identifica a democracia corno instrumento político-social que cria "as condições para o livre desenvolvimento das capacidades humanas, fazendo isso igualmente para todos os membros da sociedade". A partir da afirmação de incompatibilidade entre democracia e capitalismo, passa-se a defender uma sociedade sem classe cuja voz e vontade se expressam concretamente por meio de um único partido (Lênin. 1979) ou de um partido predominante, tendo por base uma estrutura socioeconômica coletivista e um predomínio dos direitos econômicos e sociais (Lefevbre. 1978). Há nessa assimilação dois distintos modelos: (i) o soviético — unipartiddrio, sem dissensões políticas: "Os cidadãos mais ativos e mais conscientes da classe trabalhadora, dos trabalhadores agrícolas e dos trabalhadores intelectuais se unem livremente no partido comunista da União Soviética, que constitui a vanguarda dos trabalhadores na luta pela edificação da sociedade comunista, e o núcleo dirigente de todas as organizações de trabalhadores, tanto sociais como estatais" (art. 126 da Constituição soviética de 1936); e (ii) o das democracias populares dos Estados satélites, como ficaram mais reconhecidas na linguagem teórica — que era menos intenso do que o

20

Os dilemas numéricos da regra da maioria se multiplicam como no "Paradoxo de Condorcet" e no "Teorema da Possibilidade de Black". Cf Campilongo. 2000:48-49.

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soviético, admitindo a existência de alguns poucos partidos:e, durante um certo tempo, um quadro de garantias às oposições, embora houvesse uma legislação eleitoral abertamente favorável aos partidos comunistas, aliada a uma propaganda oficial e à ação da polícia política (Fabre. 1950). A intenção clara era a de incorporar objetivos da revolução burguesa na direção de uma ditadura do proletariado, como registrara George (1952): "O Estado na democracia popular se caracteriza essencialmente porque exercem o poder os representantes da classe trabalhadora aliados aos campesinos para edificação do socialismo Hl Isso implica o internacionalismo proletário, é dizer, a ajuda recíproca com os trabalhadores de outros países para construção do socialismo e para a defesa da paz, que é algo organicamente inseparável" (p. 44). Não havia separação de poderes, mas um único poder atribuído a assembléias populares encadeadas hierarquicamente, tendo no ápice um órgão supremo, chamado na URSS de Soviet. Os vínculos entre partido e aparato estatal ou eram expressos ou visíveis. Havia eleições dos órgãos dirigentes do partido comunista, desde a cúpula até a base, acompanhadas de uma rigorosa disciplina partidária, que obrigava obediência irrestrita às decisões tomadas pelos órgãos superiores do partido, assim também as disposições normativas e os planos económicos editados pelas instâncias governamentais superiores vinculavam tanto os funcionários estatais quanto os cidadãos. Era a chamada "legalidade socialista" (cf. Fabre. 1950; George. 1952; Femia. 1993).

Como lembra Havei (1985), a alternativa popular da democracia terminou por atribuir à burocracia ou a líderes carismáticos o poder de reconhecer o que o povo precisava, sendo justificável o recurso à violência se fosse para garantia de um "futuro melhor". De que democracia se tratava? 2 ' •b) Teoria da democracia comunitarista e republicana

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de "cidade" ou de "Estado-nação", deixando em plano secundário os processos deliberativos e as formas de construção da esfera pública pelo cidadão. 22 Advogase que a vida humana terá sentido e será melhor se se deixar guiar pelos valores desenvolvidos em práticas comunais, como a reciprocidade, confiança e solidariedade. A referência à "comunidade" envia a um dos sentidos mais ambíguos de toda teoria política e social. Shore, de toda forma, enumera os seus dois elementos conceituais: a) a estrutura social dada por indivíduos que interagem dentro de um determinado território, que varia de conjuntos habitacionais a organizações internacionais, passando por grupos étnicos e nações; e b) o "sentimento de comunidade" que une seus membros (Shore. 1996). Os estudos comunitários de Tõnnies (2001), todavia, restringem o sentido de comunidade a laços de parentesco e vizinhança, a unidades sociais básicas e pré-industriais, marcadas pelos valores morais de confiança, solidariedade e permanência, ao que se opunha a "sociedade" industrial com seus vínculos impessoais e de base puramente contratual. Não faltam teses nostálgicas que indicam uma terapia de regressão ao tempo da vida boa comunal, em sentido genérico (Parsons, Redfield), ou propostas utópicas de comunidades alternativas (Mills. 1973; Borowski. 1984; Seymour. 1997). É exatamente nessa direção que Piccone (1996) defende um retorno às comunidades orgânicas, à maneira das existentes supostamente em certos lugares do meio-oeste e nas montanhas de alguns cantões Suíços, como única possibilidade de conciliar urna vida satisfatória em uma organização política viável e "livre das patologias da modernidade". Nem também são raras as insistências de reforçar os símbolos de identidade de seus membros, de acordo com um código moral que realça a homogeneidade de pensamento e busca ações estratégicas, como nos (lances dos nacionalismos modernos e contemporâneos (Anderson. 1983). Seja como for, o comunitarismo é mais do que isso e parece nos indicar a direção de algo bom, pois a "comunidade nunca é usada de forma desfavorável" (Williams. 1976:76). Se, de outro lado, procurarmos uma caracterização rápida do republicanismo ou humanismo cívico," podemos dizer que para essa perspectiva, a virtude cívica de cidadãos ativos é que desenvolve o bem coletivo. Sua ênfase clássica,

O pensamento comunitarista, enraizado na tradição aristotélica e em Comte, dá ênfase aos vínculos de pertença a uma comunidade política, seja ela chamada 22

21

Vários autores- buscaram uma renovação dos ideais marxistas valendo-se das instituições e mesmo dos valores da democracia liberal. Ver Andersen. 2002.

23

Protágoras defendia que a existência de comunidade dependia dos "laços de amizade" entre os homens, nutridos no sentimento de justiça e de alteridade, mediados pelo "discurso persuasivo da politica": cf. Hartog. 2001:95. Ver no texto a distinção que Rawls faz entre republicanismo e humanismo cívico.

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em Cícero (1989) sobretudo, dava-se sobre o ideal de autogoverno, de constituição mista e da necessidade de o governo refletir os interesses de toda a comunidade (dos muitos da plebe, dos poucos da aristocracia e do monarca) como forma de se fazerem respeitar os deveres cívicos e de manter a sociedade unida e estável. A Res Publica e mesmo o Império romano serve de exemplo desse republicanismo. Primeiro porque os cidadãos participavam ativamente da vida política; depois porque a constituição mista, formada pelos Cônsules, Senado e Tribunos da Plebe, acomodava os vários segmentos da sociedade em uma espécie de concordia ordinum, embora a Res Publica romana tivesse certa predominância da aristocracia senatorial (cf. Bottieri e Paskolnikoff. 1983).

Inglaterra, por exemplo, em James Harrington, quanto nos Estádoa Unidos ganharam cores revolucionárias, contagiadas por apelos às massas insurrefas na democracia radical do jacobinismo francês ("republicanismo vermelho"), e até que, por influência de Tocqueville (1987), surgisse uma vaga republicanista na III República que abandonou o caminho da ruptura, reconciliando-se com o passado, em favor de uma educação cívica capaz de fornecer as bases igualitárias de uma liberdade de participar ativamente da vida pública. Quando analisados mais detidamente, chega-se à conclusão de que os defensores britânicos da democracia do inicio do século XIX eram gritos derradeiros dos republicanos antigos e radicais populistas dos conturbados anos 40 seiscentistas (Tom Paine, Catherine Macaulay), embora, para alguns, o ideal de decência e de bom senso estivesse representado no fazendeiro inglês típico (William Cobbet) (cf. Wood. 1969; Pocock. 1975; Williams. 1992; Nicolet. 1992; Bailyn. 1992).

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A renascença recuperou a reivindicação de autogoverno fundado na soberania do povo e na virtude cívica de devoção ao bem comum, da responsabilidade e da integridade moral, da educação cívica e dos studia humanitatis, bem como de uma "constituição mista" como um contraponto à forma tirânica de governo. Maquiavel (1987a e b), por exemplo, defendeu que a função da política era estabelecer a ordem no mundo, por meio do poder bem exercido. Um Estado seria tanto mais forte quanto mais pudesse confiar armas a uma classe de cidadãos virtuosos. A nação, para ele, somente se constituiria se houvesse o gozo da liberdade. Mas o pressuposto da liberdade era a tolerância com os outros, pois a base da sociedade seria conflitual, cabendo ao Estado administrar os ânimos e os conflitos, por meio de uma "constituição mista". Restava aos cidadãos o culto aos valores coletivos e interesses nacionais. A feição mais democrática ou de "governo largo" de Maquiavel terá a concorrência do "governo stretto", aristocrático em Francesco Patrizi (Pocock. 1975: 273 et seq; Skinner. 2000: 172 et seq). Pouco a pouco, no entanto, a idéia de constituição mista, pelo menos em sua acepção pura, foi sendo deixada de lado, para assumir a feição de um poder representativo, derivado da great body of the society (Madison. 1961: 241), controlado por um esquema de separação de poderes. Montesquieu (2002), a propósito, deu ênfase à identidade entre legisladores e súditos, garantida por três poderes reciprocamente contidos. Os cidadãos, ainda de acordo com o autor, motivados pelo espírito público de servir à pátria, tornar-se-ão livres com a "aprendizagem cívica"' As influências do humanismo cívico ecoaram tanto na

Há autores que identificam a idéia moderna de república com a de Estado de Direito: "O estado republicano ou o estado de direito, isto é, o Estado que tira sua legitimidade de uma organização da sociedade em vista do 'bem viver', do interesse geral e do bem comum, dá conseqüentemente à Lei, ao Direito, o lugar de atributo principal no seu funcionamento" (ICRIEGEL, Blandine. 1993. latiée Rep ublicaine sous AncienRegirne,apud CARDOSO. 2000:30)

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Nos Estados Unidos, Adam Ferguson (1996) afirmava que a verdadeira liberdade consistia na participação politica. A liberdade pessoal, a propriedade e os direitos individuais seriam insuficientes para o exercício de todo talento humano, se não fossem acompanhados dos conceitos cívicos da virtude e participação política. Uma peculiaridade no pensamento de Ferguson, em relação ao pensamento comunitarista clássico, era dada pela coexistência que haveria no âmbito da sociedade entre conflito e solidariedade. Também o alcance de participação política era bem mais alargado do que aquele concebido pelos liberais, pois não se limitava às formas institucionalizadas, não só pelos riscos das possibilidades do abuso de poder, mas também porque o homem "estabelece-se como membro de uma comunidade, para cujo bem geral (general good) seu coração deve brilhar com um ardente entusiasmo, para supressão das preocupações pessoais que são a formação de dolorosas ansiedades, medo, ciúmes e inveja" (p. 56). Também a democracia jeffersoniana (1976) tinha como centro a cidadania ativa que havia de se prolongar nos pequenos recantos da vida simples de cada um. Tocqueville (1987), deitando os olhos sobre as práticas comunais da Nova Inglaterra, imaginou que haveria saída para o facciosismo e a idéia de negação ao passado, tanto quanto aos convites quase irresistíveis de um individualismo hedonista, pelo exercício autônomo da responsabilidade moral e política como via preferencial de realização do homem. Suas reflexões realistas não acreditavam, todavia, na possibilidade de retornos a miríades de estruturas comunais de cidadãos deliberantes sobre tudo o tempo todo, mas em, fazendo concessões ao mundo de seu tempo, com as nódoas da tentação revolucionária, de um lado, e das promessas de progresso e fortuna do individualismo, de outro, defender uma compatibilização entre a busca de utilidades individuais e a

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necessidade de cooperação na esfera social, por meio de um "interesse bem compreendido". Significava, por vezes, o sacrifício do interesse próprio ou ter a percepção clara de que ele só poderia ser realizado no alcance de um interesse mais geral. Não se negava o individualismo e a busca da prosperidade, mas se contentava com um "egoísmo esclarecido", misto de cupidez e patriotismo, que admitia pequenos sacrifícios a seus interesses imediatos para permitir a construção de uma "multidão de cidadãos corretos, temperantes, moderados, previdentes, senhores de si mesmos". Era o bastante para uma "virtude prática": "Nos Estados Unidos, quase nunca se diz que a virtude é bela. Afirma-se que é útil e todos os dias prova-se isto" (p. 401, 402).

da expressão "comunitarismo" urna tendência pejorativa de identificá-la com o sentido de justiça concretamente existente, o que lhe dá duas máculas: uma, de estimular leituras morais relativistas; outra, de confundir-se com o pensamento majoritário em uma particular comunidade e em um dado momento»

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O exemplo dessa factibilidade republicana era dada exatamente por um povo pouco virtuoso, mas capaz de ser livre, porque compreendera a necessidade de equilibrar a virtude e o interesse.' Curiosamente os elementos essenciais da constituição mista parecem subsistir, seja nos moldes quase clássicos dos britânicos (o monarca, os aristocratas da Casa dos Lordes e o povo da Casa dos comuns), seja em alguns sistemas constitucionalistas dogmáticos em que convivem o poder de muitos (legislativo), de um (presidente ou primeiro ministro) e de poucos (judiciário com controle de constitucionalidade e elites político-sociais) (Sampaio. 2003). 2' Tanto o comunitarismo quanto o republicanismo convergem na hierarquia do interesse comum sobre o individual, na ênfase à natureza social do homem, aos deveres cívicos de solidariedade e no reconhecimento do centro originário dos valores na vida compartilhada em contraposição às teses liberais de primazia dos direitos e do indivíduo como fonte de todos os s/' alores, mas se distinguem na forma como concebem a cidadania, pois, como bem nota Carvalho, o comunitarismo não é necessariamente virtuoso, de modo que o enfoque exclusivo na comunidade pode gerar uma "participação passiva" e uma "concepção autoritária" do bem coletivo, a exemplo do nacionalismo. Sande] (1996) vê no emprego

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"A partir do momento em que se tratam em comum os assuntos tomuns, cada homem percebe qu'er nãO é tão independente de seus semelhantes como imaginara a princípio [...1. VáriaS das paixões que revestem os corações e os dividem são então obrigadas a se retirar pai-a o fundo da alma e ali ocultar-se. O orgulho se dissimula; o desprezo não ousa vir à luz. O egoísmo tem medo de si mesmo"( ilidem, p. 389). O republicanismo clássico forneceu importantes elementos para a democracia liberal, como o ideal de virtude cívica, de legitimação, de controle de poder e o caráter representativo do governo.

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Também o republicanismo clássico preocupa-se pouco com o ideal de igualdade política, podendo abrir viés antidemocrático (democracia entendida como governo do povo), priorizando ora a aristocracia (governo do mérito e da virtude ética), ora a monarquia (governo de um homem extraordinário), ora o combinado de sabedoria do legislador filósofo, de honra e virtude da aristocracia no governo e judicância e da liberdade vigilante da plebe na construção platônica de um "República" (Platão. 2001: 715c); ou de mérito e riqueza (em favor do mérito e da riqueza — oligarquia) com a pobreza e ignorância (em favor dos pobres e ignorantes —democracia desviante ou oclodacia), transformando a virtude política em virtude moral, na busca do bem comum possível, da polis possível (Aristóteles. 2000, IV, 8). Sem embargo, analisaremos os dois pensamentos de forma única e intercorrente, porque os autores indicados como originários das bases teóricas de uns, v.g. Aristóteles para os comunitaristas, podem ser usados como fonte de outros, o mesmo Aristóteles com a idéia de "constituição mista", "governo dos cidadãos de classe média" ou Ponteia.' O recurso às tradições ou à fundação gloriosa do Estado ou da comunidade, que para alguns seria a marca do pensamento comunitário, tem raízes profundas no republicanismo cívico com apelos que se faziam a um passado republicano das cidades italianas como Florença e surge recorrentemente na linguagem político-constitucional norte-americana

" As distinções entre comunitaristas e republicanistas, sobre esse ponto, são marcantes, como bem registra Canovan,titado por D'Entreves (1994):"Arendt's conception of public realm is opposed not only tó sOciety but alsom community I.„ I. Wh i le greatly valui ng warinth, intimacy and naturalness in private life, she insisted on the importante of a formal, artificial public realm in which what matteres was the people's actions rather than their sentiments; in which the natural ties of kinship and intimacy were set aside in favour ela cleliberate, i mpartial solidarity with other citizens; in which there was enough space between people for them to stand back and judge one another coolly and objectively" (p. 151). 28

Convém analisar, a respeito, tanto o sucesso da república norte-americana, por sua composição igualitária e dominada pela classe média (p. 406), quanto a sua afirmação na Europa a partir do declínio das dinastias e grupos aristocráticos, dando gradualmente lugar às classes médias e trabalhadoras: Granisci. 1978: 157; Elias. 1997. Sobre a influência de Aristóteles no pensamento republicano: Sandel. 1996: 68, 70.

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como vínculos da história republicana ocidental, em Wood (1969), por exemplo, e nas alegorias retóricas dos founding fathers presentes nos textos atuais. Vínculos que podem não ser a uma nação ou povo, mas que se entrelaçam com uma h istória de idéias republicanas que liga o passado clássico e o humanismo cívico italiano ao processo de formação de novas identidades, abandonando-se a versão liberal tanto do cont ratualismo, quanto da alternativa utilitarista.

buição de possibilidades de compartilhamento de vida boa e como considera-1 ção das diferenças de necessidades e contribuições de cada um para a Conluni , cinde como um todo)," interesses comuns (que podem ser restrospectivos — de manutenção de valores, tradições e história compartilhados, especialmente em alguns comunitaristas" — ou prospectivos — de projetos de sociedade justa" —; ou de ambas as formas), interações face-a-face, opinião pública atuante, busca de consensos em torno da "vida boa"ou do "bem-comum"( coinmonwealth ). O princípio da lealdade e o da publicidade também marcam os ideários comunitaristas, inspirando teses contrárias ao voto secreto e à regra da maioria (Monsbridge. 1994; Barber. 1994) 34 e defendendo um livre fluxo de informação que possibilite o desenvolvimento de uma opinião pública informada (Dewey. 1994).

Misturam-se, portanto, nas linhas a seguir as vertentes republicanas e comunitaristas que concebem a sociedade como uma comunidade ética institucionalizada pelo Estado, sendo desde o seu início política. Homens e mulheres não se acham, nesse cenário, reduzidos a indivíduos egoístas que buscam a satisfação de seus interesses privados por meio dos processos de deliberação coletiva, pois, sendo seres de natureza social (Barber. 1994) e política (Sullivan. 1994), estão comprometidos com o projeto comum de vida social. Ou que se impõe, como assinalara Maquiavel (1987a), uma "vontade de interesse público". A sociedade civil, sobretudo nos republicanos, é vista como a esfera essencialmente democrática de realização do autogoverno. É interessante notar que, contrariamente ao pensamento liberal, as esferas privadas e públicas não se acham separadas, embora se mantenha uma relativa autonomia entre Estado e sociedade: "a sociedade com um todo e não apenas o Estado precisa ser vista politicamente, como um complexo de instituições que requer uma substancial medida de controle público e popular" (Hirst. 1996:101). Significa dize'r que a sociedade possui uma dimensão privada e uma esfera pública. Um mundo dominado por um individualismo ético-moral, como define Havei (1985), "onde viver em verdade (living in truth) se articula e se materializa de uma forma visível" (p. 65). Uma terra, todavia, em que há espaço para os deleites da intimidade e da cordialidade (D'Entreves. 1994), mas que se constitui em uma rede de solidariedade que de maneira descentralizada se autogoverna e se define como uma "pólis paralela"." A participação na vida cívica, como bem nota A rendt (1998 e 2002), é o meio de desenvolvimento pessoal e de alargamento dos.horizontes individuais e coletivos. Acham-se reforçados, nesse contexto, valores como respeito mútuo, solidariedade (para alguns, "amizade")," igualdade (como dist ri-

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A liberdade passa a ser vista como a "virtude cívica" de realizar a dignidade humana e de se obter o bem para todos, entendido este como o "gozo pleno das capacidades que caracterizam a vida humana próspera" (Sullivan. 1994:194).

make their decisions unanimously". Segundo Walzer (1983), o sentido de igualdade mutável em razão do critério distributivo empregado. Postula, todavia, um regime de igualdade complexa em que a apropriação de bens não importa a dominação de pessoas, nem possibilita a instauração da tirania ou outra forma de conversão de um bem em outro sem que haja uma conexão intrínseca entre ambos:"Equality is a complex relation cif persons, mediated by the goods we make, share, and divide amo ng ourselves; it is not an identity of possessions.(...). In formal terms, complex equality means that no citizen's standing in one sphere or with regard to one social good can be undercut by his standing in some other sphere, with regard to some other good" (p. 18,20). " Ver Sullivan. 1994:200. " Para Mactntyre (1981), a pertença à tradição é elemento fundamental no processo de

formação de identidade pessoal e coletiva. "The possession of an historical identity and the possession of social identity coincide." Essa pertença não importa conservadorismo, pois a tradição é dinâmica e experenciada, reconstruída por uma virtude de ter uns adequado senso de sua pertença a uma living tradition: "an adequate sense of tradition manifesto itself in a grasp of those future possibilities which the past has made available to the present" (p. 205, 207). Walzer (1987), sem tanto apego a vínculos fortes da tradição, fala todavia de "community's previous shared understanging". " De criação do bem comum: Barber. 1994.

" De acordo com Hirst, "civil society must no longer be viewed as a 'private' sphere, it needs to take on elements of `publicity' in the original sense of terra". Op. cit., p. 101. ° Mansbridge (1994:203), que fala em "democracia unitária" firmada na "amizade" (friendship). "They ifriendsi share a common good, and are able, as consequente, to

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" J. S. Mill (1991) também combatera o voto secreto, que, para ele, retiraria o sentido da responsabilidade moral do eleitor: "the vater is under an absolute moral obligation to consider the interest of the puclic, not bis private advantage, and give his vote to the best judgment, exactly as he were bound to do if we were the sole votei, and the election depended on him alonte."

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Liberdade é a satisfação de sentir-se membro importante de um avançado modo de vida que reflete ideal de vida boa. Ou como a define Sandel, uma decorrência do autogoverno que a cidadania exercita nos processos deliberativos do bem comum ( common good)." Os direitos, diferentemente da justificação liberal que os atrela à capacidade de as pessoas escolherem sozinhas seus projetos de vida, estão, no republicanismo, "vinculados a certos fins e objetivos, nomeadamente o fim compartilhado pelos cidadãos que torne possível o autogoverno" (p. 58). É, portanto, a partir desse fim que se podem resolver conflitos entre direitos, o que também é feito no pensamento liberal só que de maneira escamoteada, pois a prevalência de um sobre outro direito leva sempre em conta uma certa forma de vida dos valores que se hierarquizam em argumentos morais ou até religioáos em torno dos bens tutelados (p. 74).

Em Dewey (1930), o indivíduo só ganha soberania cidadã quandokerygdo bem comum e é somente na democracia que se pode desenvolver esse " individurn lismo de liberdade e de responsabilidade". Porém, a democracia está atrelada , a condições pré-políticas de igual oportunidade e de divisão justa de trabalho, de modo que os indivíduos possam se sentir socialmente úteis, realizando o seu potencial e sendo reconhecidos pelos demais, gerando-lhes uma vontade e uma consciência de cooperação. O governo se projeta, assim, como representação viva da cadeia social cooperativa concreta que aprende com seus erros e acertos." De acordo com Barbei- (1994), uma democracia em sentido comunitarista (ou forte) se preocupa menos com a forma de fazer escolhas certas e mais com a maneira de fazer escolhas corretamente. Significa dizer que a democracia não é um procedimento de seleção de preferências nem de otimização racional de escolhas de satisfação de interesses particulares. É por isso que a regra da maioria, a pretexto de abreviar ou permitir decisões rápidas, não serve aos propósitos consensuais do comunitarismo, pois ela reflete o "privatismo cívico" dos liberais com a sua incapacidade de criar uma "política de mutualismo" que supere a barganha e concorrência dos interesses particulares (p. 218). O sentido comunitarista, ao contrário, repõe homens e mulheres como "seres sociais" que visam empregar o meio democrático como veículo de vontade (will) e de julgamento, orientado pela idéia do "que é bom para nós" (p. 219). Torna-se a tanto indispensável o diálogo ou, nas palavras de Barbet -, a discussão (talk) dos cidadãos em processos participativos de autolegislação que obrigam, como pressupostos, à consideração do outro e à procura de soluções praticas que sejam boas para todos, segundo o teste kantiano da universalidade. Diante das propostas e argumentos apresentados por um interlocutor, "eu me porei em seu lugar, eu tentarei entender, (...) eu estarei atento para uma retórica comum evocativa de um propósito comum ou de um bem comum" (p. 217). Sandel (1996:71) chama a atenção para os processos decisórios em mundo complexo como o atual, de modo a que a busca pela "vicia boa" não legitime formas de vida desprovidas de eticidade, relativizando moral. No seu entender, portanto, o autogoverno cidadão deve atender a duplo imperativo: o da aspiração a uma moralidade universal entremeada à procura de

A democracia defendida por eles, como vemos, não se atém a votar e ser votado, pois cOnfunde-se com a prática cotidiana dos cidadãos, que são convidados ao autogoverno pelo "oásis republicano" no deserto despolitizado que se tornou a sociedade de massas (Isaac. 1998). A "participação" se torna a palavrachave: participação em movimentos ecológicos, em ajuda a necessitados ou como voluntariados em programa de sande e educação, em luta contra o desrespeito ao patrimônio cultural ou contra a fome e a miséria. É a política, prenhe de conteúdo ético, que se incorpora à rotina de uma cidadania militante (Paternal]. 1994)." Essa militância forma uma grande rede de associações cívicas, denominada por Putnam (2002:173 et seq) de "capital social", que constitui as bases sólidas para o florescimento da democracia. Se ficarmos bem atentos para essa afirmação de Putnam, veremos que a democracia como "autogoverno" deixa de significar apenas forma institucionalizada de formação de vontade coletiva por meio do Estado, para habitar a sociedade civil que, por meio de associações e de ajudas mútuas, pelos "hábitos do coração", resolve seus problemas."

35

"What casts that tradition [in which liberty depends on selfigovernment] in tension with the version of liberalism that insists on neutrality is that politics should a im to form or cultivate certain qualities of character - certain habits and dispositions— among its citizens, to equip them to share in self-government." Sande!. 1996:67.

36

Pelo menos para a concepção forte do republicanismo, pois, como acentua Sandel (op. cia, p. 68), para uma concepção débil ou modesta, o autogoverno é importante inde-

pendentemente dos fins não políticos dos cidadãos, enquanto aquela versão mais forte reivindica "that to share in self-government is an essential aspecto of. realizing our full human capacities for living a good life". 37

Todavia, Putnam não acredita que o crescimento de "organizações terciárias" em que seus membros não conhecem os outros venha a substituir o déficit de civismo e das

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relações associativas face-a-face, identificados por Tocqueville como característica do sucesso da democracia nos Estados Unidos: 1995: 65-78. " Honneth (2001) não inclui Dewey entre os republicanistas, defendo sua teoria como uma terceira alternativa, considerando o procedimentalismo como uma segunda, à concepção liberal de democracia.

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formas particulares de identidade. Tanto os governantes devem deixar de lidar com os cidadãos como se fossem "clientes do processo cívico", quanto os cidadãos devem trazer para si a responsabilidade pelos seus destinos, ampliando as redes de solidariedade que marcam costumeiramente as relações de vizinhança. Cidadania e comunidade são, assim, dois aspectos de uma mesma realidade política. A formação da vontade democrática se dá pela práxis dos cidadãos de buscarem coletivamente o bem comum."

dominação machista (Pateman. 1987:120). A derrapagem a um excessoide subjetivismo e de feições liberais enrustidas em discurso político também, é anotada como risco republicano. A auto-organização da sociedade é tomada a partir do cidadão-indivíduo, o que abre espaços para perspectivas de cunho particular ou subjetivista de uma nova militância supostamente emancipadora, mas que apenas converte, segundo Ely (1992:178), idéias libertárias em símbolos antigos do liberalismo. Uma dessas sombras liberais se localiza na frágil articulação entre "sociedade civil" e Estado. Não se vislumbra uma teoria que aprofunde essa relação. Pode-se mesmo afirmar que a leitura republicana nos revela uma forte concentração de toda carga moral e ética na sociedade, rebaixando o Estado a centro de poder institucionalizado mas sem as virtudes da política. É, portanto, um Estado "sem poder", porque o poder para os republicanos é produtor de laços de solidariedade — e não poder de coerção — que se devem prolongar, com ecos da democracia participativa e industrial, em toda esfera da sociedade — da empresa aos pequenos grupos.

As críticas contra essa concepção de democracia apontam para as sociedades extremamente complexas nas quais o recurso a vínculos históricos e culturais são meras figuras de linguagem. Na mesma direção, a sobrecarga que se impõe à esfera política pode tanto levar ao esgotamento da virtude cívica 'resultando na apatia dos cidadãos, quanto à absorção totalitária da esfera privada. Frankel (1997:64) observa, a propósito, que a "reconstituição da sociedade civil" depende, em primeiro lugar de uma "estrutura comunitária" que, todavia, não existe e, depois, somente pode ser formulada "como um projeto burocrático". E com pretensões de domínio dos valores das gerações futuras pelas presentes, podendo ainda descambar perigosamente para o nacionalismo, acrescenta Bauman (1998:237). Além do mais, pode haver uma sobrevalorização do cidadão ativo e, portanto, independente comparativamente dos indivíduos autômatos, abrindo espaço tanto para o elitismo, quanto para o totalitarismo (Isaac. 1998). Para Young (2001), ainda há riscos de manutenção do status quo e dos privilégios do grupo social dominante: "Quando os participantes da discussão visam à unidade — o apelo a um bem comum para o qual todos devem deixar para trás suas experiências e interesses particulares—as perspectivas dos privilegiados [material ou simbolicamente] dominarão, provavelmente, a definição desse bem comum" (p.376).

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É um Estado, enfim, quase inimigo se não fosse aqui e ali a atribuição de

pontuais tarefas distributivas. O mercado, esse sim, é inimigo feroz, porque é o centro do egoísmo humano, resultando pouco ou nenhum estudo sobre sua relação com a sociedade civil. Tem-se, ao contrário, a nítida impressão de que essa relação é complicada, senão praticamente impossível pela força desagregadora da economia nos laços sociais.' Para Crick, por outro lado, o republicanismo é essencialmente aristocrático, porque aceita—ou não contesta — a economia liberal, na exata medida que esta foi o sucedâneo da política mercantilista aristocrática (Crick. 1996: 662). 2.3 Concepções mistas

Vimos, sobretudo em Arendt e em Havel, o reconhecimento de uma esfera social não política (mas indispensável para a concepção política da sociedade), dominada pelas relações privadas e domésticas, que esconde, ao fim, estados de

Tais concepções, também ditas "ecléticas", reúnem elementos liberais e republicanos. Podemos pensar, a título de mera ilustração, no procedimentalismo democrático em diversas matizes, que, embora possam realçar as virtudes cívicas dos cidadãos, estão muito mais preocupadas com a adoção na esfera pública de procedimentos moralmente justificados (Benhabib.1992: 73 et seq). Seguindo o

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Há quem defenda que a cultura árabe é prenhe da visão comunitarista. Certamente que a esfera pública é ativa nos Estados árabes, mas paradoxalmente têm prevalecido regimes totalitários com governos formados por uma elite pouco afeita a eleições e imprensa livre. Barkhash. 2001: 403 et seq.

"The effect is to conceptualise away the problem of capitalism by dissagregating society into fragments, with no overarching power structure, no totalising unity, no systemic coercions — in other words, no capitalist system, with its expansionary drive and its capacity to penetrate every aspect of social life". (Wood. 1995: 245)

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método — e os riscos — da sistematização do procedimentalismo, podemos destacar quatro linhas distintas: o procedimentalismo deliberativo amplo (a), o procedimentalismo deliberativo-discursivo (b), a democracia semi-direta (c) e a teoria radical pós-moderna (d).

iguais para todos. Nesse projeto, "as liberdades políticas, e somente estas, deverão ter seu valor eqüitativo garantido"; e (2) as desigualdades sociais e econe,-; micas devem satisfazer a dois requisitos. Devem estar vinculadas a posições e cargos abertos a todos, em condições de igualdade eqüitativa de oportunidades; e devem representar o maior benefício possível aos membros menos privilegiados da sociedade (p. 47-48). Em seguida, especifica um ponto de vista que tenta justificar por que "esses princípios sejam considerados mais adequados do que outros para realizar a idéia de cidadãos democráticos tidos como pessoas livres e iguais" (p. 47).

a) Procediméntalismo deliberativo amplo A democracia deliberativa se preocupa com as formas de decisões que pos-

sam conferir máxima legitimidade aos seus resultados, sobretudo mediante processos discursivos que se devem institucionalizar com obediência a princípios racionais. Há pelos menos duas "formas fracas" do procedimentalismo deliberativo. Uma que restringe o envolvimento de quase todos a raros momentos da vida política, outra que dá ênfase à formação de pequenos grupos deliberativos. Na primeira versão podemos lembrar Ackerman e Rawls. Ackerman (1998) defende uma "concepção dualista" de democracia. Para ele, o governo representativo sob controle de uma Suprema Corte apta a conter-lhe os excessos seria a regra comum da democracia. Todavia, em situações excepcionais, haveria uma tal mobilização popular que se instauraria uma "democracia da crise". Nos Estados Unidos, de acordo com o autor, teria havido três ocasiões como essa; a promulgação da Constituição, as emendas constitucionais decorrentes da Guerra de Secessão e o New Deal. Mas essa mobilização não significa necessariamente o povo nas ruas ou votando por meio de referendo, podendo importar apenas uma reivindicação geral e difusa por mudanças de valores e de consciência social. Já Rawls (1981 e 1997) professa um neocontratualismo que visa determinar qual princípio das liberdades e qual o princípio da repartição dos frutos ou das riquezas devem prevalecer em uma sociedade organizada. Enquadrar Rawls como teórico de uma concepção mista de democracia pode parecer uma heresia se o próprio autor intitula-se liberal. Mas Rawls mesmo afirma que seu liberalismo é "algo bem diferente" do que normalmente se supõe (2000:45). A idéia que o move procura definir um tipo de democracia constitucional que satisfaça "os termos eqüitativos de cooperação entre cidadãos considerados livres e iguais" e as "exigências tanto da liberdade quanto da igualdade" (p. 45-47). A sua "justiça como eqüidade", portanto, visa arbitrar entre a tradição lockiana, que dá mais peso às "liberdades dos modernos", e a tradição associada a Rousseau, que dá mais ênfase às "liberdades dos antigos", propondo, em primeiro lugar, dois princípios de justiça que "sirvam de diretrizes para a forma pela qual as instituições básicas devem realizar os valores de liberdade e igualdade": (1) todos têm igual direito a um projeto inteiramente satisfatório de direitos e liberdades básicas

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Mesmo o recurso liberal à idéia de cidadãos dotados de autonomia racional vê-se ligado a uma hipotética posição original, em que o indivíduo desconhece seu destino, riqueza e posição dentro da sociedade, com vistas a definir os princípios de justiça que regularão as estruturas básicas da vida em comum. A posição original, assim, é 'um "caso de justiça procedimental pura" e não de "justiça procediMental Perfeita", porque não há uma predeterminação do que seja justo; "quaisquer que sejam os princípios que as partes selecionem da lista de alternativas apresentadas a elas, eles são aceitos como justos" (p. 117). O "liberalismo político" supõe pluralismo ("existência de muitas doutrinas abrangentes razoáveis e conflitantes"), tolerância ("quando há pluralidade de doutrinas razoáveis, não é razoável querer usar as sanções do poder do Estado para corrigir ou punir aqueles que discordam de nós") e a meta de um consenso sobreposto. Um tal consenso deve apresentar três características: (a) ser um consenso entre doutrinas abrangentes e razoáveis e, por conseguinte, ter por objeto uma concepção política e moral de justiça (pluralismo razoável); (b) essa concepção deve ser endossada por razões morais. Cada um parte de sua própria visão abrangente e se baseia em razões políticas, filosóficas e morais que aquela visão oferece; e (c) o consenso deve gozar de estabilidade (p. 190 et seq). Como se pode notar, Rawls não se ocupa apenas com elementos liberais de direitos básicos negativos, detendo-se, em grande escala, a refletir sobre o bom uso da razão pública e sobre a recuperação do espírito cívico esquecido em algum lugar do passado. Em suas lições. percebe-se nítida busca da aplicação de argumentos de conteúdos substantivos da razão pública, empregados de forma a excluir o interesse próprio ou perspectivas particulares e parciais, de tal modo que possam ser aceitos por todos»

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Ele mesmo admite a compatibilidade de seu liberalismo político com o republicanismo clássico (de Tocqueville e Maquiavel), na medida em que os cidadãos devem participar

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Segundo Rawls (2000), a concepção política orientada na direção de um "consenso sobreposto entre doutrinas razoáveis" não precisa ser abrangente, basta criar mecanismos de decidibilidade:

que atendam a certas necessidades essenciais" (p. 211). Isso só é possível graças à adoção dos princípios firmados no consenso constitucional.

"Uma concepção política é, no melhor dos casos, apenas um guia para orientar a deliberação e a reflexão que nos ajudam a chegar a um acordo político, pelo menos, sobre os elementos constitucionais essenciais e sobre as questões básicas de justiça" (p. 202-203).

iguais e da igualdade eqüitativa de oportunidades, bem como pela distribuição eqüitativa dos bens primários entre todos os cidadãos". Estes, por sua vez, assumem a responsabilidade pela "revisão e ajuste de seus fins e aspirações em vista dos meios polivalenteá de que podem esperar dispor" (p. 237). Essa distribuição de papéis também se opera na condução dos assuntos políticos. A participação direta do povo só deve ocorrer em situações muito restritas, como na discussão de matérias de índole constitucional ou quando envolver questões de "justiça básica", a exemplo da igualdade de oportunidade e de critério sobre distribuição de riquezas. Ele se dá conta cie que algumas pessoas são mais aptas, talvez mais conscientes, mais informadas ou mais disponíveis, na utilização da razão pública, de modo que a sociedade termina por delegar a elas um papel decisivo no processo de deliberação e do destino comum, institucionalizando-se em cortes judiciais e no legislativo (p. 262 et seq). A segunda versão débil de democracia deliberativa é dada por aqueles que propõem um número restrito de pessoas envolvidas nos processos decisórios. Nessa ordem de idéia, poderíamos lembrar as "votações deliberativas de opiniões" para "júris dé cidadania" de Fushkin (1995), a "demarquia" de 13urnheim (1985) e até mesmo o "minipopulus" de Dahl (1985). Há ainda quem defenda uma amostragem aleatória de um número significativo da população que indique como o povo votaria sobre determinada matéria. Essa "democracia deliberativa simulada" pautaria decisões parlamentares importantes. Eckersley (2000) expande sua noção de "comunidade de afetados" que não compõem as arenas públicas deliberativas, mas que devem ter seus interesses necessariamente considerados, incluindo as futuras gerações e mesmo o mundo não-humano. A legitimação das decisões dependeria, portanto, da justa equação, fundada em razões bem estruturadas, entre os interesses dos representados reais e presentes e os interesses dos cidadãos futuros e mesmo dos não-cidadãos (ainda Elster. 1998; Thornpson. 1999). Mas esses sentidos fracos de democracia deliberativa não resolvem inteiramente o problema da legitimação, porque não se preocupam com padrões contrafactuais de uma deliberação racional, sendo vistos mais como fórmulas contemporizadoras de democracia liberal-representativa. O próprio Rawls (1991:771-772) se define mais como um "teórico deliberativo" do que como um "democrata deliberativo" Já a política democrático-deliberativa defendida por Joshua Cohen (1989) parte de condições formais do uso institucionalizado e imparcial de razões

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O "consenso constitucional" é o estágio primeiro de criação e estabilização do consenso sobreposto. Ele se firma na institucionalização de certos princípios

de justiça e de procedimentos eleitorais democráticos aceitos como um modus vivendi e destinados a "moderar a rivalidade política no interior da sociedade": "O consenso constitucional não é profundo e tampouco é amplo: seu âmbito é restrito, não inclui a estrutura básica, mas apenas os procedimentos políticos do governo democrático" (p. 206). Põem-se como requisitos da estabilidade desse consenso: a) a garantia e a prioridade especial dos direitos políticos fundamentais (voto, expressão, associação), associadas a medidas que se destinam a assegurar aos cidadãos meios materiais para o gozo de tais direitos, retirando da agenda política discussões e cálculos dos interesses sociais sobre referidas questões; b) o uso público da razão pública na aplicação dos princípios liberais de justiça; e c) o reconhecimento pelos cidadãos de que as instituições políticas básicas incorporam esses princípios e a forma de razão pública empregada, de modo a estimular as "virtudes da cooperação política que tornam possível um regime constitucional", integrantes do "capital político da sociedade", como a tolerância, a disposição de fazer concessões mútuas, a razoabilidade e o senso de justiça. O passo para um consenso sobreposto, idéia sempre realizada por aproximação, é dado com a ampliação vertical de conteúdo consensuado, de forma que os princípios e ideais políticos tenham uma "concepção política de justiça que utilize as idéias fundamentais de sociedade e pessoa da forma ilustrada pela justiça como eqüidade". Incorporam-se, portanto, princípios abrangentes da estrutura básica e de certos direitos substantivos, "como a liberdade de consciência e penáamento, e a igualdade eqüitativa de oportunidade e de princípios

da vida pública como forma de garantir seus'direitos e liberdades básicos. Não vê, todavia, compatibilidade com o "humanismo cívico" (de Taylor e Arendt) que apresenta o homem como animal social ou político, sobrepondo a liberdade dos antigos à dos modernos (2000:254-255).

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Há, nesse estágio, imprescindível "divisão social da responsabilidade", cabendo à sociedade a responsabilidade pela "manutenção das liberdades básicas

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públicas para solução de conflitos e tomada de decisões coletivas. Dentre elas estão o recurso a argumentos, a publicidade de intenções, a igualdade (em informação e participação), o vinculo•às condições deliberativas e à busca de acordos motivados.' Tais acordos, todavia, mostram-se sempre provisórios em decorrência das limitações circunstanciais de tempo e informação que obrigam o apelo à regra da maioria. Benbabib (1996:68), por seu turno, vê como ponto central da democracia a articulação entre o "bem comum" e a soberania popular, reconciliando a racionalidade e a legitimidade dos processos deliberativos. A legitimidade deve ser obtida por deliberações tomadas, de forma livre e sem constrangimento ou opressão, por todos os membros da coletividade sobre questões de interesse comum: "todos devem ter a mesma oportunidade de falar, questionar, interrogar e abrir os debates t...), [bem assim] de pôr em pauta de maneira refletida as regras processuais do discurso e•a sua aplicação" (p. 70). As deCisões que venham assim a ser tomadas precisam ser justificadas racionalmente de tal modo que os eventuais afetados possam refletir de maneira a'aceitá-las como universalmente válidas. As limitações práticas de modelos representativos impõem, todavia, aos representantes deliberativos escutar a "conversa do público anônimo" que se opera em redes e associações de argumentação, de crítica e de deliberação (p. 74). Gutman e Thimipson (1996), em sentido próximo, defendem um modelo de democracia deliberativa que visa suprir os déficits democráticos, mediante a consideração necessária de Princípios deliberativos ciue dariam coerência moral e racionalidade ao processo político. O atendimento a tais princípio, assim, refOrçaria um senso de fins morais coletivos, permitindo a expressão de uma "concepção do bem comum possível no âmbito de uma sociedade moral pluralística" (p. 93). Esses princípios imporiam obrigações aos cidadãos de procurar uma "acomodação moral", por via discursiva, sempre que suas concepções divergirem. De acordo com os autores, tais princípios seriam a "reciprocidade", a "publicidade", e a "controlabilidade", tendo como matéria de deliberação a liberdade básica", a "oportunidade básica" e "justa (fair)" (p. 348).

mútuo, entendido como uma atitude favorável em relação àqueles dé quem se discordasse (p. 93). A democracia, portanto, necessitaria da criação de colidi= ções materiais adequadas e sobretudo de uma educação cívica que ensinasse às crianças "não apenas a respeitar a dignidade humana, mas também a valorizar seu papel na promoção da cooperação política de modo que possam tornar-se cidadãos moralmente motivados" (p. 66). Íris Young (2001) defende uma "democraciatoinunicativa", firmada sobre uma unidade mínima que se extrai de três condições: (i) interdependência significativa — dada pela faticidade de pessoas, que por razões econômicas ou de vizinhança, afetam-se reciprocamente por desenvolverem suas atividades e ambições; (ii) respeito formalmente igual — consistente no reconhecimento de que todos têm direito de expressar suas opiniões e pontos de vista e que todos devem escutar; e (iii) procedimentos acordados — os integrantes da sociedade devem concordar sobre as regras da discussão e de tomada das decisões. Os processos de entendimento, nesse contexto, considerarão que as diferenças de posição social e de perspectivas de identidade não são divisões que devem ser transcendidas pela razão pública, mas recursos para ela. Somente assim poder-se-á pensar em transformação qualitativa do entendimento, que ocorre de três maneiras: (i) deixando que a diversidade de cultura e interesses revele parcialidades de reivindicações e coloque as próprias experiências nessa perspectiva; (ii) admitindo que, por critério de justiça, demandas oriundas daquela diversidade possam suplantar minhas reivindicações, de forma que "propostas de políticas coletivas" não precisem necessariamente ser expressas como interesse geral, pois pode haver casos em que haja um dever público de reconhecimento e satisfação de "necessidades únicas de pessoas de situação única"; e (iii) tendo por certo que expressar, questionar e desafiar o conhecimento e as reivindicações alargam os horizontes de todos os participantes e proporciõnam soluções mais justas para os problemas coletivos. Esses meios se operam mediante a argumentação crítica, mas também por meio . (i) da saudação ou sicofantismo que, nutridos no reconhecimento das diferenças de cultura, valores e opiniões, abrem os debates com lisonjeios e gestos de delicadeza; (ii) da retórica, que visa primeiramente chamar a atenção da platéia, empregando o humor, os jogos de palavras, imagens e linguagem figurada, de modo a "puxar o pensamento por meio do desejo" e persuadir a audiência; e (iii) da narrativa, que, por meio de histórias contadas sobre experiências subjetivas particulares e sobre valores decorrentes de certas práticas, vivências, contextos e lugares, bem como sobre a visão que se tem do todo, permite que se desvende a perspectiva de como cada um enxerga o outro, de modo a propiciar a compreensão recíproca e a "sabedoria social coletiva".

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A idéia de reciprocidade superaria a.tradicional noção de tolerância, pois não se limitaria apenas a exigir que a maioria não turbasse o direito de as minorias expressarem seus pontos de vista publicamente, alcançando também a esfera privada. A reciprocidade discursivamente deliberativa requereria respeito

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"Outcomes [of deliberation] are democratically legitimate if and only if they could be the object of a free and reasoned agreement among equals" (p. 22).

rt

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Ainda Dryzek (2000) defende urna linha deliberativa plural, que considere realisticamente as diferentes aspirações, valores e identidades dos membros da sociedade que se fazem mediar na esfera pública por "discursos de contestação". Tais discursos contemplam diversas formas de comunicação, orientadas sempre pelacapacidade de induzir reflexões, não aceitando disparidade entre os interlocutores, nem coerção, e tendo a aptidão de conectar a experiência particular dos indivíduos, grupos ou categorias com os princípios mais gerais de igualdade, abertura, respeito, reciprocidade e, sobretudo, com o ideal de um acordo possível e real. A opinião pública, entendida como resultado da constelação dos discursos, comunicativa e dispersamente, abertos à participação e ao controle de um número indeterminado de participantes, serve como principal correia-de-transmissão entre a sociedade plural e o Estado. Nesse sentido, as eleições têm relevante papel na exteriorização e formação da opinião pública, mas, por si apenas, não representam a vontade popular. A forma descentralizada, enredada e sem hierarquia de formação de opiniões, estratégias e objetivos comuns se aplica à promulgação de normas que, por vezes, podem ser formalizadas como princípios Constitutivos. Há, em suma, uma crença generalizada, entre as diversas variantes da democracia deliberativa ampla, na capacidade do cidadão comum, desenvolvida por um processo de educação Cívica, de esclarecimento e de informação livre, que se exercita de forma mais igualitária, participativa e inclusiva possível (Nino. 1996; Fishkin. 1999). Mas as teorias deliberativas não dizem como retirar, empiricamente, os cidadãos de sua apatia e como efetivamente enfrentar um sistema de monopólio da informação que define gostos e vontades públicas, às vezes de forma escancarada, na maioria dos casos, de forma sutil e subliminar. Por outro lado, em que bases antropológicas, sociológicas, políticas e psicológicas poder-nos-emos convencer de que uma carga de pedagogia cívica importe uma "cooperação política sustentável" ou, como acentua Shapiro (1999:33), que homem de carne-e-osso poderá deixar-se convencer sobre decisões coletivas que o afetem gravemente, Por mais justificadas que sejam? O'Donnell (1999:588) prefere claramente distinguir democracia política e espaços sociais democráticos, ainda que ambos componham os "processos democráticos". A rigor, as duas formas possuem particularidades e princípios que não permitem confusão, sendo difícil, na prática, a existência de uma "esfera deliberativa livre de impedimentos". Para Bohman (1998:401), os democratas deliberativos estão mais preocupados com problemas da institucionalização de processos decisórios, por exemplo, como votar e como

ou quando empregar a regra da maioria, que papel deve ter uma Constituição e os juízes nesse processo, do que em resgatar formas de participação efetiva e mais direta dos cidadãos, por exemplo, pelo emprego do referendo e recai?. Há quem vejiiaind a, nas propostas deliberativas amplas, um campo fértil para a arbitrariedade, instabilidade e sobretudo para a manipulação do povo, comprometendo as bases de acordo ou de consenso possíveis no âmbito das decisões coletivas (Mills. 1996). Autores como Cavell destacam também a desconsideração, por Rawls e por parte dos deliberativistas em geral, da inexorabilidade das formas de vida na definição dos princípios de justiça, preferindo falar em um consenso racional justificado. Ora, muitas das reivindicações de justiça não se referem à suposta derrota em uma luta justa entre razões apresentadas em uma posição original de contratantes, mas por não ter sido levado em conta desde o início em função de princípios gerais que possibilitam a formação de consenso, sem atinar para situações de comezinhas injustiças (Cavell. 1990).

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b) Democracia deliberativo discursiva -

Habermas (1997) concorda com a crítica ao sujeito moderno elevado a uma categoria universal, tanto por seu reducionismo liberal a mônadas de interesses concorrentes por poder e dominação, quanto pelo projeto republicano que o considera uma peça do todo, constituído por uma identidade histórico-cultural, e orientado para objetivos comuns preestabelecidos. Para ocupar o espaço deixado pelo sujeito, ele coloca as formas de comunicação que regulam o fluxo de opinião discursiva e a formação de vontade. A teoria discursiva de Habermas procura, assim, ligar a autonomia privada com a autonomia pública, soberania popular e direitos humanos, por reputá-los co-originários, complementares e pressupostos reciprocamente (II, p. 40). Honnryh (2001:66) anota que essa ligação distancia o procedimentalismo harbemasiano do republicanismo e se projeta nas visões da legalidade que cada um deles tem. Na perspectiva republicana, a lei é expressão da autocompressão de cidadãos solidários; enquanto para o procedimentalismo, representa "medidas precautórias, sancionadas pelo Estado e moralmente legitimadas, de proteção do procedimento democrático." A legitimidade é dada pela aceitabilidade (e aceitação fálica) dos instrumentos por meio dos quais o processo legislativo responde a demandas advindas de uma opinião pública formada na esfera pública política. Habermas alarga o alcance dessa esfera, de forma a reunir, além dos ritos institucionalizados, espaços informais de construção da opinião pública. Os procedimentos institucionalizados devem atender às condições do discurso de toda comunicação humana (verdade das asserções, correção normativa

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e autenticidade; interlocutores livres e iguais, razões públicas e inclusivas, busca de consenso orientado pela força do melhor argumento), assumindo todavia a forma política representativa e a regra da maioria como faticidades que reduzem a complexidade social. Mas tais condicionantes fáticos não podem importar a negação da minoria ou dos afetados, nem a renúncia àquelas condições procedimentais. A regra da maioria assim aplicada não é o somatório de preferências individuais, mas produto de uma deliberação coletiva que se assenta sobre os pressupostos comunicativos (I, p. 223). A sociedade civil, em Habermas, não eqüivale à sociedade burguesa, pois não inclui a economia, sendo formada por associações e organizações não-estatais, além de movimentos que "captam os ecos dos problemas sociais que ressoam nas esferas privadas, condensam-nos e os transmitem, a seguir, para a esfera pública política" (II, p. 99). Já a esfera pública política desdobra-se em formal e não formal. Esta, de sua vez, é sediada na sociedade civil e se impõe a fomentar o debate informado das questões, inclusive as reputadas de natureza eminentemente privadas, que estão ou devem estar contidas na agenda política e nos procedimentos institucionalizados (II, p. 92 et seq). O exercício do poder político é decorrência do poder comunicativo (aquele que se orienta por relações lingüísticas intersubjetivas na busca de entendimento) dos cidadãos, legitimando-se pelas leis que eles criam para si mesmos: "Quando se considera essa práticacomo um processo destinado a resolver problemas, descobre-se que ela deve a sua força legitimadora a um processo democrático destinado a garantir um tratamento racional de questões políticas. A aceitabilidade racional dos resultados obtidos em conformidade com o processo explica-se pela institucionalização de formas de comunicação interligadas que garantem de modo ideal que todas as questões relevantes, temas e contribuições, sejam tematizados e elaborados em discursos e negociações, na base das melhores informações e argumentos possíveis" (I, p. 213).

A opinião pública é considerada um "poder comunicativo", gerado por "comunicações sem sujeitos'', que se projeta no processo legislativo (captador, em tese, de todos os argumentos e razões tanto de natureza ética, quanto moral e até pragmática, na busca de atender ao equilíbrio eqüitativo de interesses particulares, no quadro de "um procedimento democrático amarrado à perspectiva da fundamentação das normas"), na administração (executor do poder comunicativo transformado em leis, mas dominado pela idéia de eficiência e, conse-

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qüentemente, pelos discursos pragmático-teleológicos) e na justiça (que apliCa a lei, mas que tem acesso restrito a razões positivadas nas normas) (I, p. 239). Dizem-se debate e consensos informados porque levam em conta todas as informações disponíveis, todos os pontos de vistas dos interlocutores, reivindicações e argumentos que só terminam quando a força do melhor argumento houver permitido o acordo. Essas condições procedimentais neutralizam as demandas sistêmicas da economia e do poder administrativo, que são regulados pela lógica da eficiência. Visa-se, em ambas as esferas, a um acordo, embora não se parta necessariamente de um consenso de valor desenvolvido em tradições e formas de vida compartilhadas, pois engloba quem queira uma regulação imparcial da vida em comum. Habermas procura demonstrar com isso que a práxis comunicativa traz à tona — ou melhor pressupõe—que a democracia não é um valor do homem ocidental, mas uma aspiração comum de qualquer que deseja uma convivência em bases racionais. As críticas a Habermas dizem respeito à perda de substância de sua democracia, que se esquece das necessidades reais dos homens (Kaufmann. 1998; Heller. 1998), da base necessariamente conflituosa da convivência humana (Rancière. 1995) e opera com uma cidadania abstrata, que permite a naturalização das desigualdades e opressões, além de impedir reivindicações de reconhecimento de povos dispersos no corpo de um povo nacional (Zizek. 2002). 4 ' Alguns autores usam Wittgenstein contra Habermas sobretudo para infirmar a possibilidade de regras de um discurso racional aplicadas a um processo deliberativo neutro. As regras não são construções prévias ou princípios que possam ser aplicados em casos concretos, mas são resultado de práticas que se desenvolvem em "formas de vida" específicas. "Aprendemos a natureza do cálculo ao aprender a calcular" e não "através de uma regra". "A regra [sequer] é necessária. (...) [Um] jogo [de linguagem] pode ser aprendido puramente pela prática, sem aprender quaisquer regras explícitas" (1990:27, 41). Não há como separar, por conseguinte, o procedimento deliberativo de acordos éticos substanciais que se acham envolvidos. Acordos são firmados como práticas e significados decorrentes de jogos de linguagem de uma forma de vida em que se vêem inseridos.

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Há quem prefira falar de pessoas que se relacionam na esfera pública, de pessoas que sentem e interagem, e não de argumentos ou discursos, que nem sentem nem podem estabelecer preferências, definindo-se, na esfera pública, corrente e contra-corrente, desenvolvendo "subaltern counterpublics" contra as estruturas e instâncias do poder dominante. Fraser. 1991.

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"Um significado de uma palavra é o gênero de utilização desta. Porque é aquilo que aprendemos quando a palavra é incorporada na nossa linguagem. É por isso que existe correspondência entre os conceitos 'regras' e 'significado' [...]. Quando os jogos de linguagem mudam, há uma modificação nos conceitos e, com as mudanças nos conceitos, os significados das palavras mudam também" (p. 31).

O que é verdadeiro e o que é falso, tanto quanto a imagem do mundo, não são algo racionalmente a priori, que diga respeito ao convencimento próprio da sua justeza, pois têm origem em um "quadro de referências herdado" (p. 41). E o aprendizado, como jogo de linguagem determinado, tem algo de autoritário, algo que é porque é, porque alguém mais forte ou mais sábio ou estimado diz que é, que faz uso da persuasão. "A criança aprende acreditando no adulto nos livros de estudo [...] na base de autoridade de homens. [...] A dúvida vem depois da crença" (p. 79, 57). É a verificação, o teste da realidade que desafia o conhecimento aprendido e as convicções herdadas. Saber não é crer, é justificar, "mas a justificação tem um fim pois na raiz de uma convicção bem fundamentada encontra-se uma convicção não fundamentada" (p. 65, 77). Ou melhor: "a fundamentação, a justificação da evidência tem um fim — mas o fim não é o facto de certas proposições se nos apresentarem como sendo verdadeiras, isto é, não se trata de uma espécie de ver da nossa parte; é o nosso aduar que está no fundo do jogo da linguagem" (p. 67).

E esse fundamento não é nem verdadeiro nem falso ( nicht wahr, noch falsch). Portanto, o consenso sobre algo é sempre resultado de experiências e não produto de pretensões de validade postas em uma contrafactual situação ideal de fala. Aprende-se a fazer juízos, fazendo juízos e aprendendo "isto como sendo juízos" (p. 49). Mas, o fim de toda fundamentação "não é um pressuposto não fundamentado: é uma via de acção não fundamentada" (p. 45). E isso não é nem vernünftig nem unvernünftig:

zação. Mesmo a esfera pública extensamente considerada por Habermas se limita a espaço de discurso ou argumentação, deixando de fora as "atividades práticas comuns orientadas para metas compartilhadas"." Também para Young (2001:370), o isolamento do poder econômico e do poder administrativo não é bastante para impedir a desigualdade dos interlocutores, incluindo, dentre outros fatores, a posição social, os diferentes graus de internalização e percepção da importância do discurso com fins deliberativos, e do direito que têm de falar ou não falar. Empiricamente, estudos têm revelado, por exemplo, que as mulheres falam menos em contextos de debates acirrados e de confrontações, ouvindo e perguntando mais do que emitindo opiniões (cf. Mansbridge. 1991). Assim também, registra Young (2001:372), os homens brancos de classe média que tiveram direito à educação agem como se tivessem um direito exclusivo de falar, dominando as regras formais do discurso, e que, por essas razões, são carregados de autoridade, enquanto os locutores de outros grupos tendem a sentir-se intimidados, diminuídos ou frustrados e até raivosos. Cortese (1990), citado por Young, comunga dessa crítica, ao afirmar que o modelo de argumentação moral presumido por Habermas é etnocêntrico, menosprezando, por exemplo, a maneira de os "chicanos" falarem. Honneth (2001:89,90), embora reconheça que Habermas deposita suas preocupações em processos igualitários que permitam, pelo menos, a aproximação das condições do discurso em prol de um consenso, com referências a garantias constitucionais em favor dos grupos marginalizados ou reprimidos, termina por colocar conceitualmente a demanda por igualdade social como decorrência do processo de formação da vontade política e, portanto, dependente das contingências das metas politicamente articuladas, deixando um vazio entre o requisito prévio de igualdade e a igualdade adquirida apenas posteriormente. Esse vazio também se faz presente quando Habermas é chamado a explicar como os cidadãos, sem que tenham hábitos diários de participação, podem se sentir motivados a atuar na formação da vontade conjunta e de opinião pública (Heller. 1991).

44

"Você deve ter em atenção que o jogo de linguagem é, por assim dizer, imprevisível. Quero dizer: não se baseia em fundamentos. Não é razoável (ou irrazoável). Está aí—tal como a nossa vida" (p. 157).

Gould (1996:174) ainda afirma que, para a teoria discursiva, o Estado e a economia são outsiders da democracia e, portanto, insuscetíveis de democrati-

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Criticas que compartilha com os republicanos na deseconomizacão da sociedade: "First, civil society, hecause it is defined so narrowlly, is left economically passive, and deprived of any property resources which would enable it to defend or enhance its power. Second, civil society, the realm of (potential) freedom, is viewed positively, whil e the economy is implicitly viewed negatively, as realm of necessity in which only money speaks (cf. the neo-conservative view). The material cond Mons of life in civil society are degraded to a mere instrument for the ends desired by civil society — just as the classical concept of civil society rested upon the salience and unfreedom of the oikos." Keane. 1988: 86.

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O modelo deliberativo tende "a presumir que a deliberação é culturalmente neutra e universal". Essa presunção acaba por esconder as assimetrias e os jogos de dominação enraizados culturalmente, sobretudo nos ritos institucionalizados do parlamento e dos tribunais, sobrevalorizando, ainda que implicitamente, os sábios e eruditos capazes de um "diálogo informado". A insistência de Habermas em identificar o processo legislativo como o principal mecanismo de influência da esfera pública sobre o Estado seria outra fragilidade da teoria discursiva, que se aliaria à sua ambigüidade e falta de sentido prático, dada pelas condições contrafactuais da "situação ideal de fala" (cf. Dryzek. 1990:16-127; Gould.1996:126). Enfim, o deliberativismo de Habermas, como todas as formas de democracia deliberativa, não fornece o melhor entendimento sobre a natureza da democracia, porque visa 'substituir o modelo de política inspirado na lógica do mercado ponom que se firme em princípios morais, redefinindo os sentidos de autonomia e soberania popular e, ao mesmo tempo, permitindo que as questões políticas sejam resolvidas por meio de argumentos racionais, sem qualquer alusão a formas de conciliação de poderes sociais existentes. Assim, a esfera pública passa a ocupar uma posição central da democracia por ser o local privilegiado para os discursos que visam a atender a postulados de validade normativa, deixando desorientado quem procura soluções práticas para a experiência política real. c) Teoria. da democracia participativa ou semidireta A experiência ateniense de democracia direta foi valorizada com a sua redescoberta no Renascimento e influenciou algumas práticas pontuais. Assim, os colonos fazendeiros de Massachusetts criaram a "união de cidades da Nova Inglaterra", em que deliberávam diretamente sobre questões de interesse comum. Também, em alguns cantões suíços, resgatou-se a forma de assembléias em que o povo decidia diretamente sobre assuntos públicos (as Landsgemeiden). Rousseau foi o gránde nome iluminista que pregou a democracia direta como forma única de democracia, em vista da inalienabilidade da soberania popular. Se, pelo tamanho da sociedade, o povo não pudesse mais se reunir em uma praça pública para decidir sobre o seu destino, era sinal de que deveria diminuir de tamanho para ser capaz de realizar plenamente a liberdade. 45 Na França, os revolucionários jacobinos defendiam as formas diretas de participação política

" O autor genebrino reviu sua tese, advogando a favor da democracia representativa em Estados populosos: 1947. .

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e o mandato imperativo. As mesmas idéias povoaram as mentes e prática dos franceses quase cem anos depois na Comuna de Paris. De acordo com Victor Considerad, a democracia representativa seria unia fraude, diferenciando-se da monarquia apenas em ritmo, nunca em substância (tf. VerdU.1986:261). Sugestões de uma democracia direta em nosso tempo parecem fora da realidade em vista da especialização induzida pelo ganho de complexidade social e pela sobrecarga de afazeres cio homem contemporâneo. Por isso, muitos autores passaram a assimilar elementos da democracia direta nos debates rejuvenescedores da democracia representativa. Tanto as teorias semidiretas quanto as republicanas destacam a importância dessa mistura. O que varia é a ênfase . daorum, tfacedorái.Asptlebcroufrendários se entrecruzam com propostas de assembléias face-a-face e com a figura do mandato imperativo e do retal(. Advoga-se que formas diretas terminam por superar o paradoxo de Arrow e as crises de legitimidade dos processos políticos representativos. Barthèlemy e Duez (1933:32) há muito já chamavam a atenção para o ideal democrático que recomendava a participação mais diretamente possível cio maior número possível de governados no exercício do poder. Budge O 996) e Aubert (2001), muito tempo depois, vêm enfatizar a indispensável necessidade de se complementar a democracia representativa com a possibilidade institucional de os eleitores estimularem os eleitos pelo exercício do direito de iniciativa legislativa e de controlar seus atos por referendo. Há, nos modelos constitucionais adotados contemporaneamente, exemplos de um "razoável" grau de democracia direta, por exemplo, na Suíça e em menor proporção na Itália, um pouco na França, nos Leincier alemães, na Dinamarca, na Irlanda, na Espanha, na Áustria e na Rússia. E interessante notar que os instrumentos de complementação direta surgiram em Massachusetts e New Hampshire (referencio sobre a Constituição), entre os girondinos, jacobinos e montanheses da França, com destaque para Condorcet (iniciativa popular e referendo sobre as leis). Cada um desses institutos mereceria um estudo à parte, mas, pelos propósitos deste trabalho, faremos apenas um registro rápido de seus aspectos gerais. O referendo é uma forma de consulta popular sobre um texto normativo proposto pelo Estado ou por um certo número de cidadãos, podendo ser obrigatório ou facultativo. Nesse último caso, necessita de provocação, que pode ser do Governo ou do Parlamento (é o exemplo francês) ou de uni certo número de cidadãos (é o caso suíço). Adota ainda as formas consultivas (sobre adOção de uma lei), suspensivas (sobre conveniência de suspender o processo legislativo), confirmativas

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(sobre decisão adotada pelo legislativo ou executivo), ab-rogativas (para revogar norma vigente) e propositivas (sobre um determinado projeto de lei). O plebiscito consiste em uma consulta popular sobre a adoção de uma decisão política sem caráter primariamente normativo. A iniciativa popular se refere à legitimidade constitucionalmente assegurada de parcela do povo apresentar ao legislativo proposta de lei. O recall é forma de revogar o mandato de representantes políticos por representação formulada por um número determinado de eleitores, podendo ser individual, quando visa retirar o mandato de um determinado representante (Califórnia, EUA) ou coletivo, quando objetiva revogar o mandato de todos os representantes de um determinado órgão (alguns cantões suíços). 46 Mas não é só o legislativo que fica na mira das formas híbridas de democracia semidireta, também a administração deve estar marcada por formas de interferências populares deliberativas e de um amplo sistema de transparência, com ritos institucionalizados de forma a permitir uma fiscalização direta pelos cidadãos (Saward. 1998). Paulo Bonavides (2001), por exemplo, postula uma forma de democracia em que se recuperem as noções clássicas de povo, nação e soberania, entrelaçando tais noções com perspectivas de países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento inseridos no processo atual de globalização, no sentido de uma "teoria radicalmente nacional e patriótica", mas, ao mesmo tempo, orientada para a universalidade do gênero humano (p. 41, 60). "Povo" vem encorpado com elementos organicistas e republicanos, pois tem por dever a militãncia partidária, o proselitismo, a luta e a participação nos processos decisórios da sociedade (p. 3031, 33, 50-51 e 53). É um "povo substantivo" que encarna o sentido de soberania "em sua essência e eficácia, em sua titularidade e exercício, em sua materialidade e conteúdo" (p. 44)."Soberania", que, em sua identidade com o povo, não é órgão, mas sujeito e "qualidade do supremo poder popular" (p. 43). A "democracia constitucional" do professor Bonavides pressupõe, sem embargo de sua consideração simultânea de práxis sociopolítica e de direitos humanos de quarta geração, um quadro jurídico-institucional que reconhece e realiza os direitos fundamentais do Estado social, promove a democratização da mídia, detém um controle concentrado de constitucionalidade deferido a um tribunal constitucional integrado por juizes eletivos (p. 36, 47-48,) e se concretiza por meio da"Nova Hermenêutica"

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Cf. Vergottin 1986:235-236; Bird e Ryan:1930.

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que, incorporando um sentido de constitucionalidade material ou principialista nas trilhas lançadas pela tópica e pela teoria estruturante de Müller (p. 38, 42, 206 et seq), se acha comprometida com os postulados da própria democracia. 47 Sobressai, todavia, de suas linhas a figura do povo-cidadão que atua majoritariamente por meio das formas plebiscitarias de participação política. Em países periféricos e semiperiféricos, sobretudo nas arenas das "esquerdas renovadas", têm-se desenvolvido formas "alternativas" ou "co ntra-hegemônicas" de democracia participativa que se oferecem ora como frontal oposição, ora como um complemento à representação política institucionalizada de feitio liberal. Em todas elas, parte-se do diagnóstico de que a democracia liberal tem sido vendida pelo processo de globalização como receita de sucesso institucional, com o propósito deliberado de servir apenas de muleta aos governos e elites nacionais dos países periféricos contra movimentos democráticos de base popular que se opõem aos modelos e estruturas impostos pela onda globalizante. Na mesma direção, os teóricos do "participatismo democrático" hipotecam sua fé nas possibilidades emancipatórias da sociedade e no resgate das vozes excluídas pelas formas convencionais do fazer político (Avritzer. 1994; Santos. 1998 e 2000; Sader. 2002). Estão aí inseridos os micromovimentos sociais na índia (Sheth. 2002), as lutas reivindicatórias de grupos organizados, a exemplo do MST, e as experiências brasileiras dos orçamentos participativos. De acordo com Santos e Avritzer (2002:77-78), o fortalecimento dessas inidiativas passa: (a) pelo "fortalecimento da dernodiversidade", aprofundando-se os casos em que o sistema político abre mão de prerrogativa de decisão em favor de instâncias participativas; (b) pela ampliação das articulações contra-hegemônicas entre o local e o global, que reforcem as experiências democráticas locais, mediante apoio de atores transnacionais; e (c) pelo alargamento do "experimentalismo democrático" que se origina de "novas gramáticas sociais" marcadas pelo pluralismo. Mas nada contemporaneamente parece mais resgatar a democracia direta do que a "Agora eletrônica". A quase utopia de uma "democracia virtual" vem acalentar as esperanças de quem via na estafante rotina do homem comum um destino pouco animador para a cracia do demos (Grossman. 1995). Paulo Bonavides (2001) é um dos que acreditam nas possibilidades da informática, pois a "democracia direta do voto no computador caracteriza o crepúsculo da

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Sobre a perspectiva de uma hermenêutica apropriada ao Estado democrático de direito: Menelick. 1998.

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intermediação, peculiar à democracia indireta do voto na urna" (p. 58). Nada mais alvissareiro para quem postula que a parte direta da democracia seja máxima, enquanto a parte representativa seja mínima e subsidiária (p. 60). As dificuldades práticas de um povo cem por cento cidadão, todavia, aliam-se a problemas de cunho ideológico e conceituai. Lukic (1974:239), por exemplo, afirma que a democracia direta acaba com a própria democracia, ao negar o Estado, pois se toda a sociedade vier a deliberar sobre questões políticas, não haverá mais Estado, e como a democracia é uma forma de Estado, tampouco haverá democracia. Cronin (1989) procura demonstrar como as formas diretas de democracia adotadas em alguns Estados norte-americanos e na Suíça são mais seriamente manipuláveis pelo poder econômico do que os instrumentos formais representativos, diagnóstico que Paoli (2002), de certa maneira, estende para a chamada "reponsabilidade social" das empresas no Brasil. Baker (1992), por seu turno, discute até que ponto tais formas deliberativas possibilitam políticas discriminatórias ou submetem os direitos individuais à vontade da maioria, não sendo descartável o argumento liberal de que "democracias maduras" são regimes estáveis, porque especializam um corpo burocrático para enfrentar os desafios técnicos e um sistema de representação política que, mantendo vivo o ideal de vontade geral, libera os indivíduos para a realização de seus talentos, encontrando na apatia dos cidadãos muito mais um atestado de sucesso políticoinstitucional do que um diploma de tragédia democrática. Para Schmitter (1999), o recurso a modelos democráticos participativos, de difícil aplicação nas rotinas político-deliberativas mesmo em espaços locais, termina por impedir uma reflexão profunda de projetos mais viáveis e emancipatórios sobre a democracia do mundo globalizado. Em sociedades dominadas pela desigualdade social e pela lógica do dinheiro, essas críticas se vêem ainda mais agudas. As formas diretas seriam portas abertas à demagogia e ao império financeiro em lugar da virtude cívica. Os excluídos pela fome, pela sorte, pelo conhecimento e riqueza ainda se tornariam excluídos pela informática. A falta de um prato de comida se aliaria à de um computador, ampliando as desigualdades e o poder das hegemonias. Santos e Avritzer (2002) não descartam esses riscos e ainda acrescentam como possibilidade de perversão do modelo de democracia proposto a burocratização de seus processos deliberativos, a reintrodução do clientelismo sob novas roupagens, a instrumentalização partidária e a sua apropriação pelo discurso hegemônico como forma de legitimar a exclusão social e a repressão à diferença. Mas eles vislumbram antídotos na aprendizagem e na reflexão: "No domínio da democracia participativa, mais do que em qualquer outro, a democracia é um princípio sem fim e as tarefas de democratização

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só se sustentam quando elas próprias são definidas por processos democráticos cada vez mais exigentes" (p. 75).

d) Teoria radical pluralista, pós-moderna ou transformacional

Alguns teóricos pós-modernos denunciam a crise do sujeito e do macrosujeito modernos que conduzem a democracia para o precipício. Se o sujeito se perdeu no emaranhado da linguagem e do inconsciente, a subjetividade coletiva se extraviou no no de seres e vínculos incomensuráveis, achando que havia uma unidade comum, uma vontade geral e um povo (sujeito) representado. A saída republicana inventava um "nós" construído por relações de amizade entre vizinhos, mas o "amigo" do "nós" sempre foi um estranho, talvez nem fosse um homem, porque mesmo entre os mais próximos havia uma "estranheza comum" e uma "infinita distância" (Derrida. 1994; Foucault. 1980). Ryan (1982) declaradamente tenta espantar do desconstrutivismo os aspectos conservadores, ligando-o a lições marxistas, como forma de simultaneamente denunciar as contradições do liberalismo, de acomodar uma teoria libertária dos "novos movimentos sociais" e de expulsar os elementos metafísicos da teoria de Marx.leford (1985), que criticara a ontologização da política (polity), do espaço público de encenação da política de estratégias e de atores empíricos, mediada pelo mito de um povo homogêneo e de uma nação de "identidade substancial" de "Um Só Povo", afirma que a democracia foi a única forma política que representou o poder em sua face real como "um local vazio", que "não pertence a ninguém", cultivando uma fenda entre o simbólico e o real, o imaginário construído e as relações materiais. Basta que se retire o corpo e se deixe a alma da teoria moderna, para que se resgate a idéia de "comunidade não-comunidade" no sentido corrente, porque seus membros se descobrem pelo próprio fato de serem membros e não por uma pertença a tradições ou alguma forma substantiva de identidade comum. São, porque são aqui e agora, e porque desejam construir uma vida social e política comum desde então, uma comunidade anacoreta como lembra Derrida (1994). Torna-se imperiosa, nesse sentido, a desilusão cio "povo" e a desencenação democrática para que se revelem os interesses reais envolvidos sob as máscaras e, conseqüentemente, a "insuportável imagem de um vazio real". Para fadam e Mouffe (1985), faz-se necessário ainda conhecer as relações de poder prevalecentes na sociedade e as maneiras de suas manifestações, de modo a religar os vínculos naturais dessas relações a pretensões ou realizações de legitimidade pelo poder e do poder pela legitimidade. A vida em sociedade

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é, em grande escala, dominada pelo antagonismo. Essa é a dimensão do "político" (the political), enquanto a "política" (politics) se refere a práticas, discursos e instituições que visam organizar esse antagonismo em um ambiente de coexistência pacífica. Mouffe (1992a) ainda acrescenta que é preciso desmascarar os essencialismos liberais e marxistas de forma a retomar as linhas do projeto irrealizado da modernidade, que postula a igualdade e a liberdade para todos. Nessa perspectiva de uma democracia radical moderna/pós-moderna, há também a construção de um sujeito, todavia não daquele centrado na ficção transcendental moderna, mas como centro de imputação ou de intercessão de muitas posições de sujeitos, definidas em processos discursivos sem haver nenhuma prerrogativa de verdade a quem quer que seja, senão a busca de convivência de um devir social multipolar e descentralizada, mas que aspira ao ideal de emancipação (Laclau e Mouffe. 1985:87 et seq; 115). Mouffe, como vemos, tenta conciliar uma herança marxista cada vez mais distante," mantida por propostas emancipatórias, com elementos da democracia liberal e construções pós-estruturalistas e pós-modernas, de forma a acomodar os "novos movimentos sociais", como o feminismo e as lutas reivindicatórias de minorias étnicas, nacionais e sexuais, além do próprio movimento ecológico, na construção de uma "radical, libertarian and plural democracy" (1985:3-4, 176). Nessa perspectiva, a igualdade democrática se enovela com o reconhecimento da diferença, especialmente o reconhecimento de diferentes posições do sujeito, o que obriga à ampliação dos instrumentos da democracia liberal (Mouffe. 1988). Portanto, as "posições subjetivas democráticas" estão redefinidas nos instrumentos liberais básicos, como o individualismo, a racionalidade e a universalidade, estando postas de maneira plural, e discursivamente relacional. Fala, então, de uma "não-individualista concepção de indivíduo", definida pela "intercessão de uma multiplicidade de identificações e identidades coletivas que constantemente subvertem umas às outras" (19926:7, 92, 100, 151). Para ela, nem a ciência pode dar resposta a um projeto radical que enfatize tanto as tradições quanto as mudanças, o particularismo e o universalismo, além das heranças do liberalismo e do comunitarismo. Uma nova teoria demócrática; centrada em um paradigma de conhecimento distinto, deve'reconhecer o pluralismo moral reinante que levanta múltiplas pretensões acerca do "bem" ou da "boa vida", estimulando a diversidade sem destruir a comunidade e "reconhecendo a multiplicidade de lógicas sociais" (1992c:1,14). Por isso, Mouffe

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Abandonada expressamente após 1988: cfr. 1990; 19926.

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resgata a Phronesis aristotélica como ética do conhecimento que considera em seu saber elementos da cultura e da história da comunidade no estudo da práxis humana (1988:26 et seq). 49 O pluralismo, a multiplicidade de formas e projetos de vida não significam, todavia, a defesa de direitos de identidades pré-constituídas, pois importam a constituição reflexiva dessas identidades em um terreno precário e quase sempre vulnerável. Não se hipostasiam, nesse sentido, heterogeneidades, apenas se visa a reconhecer como certas diferenças são construídas por meio de relações de poder subordinantes segundo processos de formação de acordos sobre bases sociais voláteis e conflitivas. O "pluralismo agonístico" de Mouffe, portanto, atribui à política democrática criação de "nós" pela determinação de um "eles" sem romper os laços sociais de convivência. Os "outros" não são, em sentido schmittiano,"inimigos", nem, como defendem os liberais, "competidores", mas "adversários" com os quais compartilhamos, ainda que sob várias interpretações, princípios ético-políticos democráticos, com quem "conversamos" e estabelecemos "compromissos" que são, pela dinâmica da vida em sociedade e por configurarem sempre uma certa relação de poder que envolve alguma forma de hegemonia e de exclusão, sempre temporários. É assim que a democracia transforma inimigos em adversários, antagonismo em agonismo. Não há nesse processo a eliminação do dissenso, nem o afastamento das paixões e dos sentimentos puramente privados do campo político, mas, ao contrário, sua mobilização em prol do processo democrático dos compromissos. A democracia é, portanto, um "jogo misto", em parte cooperativo e em parte conflitual, que permite unidades e totalidades de arranjos móveis e críticos. Datimayr (2001) assume essas conclusões e prossegue:

"o "povo"convocado ao autogoverno popular (...) não é uma identidade fixa ou estática, mas sim o emblema da autotransformação e do ama-

" Há leituras pós-modernas que se marcam por cores elitistas e autoritárias. Para Ankersmit (1996), valores tradicionais da democracia como "autogoverno" e "representação justa" seriam metafísicas. Os cidadãos tendem a ver as ações do Estado com sendo suas somente na "hiper-realidade" de uma "auto-representação retórica", recorrendo à figura do político estilista que criativamente criam a imagem de representar os desejos da sociedade civil, estabilizando as expectativas gerais e criando confiança e estabilidade (54,191).A sociedade se reduz a um símbolo político virtual manipulável e o Estado, comandado por um esteta estilístico, volta a ser a cena principal da política (p. 94, 150, 191, 210).

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durecimento, da aspiração ao autogoverno que continua sempre sendo urna tarefa e um desafio" (p. 33-34). Essa visão de projeto inconcluso se materializa com atributos cívicos ao molde republicano de um "cultivo de disposições (ou virtudes) morais" em direção ao "bem público". É, por outro lado, flagrante a tentativa de desmaterializar o povo, seja como identidade coletiva, seja corno identidades particulares, idiossincráticas, ontologizadas e fixas, repondo em seu lugar uma multiplicidhcle de visões de mundo, de cultura, de história e de projetos individuais dispostos à pedagogia da convivência: "a democracia significa um processo de aprendizado transformativo, então o multiculturalismo constitui unia pedagogia popular ou paidéia par excellencell Imagina-se que, ao lado de uma "autonomia" prenunciada pelos liberais, mas reposta como elemento integrante de redes de comunicações recursivas, e do discurso crítico de "solidariedade", que permeia tanto o ideário marxista quanto as formas de democracia social e o pensamento comunitarista, devem-se associar os novos movimentos sociais, de cunho ecológico, pacifista e multicultural, destituindo o sentido de cidadania de seu componente mítico e, ao mesmo tempo, autoritário. A perspectiva de grupos oprimidos sobressai em muitas leituras pós-modernas. Mouffe (1992d) mesmo chegou a afirmar que "um projeto de uma democracia radical e pluralista necessita[ria] não de um modelo sexualmente diferenciado de cidadania no qual as tarefas especificas de homens e mulheres fossem igualmente avaliadas, mas uma concepção verdadeiramente diferente do que [serial um cidadão e de sua atuação como um membro de uma comunidade política democrática" (p. 377).

Seria, portanto, de se desontologizar o conceito de mulher para se poder pensar em um projeto democrático feminista. Young também não aceita idéias de justiça como imparcialidade e como transcendência das diferenças existentes entre , os grupos sociais, obrigando a uma consideração jurídica e política diferenciada para os estratos sociais oprimidos e desprivilegiados. Nesse sentido, para além . dasimples autonomia, defendida pelo liberalismo pluralista, ela propõe que todas as pessoas devem ter poder afirmativo (empowerment), que põe em primeiro plano a "publicidade" ao invés da "privacidade" (1990:251). Com

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forte inspiração habermasiana, mas fixando-se no elemento diferencial do plui . ralismo,Fedctniogualdestcinzçãoplía dos liberais, defendendo um tratamento compensatório de um cenário de desigualdade por meio de "arenas discursivas paralelas em que membros de grupos sociais subordinados criem e façam circular contra-discursos" (1991:67). Aronowitz (1988) afirma que a democracia radical e pluralista não é antifundacional, mas pressupõe um a priori ético, que une propostas teóricas as mais diversas e cada uma delas repleta de ambigüidades, como pós-modernismo, teorias da linguagem, psicanálise, neomarxismo, pós-estruturalismo, hermenêutica pós-giro linguístico pragmático e democracia liberal. O projeto comum se situa na demolição das crenças e conceitos ontológicos que contaminam a teoria jurídica e política da democracia pós-moderna e radical. Não se sabe muito como esse mundo desconstruído e essa democracia desmaterializada possa coexistir com pretensões substantivas do tipo do bem público ou como a virtualizaçã o do povo e a indeterminação da sociedade, um encontradiço de povo-não-povo, comunidade sem comunidade, possa contribuir sequer heuristicamente para a teoria política. Sem falar no mais importante: a visão responsável e engajada no plano político e público, pois a democracia radical parece própria de quem quer se recolher ao seu mundo privado, vendo o mundo desabar sobre a cabeça dos outros (cf. Mouffe. 1988; Lefort 1988; Gould. 1996; Rorty. 1998). As vozes pelo reconhecimento do particularismo da uma sociedade complexa, lançadas pelo ideário pós-positivista, também recebem a crítica de quem enxerga nessa posição um desprezo pelos postulados igualitários (Elslitain. 1996) e mesmo pluralista (Bove. 1986) da democracia. Além de se mostrar um projeto irrealizável, ele parece apontar para todas as direções, inclusive para aquelas que procura rejeitar. É certo que autores procuram fazer uma distinção entre "democracia radical" e "democracia pós-moderna", propondo-se esta mais a ser uma teoria política da diferença que visa a resgatar da periferia do sistema social os gritos de raças, gênero e orientação sexual, sendo, apenas secundariamente, vozes de esquerda, enquanto a democracia radical é primeiramente uma proposta de esquerda, com origens marxistas, para, só depois, incorporar reivindicações dos movimentos sociais (Ross. 1988: xvi). Essa dicotomia direita/esquerda, porém, se não for superada, abre grandes contradições, pois há quem sustente, por exemplo, que tanto o projeto de democracia pós-moderno quanto o de democracia radical se situam entre o conservadorismo e o anarquismo (Rorty. 1989; May. 1994).

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3. A CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA EM FACE DAS TEORIAS E DA PRÁTICA DEMOCRÁTICAS — OS ENCANTOS E DESENCANTOS DOS TRÓPICOS A Constituição brasileira, talvez porque promulgada após vinte e quatro anos de regime de exceção, disseminou por seu texto elementos democráticos, criando uma extensa rede de prevenção à tradição de rupturas institucionais e procurando estimular as práticas de uma cultura cívica e comunitária. Essa teia de cidadania começa com a auto-intitulação de "república federativa" como um "Estado democrático de direito". "República" pode bem ser entendida em sentido restrito como mera forma de governo que se opõe à monarquia. Todavia a qualidade de Estado democrático de direito não a deixa nessa aridez formalista. É verdade que "Estado democrático de direito" pode ser apenas um termo a mais no dicionário jurídico-político com diversas concepções e nenhuma efetividade. Um Estado de direito e de democracia formais por exemplo. Mas também pode servir como matéria-prima de transformação dos olhares que preferem a calmaria e o torpor das coisas como estão, mesmo que ocultem opressão e injustiça. Como um ingrediente que requisita uma práxis, uma law in action mais do que uma receita, uma law in books. E isso porque a democracia complementa e materializa a solidez e segurança do Estado de direito do liberalismo. A sinuosidade da trajetória liberal, como se sabe, amoitava ciladas contra seus ideais universalizantes e sua pretensão racional. O poder político migrava em limitadas mãos e restritos campos, concebendo-se como dominação. A teoria (política e constitucional) era pouco atenciosa, senão brigada com a prática. Talvez fosse imprestável mesmo para que não se desvelasse a realidade. A democracia, pelo próprio léxico, estava a exigir rumos menos tortuosos, em decorrência de suas demandas de fluxo vertical de poder— orientado debaixo para cima— e ao mesmo tempo horizontal — igualitárias e inclusivas. Democracia que não se conformava com simples descrição de regime representativo, mas que já se espraiava, como prescrição, pelo Estado e também pela sociedade (O'Donnell, 1999:622). "Cracia" que requisitava ação do "demos" e um teoria imbricada reciprocamente com a prática. Logo, a combinação de "Estado democrático de direito" e "república" está a dizer muito além do que as construções (neo)liberais insistem em não ouvir. O constituinte não os reuniu por acaso. Até porque tratou de reafirmá-los em diversos momentos, amalgamando, curiosamente, o caleidoscópio de teorias que a democracia atraíra para si. O Estado brasileiro, republicano e de-

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mocrático de direito, avança sobre elementos liberais, reconhecendo a soberania popular como fonte de todo poder (art. 1°, 5 único), destacando o pluralismo político como um de seus fundamentos (art. 1°, V), atribuindo ao sufrágio o caráter universal, e ao voto, o valor igual para todos (art. 14). Os partidos políticos são previstos e recebem o delineamento básico de.sua estrutura e funcionamento (art. 17). O princípio representativo se faz presente, seja pelas condições de elegibilidade que prescreve (art. 14, 5 3°, I-VI), seja pela investidura e competências do Legislativo federal (arts. 44 - 52, v.g.), estadual (art. 27), distrital (art. 32, 5 3°) e municipal (art. 29, I e IV); bem como do Executivo no âmbito federal (arts. 76-84, v.g.), estadual (art. 28), distrital (art. 32, § 2°) e municipal (art. 29, I e II, v.g.). Sem falar no extenso rol de direitos fundamentais (art. 5°). A democracia industrial foi acolhida em seus destacados elementos: participação nos lucros ou resultados, bem como, excepcionalmente, na gestão da empresa (art. 7°, XI); reconhecimento das convenções e acordos coletivos de trabalho (art. 7°, XXVI); participação dos trabalhadores e empregadores nos colegiados dos órgãos públicos em que seus interesses profissionais ou previdenciários sejam objeto de discussão e deliberaçãO (art. 10); assim confio eleição de representante dos empregados, nas empresas que contem com mais de duzentos deles, com a finalidade exclusiva de promover-lhes o entendimento direto com os empregadores (art. 11). O caráter social da democracia também pode ser visto pela proclamação dos valores sociais do trabalho como fundamento da República (art. 1°, IV) e, por óbvio, da Ordem Econômica (art. 170); pela preocupação com a criação de igual oportunidade e justiça social (art. 3°, I, III; 5°, caput, I; 170, VII e VIII; 193), especialmente por meio do reconhecimento da cidadania e dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado (art. 1°, II e III), bem como dos direitos sociais (arts. 6°-8°) que se ligam com um Título inteiro dedicado à Ordem Social (Título VIII: arts. 193-232). As características republicanas foram contempladas pelo constituinte, tanto pelo objetivo prescrito à República no sentido de construir uma sociedade livre, justa e solidária, promovendo o bem de todos (art. 30, I e IV); quanto pela criação de deveres cívicos, como o voto (art. 14, 5 1°, I) e as tarefas constitucionais afetas à comunidade (proteção do patrimônio cultural brasileiro — art. 216, § 1°); à coletividade (defesa e preservação do meio ambiente ecologicamente equilibrado — art. 225); à sociedade e à família (assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda

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forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão — art. 227); além da partilha solidarista dos Custos da seguridade social (art. 195). O resgate da sociedade civil é, aliás, a grande tônica constituinte. Assim, partido político com representação no Congresso Nacional e organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída e em funcionamento há pelo menos um ano podem impetrar mandado de segurança coletivo em defesa dos interesses de seus membros ou associados (art. 5°, LXX, a e b); o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, partido político com representação no Congresso e confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional podem ajuizar no Supremo Tribunal Federal ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal, distrital e estadual (art. 102, I, a; 103, VIII a IX). Ainda se encontra no texto constitucional que a seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social; sendo assegurado o caráter democrático e descentralizado da administração, mediante gestão quadripartite, com participação dos trabalhadores, dos empregadores, dos aposentados e do Governo nos órgãos colegiados (art. 194, caput e VIII). No artigo 198 e em seu inciso III sele que as ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com várias diretrizes, dentre elas a participação da comunidade. Logo em seguida, no artigo 204,11, está escrito que as ações governamentais na área da assistência social devem seguir várias diretrizes, inclusive a de participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis. No artigo 206, VI, impõe-se a gestão democrática do ensino público.

das ações do Poder Público, é tarefa do legislador federal, tendo como uma das metas a promoção humanística do País (art. 214, V).

Outra nota republicana é encontrada na ênfase dada à educação como direito de todos. Educação que deve visar ao pleno desenvolvimento da pessoa, ao seu preparo para o exercício da cidadania, para além da simples qualificação para o trabalho (art. 205).0 ensino, de acordo com esse enunciado, deve atender a uma série de princípios, dentre os quais a igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; o pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino; a grátuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais e a garantia de padrão de qualidade (art. 206, I a IV e VII). Aliás, o planejamento da educação, visando à articulação e ao desenvolvimento do ensino em seus diversos níveis e à integração

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A mídia, notadamente a radiofônica e televisiva, é tema de disciplina especial, devendo orientar-se a sua produção e programação para finalidades preferencialmente educativas, artísticas, culturais e informativas; promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua divulgação; regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei; e para o respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família (art. 221,1 a IV). O estímulo à cidadania ativa mescla republicanismo e democracia semidireta como na previsão do exercício da soberania popular pelo plebiscito, referendo e iniciativa popular (art. 14, I a III). Essa última, aliás, tem regras predefinidas para o âmbito federal ("A iniciativa popular pode ser exercida pela apresentação à Câmara dos Deputados de projeto de lei subscrito por, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco Estados, com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles" — art. 61, § 2°) e municipal ("Iniciativa popular de projetos de lei de interesse específico do Município, da cidade ou de bairros, através de manifestação de, pelo menos, cinco por cento do eleitorado"— art. 29, XIII), estipulando-se para a esfera estadual a sua definição por lei (art. 27, § 4°). É também realçada a possibilidade de fiscalização dos atos de autoridades

e poderes públicos pelos cidadãos: as contas dos . Municípios devem ficar, durante sessenta dias, anualmente, à disposição de qualquer contribuinte, para exame e apreciação, o qual poderá questionar-lhes a legitimidade (art. 3 I , § 3°); qualquer cidadão, partido político, associação ou sindicato pode denunciar:irregularidades ou ilegalidades perante o Tribunal de Contas da União (art. 74, § 2°), sendo ainda a todos assegurado, independentemente do pagamento de taxas, o direito de petição aos poderes públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder (art. 50, XXXIV, a). Além dos instrumentos processuais de • tutela de direitos como o habeas corpus (art. 5°, LXVIII), mandado de segurant ça (art. 5°, LXIX e LXX), mandado de injunção (art. 5°, LXXI) e habeas data (art. 5°, LXXII), a Constituição especializou um remédio cidadão para defesa de direitos coletivos, a ação popular: "qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio

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histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência" (art. 5°,1,XXIII)

Tamanha foi a atenção do constituinte que ele remodelou a instituição do ministério público, agregando-lhe funções importantes de guardião constitucional, com a legitimidade ativa para propor ações no âmbito do controle de constitucionalidade; de ouvidoria e de ombudsman, no zelo pelo efetivo respeito dos poderes públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados constitucionalmente, bem como no exercício do controle externo da atividade policial; e de promotor dos direitos coletivos, do processo eleitoral e das populações indígenas, além de suas tradicionais atribuições de natureza penal e de custos legis. Basta a leitura do artigo 127 para que se tenha a perspectiva de sua relevância constitucional: "0 Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis." Dois de seus principais instrumentos de atuação, otimizada pelo poder requisitório que possui, são o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos (art. 129, 111,V1 e VIII). O perfil constitucional, se não revela uma instituição de natureza híbrida (estatal e social), pelo menos dá-lhe o papel de válvula de comunicação entre a sociedade civil e os órgãos estatais. É uma figura que transcende a simples leitura, própria do paradigma social de Estado, de intervencionismo ou tutela estatal, agravando a apatia da sociedade (ainda que aqui e ali os excessos de atuação ou demandas possam levar apressadamente a essa conclusão). Seu figurino denota a zona de indefinição entre as esferas pública e social dos tempos atuais.

Enfim, a Constituição é mesmo cidadã como a definira Ulisses Guimarães, no ato de sua promulgação, pois a cidadania vê suas lutas e reivindicações triunfarem, sendo, ao mesmo tempo, provocada a ser militante. A democracia goteja entre o texto e os poros que unem os enunciados normativos expressos. Democracia em verbo e em potência. Ainda não ato inteiramente, pois o fastio longo de cidadania quase deixa a boca torta ou emudecida. Mas que já denota evolução importante mesmo que estejamos ainda um pouco distantes de padrões que nos possam garantir o

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futuro (Reis e Castro. 2001). Há quem fale de um costume de serventia cidadã como troco das concessões dos direitos fundamentais pelas elites governantes e do paradoxo de termos declarado antes direitos sociais do que direitos civis e exercido os políticos, embora tenha persistido um quadro alarmante de exclusão social (Carvalho. 2001). Alguns autores procuram explicar o déficit democrático de países periféricos, como é o caso brasileiro, em meio a um quadro formal de normalidade como exemplo de "Estados deformadores" das estruturas constitucionais recebidas dos Estados colonizadores que conduzem à ausência de um "sentido del Estado" (Di Ruffia. 1972:72) ou até mesmo de uma "sociedade sem Estado" (Sartori. 1979:244), embora outros prefiram enxergar no desempenho econômico e social a raiz para o insucesso democrático (Huntington. 1991; Sartori. 1979). Abordagens culturalistas se atrelam ao histórico de uma deficiente cultura democrática que apenas com o tempo e o fomento de uma vivência cívica pode-se firmar e estabilizar as expectativas em torno da continuidade institucional (Reis e Castro. 2001:25). Já os racionalistas optam por atribuir grande papel às decisões das elites, guiadas por um cálculo racional de permanência no poder, ainda que compartilhada (Di Palma. 1990). Até onde estão certos ou se combinam é difícil avaliar neste estudo. O que parece menos arriscado afirmar para a experiência brasileira é que o fardo de uma tradição de conchavos elitistas e de autoritarismo não marca o nosso destino de uma vez por todas. Os espaços conquistados pela sociedade e, em grande parte, abertos pela Constituição se conjugam a marcas históricas de um recurso às formas jurídicas, mesmo que em momentos conturbados e com nítida força instrumentalizadora do direito (Vianna e Burgos. 2002). Se a "tradição jurídica" serviu aos interesses autoritários, por que não se prestaria à consolidação e aprofundamento da vida democrática? O indivíduo dotado de direito, responsabilidade e consciência cívica, o cidadão em termo próprio, pode ser um constructo do hábito da democracia e não necessariamente um de seus pressupostos. A sociedade brasileira, aliás, tem-se movido entre a ordem e a desordem de uma participação política formal e informal, juridicamente reclamada ou não. No primeiro caso, podem ser lembrados os conselhos gestores de programas governamentais específicos (v.g. de alimentação escolar e de habitação), de políticas públicas (conselhos de saúde, de assistência social e de direitos da criança e do adolescente) e temáticos (culturais e desportivos, entre outros) (cf. Tatagiba. 2002:49), sem falar dos chamados orçamentos participativos desenvolvidos por algumas prefeituras brasileiras, dentre elas a de Belo Horizonte e Porto Alegre. O segundo caso, em que não há vínculos normativos expressos e que poderíamos chamar, por falta de uma denominação melhor, de "espontaneísmo" social, pode ser encontrado em

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redes mais ou menos dispersas e ad hoc de solidariedade (por exemplo, em campanhas beneficentes e de apoio a vítimas de tragédias) e de reivindicações de direitos (v.g. ressurgimento do movimento estudantil, movimento das donas de casas e dos aposentados) que podem muito bem ser canalizadas para edificação de uma cidadania plena, absorvendo as heranças patriarcais e coronelistas.

Sabemos que o Brasil não anda bem das pernas quando se trata de indicadores sociais. O índice de Desenvolvimento Humano, que mede a qualidade de vida de um país, por exemplo, alcançou 0,784. Com esse número, o Brasil passou a ocupar a 80a posição no total de 130 países avaliados, ficando atrás, por exemplo, de Sri Lanka, Albânia, Colômbia, Jamaica, Venezuela, México, Trinidade e Tobago, Argentina, Uruguai e Chile." O Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas — IPEA, tomandb como base os dados de 1998, concluiu que o grau de desigualdade social do país é comparável aos apresentados nos piores anos da década de 70 do século passado. O índice Gini, que mede a distribuição de renda, é de 0,60. Esse índice varia de O a 1, sendo tanto pior quanto maior for. Para que se possa ter uma idéia, nesse item o Brasil ocupa a antepenúltima colocação. Não é surpreendente, pois as estatísticas oficiais indicam que 1% da população mais rica detém 13,31 % da renda nacional, sendo que 53,11% dos brasileiros vivem abaixo da linha de pobreza.'

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Mas, para além das iniciativas pontuais, há ainda estruturas sociais dotadas de maior organização e perenidade que assumem a vanguarda de movimentos civis, políticos e de luta por efetividade dos direitos fundamentais, especial- mente dos direitos sociais. São associações formais e informais, entidades e movimentos coletivos que se articulam e desenvolvem práticas em prol de determinadas metas e seguindo certos princípios axiológicos, postulando, quase sempre, a democratização crescente não só das relações entre sociedade e Estado, mas também dos costumes e práticas enraizados na própria sociedade civil. Tais estruturas e movimentos guardam independência em relação ao aparato estatal e suas formas de atuação se fazem com e contra o direito positivo vigente, não sendo raro que assumam posições extrajurídicas e de grupos de pressões (SchererWarr'en. 1987; Sader. 1988). Pode-se perguntar se esses movimentos não estariam dominados por uma lógica de fragmentação social que poderia desaguar em neofeudos e em um caótico mundo de excluídos, sem representar nem de longe ganhos de consciência dos agentes individuais em prol de uma cidadania universalizante (Mine. 1993). Mas não são os macroprocessos sociais fontes geradoras de cultura, como ensinara Elias (1993)? Não há, ainda, nesse ambiente controle estatal e controle da própria sociedade sobre insulamentos autopoiéticos e pervertidos? A sociedade, por outro lado, já não nasce fragmentada? E, sem embargo disso, a democracia não se alimenta dialeticamente de diferenças e dissensos para ganhar consistência e maturidade em seus processos deliberativos? O estoque de nosso "capital social", se não é o bastante e ainda que seja formado por setores sociais com índices de fortuna e escolaridade mais altos (Ribeiro e Santos Jr. 1996), dá-nos conta de que é possível um futuro cada vez mais democrático. Não se pode, no entanto, cair na tentação de crerque as coisas ocorrerão exatamente assim. A quietude será a perdição, pois a hospitalidade — ainda precária — do senso democrático pode não resistir a reiteradas promessas não cumpridas, à corrupção, à violência, ao desconhecimentá da plebe excluída e, enfim, à ineficiência de políticas públicas (Reis. 1994; Dagnino. 2002). Pensemds um pouco com os números.

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A corrupção é um dos fatores que mais comprometem o sentimento de solidariedade e projeto comum. Nesse campo, também não estamos em uma situação confortável. O Brasil recebeu classificação 4,0 no índice de Percepções de Corrupção de 2002 da Transparência Internacional, situando-se no mesmo nível da Bulgária, da Jamaica, do Peru e da Polônia (cf. Sampaio. 2002b). Mas não são apenas indicadores sociais que depõem contra as bases de nossa democracia. A liberdade de imprensa também preocupa. No Primeiro levantamento mundial, realizado em 139 países pela ONG Repórteres Sem Fronteiras, o Brasil ocupa o 54° lugar em liberdade de imprensa, atrás, por exemplo, do Equador, do Uruguai, do Chile, do Paraguai, do Peru, da Argentina e da , Bolívia. O ranqueamento foi feito a partir de respostas dadas por jornalistas e juristas de cada país a questões corno número de jornalistas presos ou assassinados por causa de suas atividades, censura, pressões, monopólios estatais e legislação draconiana.'

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ONU. Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. http://lib.stat.cmu.edu/ datasets/humandevel. Tiveram as melhores colocações a Noruega (0,983), Canadá (0,983), Holanda (0,984), Suíça (0,986), Suécia (0,987) e Japão (0,996). BRASIL. IPEA. http://www.ipeadata.gov.br . Folha de S. Paulo, 24 de outubro de 2002, p.A1 I. Lidera o ranking a Finlândia, a Flolanda, a-Islândia e a Noruega. Os Estados Unidos ocupam a 17.' posição, devido a jornalistas presos por se negarem a revelar suas fontes perante a Justiça e por causa das limitações impostas após os atentados terroristas de I I de setembro.

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Apesar desses reveses, qual será o perfil e a atitude política do brasileiro? Uma pesquisa de opinião realizada em 1996 na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, pelo Centro de Pesquisa e Documentação de Histórica Contemporânea do Brasil, procurou avaliar a cultura política do brasileiro. Os dados não foram muito alentadores para a tese defendida neste artigo. O entrevistador perguntou ao entrevistado se ele confiava em seus concidadãos: 46,3% responderam que confiavam pouco; 13,8% disseram que não confiavam de jeito algum e apenas 30,2% afirmaram que sim, confiavam nos brasileiros. Percentuais que, na avaliação de Murilo (2000:109-110), revelam que a visão de cidadania como comunidade não se acha enraizada entre nós. Outro quesito agravou ainda mais o quadro. O entrevistador solicitou ao entrevistado que indicasse três direitos constitucionais que considerava mais importantes: 56, 7% não foram capazes de lembrar de Mn só, 25,8% citaram os direitos sociais, 11,7% se lembraram dos direitos civis e apenas 1,6% indicou os direitos políticos. Os números parecem sugerir que os brasileiros não possuem consciência cívica. A melhor interpretação talvez seja a que atribui esse fenômeno ao fato de o voto ser obrigatório, fazendo com que nós o exerguemos mais como dever do que como direito. Uma pesquisa como essa é importante, mas tem lá suas limitações, seja pela metodologia empregada, seja pelo momento em que foi realizada, ou pela amostragem; enfim, seja pela própria fórmula de pesquisa que flagra mais o instantâneo e o sentimento do que uma opinião firme e consolidada sobre determinado tema. Um segundo modo, talvez mais seguro, para aferir o grau de cultura democrática dos brasileiros pode ser o da investigação de seu desempenho eleitoral, especialmente de seu comparecimento às urnas. Tomemos esse ponto como referência então. Nas eleições presidenciais de 1894, o comparecimento às urnas em relação à população total foi de apenas 2,2% e continuou nesse patamar por toda a I República. Nos anos 30, quando houve pleitos, mais que dobrou, chegando a próximo de 5,5%. Entre as décadas de 40, 50 e 60, situou-se na casa do 15%. Após a Constituição de 1988, superou o índice de 50%. A mesma proporção, no tocante às eleições para deputado federal, revelou um crescimento do patamar de pouco mais de 3% em 1933 para números superiores a 50% já na década de 80 graças ao processo de democratização do país que se consolidou em 5 de outubro de 1988. Se nos detivermos ao percentual de comparecimento em relação ao eleitorado nas eleições para a Câmara dos Deputados, veremos algo distinto: de um patamar de 85% caiu para 78%, índice inferior ao do Uruguai (1994), da Itália (1996), África do Sul (1994), Suécia (1994), Bélgica (1995), Di-

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namarca (1998), Nova Zelândia (1996),Austrália (1996), Espanha (1996), Portugal (1995) e Áustria (1995); mas acima do apurado na Argentina (1998), Noruega (1997), Holanda (1994), Costa Rica (1998), Reino Unido (1997), Rússia (1995), Índia (1996), França (1997), Japão (1996), México (2000), Estados Unidos (1996) e Suíça (1995) (cf. Nicolau. 2002). Não se podem extrair conclusões apressadas sobre esse número decrescente. Basta pensarmos que, quanto maior for o eleitorado, maior serão as possibilidades de abstenção sem prejuízo para o processo democrático. Ao contrário, 85% de 3% é significativamente inferior a 78% de 50%. Deve-se também mitigar conclusões mais otimistas, considerando, no caso brasileiro, a obrigatoriedade do voto. No que tange à "cidadania jurídico-processual", entendida como postulação em juízo de demandas em favor de direitos fundamentais ou contra irregularidades administrativas, os números são reveladores." Vianna e Burgos (2002) fizeram um levantamento das ações civis ajuizadas entre 1996 e 2001 na justiça estadual do Rio de Janeiro e comparam com outra apuração feita por Carneiro (1999) entre 1985 e 1996.0 ministério público era responsável por 60,9% no primeiro levantamento e por 42,7% no segundo; já as associações e sindicatos saltaram de 10,3% para 37, 7%. Duas conclusões, pelo menos, podemos retirar desses números: (1) o ministério público continua a ser o agente mais ativo na promoção judicial da cidadania. E isso sem contar os chamados "termos de ajustamento de conduta", quase sempre, de natureza extrajucial, que ele firma em diversos casos para solucionar as pendências ou reparar as infrações cometidas, obtendo resultados de forma muito mais rápida e - efetiva (Rodrigues. 2002); (2) a sociedade civil cada vez mais chama para si a responsabilidade pela luta por seus direitos. O que é bem promissor para a consolidação da participação políticodemocrática. Os números revelam que há muito por fazer. Mas o mais importante é que já começamos. Se a jornada for longa...temos que estar preparados. 4.

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