Democracia Deliberativa - Legitimidade e justificação das decisões político-normativas

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS FACULDADE DE DIREITO

DEMOCRACIA DELIBERATIVA Legitimidade e justificação das decisões político-normativas

BERNARDO JOSÉ OLIVEIRA ARAUJO

RIO DE JANEIRO 2016





BERNARDO JOSÉ OLIVEIRA ARAUJO

DEMOCRACIA DELIBERATIVA Legitimidade e justificação das decisões político-normativas

Trabalho de conclusão de curso apresentado à Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Direito.

Orientadora: Professora Dra. Vânia Siciliano Aieta

RIO DE JANEIRO 2016



CATALOGAÇÃO NA FONTE UERJ/REDE SIRIUS/BIBLIOTECA CCS/C A663d Araujo, Bernardo José Oliveira. Democracia deliberativa: Legitimidade e justificação das decisões político-normativas / Bernardo José Oliveira Araujo. - 2016. 61 f. Orientador: Profª. Dra. Vânia Siciliano Aieta. “Trabalho de conclusão de curso apresentado à Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Direito”. 1. Direito Constitucional. 2. Democracia. I. Aieta, Vânia Siciliano. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Faculdade de Direito. III. Título. CDU 342

Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta monografia, desde que citada a fonte.

_______________________________________ Assinatura

_____________________ Data



BERNARDO JOSÉ OLIVEIRA ARAUJO

DEMOCRACIA DELIBERATIVA Legitimidade e justificação das decisões político-normativas

Trabalho de conclusão de curso apresentado à Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Direito.

Data de aprovação: ____/ ____/ _____ Banca Examinadora: ________________________________________________ Prof. Dra. Vânia Siciliano Aieta – Presidente da Banca Examinadora Professora Adjunta da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ – Orientadora ________________________________________________ Marcelle Mourelle Peréz Diós Borges Mestre e Doutoranda em Direito da Cidade – Programa de Pós-Graduação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro ________________________________________________ Vinícius Domingues Maciel Mestrando em Direito da Cidade – Programa de Pós-Graduação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro



Agradecimentos Gostaria de agradecer, em primeiro lugar, aos meus pais, Luiz Bernardo e Teresa Cristina, razão do meu existir e motivos de inspiração. Cresci no lar dos melhores pais do mundo, professores, não só de ofício, mas de vida. Com eles aprendi que o estudo e o saber são a maior expressão da liberdade humana. Um especial agradecimento ao meu pai, cujos livros se espalharam tanto pelos cantos da casa, que acabaram por desenvolver em mim a paixão pelo estudo das ciências humanas. Não há melhor herança do que o gosto pelo aprendizado. Prometo manter sua ampla biblioteca em nossa família. Em segundo lugar, agradeço à minha irmã que traçou seus passos no campo do Direito antes de mim servindo também de inspiração. Obrigado. Agradeço também ao meu irmão canino, Duca, cujo bom humor contagia a família. Outro agradecimento muito especial deve ser feito à minha orientadora, querida professora Vânia Aieta. Nunca vou esquecer que logo em minha primeira semana de aula na Faculdade de Direito da UERJ, às 7 horas da manhã, a professora disse confiar no meu futuro promissor no mundo jurídico. Desde então me trata como um de seus filhos acadêmicos. Espero corresponder às expectativas. Agradeço imensamente também à professora Ana Paula de Barcellos por me ter cedido sua Tese de Titularidade antes mesmo de sua publicação editorial. Sem isso não conseguiria terminar esta monografia. Obrigado também por ter despertado em mim a paixão pelo Direito Constitucional. Agradeço aos meus colegas de classe, que sempre me puxaram para cima, aos outros amigos feitos pelos corredores de nossa amada Faculdade de Direito, e, é claro, nas quadras de tantos Jogos Jurídicos. Agradeço também aos meus amigos de vida. Sou extremamente privilegiado nesse quesito. Obrigado. Por fim, gostaria de agradecer ao Estado do Rio de Janeiro e seus contribuintes por terem custeado meu estudo na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Espero poder retribuir. Faço votos para que nossa Universidade mantenha a qualidade reconhecida nacional e internacionalmente.





Resumo

O presente trabalho tem por objeto analisar se e como as normas constitucionais brasileiras abarcam certas proposições do modelo deliberativo de democracia. Para isso, pretende-se primeiro investigar como é entendida a democracia deliberativa pelos principais pensadores no tema, além dos seus elementos nucleares e valores. Em seguida, volta-se para uma análise das peculiaridades do sistema político brasileiro e suas consequências. Ao fim, o estudo faz um apanhado de princípios e normas constitucionais, além dos regimentos internos das Casas Legislativas para identificar se os comandos normativos sobre decisões políticas na democracia brasileira devem ser tomados de forma justificada e com amplo debate público. Palavras chaves: Democracia Deliberativa. Deliberação Pública. Legitimidade. Justificação. Decisão Política. Normas Constitucionais. Procedimento Normativo.





Abstract

This work´s purpose is to analyze if and how the Brazilian constitutional norms embrace certain propositions of the deliberative model of democracy. For this, first we intend to investigate how deliberative democracy is understood by the main philosophers on the subject, in addition to its core elements and values. Next, we turn towards an analysis of some peculiarities of the Brazilian political system and its consequences. At the end, the study gives a thematic overview of constitutional principles and norms, in addition to the internal bylaws of the Legislative Houses to identify whether normative Commands on political decisions making in Brazilian democracy should be taken justifiably and with extensive public debate. Keywords: Deliberative Democracy. Public Deliberation. Legitimacy. Justification. Political decision making. Constitutional norms. Legislative procedure.



Sumário: 1. Introdução --------------------------------------------------------------------------------------- 9 2. O que é Democracia Deliberativa? ------------------------------------------------------- 11 2.1 Deliberação e Legitimidade ---------------------------------------------------------------- 15 2.2 Deliberação e Racionalidade --------------------------------------------------------------- 17 3. Deliberação Pública e qualidade das decisões ------------------------------------------ 23 3.1 O valor instrumental da deliberação ----------------------------------------------------- 25 3.2 Por que a deliberação pública per se é apenas valiosa instrumentalmente ------- 28 3.3 Deliberação como um contexto de justificação política ------------------------------- 31 4. Direito Constitucional e Democracia Deliberativa: uma resposta? ---------------- 35 4.1 Direito constitucional a um devido procedimento na elaboração normativa ---- 36 4.2 Realidades legislativas brasileiras e a exigência por justificativas ----------------- 39 4.3 Breves conclusões sobre as peculiaridades legislativas do sistema político brasileiro --------------------------------------------------------------------------------------- 43 5. As previsões constitucionais ao debate público e a fundamentação constitucional ao devido procedimento na elaboração normativa ------------------------------------ 45 5.1 Algumas previsões constitucionais sobre participação ------------------------------- 45 5.2 Algumas previsões constitucionais sobre o processo brasileiro de elaboração de normas: há exigências por justificativas? ----------------------------------------------- 48 5.3 A relação dos Princípios do Estado de Direito e do Devido Processo Legal com as exigências por justificativas do devido procedimento na elaboração normativa-51 6. Conclusão -------------------------------------------------------------------------------------- 56 7. Bibliografia ------------------------------------------------------------------------------------ 61

9 1.

Introdução O presente estudo tentará analisar se as normas constitucionais brasileiras abarcam

certas proposições do modelo deliberativo de democracia. Para tal, pretendemos investigar como é entendida a democracia deliberativa pelos principais pensadores no assunto e quais são seus elementos nucleares e valores. Em um segundo momento, faremos um apanhado de princípios e normas constitucionais, leis federais e regimentos internos das Casas Legislativas, tentando identificar se as decisões políticas na democracia brasileira devem ser tomadas, em conformidade com a Constituição de 1988, de forma justificada e com amplo debate público, como preconiza o modelo deliberativo. Trata-se de tema de muita relevância se considerarmos as crises institucionais pelas quais passam as democracias contemporâneas, incluindo a brasileira. Muito se debate no atual cenário sobre a necessidade de reformas políticas de base que ampliem não só a representatividade, mas o sentimento de participação dos cidadãos no dia a dia das decisões políticas, principalmente nas esferas locais. Não se pretende no presente estudo encontrar respostas para todos os problemas de representação da democracia brasileira, mas tenta-se identificar como o modelo deliberativo pode contribuir para a legitimidade das decisões político-normativas, podendo afetar inclusive sua qualidade. No primeiro capítulo exploraremos o conceito de democracia deliberativa, sua história e alguns elementos nucleares por meio de um apanhado das principais ideias dos grandes pensadores no assunto. As questões da legitimidade e da racionalidade das decisões tomadas após um amplo debate público serão o ponto central deste capítulo. Neste contexto, indagaremos sobre como devem estar distribuídas e arranjadas as instituições democráticas de forma a ampliar a participação popular na vida política. Na segunda parte, sem se aprofundar demais no assunto, analisaremos se é possível dizer que decisões tomadas após ampla deliberação pública são qualitativamente melhores. Apresentaremos resumidamente três tipos diferentes de valores que a deliberação pública pode ter na tomada de decisão, quais sejam: (i) os resultados objetivos da deliberação pública; (ii) o valor intrínseco da deliberação pública; (iii) a condição de justificação política da deliberação pública. Assim, argumentaremos a favor da afirmação de que a deliberação

10 pública tem um valor instrumental para a tomada de decisão democrática, contribuindo de forma significativa na capacidade de produção de resultados melhores e mais justos. Em seguida, nos aprofundaremos em certos valores da deliberação pública, resumidamente, seu valor instrumental e sua condição de justificação política. Para tal, analisaremos dois dos principais pensadores da democracia deliberativa: Thomas Christiano e Joshua Cohen. Nesta parte pretendemos explicar por que as demandas do modelo deliberativo por justificação das decisões políticas são extremamente importantes para uma democracia, e que o seu fomento contribuiria também para a legitimidade e qualidade das mesmas. Ainda em um estudo teórico, apresentaremos de forma breve a ideia do devido procedimento na elaboração normativa e como seu incremento ajudaria nas exigências por justificação dos atos político-normativos do Poder Público. Logo depois, nosso estudo haverá de arrefecer seu viés teórico, incidindo nas realidades do Direito Constitucional brasileiro. Passaremos então a analisar algumas peculiaridades da produção legislativa brasileira, mostrando em dados que boa parte das leis sequer é feita pelas Casas Legislativas nacionais, o que diminui em boa parte o grau de participação democrática. Nesta parte pretendemos concluir que as ânsias por maiores justificações na vida política são mais urgentes do que se imagina e que as peculiaridades legislativas do sistema político brasileiro são preocupantes do ponto de vista democrático. Por fim, faremos um apanhado de algumas normas constitucionais e regimentais das Casas Legislativas que fazem previsões sobre a participação popular no campo político. Nesse contexto, veremos que a ideia do devido procedimento na elaboração normativa e suas exigências por justificação são respaldadas pela Constituição de 1988, de forma que o seu fomento contribuiria positivamente para sanar parte dos problemas de representatividade da democracia brasileira.

11 2.

O que é Democracia Deliberativa? Democracia Deliberativa consiste na ideia de que a produção legítima de leis deriva da

deliberação pública dos cidadãos1. Por mais redundante que possa parecer, a ideia última de democracia deliberativa é a própria ideia de deliberação, ou seja, quando os cidadãos apresentam seus pontos de vista, razões e argumentos acerca de questões de política pública, tentando encontrar um consenso dentro do pluralismo político existente em uma democracia, estão agindo norteados pela democracia deliberativa. A democracia deliberativa institucionaliza o ideal de justificação política. De acordo com este ideal, justificar o exercício do poder político coletivo é proceder com base na argumentação pública livre entre os cidadãos. Na concepção deliberativa, a democracia possui uma estrutura de condições sociais e institucionais que facilita e promove a discussão entre cidadãos livres e iguais, criando condições favoráveis de participação, associação e expressão. Dentro das atuais divisões históricas e conceituais de democracias podemos classificar a democracia deliberativa como uma das várias modalidades ou teorias normativas da democracia participativa. Em conjunto com a teoria liberal, republicana, discursiva e corporativa, a concepção deliberativa surge como uma forma de resposta aos crescentes problemas nas formas de participação política, legitimação das leis e justificação das decisões políticas. A democracia deliberativa sempre esteve vinculada à escola do liberal republicanismo, advogando a tese do self-government, segundo a qual as pessoas poderiam se autogovernar por meio de mecanismos assecuratórios de ações políticas e de perfis normativos que tivessem por escopo a participação dos cidadãos2. De forma sintética, não deixa de ser uma tentativa de fundar uma nova e mais avançada forma de democracia num contexto de complexidade social e de pluralismo político. Sob o ponto de vista pragmático, para uma eventual efetivação da democracia deliberativa, seria sempre necessária a reunião dos cidadãos em assembleias ou outras formas da representação política para deliberar sobre quais leis e políticas públicas deveriam ser 1

MONTEIRO, Geraldo Tadeu. Democracia Deliberativa. In: BARRETTO, Vicente de Paulo (Ed.). Dicionário de Filosofia do Direito. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2006, p. 195. 2 AIETA, Vânia Siciliano. Democracia. In: BARRETTO, Vicente de Paulo (Ed.). Dicionário de Filosofia do Direito. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2006, p. 195.

12 utilizadas para alcançar o bem comum numa sociedade. Cumpre esclarecer que, mesmo conscientes da irremediável e sempre crescente pluralidade de interesses e visões políticas, os defensores da democracia deliberativa entendem – de um modo geral – ser possível transpor essas barreiras por intermédio do que Kant chamou de uso público da razão3. Historicamente, o conceito de democracia deliberativa aparece nos anos 1980 com o crescente ativismo em prol dos direitos civis, a exemplo da nova força do feminismo. Junto ao desastre americano na Guerra do Vietnã e a percepção do burocratismo e da irresponsabilidade dos governos diante da vontade dos cidadãos, surge uma desilusão com a democracia liberal e uma espécie de esforço teórico em direção a uma concepção de democracia que incorporasse ideias como a ação direta, poder local, democracia nos locais de trabalho, associações voluntárias e deliberação entre os cidadãos4. Cabe ressaltar, porém, que não necessariamente o que cada pensador entende sobre democracia deliberativa englobe ideias, por assim dizer, engessadas. O conceito de democracia deliberativa está longe de ser pacífico. É de suma importância, portanto, que antes de destacarmos as diferenças mais marcantes nas teses de cada teórico, percebamos alguns traços comuns em suas ideias. Em primeiro lugar, entende-se que a atividade política não pode ser reduzida a um conjunto de atos de escolha racional, como de consumidores no mercado, uma vez que a atividade política exige dos cidadãos uma espécie de ponto de vista cívico, ou seja, o processo político envolve mais do que apenas interesses egoístas. Em segundo lugar, os teóricos da democracia deliberativa concordam que ela sempre requer a possibilidade de que os cidadãos – indivíduos ou grupos -, a partir de seus pontos de vista sobre determinado assunto específico, convirjam para um espaço público de discussão, no qual uma decisão resultante de um debate público será legitimamente tomada. Embora nem nesse ponto haja total convergência, a título argumentativo podemos sintetizar os acordos teóricos nesses dois pontos. Em relação às divergências, para começar, o problema fundamental da democracia deliberativa reside na sua justificação, ou seja, como afirmar que um governo, leis ou até 3

Sobre o assunto, ver o famoso texto kantiano Was ist Aufklärung? (1784): KANT, Immanuel. Resposta à pergunta: Que é Esclarecimento? In: Textos Seletos. Tradução de Floriano de Sousa Fernandes. 8. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2012, p. 63-71. 4 MONTEIRO, Geraldo Tadeu. Democracia Deliberativa. Op. Cit., p. 196.

13 mesmo políticas públicas específicas são democráticas e deliberativas? Para responder a essas perguntas, os teóricos da democracia deliberativa dividem, de um modo geral, a teoria da democracia deliberativa em teses que propõem um tipo de justificação epistêmica ou valorativa e as que propugnam uma justificação procedimental. Para os defensores da tese da justificação epistêmica ou valorativa a legitimidade democrática de uma decisão política apura-se pela conformidade desta decisão com padrões objetivos e largamente aceitos pela sociedade. Sendo assim, logo notamos que para estes pensadores existem padrões objetivos em relação aos quais é possível comparar uma experiência prática específica para classificá-la como democrática ou não democrática. Em termos práticos, esses teóricos admitem que, ao buscar o bem comum, o cidadão deveria abdicar de sua verdade total e basear seus argumentos e propostas em verdades básicas largamente aceitas. Dessa maneira, o próprio dever de civilidade apelaria a argumentos compreensivos e as associações políticas se fundariam em valores compartilhados, fornecendo razões públicas que todos deveriam legitimamente apoiar. Assim, a democracia deliberativa seria preferível por causa de seu valor epistêmico, ou seja, tendência à produção de resultados corretos segundo padrões independentes. Do outro lado estão os teóricos que, renunciando à ideia de um fundamento universal para a democracia deliberativa, vão validá-la pelo seu próprio processo de deliberação, o que vamos chamar ao longo do estudo de procedimentos. Estes vão entender que à medida que se busca a dignidade, felicidade e liberdade de cada indivíduo como objetivo comum a todos, a legitimidade da lei e do poder social decorre do entendimento mútuo e consenso de todos os membros da sociedade e o fundamento da produção de uma razão pública consiste no próprio processo democrático de deliberação, livre de toda substancialização. Em resumo, a soberania da decisão política numa democracia deliberativa para estes pensadores reside em formas comunicativas não-subjetivas, por assim dizer, procedimentais, que regulariam o fluxo da formação da opinião e da vontade de cada indivíduo, de forma que os seus resultados, ainda que possivelmente falíveis, detém a presunção da razão prática, uma vez que passaram por esses processos previamente estabelecidos. Cumpre ressaltar que se propõe, nesta ideia de democracia deliberativa procedimental, o gradual aperfeiçoamento dos procedimentos institucionalizados de formação racional da vontade coletiva sem qualquer menção aos objetivos materiais concretos dos participantes, ou seja, aos resultados da decisão política, em última instância.

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Sendo assim, não obstante as múltiplas ideias sobre o tema, podemos entender de forma geral que há alguns elementos essenciais para a democracia deliberativa. O primeiro consiste na ideia rawlsiana de razão pública5. O segundo elemento seria um quadro de instituições democráticas constitucionais em que atuarão os corpos legislativos deliberativos. Por fim, o terceiro elemento é o conhecimento e desejo por parte dos cidadãos de seguir a razão pública e realizar seu ideal em suas condutas políticas. Embora seja extremamente importante a compreensão da ideia de razão pública e, consequentemente, quais seriam os conteúdos dos argumentos utilizados dentro de um processo de deliberação, o presente estudo está mais interessado nos arranjos institucionais necessários para que as decisões sobre assuntos de interesse comum a todos sejam tomadas com a maior racionalidade e legitimidade possíveis, e, consequentemente, interessado também na qualidade das decisões. Sendo assim, dentre os elementos necessários para que a democracia deliberativa se desenvolva, certamente nosso foco está nas instituições democráticas e seus processos de deliberação. 2.1.

Deliberação e Legitimidade Quando há de ser tomada uma decisão cujo assunto é de interesse comum de todos,

alcança-se um maior grau de legitimidade e racionalidade quando as instituições estão arranjadas de forma que essa decisão resulte de processos de deliberação coletiva conduzidos de modo racional e equitativo entre os indivíduos livres e iguais.

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“A ideia de razão pública explicita no nível mais profundo os valores morais e políticos que devem determinar a relação de um governo democrático constitucional com os seus cidadãos e a relação destes entre si. (...) A ideia de razão pública tem uma estrutura definida e, se um ou mais dos seus aspectos é ignorado, ela pode parecer implausível, como parece quando aplicada à cultura de fundo. Ela tem cinco aspectos diferentes: (1) as questões políticas fundamentais às quais se aplica; (2) as pessoas a quem se aplica (funcionários do governo e candidatos a cargo público); (3) seu conteúdo como dado por uma família de concepções políticas razoáveis de justiça; (4) a aplicação dessas concepções em discussões de normas coercitivas a serem decretadas na forma de lei legítima para um povo democrático; (5) a verificação pelos cidadãos de que os princípios derivados das suas concepções de justiça satisfazem o critério de reciprocidade.” (RAWLS, John. O Direito dos Povos. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 174-175).

15 Este é, portanto, o principal ponto deste capítulo: quanto mais coletivos forem os processos de tomada de decisão, tanto mais o modelo deliberativo de democracia se aproxima do pressuposto de sua legitimidade e racionalidade. Por quê? O debate sobre a legitimidade do poder político é tão antigo quanto o próprio, tendo os seus critérios de justificação mudado ao longo da história. Desde a ideia de legitimidade por escolha divina na Idade Média, passando pelas teorias contratualistas de Hobbes, Locke, Rousseau e Kant dos séculos XVII e XVIII, até as fundamentações contemporâneas do Estado Democrático, sempre se mostrou necessário justificar a legitimidade política e jurídica da titularidade do poder. A eclosão da Modernidade, com suas inúmeras consequências nas mais diversas esferas do pensamento e da ação humanos, pode ser tomada como ponto de ruptura em virtude da proliferação de abordagens da matéria sob novas nuanças, sendo critérios suprarracionais, como a tradição hereditária ou a ordem metafísica do mundo, deixados paulatinamente de lado, ou pelo menos definhando sua força de validade, de forma que a justificação do poder político foi elevada a outro patamar de legitimação. A legitimidade da ordem democrática passa a depender cada vez mais de um tipo de fundamentação apoiada no princípio da legalidade. Assim, desde o início, o pensamento democrático moderno se deparou com a conclusão de que a unanimidade provia o princípio da legitimidade. No entanto, ao mesmo tempo, as teorias democráticas precisavam responder não apenas à questão da legitimidade, mas também à necessidade de eficiência nos processos de tomada de decisão. Como numa democracia pluralista a unanimidade chega a ser impossível, mas a necessidade de decisões políticas – muitas vezes rápidas e urgentes – é constante, introduziu-se um princípio de tomada de decisão mais realista: o princípio da maioria. Neste ponto, as ideias de Sièyes e Rousseau conseguem demonstrar com clareza a força da exigência por unanimidade no pensamento democrático, mas também as dificuldades em que se incorre ao tentar reconciliá-las com um princípio mais realista de tomada de decisão, qual seja, o princípio da maioria. Assim, apenas uma teoria vinculada ao individualismo moderno consegue apresentar uma teoria coerente do princípio da maioria, a saber, o utilitarismo.

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A fórmula utilitarista “a maior felicidade para o maior número”6, de Jeremy Bentham, admite que uma lei ou decisão seja considerada justa e legítima quando seu efeito no corpo social eleva a soma de felicidade dos indivíduos. Certamente, aqui, o princípio da maioria encontra uma melhor aceitabilidade, uma vez que o que se busca não é mais a unanimidade, mas a felicidade do maior número possível de indivíduos. Assumindo a posição de sacrificar os objetivos ou liberdades de alguns em nome da promoção ou satisfação de um grande número de indivíduos, de forma que a felicidade total criada exceda os inconvenientes gerados pelos sacrifícios dos que se opõem a certa solução, a doutrina utilitarista falha ao não levar a distinção entre as pessoas a sério, como aponta Rawls7. Sendo assim, a crítica liberal ao utilitarismo torna-se inteiramente convincente ao mostrar que as vontades individuais são absolutas, não podendo ser comparadas entre si. Por conseguinte, igualmente às ideias de Sièyes e Rousseau, o utilitarismo não é capaz de justificar o princípio da maioria. Por outro lado, a legitimidade nas decisões políticas no modelo deliberativo vai além da necessidade de amparo na legalidade constitucional, como ensina Joshua Cohen: “A ideia fundamental da legitimidade democrática é a de que a autorização para exercer o poder estatal deve surgir das decisões coletivas dos membros da sociedade que são governados por tal poder. Mais precisamente – e com referência ao caráter institucional da democracia -, a legitimidade emerge das discussões e decisões dos membros da sociedade, quando formuladas e expressas por meio de instituições sociais e políticas designadas a reconhecer sua autoridade coletiva.”8 Assim, dentro do modelo da democracia deliberativa, a ideia de legitimidade não advém apenas de uma fonte legalista, mas também do próprio processo de tomada de decisão. Um dos principais pensadores no tema, Bernard Manin, esclarece que

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BENTHAM, Jeremy. Constitutional Code. In: The Works of Jeremy Bentham. Vol. IX. Edinburg: J. Bowring, 1838-1843, p. 5. 7 RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. Tradução de Jussara Simões. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 33. 8 COHEN, Joshua. Procedimento e substância na democracia deliberativa. In: MELO, Rúrion Soares; WERLE, Denílson Luiz (Eds.). Democracia Deliberativa. São Paulo: Editora Singular, 2007, p. 115.

17 “a fonte de legitimidade não é a vontade predeterminada dos indivíduos, mas antes o processo de sua formação, ou seja, a própria deliberação. A liberdade do indivíduo consiste primeiramente em estar apto a chegar a uma decisão por meio de um processo de pesquisa e comparação entre várias soluções. Já que as decisões políticas são caracteristicamente impostas a todos, parece razoável buscar, como condição necessária para a legitimidade, a deliberação de todos ou, mais precisamente, o direito de todos em participar na deliberação (...) uma decisão legítima não representa a vontade de todos, mas resulta da deliberação de todos. Este é o processo pelo qual a vontade de cada um é formada de tal maneira a conferir legitimidade a seus resultados, legitimidade que não deriva da soma das vontades já formadas. O princípio deliberativo é tanto individualista como democrático. Implica que todos participem na deliberação, e nesse sentido a decisão tomada pode razoavelmente ser considerada como emanando do povo (princípio democrático).”9 É nesse ponto que o modelo deliberativo se diferencia dos demais, pautados, de forma geral, na regra da maioria: o próprio processo deliberativo seria capaz de criar a legitimidade necessária para a tomada de decisão. Cumpre ressaltar, porém, que as discussões sobre a regra da maioria como forma de garantia de legitimidade são muito mais amplas. Há pensadores que acreditam no processo deliberativo como instrumento garantidor de legitimidade, e há aqueles que não entendem o processo deliberativo como mecanismo garantidor, mas sim a regra da maioria. Há inclusive outros que entendem a regra majoritária apenas como simples mecanismo de decisão ou de resolução de conflitos. De toda forma, não iremos nos ater a esse tema no presente estudo. 2.2.

Deliberação e Racionalidade À medida que numa deliberação pública há uma multiplicidade de pontos de vista e

argumentos, ampliando as informações de seus participantes e capacitando-os a descobrir suas próprias preferências - preferências essas que os participantes possivelmente nem sabiam que existiam -, o processo de deliberação possui, não apenas o caráter legitimador, mas também o educativo. O processo de deliberação possui uma dupla dimensão: ele é simultaneamente coletivo e individual. Como o objetivo do processo deliberativo é permitir um maior acesso às 9

MANIN, Bernard. Legitimidade e deliberação política. In: MELO, Rúrion Soares; WERLE, Denílson Luiz (Eds.). Democracia Deliberativa. São Paulo: Editora Singular, 2007, p. 31.

18 informações, razões e argumentos, ampliando a capacidade de cada indivíduo de encontrar suas próprias preferências, o processo é individual porque cada um dá as razões a si mesmo, encontrando argumentos e pesando-os, e é coletivo à medida que o indivíduo escuta os argumentos formulados pelos outros, alargando seu próprio ponto de vista, tornando-o ciente de coisas que não havia pensado em um primeiro momento. A deliberação, então, cumpre com a necessidade legitimatória de uma tomada de decisão política e também cria um ambiente rico, uma vez que ela não requer apenas pontos de vistas múltiplos, mas principalmente os conflitantes – a essência da política. Durante a deliberação, os indivíduos não se contentam em apenas defender os seus argumentos, mas também tentarão refutar os argumentos das posições que desaprovam. Neste ambiente de embate de ideias, novas informações surgem e as partes se tornam cientes das consequências potencialmente nocivas das diferentes propostas. Sendo assim, a deliberação tende a aumentar o fluxo de informação e a localizar as preferências dos indivíduos, ajudando-os a descobrir aspectos das soluções propostas e de seus próprios objetivos, que antes sequer haviam percebido. No entanto, duas potenciais indagações poderiam ser formuladas. Em primeiro lugar, pressupõe a deliberação política um público razoável, ou seja, um certo grau de instrução e cultura? Em segundo lugar, dentro de uma democracia pluralista, não são tantos os pontos de vista ao ponto de tornar impossível explorar todas as possibilidades? Ora, essas são as duas principais objeções ao modelo deliberativo e conseguir respondê-las seria encontrar uma solução para longas problematizações travadas entre diversos pensadores sobre o tema, o que não é o propósito deste estudo. No entanto, um importante pesquisador do assunto, Thomas Cristiano, oferece um argumento que torna a primeira indagação um problema menor, ao entender que as próprias instituições de discurso e deliberação ao promoverem o debate estariam distribuindo condições cognitivas de entendimento entre os cidadãos, além de materializarem, nelas próprias, o princípio da igualdade política. Faz saber: “Considere uma situação na qual os indivíduos estão situados de forma desigual tendo em vista as condições cognitivas de tomada de decisão. Isto ocorre em uma sociedade democrática onde cada um tem um voto e na qual existe um processo de deliberação pública, porém onde alguns não possuam

19 os meios ou o pano de fundo educacional necessários para a participação ou simplesmente não são ouvidos no processo de deliberação por razões que não têm nada a ver com conteúdo do que eles têm a dizer. Estão sendo tratados como inferiores. Isto também ocorre onde não exista a deliberação pública, mas onde as deliberações privadas dos cidadãos estão baseadas em condições cognitivas desiguais. (...) Agora, considere um cenário em que todos os cidadãos participam como iguais no processo de discussão. Cada um tem os recursos para fazer uma contribuição e outros estão ao menos dispostos a ouvir o que cada um tem a dizer. Por enquanto, não entrarei na natureza deste direito igualitário. O que pretendo argumentar aqui é que a igualdade no processo de discussão democrática tem dois méritos principais. Primeiramente, como argumentado acima, aperfeiçoa a qualidade dos resultados da tomada de decisão democrática. Em geral, a deliberação pública aperfeiçoa a qualidade dos resultados, e a igualdade no processo de deliberação acentua esse efeito, pois permite que os pontos de vista e interesses de todos os participantes da sociedade sejam ouvidos e harmonizados na medida em que o possam sê-lo. Um segundo mérito de tal processo é que considera todos os membros da sociedade como iguais. Instituições de discussão e deliberação afetam a distribuição das condições cognitivas de entendimento entre os cidadãos. É nessas instituições que o princípio da igualdade política se realiza. As instituições igualitárias são encarregadas da tarefa de distribuir amplamente as condições cognitivas de entendimento, de modo que os indivíduos tenham meios de aperfeiçoar a compreensão de seus próprios interesses e de refletir sobre os fundamentos e méritos de suas convicções relevantes politicamente e o melhor meio de realiza-las. (...) Para resumir, as instituições democráticas e, em particular, as instituições de discussão e deliberação, têm um impacto amplo sobre as possibilidades que os indivíduos possuem para refletir sobre e chegar a uma melhor compreensão de seus interesses e alcançar um ponto de vista mais racional. A discussão pública e a deliberação, portanto, contribuem de modo significativo para asinstituições igualitárias e o princípio da igualdade fornece uma razão objetiva (rationale) para a distribuição de recursos a favor da deliberação igualitária.”10 Ora, embora a linha de pensamento de Thomas Christiano não responda diretamente à pergunta sobre se a deliberação política pressupõe um público com certo grau de instrução e cultura, ela esclarece que em qualquer outro modelo de democracia e, em última instância, de tomada de decisão, os diferentes níveis de cognição já são uma realidade e já influenciam diretamente a própria decisão. Por outro lado, embora no modelo deliberativo esse desnível também exista, a deliberação pública traz duas particularidades que tornam o problema menor: ela pode diminuir, paulatinamente, os abismos de acesso à educação e cultura dos indivíduos, na medida em que o próprio processo de deliberação consiste num acesso à 10

CHRISTIANO, Thomas. A importância da deliberação pública. In: MELO, Rúrion Soares; WERLE, Denílson Luiz (Eds.). Democracia Deliberativa. São Paulo: Editora Singular, 2007, p. 9496.

20 informação, além de obrigar que as partes mais instruídas adequem o seu discurso, ou seja, argumentos, às capacidades daqueles menos instruídos. Antes que a questão seja levantada, cumpre esclarecer que isso não tornaria uma democracia deliberativa em um regime platônico dos mais sábios com capacidades de argumentação e convencimento. Convencer o outro de que suas razões são mais adequadas, em um caso específico, passa primeiro pela necessidade de entender quais são os problemas e objeções do interlocutor às suas ideias, e em seguida, adequá-las ao próprio discurso do oponente, resultando, em última análise, numa convergência, ainda que precária e sujeita a novos questionamentos, de razões compartilhadas. Bernard Manin também acredita nessa convergência de interesses, exemplificando, em seu artigo “Legitimidade e deliberação pública”: “Por exemplo, todos aspiram simultaneamente por uma redução dos impostos e um aumento nos serviços sociais. No decorrer da deliberação e na troca de pontos de vista, os indivíduos tornam-se conscientes dos conflitos inerentes a seus próprios desejos. Isto os leva a modificar os objetivos que tinham no inicio, desistir de alguns deles e harmonizar outros com vistas a compatibilizá-los com os desejos dos outros, trazendo à tona, portanto, a conciliação ou o compromisso.11” Pois bem, mesmo que consideremos uma situação fática onde os indivíduos ou grupos de indivíduos com pontos de vistas parecidos sobre um determinado assunto se conciliem e, consequentemente, se agrupem, ainda assim não resolveríamos a questão do pluralismo político e da multiplicidade de soluções que seriam trazidas ao longo de um processo deliberativo. Então, sob o ponto de vista da eficiência, ainda teríamos um processo de deliberação inexequível, uma vez que a quantidade de argumentos e particularidades de cada grupo ou grupos de indivíduos seria quase que infinita. Parece-me que uma importante pensadora no assunto, Seyla Benhabib, em seu artigo “Sobre um modelo deliberativo de legitimidade democrática”, encontra uma saída para a questão formulada ao combinar dois fatores: a necessidade de articular boas razões em 11

MANIN, Bernard. Legitimidade e deliberação política. Op. Cit., p. 29.

21 público, para que haja o convencimento do interlocutor12, com um modelo procedimental de democracia deliberativa13. Em resumo, a autora entende que é possível ultrapassar as problemáticas da (i) necessidade de um público razoavelmente instruído e (ii) a grande multiplicidade de pontos de vista em uma democracia pluralista, combinando (a) a articulação de boas razões em público com (b) um modelo altamente procedimentalista de democracia. De acordo com a autora, em primeiro lugar, isso ocorreria porque o próprio processo de articular boas razões em público força o indivíduo a pensar sobre o que seria uma boa razão para todos os outros envolvidos. O indivíduo seria forçado a pensar a partir do ponto de vista de todos os envolvidos, a quem “suplica” o consentimento, o que consequentemente já tornaria o seu ponto de vista sobre determinado assunto específico mais amplo e plural, restringindo, ainda que em pequena medida, a multiplicidade de pontos de vista. Em segundo lugar, as problemáticas seriam ultrapassadas porque as especificações procedimentais do modelo democrático-deliberativo privilegiariam uma pluralidade de modos de associação14 na qual todos os atingidos teriam o direito de articular seus pontos de vista, sem cair na utópica e ineficaz “assembleia de massas”. Cumpre ressaltar que os modos de associação, para a autora, poderiam ser diversos. É especificamente neste ponto que o presente estudo está interessado: como devem estar distribuídas e arranjadas as instituições democráticas para que haja um acesso amplo e 12

“Esse processo de articular boas razões em público força o indivíduo a pensar sobre o que seria uma boa razão para todos os outros envolvidos. Desse modo, o indivíduo é forçado a pensar a partir do ponto de vista de todos os envolvidos, a quem “suplica” o consentimento. Ninguém pode convencer os outros em público acerca de seu ponto de vista se não for capaz de explicar por que aquilo que parece ser bom, plausível, justo e conveniente para ele pode ser também considerado assim a partir do ponto de vista de todos os envolvidos.” (BENHABIB, Seyla. Sobre um modelo deliberativo de legitimidade democrática. In: MELO, Rúrion Soares; WERLE, Denílson Luiz (Eds.). Democracia Deliberativa. São Paulo: Editora Singular, 2007, p. 54-55). 13 “Esse modelo deliberativo de democracia é procedimentalista, visto que enfatiza principalmente certas práticas e procedimentos institucionais para alcançar decisões sobre questões que seriam obrigatórias para todos. (...) É certamente verdadeiro o argumento de que pode haver um limite invisível para a amplitude do corpo deliberativo, o qual, quando transposto, afeta a natureza do processo de argumentação. No entanto, a razão pela qual um modelo deliberativo e procedimentalista de democracia não precisa operar com a ficção de uma assembleia deliberativa geral é a de que as especificações procedimentais desse modelo privilegiam uma pluralidade de modos de associação na qual todos os atingidos podem ter o direito de articular seus pontos de vista.” (Ibid, p. 56 e p. 58). 14 “Estes modos de associação podem variar de partidos políticos, iniciativas de cidadãos, movimentos sociais, associações voluntárias, grupos de tomada de consciência (consciousness-raising groups), e assim por diante.” (Ibid, p. 58)

22 qualitativo dos indivíduos aos processos de tomada de decisão? Quais procedimentos democráticos devem ser cumpridos para que uma decisão política se torne uma decisão legítima? Sendo assim, em um primeiro momento analisaremos por que um modelo deliberativo de democracia é capaz de gerar uma solução política qualitativamente melhor do que as geradas em outros modelos, além de propagar, simultaneamente, o esclarecimento, educação e instrução dos cidadãos. Adiante, analisaremos como poderiam estar os arranjos institucionais e procedimentais a fim de promoverem o maior grau de legitimidade, racionalidade e qualidade possíveis às tomadas de decisão pública.

23 3.

Deliberação Pública e qualidade das decisões Nosso objetivo aqui será demonstrar suscintamente por que a deliberação pública tem

per se um valor exclusivamente instrumental no aperfeiçoamento da qualidade das decisões na democracia, tendo a igualdade no processo de deliberação um valor intrínseco fundamentado nas exigências de justiça. Para tal, faremos um apanhado do pensamento de um importante estudioso no tema, Thomas Christiano.15 Apresentaremos resumidamente três tipos diferentes de valores que a deliberação pública pode ter na tomada de decisão, quais sejam: (i) os resultados objetivos da deliberação pública; (ii) o valor intrínseco da deliberação pública; (iii) a condição de justificação política da deliberação pública. Em suma, argumentaremos a favor da afirmação de que a deliberação pública tem essencialmente um valor instrumental para a tomada de decisão democrática, contribuindo de forma significativa na capacidade de produção de resultados justos. Por fim, mostraremos que a igualdade no processo de deliberação é intrinsicamente justa, de forma que, ainda que a deliberação pública seja valiosa do ponto de vista instrumental, um processo justo de deliberação deve ser estruturado de modo igualitário. (i)

Resultados da Deliberação pública: melhoria na qualidade das decisões; melhor

justificação das leis; aperfeiçoamento de características desejáveis nos cidadãos Espera-se que a democracia deliberativa gere três tipos de resultados. O primeiro deles é que a deliberação pública geralmente melhora a qualidade das decisões porque aperfeiçoa a compreensão dos participantes sobre a sociedade em que vivem. Democracias que travam discussões bem-intencionadas e debates racionais entre os cidadãos tendem a proteger melhor as liberdades. Ora, se eu e meu vizinho mantivéssemos o hábito de debater sobre os problemas do bairro, certamente delimitaríamos melhor os problemas comuns e possivelmente as soluções que nos agradam. Por consequência lógica, e aqui chegamos ao segundo resultado esperado, as leis dessa sociedade tendem a ser mais bem justificadas do ponto de vista racional, ou seja, se eu e meu vizinho ao delimitarmos os problemas que devem ser resolvidos, debatermos também sobre 15

Cf. CHRISTIANO, Thomas. A importância da deliberação pública. Op. Cit.

24 quais propostas são convenientes e que normas devem ser seguidas para promovê-las, chegaríamos a um acordo racional (reasoned agreement). De toda forma, essa decisão é certamente mais racional do que a tomada sem um processo intensivo de deliberação. Por fim, o terceiro resultado é que todo esse processo de deliberação é capaz de semear certas características desejáveis nos próprios cidadãos. Além da autonomia, racionalidade e moralidade, o simples fato de debatermos quais são os problemas e soluções para determinado caso específico já nos torna indivíduos mais bem informadas sobre a sociedade ou local em que vivemos, os problemas que nos atingem e quais atingem os demais participantes. (ii)

O valor intrínseco da deliberação pública: respeito e preocupação mútua entre os

cidadãos A deliberação pública pode ter um valor intrínseco, de modo que possa valer a pena por si só uma sociedade ou até mesmo uma pessoa passarem por um processo de deliberação bem conduzido antes da tomada de decisão. Um primeiro entendimento sobre isso é de que a participação de um indivíduo na deliberação pública é parte essencial da vida boa de uma pessoa. Uma segunda abordagem – que merece mais atenção – é de que em uma democracia, onde as pessoas deliberam publicamente antes de tomarem uma decisão, incorpora nos indivíduos uma espécie de respeito e preocupação mútua entre eles. O próprio ato de explanar suas preocupações e ouvir as preocupações dos outros já tem, ao menos, a capacidade de tornar um indivíduo mais bem informado sobre as particularidades do outro. Conhecer melhor a si mesmo e ao outro certamente é dar um passo em direção a possíveis acordos mútuos que considerem igualmente os múltiplos pontos de vista. (iii)

A condição de justificação política da deliberação pública A deliberação pública também pode ser considerada valiosa quando a entendemos

como uma condição de justificação política. Aqui, um processo de deliberação cujas regras e procedimentos internos foram adequadamente seguidos seria necessário o suficiente para a justificação dos resultados. Os resultados já estariam justificados por si só porque foram produzidos dentro de um modelo específico de processo.

25 A relação entre a democracia e os resultados desejáveis se parece com as regras de um jogo e os vencedores do jogo. As regras do jogo não nos ajudarão a descobrir o vencedor do jogo como se isso fosse algo independente (resultado desejável); as regras definem quem é o vencedor (resultado obtido). A ideia é de que os processos democráticos justificam os resultados, ou seja, os processos democráticos constituem por si só o que é um resultado apropriado, de forma que o que se considera como apropriado não poderia ser produzido por qualquer outro procedimento, uma vez que o procedimento democrático é por si mesmo o apropriado. 3.1.

O valor instrumental da deliberação A deliberação pública tem a capacidade de melhorar a qualidade dos resultados da

tomada de decisão democrática? Essa afirmativa parece estar correta se a deliberação pública for travada em um lugar com contexto político livre do medo, da intimidação e do ridículo, e se uma multiplicidade de pontos de vistas puder ser ouvida. A deliberação faz com que os indivíduos compreendam melhor os interesses existentes na sociedade, e, por conseguinte, a própria sociedade. Sob o ponto de vista de que cabeças mais instruídas sobre uma sociedade tomarão melhores decisões, temos motivos para pensar que uma democracia que promova a deliberação pública tomará decisões melhores. Nesse sentido, havendo uma quantidade maior de pessoas com a oportunidade de examinar mutuamente a visão de cada uma sobre determinado ponto, pode-se considerar que serão evitadas, em geral, formas clamorosas de tratamento arbitrário, comuns quando há apenas um grupo tomador de decisões – uma classe política em uma sociedade sem ampla deliberação pública, por exemplo – sem estar consciente da existência de outros grupos na sociedade e seus interesses próprios. Sendo assim, de um modo geral, a deliberação pública e a ampla participação funcionariam como uma espécie de dispositivo de filtragem, eliminando as formas notórias de ignorância em face dos interesses e da justiça. Em segundo plano, pode-se dizer, de um modo genérico, que o efeito virtuoso da deliberação pública é verdadeiro, ou seja, em uma sociedade onde a deliberação pública é cotidiana, possuir características que contribuem para a deliberação é altamente funcional para os indivíduos ou grupos. Assim, quando uma pessoa não é capaz de formular bons

26 argumentos ou ideias para um debate público que vise uma específica tomada de decisão ao final, provavelmente seus interesses ou de seu grupo não serão acomodados em tal decisão. Aqui, revisita-se a ideia de que a deliberação pública promove um conjunto de qualidades desejáveis nos indivíduos, como a racionalidade, autonomia e respeito pelos outros, que além de serem características positivas na vida política, também provavelmente serão mais bem promovidas numa sociedade que encoraja a deliberação. Outro ponto a ser levantado é se a deliberação pública aumenta a tendência entre os cidadãos a concordarem sobre questões políticas – o que, indiretamente, aumentaria a legitimidade das ações estatais. Embora este resultado seja improvável numa sociedade pluralista, não há como prever ao certo o que poderia acontecer, já que, se por um lado o debate aumenta a diversidade de opiniões, por outro, ele elimina alguns desacordos decorrentes de meros preconceitos e superstições. Estando a discussão situada em um contexto igualitário e considerando que muitos pontos de vista terão que ser debatidos até que setores da sociedade previamente omitidos se tornem presentes, vamos considerar, a título argumentativo, que o debate público gere mais desacordos – aumentando os pontos de vista – do que acordos. Agora, ainda que a deliberação pública produza mais desacordos do que acordos, do ponto de vista democrático-institucional isso é positivo. Embora o acordo contribua para a estabilidade de uma sociedade ou de uma instituição, o desacordo e a diversidade de concepções estão entre as condições mais férteis de realização dos bens da justiça e da virtude. Um simples acordo sobre princípios acrescenta apenas um valor pequeno às instituições sobre as quais há esse acordo – a estabilidade. No entanto, isso só é positivo se a instituição for justa. Caso contrário, o acordo deixa de ter o seu efeito positivo e torna-se extremamente negativo – estabilizando injustiças. À contrassenso, quando há o desacordo e múltiplas visões podem ser propostas, torna-se irrelevante se uma instituição é ou não justa, uma vez que o próprio desacordo força um processo de crítica ou reavaliação de certa posição política. Sendo assim, o melhor que se pode fazer em relação a uma compreensão de justiça e do bem comum é testar toda concepção particular por meio de um processo de tentativa e erro, na qual uma diversidade de pontos de vista está sempre presente. Naturalmente o debate público, funcionando como um processo de tentativa e erro para excluir formas de ignorância, ou seja, uma espécie de filtro, ajuda a conseguir um resultado proveitoso, mesmo aumentando

27 a quantidade de desacordos na sociedade. Nesse sentido, mesmo que consideremos que o debate público gere mais desacordos do que acordos, ainda assim, o saldo final é positivo. Seria a única razão pela qual a democracia tem alguma importância o fato dela envolver a deliberação pública entre iguais, devemos nos perguntar: esses valores instrumentais da deliberação pública apresentados são os únicos valores na democracia? Certamente a resposta é negativa. As democracias possuem mecanismos que são por si só instrumentalmente importantes, independentemente de seu estímulo à deliberação, como por exemplo, o mecanismo de controle do poder (power-checking) do voto da maioria16. Em resumo, a regra da maioria inibe que uma elite minoritária tiranize o restante da população. Outra característica do poder do voto, e aqui não necessariamente apenas do voto da maioria, é a sinalização que ele faz de que certo candidato ou política é desejável ou indesejável. Embora as características de controle de poder e sinalização do voto sejam ainda mais aperfeiçoadas quando vinculadas à deliberação pública, elas possuem um valor independente, ou seja, podem desempenhar um papel importante numa democracia ainda quando o debate público está ausente. Através do controle do voto da maioria, percebemos a função garantidora de justiça do voto e, consequentemente, temos razão para pensar que o ato de votar também tem efeito sobre o caráter das pessoas, uma vez que exige um exercício mínimo de reflexão. O mecanismo do voto, além de possuir um impacto desejável em uma democracia – por meio do controle do poder e da sinalização –, afeta o caráter dos cidadãos. A função da deliberação pública só pode ser realizada se o poder do voto estiver amplamente distribuído. Isso ocorre porque o único sentido para se estar deliberando é caso se esteja fazendo uma escolha, e as pessoas só deliberam quando cada uma delas participa na formação da escolha. Além disso, o motivo para que os indivíduos contribuam com a deliberação é poderem, em última análise, votar. O estímulo para que os cidadãos expressem suas opiniões, escutem razões diversas e pensem sobre posicionamentos políticos com os quais discordam diminui muito quando estes adversários não têm poder de decisão. Portanto, o mecanismo do voto, por meio do controle do poder e da sinalização, bem como sobre o caráter dos indivíduos, é uma condição necessária para a eficácia e mesmo existência da deliberação pública. 16

Poderíamos citar dispositivos de freios e contrapesos presentes na maioria das democracias modernas, como outros mecanismos instrumentalmente importantes numa democracia que não estimulam diretamente a deliberação pública.

28

3.2.

Por que a deliberação pública per se é apenas valiosa instrumentalmente. Há dois modos de se entender o valor intrínseco da deliberação pública. O primeiro

diz respeito ao fato de a participação na deliberação pública sobre questões de grande importância moral ser um componente essencial ou pelo menos irredutível da vida boa de um cidadão. Já o segundo modo se relaciona com uma espécie de respeito mútuo entre os cidadãos, consequência direta da presença da deliberação pública numa sociedade. Em síntese, onde há um processo onde as partes deliberam umas com as outras, colocando suas concepções e argumentos em constante avaliação e critica, manifesta-se algum tipo de respeito entre os cidadãos. O simples fato de discutir um tópico com alguém, já significa que se considera o outro um ser racional e inteligente, ou seja, com algo a oferecer ao debate e à tomada de decisão, em última análise. Por outro lado, ao ignorar a opinião alheia, manifesta-se um tipo de desdém ao outro, o que não é apropriado em uma relação social. De um modo geral, quando debatemos assuntos não políticos, como a matemática, ainda que alguém saiba muito sobre o tema e não se pergunte nada a ele, não necessariamente está ocorrendo uma espécie de desrespeito. Timidez ou querer ocupar o tempo com outras coisas podem ser razões boas para não debater a matéria. Assim, em uma discussão normal, expressamos desdém por alguém somente quando ignoramos ou descartamos uma contribuição legítima feita por esta pessoa. Por outro lado, quando o tema é político, acrescenta-se outra dimensão ao argumento do respeito mútuo, uma vez que a discussão, em última instância, tem a ver com decisões que afetam a vidas das pessoas. Aqui, mesmo se por motivos de timidez ou preferência ocupacional falha-se em discutir as ideias com outra pessoa, necessariamente o que ocorre é uma espécie de desrespeito. Esse desrespeito é o que caracteriza todas as formas não democráticas de tomada de decisão política: além do ignorado não possuir voto sobre qual escolha será tomada, não há sequer troca de ideias na deliberação privada do tomador de decisão. Em uma democracia, mesmo quando não há deliberação pública, as decisões não são tomadas assim, porque uma decisão é imposta somente após ter sido votada – mesmo que esse voto seja o de escolha de representantes dos tomadores de decisão. Há incerteza de qual

29 decisão será tomada até que haja o voto e, portanto, não se trata de uma hipótese em que indivíduos simplesmente impõem suas concepções aos outros. Ainda assim, quando não há uma deliberação pública ampla, parece que ainda está presente um certo desrespeito com os cidadãos que não estão incluídos no processo de decisão e cujas vidas serão afetadas por ela. No campo político, escutar o que os afetados têm a dizer sobre um assunto significa não só dar-lhes poder de voto, mas também considerar suas concepções e incorporá-las ao debate. Neste caso há um valor intrínseco sendo invocado: onde há um processo de deliberação pública e alguns não têm a oportunidade de contribuir, eles estão sendo tratados como inferiores no processo de tomada de decisão, uma vez que lhes está sendo negada a igualdade de acesso às condições cognitivas da tomada de decisão democrática. Isso ocorre porque, em nossa concepção, a preocupação intrínseca central é a de que os indivíduos tenham acesso igual às condições cognitivas necessárias para tomar boas decisões em relação a temas que afetem a vida comum e, por outro lado, a participação no processo de deliberação pública é por si só uma das principais condições cognitivas necessárias para uma boa decisão. Sendo assim, se nós consideramos que as condições cognitivas habilitam o cidadão a entender melhor o que está em jogo numa decisão, além de melhor discernir a decisão correta, ao excluir indivíduos ou grupos de indivíduos do processo de deliberação e tomada de decisão, não estamos agindo de forma isonômica e igualitária, mas também tratando estes indivíduos de forma inferior. Para melhor explicar essa afirmação, vamos considerar alguns cenários possíveis. Em um primeiro cenário, imaginemos uma pessoa tomando uma decisão que afetará a vida de outra sem considerar as opiniões desta. Além da desigualdade de poder na própria tomada de decisão, há também uma desigualdade no fato de que somente as deliberações privadas do tomador de decisão afetarão a decisão. Provavelmente, a pessoa cuja opinião foi excluída terá seus interesses negligenciados, ainda que consideremos um tomador de decisão justo e bondoso. As consequências disso são que este processo de tomada de decisão política, além de falhar em tratar os membros da sociedade como iguais, promove, por um lado, apenas a deliberação privada do tomador de decisão, enquanto, por outro lado, deixa de promover qualquer deliberação do excluído. Assim, a injustiça reside no fato de que uma decisão que afeta a todos é feita a partir de uma deliberação unicamente privada.

30 Em um segundo cenário, imaginemos uma sociedade democrática na qual ninguém debata reciprocamente os méritos de políticas e leis, ou seja, que cada pessoa apenas privativamente reflita sobre tais questões, ou até mesmo uma sociedade democrática em que cada indivíduo barganhe e forme coalizões – sem discutir os méritos das preferências das quais cada indivíduo faz parte. Neste caso, não há nada de intrinsicamente errado ocorrendo. Não se está desrespeitando o outro ou alguém saindo privilegiado. Todos podem refletir privadamente, mudar suas concepções e se engajar na deliberação privada. Ainda pode ocorrer que os indivíduos deste cenário não estejam apenas preocupados com seus interesses, mas que sejam solidários com interesses de outros setores da sociedade. De toda forma, podemos considerar que os cidadãos podem tomar uma decisão – pela regra da maioria – com base na reflexão sobre razões que acreditam que os outros poderiam razoavelmente aceitar. Tudo isso é possível sem que haja necessariamente uma deliberação pública. Nesta hipótese, não podemos dizer que há injustiça, uma vez que a deliberação privada de cada um se realiza tendo como pano de fundo a igualdade de acesso às condições de tomada de decisão: não há troca de informações e argumentos. O processo de aprendizado proporcionado pelos diferentes pontos de vista não está sendo colocado em prática por uns e por outros não. Em síntese, embora claramente haja uma perda de informação resultante da falta de diálogo, não há injustiça em como tomaram a decisão. Não está caracterizada nenhuma situação de opressão. Não estamos aqui dizendo que todas ou a maioria das decisões são tomadas somente em termos de autointeresse. A grande maioria das questões é formulada de forma mista, isto é, os interesses dos participantes entram em jogo, mas suas opiniões sobre o bem comum também são consideradas. De todo forma, nos parece que a deliberação pública provavelmente aperfeiçoaria a qualidade do resultado da tomada de decisão. Ambos os cenários apresentados sugerem que o valor de ter um processo de deliberação pública é essencialmente instrumental, ou seja, a deliberação pública deve ser enxergada como um instrumento para tomar decisões políticas mais qualificadas. Por último, imaginemos ainda que um grupo de pessoas delibere sobre determinado assunto e que essa deliberação por alguma razão qualquer não resulte em compreensões ou informações novas, e que qualquer mudança na mente das pessoas surgirá devido a processos

31 não racionais17. Nessa hipótese, o processo de deliberação tem muito valor? Parece que não muito. Suponhamos ainda que o tema sobre o qual se delibere seja de importância extremamente limitada para a comunidade ou, ainda assim, que o tópico seja muito importante, mas que qualquer debate efetivo não seja compatível com a rapidez necessária de uma decisão urgente. Nesses casos, qual o significado dos processos de deliberação pública? Quase que nulo. Sendo assim, por todo o exposto, parece que a deliberação pública é por si só valiosa instrumentalmente: ela é um instrumento para tomar decisões mais bem informadas, considerando uma maior multiplicidade de pontos de vista, o que, em última análise, torna a decisão mais qualificada. 3.3.

Deliberação como um contexto de justificação política Por fim, outro principal valor da democracia deliberativa, que pode ser entendido até

como uma concepção da democracia deliberativa é a que a considera como uma condição de justificação política. Segundo esta ideia, a deliberação é valiosa por ser uma condição de justificação das instituições sociais, que chegam a certas decisões com ajuda da deliberação pública. Um dos principais pensadores sobre o tema, Joshua Cohen, foi capaz de resumir competentemente esta concepção na seguinte proposição: “os resultados são democraticamente legítimos se e somente se podem ser o resultado de um acordo livre e racional entre iguais”18 Em resumo, o processo pelo qual os resultados legítimos são realizados é chamado por Cohen de procedimento deliberativo ideal. Neste procedimento: “os participantes consideram-se mutuamente como iguais; eles visam defender e criticar instituições e os programas tendo como critério as considerações que os outros têm razões para aceitar, dado o fato do pluralismo razoável e a suposição de que esses outros são razoáveis; 17

“... processos não racionais, tais como aqueles descritos pelos psicólogos sociais como efeitos de comparação social (social comparisons effects), isto é, os indivíduos mudam suas opiniões somente porque outros superiores têm essas opiniões.” (CHRISTIANO, Thomas. A importância da deliberação pública. Op. Cit., p. 93). 18 COHEN, Joshua. Deliberation and democratic legitimacy. In: HAMLIN, Alan; PETTIT, Philip (Eds.). The Good Polity. Oxford: Blackwell, 1989, p. 22.

32 e eles estão dispostos a cooperar de acordo com os resultados dessas discussões, considerando esses resultados como obrigatórios.”19 Mas logo surgem algumas perguntas, sendo a primeira delas a seguinte: quais tipos de considerações valem como razões que outros poderiam aceitar? Neste cenário deliberativo idealizado, não bastaria argumentar razões que se assumem como sendo certas ou obrigatórias, pois estes argumentos poderiam ser rejeitados por outros, por meio de outros argumentos também razoáveis. O propósito seria encontrar razões que são obrigatórias aos outros, reconhecendo esses outros como iguais, cientes de que eles têm compromissos razoáveis alternativos, e conhecendo alguma coisa sobre os tipos de compromissos que ele podem provavelmente ter – por exemplo, compromissos morais ou religiosos que lhes impõem obrigações consideradas dominantes. Sendo assim, as razões que os outros podem aceitar são argumentos que consideram todos esses compromissos cujos oponentes políticos estão vinculados e que ainda assim sejam razoavelmente aceitos. Obviamente, nem mesmo o procedimento deliberativo ideal de Cohen produziria um consenso, porém, mesmo havendo divergência – o que já debatemos aqui como sendo algo positivo – se a decisão fosse feita pela regra da maioria, os participantes poderiam considerar que os argumentos vencedores são, de modo geral, reconhecidos como tendo peso considerável em certa comunidade política, e sendo uma base apropriada para a escolha coletiva, muito embora continue havendo quem discorde sobre o resultado correto. Sendo assim, segundo a concepção justificatória, quando os participantes limitam seus argumentos a essas razões, o próprio apoio da maioria valerá comumente como razão para aceitar a decisão como legítima. Em suma, a ideia é de que a deliberação democrática ideal e seu desfecho em um acordo racional justificariam o resultado ou a decisão política por si só. Em outras palavras, os resultados desse processo estariam justificados politicamente, vez que passaram por esse crivo processual. No entanto, outra pergunta surge instantaneamente: esta ideia de democracia deliberativa como condição de justificação política pode permitir que uma lei ou decisão política possa ser considerada legítima porque foi escolhida de modo democrático – seguindo todos os procedimentos e ritos previamente estipulados – embora seja, apesar disto, injusta? 19

COHEN, Joshua. Procedimento e substância na democracia deliberativa. In: MELO, Rúrion Soares; WERLE, Denílson Luiz (Eds.). Democracia Deliberativa. São Paulo: Editora Singular, 2007, p. 123.

33

Ora, essa é a maior objeção feita ao valor da democracia deliberativa como condição de justificação política. No entanto, outras importantes críticas são feitas à concepção justificatória, como, por exemplo, o fato de que se os participantes vencidos, logo, pertencentes a uma minoria, divergem sobre o que está politicamente justificado, mas continua-se decidindo e votando com base na regra da maioria, então no fundo eles não podem achar que o resultado escolhido pela maioria esteja justificado politicamente. Dito de modo mais simples, a questão que surge é saber quando as razões da maioria estariam justificadas politicamente, uma vez que ela não persuadiu a minoria, tendo apenas vencido com base no voto da maioria. Nesse sentido, a maioria se imagina como estando justificada da mesma forma que a minoria se imagina como justificada. Contudo, não houve a persuasão de uma sobre a outra quanto às suas razões. O que houve foi uma vitória pela regra da maioria, de forma que não poderíamos de fato considerar que houve uma justificação política, mas sim a vitória dos argumentos que mais persuadiram as pessoas. Outra questão a ser levantada acerca do valor da democracia deliberativa no contexto da justificação política é a de que não ficam claros quais são os limites à justificação política. Como exemplo, imaginemos que as pessoas concordem que a justiça deve ser a preocupação mais importante das instituições jurídicas de uma sociedade. Ora, até aí tudo bem. Mas esse consenso abstrato é compatível com uma ampla gama de visões acerca do que é e o que não é justiça. Os críticos à concepção justificatória consideram difícil como a ideia de justificação política pode descer à terra, sem um critério sério de demarcação dos tipos de acordos que podem servir como base à justificação política. Em outros termos, o que poderia vir a ser o ponto de aceitação razoável de uma posição diferente seria provavelmente ele mesmo um objeto de controvérsia. Outra forma de enxergar esse problema é pelos padrões epistemológicos utilizados. Veja, ao acordarem sobre certa decisão, uma maioria utiliza padrões epistemológicos específicos não necessariamente compartilhados pela minoria derrotada. Logo, devemos nos perguntar por que deveria uma minoria aceitar os resultados de uma epistemologia que ela não compartilha? Se a própria ideia por trás da concepção justificatória é de que cidadãos não devem ter ideais políticos impostos sobre eles quando não podem dar razoavelmente seu

34 consentimento a esses ideais, não seria a imposição de padrões epistemológicos contrários a essa ideia? De toda forma, este estudo não visa se aprofundar nas críticas ao valor da democracia deliberativa como condição de justificação política. Assim, a título argumentativo, podemos chegar à conclusão de que muito embora haja críticas bem fundamentadas a esse valor, não se pode negar que uma decisão política que passa pelos procedimentos propostos por um modelo deliberativo de democracia é mais facilmente justificada do que as decisões que não passem por esses crivos procedimentais. Em suma, podemos concluir que quanto mais bem deliberada é uma lei, política pública ou, em última instância, uma decisão política, mais chances possui de ser também melhor justificada. Assim, depois de analisarmos o valor instrumental da deliberação pública, analisamos as razões pelas quais a deliberação pode ser por si só valiosa instrumentalmente, e, por último, percebemos que a deliberação pública também tem a capacidade de tornar as decisões políticas mais bem justificadas. Nesse sentido, passaremos agora à análise de tese bastante recente no Direito Constitucional Brasileiro, mais especificamente sobre o direito constitucional a um devido procedimento na elaboração normativa, o que, em última análise, resultaria num direito à justificativa. Espera-se poder demonstrar que o fomento ao modelo deliberativo de democracia nos espaços públicos contribui significativamente não só para a legitimidade e qualidade das decisões políticas – como demonstrado na primeira parte do estudo –, mas também à possibilidade de cumprimento, por parte do Poder Público, do direito à justificativa.

35 4.

Direito Constitucional e Democracia Deliberativa: uma resposta? Muito se discute a necessidade de uma reforma política de base em todas as instâncias

de representação no atual cenário constitucional brasileiro. No entanto, a problemática não é somente nacional. Vendo o crescimento de nacionalismos, grupos de extrema direita em toda Europa, Estados Unidos e em diversos países da América Latina, além do recrudescimento da luta pelos direitos fundamentais e trabalhistas, que temos presenciado também em diferentes partes do mundo, podemos dizer que boa parte das instituições democráticas contemporâneas passa por um momento de crise. Os motivos – que não serão aprofundados no presente estudo - são diversos, como corrupção, desinteresse político da população e falta de confiança nos representantes eleitos. Por esse motivo, debate-se a necessidade de as democracias estarem em constante processo de mutação, adequando seus modelos de representatividade, processos eleitorais e demais institutos constitucionais democráticos às novas realidades mundanas visando o preenchimento das crescentes lacunas de representação cujo pluralismo político moderno dá-lhes causa. Nesse sentido, para fins didáticos, podemos dividir de forma objetiva os debates sobre a democracia em quatro grandes temas: (i) quem toma ou deve tomar as decisões políticas; (ii) como essas decisões são ou devem ser tomadas; (iii) que conteúdos são obrigatórios ou vedados, em outras palavras, o que pode ou não ser decidido; e (iv) para que serve a democracia afinal.20 Obviamente, o presente estudo não ousaria analisar todas essas questões, de forma que nos concentraremos na primeira e na segunda, ou seja, no quem toma e como toma as decisões políticas. A razão para nos concentrarmos nos sujeitos e nos modos das decisões políticas - cuja junção chamaremos de “forma” - não poderá ser explicada se não adiantarmos, logo agora, a que conclusão se destina o presente estudo. Em síntese, o que se pretenderá demonstrar é que as propostas apresentadas pelo modelo democrático-deliberativo, mesmo que consideremos sua ampla gama de diferentes propostas teóricas, são perfeitas para suprir as atuais demandas de aperfeiçoamento na forma com que as decisões politicas são ou deveriam ser tomadas. Pretendemos constatar que todas as características já apresentadas sobre a democracia deliberativa, como o seu poder 20

BARCELOS, Ana Paula de. Direito constitucional a um devido procedimento na elaboração normativa: direito à justificativa. 2015. 321 f. Tese (Professor Titular Faculdade de Direito) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015, p. 49.

36 legitimador, aperfeiçoador de qualidade, desenvolvedor do interesse político nos indivíduos, capacidade informadora e também seu contexto justificatório podem ser a resposta perfeita para a necessidade de melhoria nas formas de tomada de decisão. Em outras palavras, a democracia deliberativa tem o condão de apresentar soluções às problemáticas da forma com que são ou deveriam ser tomadas as decisões políticas nas democracias contemporâneas. Considerando a tese geral de que no modelo deliberativo as decisões são tomadas após um intenso processo de deliberação, no qual os participantes apresentam razões bem fundamentadas para suas posições políticas, isto é, justificam suas eventuais decisões, a deliberação pública seria, na verdade, um mecanismo capaz de conferir maior legitimidade, além de qualidade, à tomada de decisão. Dessa maneira, se conectarmos, rapidamente, a questão do como são tomadas as decisões com o quem as toma, podemos aplicar a lógica da democracia deliberativa tanto no âmbito da representação tradicional, a parlamentar, quanto em outros espaços de participação e decisão. 21 Nesse sentido, a demanda de apresentação de boas razões - o que a partir de agora chamaremos de justificativas – torna-se uma necessidade não só na representação parlamentar, mas também nos demais espaços de participação popular existentes. Assim, podemos notar então que o resultado visado pelas teorias da democracia deliberativa - melhor deliberação e participação - tem natural aproximação com as questões do como e quem toma as decisões políticas na sociedade, ou seja, a forma com que essas decisões são tomadas. Seguindo esse raciocínio analisaremos como o aprimoramento do sistema representativo e a ampliação da participação nos processos de discussão e decisão políticas – intuitos da democracia deliberativa – podem fomentar a democracia. Em seguida, mostraremos como o Direito Constitucional e seus institutos podem contribuir para tudo isso. 4.1.

Direito constitucional a um devido procedimento na elaboração normativa Muito embora tenhamos falado muito sobre o valor instrumental da democracia

deliberativa, ou seja, como o fato de se perpassar um debate público com regras pré-definidas pode ser valioso para o debate, para a decisão e, em último grau, para a democracia, pouco foi falado sobre como se daria esse procedimento e se ele estaria previsto nas normas de direito 21

Ibid, p. 52.

37 constitucional, no caso, as normas constitucionais brasileiras. Recente estudo na área demonstrou brilhantemente a existência, dentro do direito brasileiro e em normas de outros países, de um direito constitucional a um devido procedimento na elaboração normativa. As palavras da professora Ana Paula de Barcellos resumem a tese: “A tese que se sustenta aqui é a de que, considerado o sistema constitucional em vigor no Brasil, existe um direito difuso a um devido procedimento de natureza procedimental toda vez que algum órgão estatal – Legislativo e Executivo, ou qualquer outro – se ocupe da elaboração de normas. O conteúdo essencial desse due process (...) envolve o dever do proponente da norma de apresentar, de forma pública, as razões pelas quais considera que a tal norma deve ser editada e as informações que as fundamentam.”22 Logo percebemos que esse direito difuso possui certas características que vão ao encontro de algumas peculiaridades do modelo deliberativo. Mas não paramos por ai: “Por proponente da norma, já se pode adiantar, entende-se aquele que apresenta uma proposição normativa, que será objeto de discussão e deliberação por algum colegiado, e igualmente aquele que por alguma razão tem competência para editar diretamente normas jurídicas. Quanto ao conteúdo da justificativa, e como se verá, ela deve conter razões e informações e abordar necessariamente três temas básicos: qual o problema que a norma pretende resolver, qual o resultado final esperado com sua execução e quais os custos e impactos antecipados em consequência da norma. Eventualmente esse procedimento deverá também incluir a participação de interessados e o contraditório dessas razões e dessas informações.” 23 Se o devido procedimento na elaboração normativa obrigaria uma exposição das razões pelas quais determinada lei está sendo criada, a primeira pergunta que poderia surgir é se esse procedimento na elaboração normativa pretende ser mais uma das regras aplicáveis à criação do direito, ou seja, além das regras de competência, reservas de lei material e formal e/ou reserva de lei absoluta ou relativa, regras sobre os conteúdo das leis, além das diferentes previsões constitucionais sobre o processo legislativo, como os diferentes quóruns, seria o devido procedimento na elaboração normativa mais uma regra para a criação de leis?

22 23

Ibid, p. 69. Ibid.

38 A resposta é sim. Ele pretende ser um quarto conjunto de regras aplicáveis à criação do direito nacional. Cumpre esclarecer que ele não tem o intuito de limitar o conteúdo possível da norma que possa vir a ser editada, afinal esse é o papel dos mecanismos de controle de constitucionalidade. O objetivo – e aqui devemos novamente enfatizar a aproximação dessa ideia às características do modelo deliberativo de democracia – é procedimental: visa fomentar, em primeiro lugar, o debate entre os representantes que decidem acerca da lei, o que por si só aumenta as chances de o resto da sociedade debater sobre o assunto e, em segundo lugar, à produção de justificativas – boas razões para a tomada de certa decisão. Novamente nas palavras da professora Ana Paula de Barcellos: “Trata-se de exigir que o proponente de uma norma – por exemplo, o Executivo ou um parlamentar ao encaminhar um projeto de lei –, justifique sua proposta apresentando publicamente as razões e informações que, a seu juízo, a sustentam. Observe-se desde logo um ponto importante que será retomado adiante sobre o sentido desse devido procedimento na elaboração normativa”. 24 Uma segunda questão possivelmente levantada seria sobre a possibilidade de controle por parte do Judiciário dessas razões apresentadas pelo proponente da norma, como ocorre nos casos em que o Judiciário avalia o conteúdo das normas. Ora, o devido procedimento na elaboração normativa não seria uma forma de ampliar o controle judiciário em relação à matéria tratada na norma, menos do que isso, seria averiguar se as razões e informações em questões foram ou não apresentadas ao debate público. Sendo assim, em relação ao controle da norma editada, o conteúdo seria examinado nas mesmas circunstâncias admitidas hoje pelo sistema de controle de constitucionalidade, não cabendo aos juízes avaliar o mérito das justificativas – afinal, isso seria uma maneira do Judiciário adentrar na seara política, o que não é sua função -, mas garantindo que o procedimento de criação da norma tenha cumprido também com esse novo requisito proposto. Em suma, o objetivo central do direito a um devido procedimento na elaboração de normas não é aprimorar diretamente a qualidade das legislações ou decisões políticas propostas – muito embora se considerarmos tudo o que já foi debatido no presente estudo sobre a capacidade do debate público melhorar a qualidade das decisões políticas, ele vá alcançar também esse fim –, nem criar um controle mais rígido de constitucionalidade, como 24

Ibid, p. 71.

39 se as razões que justificassem uma nova legislação, a partir do seu incremento, ficassem mais engessadas. O direito a um devido procedimento na elaboração das normas tem a ver com exigências democráticas. O que se espera é que ao tornar necessária a apresentação de justificativas por quem formula normas, o processo de tomada de decisão torne-se mais público; no sentido de democrático; e que isso afete, indiretamente, a qualidade das decisões. 4.2.

Realidades legislativas brasileiras e a exigência por justificativas A exigência democrática por boas justificativas na elaboração normativa é

supranacional. No entanto, algumas características próprias da realidade política brasileira tornam o tema ainda mais relevante e urgente no território nacional. Dentre outras, essas características envolvem principalmente o crescimento da atuação normativa por órgãos e entidades não integrantes do Poder Legislativo, além da predominância de projetos advindos do Poder Executivo e dos próprios procedimentos constitucionais que não necessariamente garantem as condições para um amplo debate e justificação. Em primeiro lugar, tem crescido no Brasil – e no mundo – a atuação normativa de órgãos e entidades não pertencentes ao Poder Legislativo. Como se sabe, na lógica do Princípio da Separação dos Poderes, o Poder Legislativo é o que detém predominantemente a função normativa. Ocorre que no Brasil, além dos decretos presidenciais, portarias e resoluções ministeriais, expedem-se rotineiramente normas não advindas do Poder Legislativo, como, por exemplo, das Agências Reguladoras, Conselho Monetário Nacional, Ibama, Banco Central, Conselho Nacional de Justiça, Tribunais estaduais, além de órgãos e entidade estaduais e municipais. Não pretendemos adentrar o debate acerca da validade e legalidade de tais normas. O ponto que pretendemos destacar é que esse tipo de produção normativa raramente se sujeita ao debate, em oposição à produção normativa advinda do Legislativo, ao menos teoricamente. Não estamos aqui falando que as normas propostas pelo Poder Legislativo estejam cumprindo as exigências cujo modelo deliberativo democrático propõem. Muito pelo contrário, mesmo as normas advindas do Legislativo raramente são alvo de amplo debate público com diferentes setores da sociedade civil participando. No entanto, não podemos negar que o caminho percorrido por essas normas até a sua promulgação – passando por diferentes Casas Legislativas e comissões internas, lugar de dissenso e debate – tem mais

40 probabilidade de gerar debate público do que a produção normativa advinda dos demais Poderes. O que se tenta deixar claro é que as normas com maior incidência no direito brasileiro são propostas não apenas sem qualquer tipo de debate público, mas também por proponentes que sequer foram votados. Nesse sentido, a atuação normativa brasileira tem se dado, boa parte, por técnicos que não precisam tornar públicas as razões pelas quais certas normas estão sendo propostas. Isso vai totalmente de encontro às exigências democráticas. Até há na legislação nacional a tentativa de tornar tais decisões um pouco mais públicas, como, por exemplo, as previsões constantes na Lei 9.784 de 1999 (Lei do Processo Administrativo no plano federal), que prevê no âmbito da Administração Pública Federal a possibilidade da abertura de consulta pública e realização de audiências públicas nas hipóteses de decisão envolvendo interesse geral e matéria relevante. 25 Apesar disso, no caso dos órgãos e entidades do Executivo, a estrutura hierarquizada e as relações de dependência institucional e política não facilitam o ambiente de crítica e oposição. Além disso, a lei cria apenas uma faculdade, não exigindo que seja dada ampla publicidade ao processo. Cumpre esclarecer que esse debate tem sido constante no âmbito acadêmico e que as questões do custo e tempo depreendidos numa maior participação popular, uma vez que ela requer disponibilização de materiais e elaboração de pareceres de resposta por conta da Administração, tem sido fortemente debatidos. Já no âmbito do Poder Judiciário, muito embora não haja essa estrutura propriamente hierarquizada, não há sequer maiores práticas de abertura à participação de interessados no 25

Lei n° 9.784/99: “Art. 31. Quando a matéria do processo envolver assunto de interesse geral, o órgão competente poderá, mediante despacho motivado, abrir período de consulta pública para manifestação de terceiros, antes da decisão do pedido, se não houver prejuízo para a parte interessada. § 1o A abertura da consulta pública será objeto de divulgação pelos meios oficiais, a fim de que pessoas físicas ou jurídicas possam examinar os autos, fixando-se prazo para oferecimento de alegações escritas. § 2o O comparecimento à consulta pública não confere, por si, a condição de interessado do processo, mas confere o direito de obter da Administração resposta fundamentada, que poderá ser comum a todas as alegações substancialmente iguais. Art. 32. Antes da tomada de decisão, a juízo da autoridade, diante da relevância da questão, poderá ser realizada audiência pública para debates sobre a matéria do processo. Art. 33. Os órgãos e entidades administrativas, em matéria relevante, poderão estabelecer outros meios de participação de administrados, diretamente ou por meio de organizações e associações legalmente reconhecidas. Art. 34. Os resultados da consulta e audiência pública e de outros meios de participação de administrados deverão ser apresentados com a indicação do procedimento adotado.”

41 caso da produção normativa desse Poder. Algumas disposições legais autorizam, de forma expressa, a participação pública na tomada de decisão, como, por exemplo, a intervenção de amicus curiae em processos judiciais. 26 No entanto, não se pode dizer que há ampla participação e debate público no editar dessas normas. Para se ter melhor noção da particularidade do caso do presidencialismo de coalizão brasileiro, de todas as leis publicadas de janeiro de 1999 a agosto de 2004, 79,45% foram de iniciativa do Poder Executivo. Não só isso, mas a média no tempo de tramitação também é surpreendente: 121,36 dias em projetos do Executivo e 1.238,32 dias em projetos do Legislativo.27 Cerca de dez vezes maior. 28 Se levarmos em conta um intervalo ainda maior, faz saber de 1995 a 2006, do total de 2.701 propostas levadas ao plenário da Câmara dos Deputados, 85,5% (2.310) vieram do Executivo e somente 14,5 (391) do Legislativo. Ademais, a média de tramitação é de 271,4 dias para o Executivo e de 964,8 para as oriundas do Legislativo. 29 Em conclusões semelhantes chegam dados ainda mais abrangentes: se considerarmos números de 6 de outubro de 1988 a 31 de dezembro de 2007, percebemos que foram transformados em lei 3.071 proposições oriundas do Executivo, 644 do Legislativo e 139 do Judiciário, um total de 3.854 leis. Ou seja, o Executivo é responsável por cerca de 80% da produção legislativa. 30 Nesse sentido, há uma clara dominância da produção legislativa por parte do Executivo no plano federal, tanto em termos de quantidade quanto de velocidade. Não obstante, independentemente de serem oriundos do Executivo, esses projetos poderiam ser objeto de debates, principalmente dentro das Casas Legislativas. Acontece que isso não ocorre 26

Há previsões expressas sobre a figura do amicus curiae, como é corrente, em relação à ADI e à ADC (Lei n. 9.868/99), à ADPF (Lei n° 9.882/99), ao incidente de inconstitucionalidade no âmbito dos Tribunais (Art. 482, § 3o do CPC) , ao recurso extraordinário submetido ao exame da repercussão geral (Art. 543-A, § 6o do CPC), ao recurso especial submetido ao procedimento dos recursos repetitivos ( Art. 543-C, § 4o CPC), na discussão das súmulas vinculantes (Lei n° 11.417/06). 27 RODRIGUES, Geraldo de Morais. 2004. Produção legislativa: Poder Executivo & Congresso Nacional, Brasília: Biblioteca Digital da Câmara dos Deputados. 28 Para fins de cálculo, excluiu-se a contagem da tramitação do projeto do novo do Código de Processo Civil. 29 MOISÉS, José Álvaro. O desempenho do Congresso Nacional no presidencialismo de coalizão (1995-2006). In: MOISÉS, José Álvaro (Ed.). O papel do Congresso Nacional no presidencialismo de coalizão. Rio de Janeiro: Konrad-Adenauer-Stiftung, 2011, p. 16-19. 30 CARNEIRO, André Corrêa de Sá. 2009. Legislação simbólica e poder de apreciação conclusiva no Congresso Nacional. Brasília: Biblioteca Digital Câmara dos Deputados, p. 62-64.

42 efetivamente: dados revelam que dos 2.310 projetos oriundos do Executivo aprovados entre 1995 e 2006, apenas 28,1% foram objeto de emendas. Por outro lado, das 391 propostas oriundas do Legislativo, quase 60% foram emendadas. Do total de 1389 projetos aprovados pelo Congresso Nacional sem qualquer alteração nesse intermédio, 88,6% vieram do Executivo e apenas 11,4% do Legislativo. 31 Por fim, embora haja menos estudos sobre o tema no âmbito estadual e municipal, as tendências são as mesmas: o Executivo domina boa parte da agenda legislativa. Se somarmos todas as informações trazidas por esses dados apresentados acima ao fato de que a proposição de uma de lei significa, em última análise, optar por uma decisão política, e se, além disso, considerarmos que no âmbito dos Poderes Executivo e Judiciário essas decisões geram consideravelmente menos debate público do que as advindas do Poder Legislativo – fato que inegavelmente as torna menos democráticas – podemos chegar a algumas conclusões. A primeira delas é que é urgente debatermos sobre o direito constitucional, e o correlato dever por parte do Poder Público, de um devido procedimento na elaboração normativa que exija a apresentação de justificativas por aqueles que propõem normas. 4.3.

Breves conclusões sobre as peculiaridades legislativas do sistema político

brasileiro Em primeiro lugar, podemos concluir que se edita um conjunto significativo de normas no Brasil, com todos os seus efeitos próprios, que sequer passam pelo Legislativo, havendo um processo bastante limitado de debate, crítica e oposição. Em segundo lugar, sem o dever de a norma ser editada com justificativas adequadas, não há qualquer garantia de quem quer que a esteja elaborando tenha sopesado os múltiplos pontos de vista a respeito do assunto que a norma trata, nem a participação dos prováveis afetados por ela. Com isso, a probabilidade de que haja debate, mesmo que depois da edição da norma, é consideravelmente diminuída.

31

MOISÉS, José Álvaro. O desempenho do Congresso Nacional no presidencialismo de coalizão (1995-2006). Op. Cit., p. 22.

43 Em terceiro lugar, conclui-se de forma geral que, mesmo no âmbito Legislativo, o Poder Executivo domina a produção normativa, o que torna o debate ainda mais limitado, seja porque os projetos são processados de forma mais célere, seja porque boa parte deles tramita em alguma forma de regime de urgência, ou porque tais projetos não são emendados. Nesse sentido, obrigar que o Poder Executivo forneça justificativas adequadas junto aos projetos que envia para o Legislativo, certamente poderá contribuir para aumentar o debate e desenvolvimento do trabalho parlamentar. Neste ponto, cumpre esclarecer que as exposições de motivos que o Executivo deve fazer quando manda um projeto para o Legislativo, segundo o Decreto n° 4.176/02, são muito curtas e genéricas e não suprem as propostas feitas pelo que se entende por devido procedimento na elaboração normativa. Em quarto e quinto lugares, devemos esclarecer que o Executivo e o Legislativo, com seus vários órgãos e entidades, sempre serão os protagonistas na produção normativa estatal e que, somado isso ao fato deles serem os grandes responsáveis pela criação e implementação de políticas públicas que visam à proteção e promoção de direitos, não há como fugirmos desses espaços político-majoritários, como se pudéssemos substituí-los por outros mecanismos numa democracia. No entanto, isso não significa que não precisamos buscar urgentemente melhores formas desses Poderes dialogarem com a sociedade. Sendo assim, caberá ao Direito Constitucional contribuir para o aperfeiçoamento da democracia dentro dessas instituições, sendo uma dessas contribuições, indubitavelmente, o devido procedimento na elaboração normativa. Em sexto e último lugar, devemos esclarecer que o direito ao devido procedimento na elaboração normativa visa aperfeiçoar o debate e, em última instância, a democracia nos mais variados setores estatais. Nada melhor para resumir tal proposta do que as palavras da professora Ana Paula de Barcellos: “O devido procedimento na elaboração normativa discutido neste estudo diz respeito a toda a elaboração normativa no âmbito do Estado, não apenas às espécies legislativas, mas o DPEN se aplica à elaboração legislativa também e especialmente. Nesse sentido, o que se pretende aqui é justamente contribuir para essa reflexão. Sem jurisdicizar o processo político, o objetivo do direito constitucional ao devido procedimento na elaboração normativa é garantir um procedimento, a saber, a exibição pública de uma justificativa que aborde determinados conteúdos mínimos. Nesse sentido, o devido procedimento na elaboração normativa promove a aplicação

44 naturalmente limitada, mas ainda assim indispensável, de normas constitucionais fundamentais ao processo de elaboração de normas jurídicas pelo Estado brasileiro. “

45 5.

As previsões constitucionais ao debate público e a fundamentação constitucional ao devido procedimento na elaboração normativa Neste capítulo vamos exemplificar casos em que a Constituição da República faz

previsões sobre a democratização das decisões políticas – o que ao nosso entender se daria por meio do debate público –, seja com a sociedade civil, seja nos casos em que se exige manifestação de pessoas com expertise técnica nos mais variados assuntos. O objetivo aqui é demonstrar que a própria Constituição se esforça para tornar o debate público uma realidade. Em seguida, analisaremos brevemente qual seria a fundamentação constitucional ao devido procedimento na elaboração normativa, ou seja, por que os princípios constitucionais autorizam as exigências democráticas por justificativas. Assim, pretende-se demonstrar que há um dever de justificação por parte da Administração Pública e o seu correlato direito por parte dos governados. 5.1.

Algumas previsões constitucionais sobre participação Algumas opções constitucionais acerca da estrutura do Estado brasileiro nos permitem

concluir que há uma constante busca pela abertura das decisões político-normativas ao maior número possível de participantes, considerando, é claro, os limites impostos pelos princípios da razoabilidade e eficiência. Em outras palavras, o princípio constitucional democrático não está apenas expressamente previsto na nossa Carta Magna, como também pode ser encontrado indiretamente em diversos outros artigos. Em primeiro lugar, um dos conteúdos essenciais da democracia brasileira é o exercício do voto secreto, universal e periódico com igual valor para todos os cidadãos.32 Além disso, a rotina democrática é estruturada por meio de deliberações majoritárias nos Poderes Legislativos dos diferentes entes federativos. 33 Nessa mesma esteira, podemos citar um tema bastante atual: o financiamento de campanha. Não é nosso objetivo adentrar o mérito. O que importa aqui é que a simples opção constitucional por financiar, mesmo que em parte, a 32

Constituição de 1988: “Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante:” e Art. 60, § 4° Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: (...) II - o voto direto, secreto, universal e periódico; 33 Constituição de 1988: “Art. 47. Salvo disposição constitucional em contrário, as deliberações de cada Casa e de suas Comissões serão tomadas por maioria dos votos, presente a maioria absoluta de seus membros.”

46 propaganda eleitoral, além de conceder tempo para os partidos em transmissões de televisão e rádio, reflete a importância dada pelo constituinte originário à exposição de ideias por nossos representantes. No mesmo contexto, a imunidade material conferida aos parlamentares também demonstra essa preocupação constitucional ao se estender não somente aos votos, mas opiniões e palavras. Ora, essa é a imunidade que permite que certos parlamentares emitam opiniões consideradas ultrajantes por certos movimentos sociais e grupos minoritários. Mesmo assim, ela foi conferida pelo legislador constituinte que entendeu que mesmo opiniões altamente questionáveis do ponto de vista da proteção dos direitos humanos, por exemplo, possam ser proferidas com certa liberdade pelos parlamentares. Outro exemplo de promoção do debate é a previsão constitucional de comissões dentro das Casas Legislativas. No entanto, as previsões constitucionais que se relacionam com o conteúdo democrático não param por aí. Várias outras transmitem a mensagem democrática do debate. Por exemplo, no caso da elaboração das políticas relacionadas com a seguridade social34, política agrícola35, assistência social36, educação37, saúde38 e cultura39, ou seja, ações estatais 34

Constituição de 1988: “Art. 194. A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social. Parágrafo único. Compete ao Poder Público, nos termos da lei, organizar a seguridade social, com base nos seguintes objetivos: (...)VII - caráter democrático e descentralizado da administração, mediante gestão quadripartite, com participação dos trabalhadores, dos empregadores, dos aposentados e do Governo nos órgãos colegiados. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998)” 35 Constituição de 1988: “Art. 187. A política agrícola será planejada e executada na forma da lei, com a participação efetiva do setor de produção, envolvendo produtores e trabalhadores rurais, bem como dos setores de comercialização, de armazenamento e de transportes, levando em conta, especialmente:” 36 Constituição de 1988: “Art. 204. As ações governamentais na área da assistência social serão realizadas com recursos do orçamento da seguridade social, previstos no art. 195, além de outras fontes, e organizadas com base nas seguintes diretrizes: (...) II - participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis.” 37 Constituição de 1988: “Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: (...) VI - gestão democrática do ensino público, na forma da lei;” 38 Constituição de 1988: “Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: (...)III - participação da comunidade.” 39 Art. 216-A. O Sistema Nacional de Cultura, organizado em regime de colaboração, de forma descentralizada e participativa, institui um processo de gestão e promoção conjunta de políticas públicas de cultura, democráticas e permanentes, pactuadas entre os entes da Federação e a sociedade, tendo por objetivo promover o desenvolvimento humano, social e econômico com pleno exercício dos

47 de caráter permanente, a Constituição também vê a necessidade da criação de espaços que gerem constante debate e discussão. A Constituição da República assegura também a participação dos trabalhadores e empregadores nos colegiados de órgãos públicos nos quais seus interesses estejam sendo discutidos. 40 Prevê também que a lei deve regular formas de participação dos cidadãos na Administração Pública direta e indireta. 41 Por fim, outro exemplo seria a participação de representantes da sociedade civil em conselhos e órgãos de gestão nos casos do Fundo de Combate à Erradicação da Pobreza e Fundos de Combate à Pobreza.42 Em suma, os exemplos em que o cerne democrático é trazido pela Constituição Federal, tanto ampliando a participação quanto tornando as decisões possíveis através do voto e do princípio majoritário, além é claro da exigência pela apresentação de razões nesses espaços, são diversos. Se é assim que a Constituição entende que deve funcionar a democracia brasileira, ou seja, através de ampla participação e debate, devem as demais instituições e em geral as práticas públicas funcionar da mesma forma, contribuindo para esse resultado esperado pelo legislador constituinte.

direitos culturais. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 71, de 2012) § 1º O Sistema Nacional de Cultura fundamenta-se na política nacional de cultura e nas suas diretrizes, estabelecidas no Plano Nacional de Cultura, e rege-se pelos seguintes princípios: Incluído pela Emenda Constitucional nº 71, de 2012 (...)X - democratização dos processos decisórios com participação e controle social; Incluído pela Emenda Constitucional nº 71, de 2012.” 40 Constituição de 1988: “Art. 10. É assegurada a participação dos trabalhadores e empregadores nos colegiados dos órgãos públicos em que seus interesses profissionais ou previdenciários sejam objeto de discussão e deliberação.” 41 Constituição de 1988: “Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998) (..)§ 3º A lei disciplinará as formas de participação do usuário na administração pública direta e indireta, regulando especialmente:” 42 Emenda Constitucional Nº 31 de 14 de Dezembro de 2000: Art. 1º A Constituição Federal, no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, é acrescida dos seguintes artigos: “Art. 79. É instituído, para vigorar até o ano de 2010, no âmbito do Poder Executivo Federal, o Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza, a ser regulado por lei complementar com o objetivo de viabilizar a todos os brasileiros acesso a níveis dignos de subsistência, cujos recursos serão aplicados em ações suplementares de nutrição, habitação, educação, saúde, reforço de renda familiar e outros programas de relevante interesse social voltados para melhoria da qualidade de vida. Parágrafo único. O Fundo previsto neste artigo terá Conselho Consultivo e de Acompanhamento que conte com a participação de representantes da sociedade civil, nos termos da lei.”

48 Sendo assim, se na democracia, como é entendida pela Constituição, a apresentação de razões é uma exigência essencial, o devido procedimento na elaboração normativa é uma especificação relativamente básica dessa exigência no contexto da elaboração normativa, ou seja, é um mecanismo que visa concretizar essa exigência. Assim, a apresentação de uma justificativa correspondente, trazendo razões e informações que fundamentem a proposta, considerando o problema que se pretende enfrentar, além dos resultados, custos e impactos – dos mais variados possíveis – esperados, nada mais é do que a transposição de algo previsto pela Constituição em inúmeros campos para o cenário normativo. 5.2.

Algumas previsões constitucionais sobre o processo brasileiro de elaboração de normas: há exigências por justificativas? Nessa parte de nosso estudo vamos elencar algumas normas constitucionais que tratam

especificamente da elaboração legislativa. Podemos adiantar desde logo que a Constituição estabelece apenas regras básicas acerca do processo legislativo e nenhuma delas prevê explicitamente o dever de apresentação de uma justificativa nos moldes do que temos discutido. De toda forma, vamos examinar algumas normas constitucionais sobre o tema, pois elas revelam importantes decisões por parte do constituinte originário. Em seguida, somando tudo o que já foi explicitado acerca das escolhas constitucionais sobre a democracia, com informações sobre o processo legislativo e alguns princípios constitucionais que ainda iremos tratar, restará a conclusão de que a apresentação de justificativas no processo de elaboração normativa é sim uma opção constitucional. Em primeiro lugar, devemos ressaltar que a Constituição prevê nas competências normativas das Casas Legislativas, não apenas uma votação, mas principalmente a discussão, ou seja, a apresentação de argumentos por todas as partes. 43 Na mesma linha, quando trata do 43

Constituição de 1988: “Art. 58. O Congresso Nacional e suas Casas terão comissões permanentes e temporárias, constituídas na forma e com as atribuições previstas no respectivo regimento ou no ato de que resultar sua criação. (...) § 2º Às comissões, em razão da matéria de sua competência, cabe: I discutir e votar projeto de lei que dispensar, na forma do regimento, a competência do Plenário, salvo se houver recurso de um décimo dos membros da Casa; (...) Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta: (...)§ 2º A proposta será discutida e votada em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, considerando-se aprovada se obtiver, em ambos, três quintos dos votos dos respectivos membros. (...) Art. 64. A discussão e votação dos projetos de lei de iniciativa do Presidente da República, do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais Superiores terão início na Câmara dos Deputados. (...)Art. 65. O projeto de lei aprovado por uma Casa será revisto pela outra, em um só turno de discussão e votação, e enviado à sanção ou promulgação, se a Casa revisora o aprovar, ou arquivado, se o rejeitar. (...) ADCT: Art. 11. Cada Assembleia Legislativa, com poderes

49 veto, a Carta Magna faz exigência expressa à motivação das razões, além de determinar que o Congresso se reunirá para deliberar sobre ele. 44 Em segundo lugar, há a previsão constitucional para que o Congresso e suas Casas mantenham comissões permanentes e temporárias com o objetivo de ampliar e aprofundar o debate sobre matérias examinadas. Na esteira do que temos proposto, o debate tenta ampliar a participação popular, de forma que representantes da sociedade civil e de outros Poderes possam participar. Nesse contexto, há constante troca de informações relevantes sobre cada matéria, além é claro, de apresentação de razões.45 Cumpre ressaltar que boa parte das normas sobre essas Comissões são tratadas pelos regimentos internos de cada Casa, que, por sua vez, não fogem da lógica que pretendemos demonstrar: projetos de lei devem ser discutidos e votados, pareceres devem ser apreciados e elaborados e informações e razões devem ser coletadas por meio da oitiva de pessoas e realização de audiências públicas. O que se discute aqui não é estranho aos regimentos internos da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, uma vez que eles organizam várias comissões temáticas, devendo cada proposta percorrer várias comissões, sendo então examinada por múltiplas perspectivas.46 Além disso, há exigência de que se produza certa fundamentação por cada constituintes, elaborará a Constituição do Estado, no prazo de um ano, contado da promulgação da Constituição Federal, obedecidos os princípios desta. Parágrafo único. Promulgada a Constituição do Estado, caberá à Câmara Municipal, no prazo de seis meses, votar a lei orgânica respectiva, em dois turnos de discussão e votação, respeitado o disposto na Constituição Federal e na Constituição estadual.” 44 Constituição de 1988: “Art. 57. O Congresso Nacional reunir-se-á, anualmente, na Capital Federal, de 2 de fevereiro a 17 de julho e de 1º de agosto a 22 de dezembro. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 50, de 2006) (...)§ 3º Além de outros casos previstos nesta Constituição, a Câmara dos Deputados e o Senado Federal reunir-se-ão em sessão conjunta para: (...) IV - conhecer do veto e sobre ele deliberar.” 45 Constituição de 1988: “Art. 58. O Congresso Nacional e suas Casas terão comissões permanentes e temporárias, constituídas na forma e com as atribuições previstas no respectivo regimento ou no ato de que resultar sua criação. § 1º Na constituição das Mesas e de cada Comissão, é assegurada, tanto quanto possível, a representação proporcional dos partidos ou dos blocos parlamentares que participam da respectiva Casa. § 2º Às comissões, em razão da matéria de sua competência, cabe: I discutir e votar projeto de lei que dispensar, na forma do regimento, a competência do Plenário, salvo se houver recurso de um décimo dos membros da Casa; II - realizar audiências públicas com entidades da sociedade civil; III - convocar Ministros de Estado para prestar informações sobre assuntos inerentes a suas atribuições; IV - receber petições, reclamações, representações ou queixas de qualquer pessoa contra atos ou omissões das autoridades ou entidades públicas; V - solicitar depoimento de qualquer autoridade ou cidadão; VI - apreciar programas de obras, planos nacionais, regionais e setoriais de desenvolvimento e sobre eles emitir parecer.” 46 As comissões são disciplinadas no Regimento Interno da Câmara dos Deputados a partir do art. 25, e, no Regimento Interno do Senado Federal, a partir do art. 71. É interessante observar que o

50 uma delas. 47 Por fim, devemos citar também que é prevista a participação de órgãos auxiliares, que monitorarão a execução das normas e de seus impactos.48 Regimento Interno do Senado Federal é explicito em atribuir às comissões a avaliação ao longo do tempo da execução das políticas públicas: “Art. 96-B. No desempenho da competência prevista no inciso IX do art. 90, as comissões permanentes selecionarão, na área de sua competência, políticas públicas desenvolvidas no âmbito do Poder Executivo, para serem avaliadas. § 1o Cada comissão permanente selecionará as políticas públicas até o último dia útil do mês de março de cada ano. § 2o Para realizar a avaliação de que trata o caput, que se estenderá aos impactos das políticas públicas e às atividades meio de suporte para sua execução, poderão ser solicitadas informações e documentos a órgãos do Poder Executivo- e ao Tribunal de Contas da União, bem como a entidades da sociedade civil, nos termos do art. 50 da Constituição Federal. § 3o Ao final da sessão legislativa, a comissão apresentará relatório com as conclusões da avaliação realizada. § 4o A Consultoria Legislativa e a Consultoria de Orçamentos, Fiscalização e Controle do Senado Federal elaborarão estudos e relatórios técnicos que subsidiarão os trabalhos da avaliação de que trata o caput. (...) Art. 99-A. À Comissão de Assuntos Econômicos compete, ainda, avaliar periodicamente a funcionalidade do Sistema Tributário Nacional, em sua estrutura e seus componentes, e o desempenho das administrações tributárias da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. (...) Art. 101-A. O Ministro de Estado da Justiça comparecerá anualmente à Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal para prestar informações e esclarecimentos a respeito da atuação de sua Pasta, bem como para apresentar avaliação das políticas públicas no âmbito de suas competências. (...) Art. 102-A. À Comissão de Meio Ambiente, Defesa do Consumidor e Fiscalização e Controle, além da aplicação, no que couber, do disposto no art. 90 e sem prejuízo das atribuições das demais comissões, compete: I exercer a fiscalização e o controle dos atos do Poder Executivo, incluídos os da administração indireta, podendo, para esse fim: a) avaliar a eficácia, eficiência e economicidade dos projetos e programas de governo no plano nacional, no regional e no setorial de desenvolvimento, emitindo parecer conclusivo; (...) i) propor ao Plenário do Senado as providências cabíveis em relação aos resultados da avaliação, inclusive quanto ao resultado das diligências realizadas pelo Tribunal de Contas da União; (...) Art. 102-E. À Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa compete opinar sobre: (...) VII fiscalização, acompanhamento, avaliação e controle das políticas governamentais relativas aos direitos humanos, aos direitos da mulher, aos direitos das minorias sociais ou étnicas, aos direitos dos estrangeiros, à proteção e integração das pessoas portadoras de deficiência e à proteção à infância, à juventude e aos idosos.” 47 Regimento Interno da Câmara dos Deputados: “Art. 103. A proposição poderá ser fundamentada por escrito ou verbalmente pelo Autor e, em se tratando de iniciativa coletiva, pelo primeiro signatário ou quem este indicar, mediante prévia inscrição junto à Mesa. Parágrafo único. O Relator de proposição, de ofício ou a requerimento do Autor, fará juntar ao respectivo processo a justificação oral, extraída do Diário da Câmara dos Deputados. (...) Art. 107. A publicação de proposição no Diário da Câmara dos Deputados e em avulsos, quando de volta das Comissões, assinalará, obrigatoriamente, após o respectivo número: (...) § 1o Deverão constar da publicação a proposição inicial, com a respectiva justificação; os pareceres, com os respectivos votos em separado; as declarações de voto e a indicação dos Deputados que votaram a favor e contra; as emendas na íntegra, com as suas justificações e respectivos pareceres; as informações oficiais porventura prestadas acerca da matéria e outros documentos que qualquer Comissão tenha julgado indispensáveis à sua apreciação.” Regimento Interno do Senado Federal: “Art. 233. Nenhuma emenda será aceita sem que o autor a tenha justificado por escrito ou oralmente. Parágrafo único. A justificação oral de emenda em plenário deverá ser feita no prazo que seu autor dispuser para falar no Período do Expediente da sessão. (…) Art. 238. As proposições, salvo os requerimentos, devem ser acompanhadas de justificação oral ou escrita, observado o disposto no parágrafo único do art. 233. Parágrafo único. Havendo várias emendas do mesmo autor, dependentes de justificação oral, é lícito justificá-las em conjunto. (…)Art. 249. Toda proposição apresentada ao Senado será publicada no Diário do Senado Federal, na íntegra, acompanhada, quando for o caso, da justificação e da legislação citada. (…)Art.

51

Sendo assim, podemos perceber que, além das previsões democráticas presentes na constituição, as normas sobre o processo legislativo também autorizam a conclusão de que o debate público, com apresentação de argumentos e razões por ampla gama de participantes, principalmente os que serão afetados pelas decisões politico-normativas, é uma opção constitucional. Nesse sentido, o devido procedimento na elaboração normativa se mostra como uma grande contribuição para a efetivação dessas escolhas constitucionais. 5.3 A relação dos Princípios do Estado de Direito e do Devido Processo Legal com as exigências por justificativas do devido procedimento na elaboração normativa Como já dito, embora a interpretação das normas constitucionais nos permita chegar à conclusão sobre as opções constitucionais pela constante democratização das decisões político-normativas, a Carta Magna não traz expressamente a exigência por um devido procedimento na elaboração normativa nos moldes do que temos estudado. No entanto, se analisarmos alguns princípios constitucionais junto às previsões constitucionais já apresentadas no presente estudo, perceberemos que as exigências por processos de decisão cada vez mais democráticos, envolvendo o maior número possível de participantes, nos moldes propostos pelo modelo de democracia deliberativa estudado são 376. O projeto de decreto legislativo referente a atos internacionais terá a seguinte tramitação: I - só terá iniciado o seu curso se estiver acompanhado de cópia autenticada do texto, em português, do ato internacional respectivo, bem como da mensagem de encaminhamento e da exposição de motivos;” 48 Regimento Interno da Câmara dos Deputados: “Art. 275. O sistema de consultoria e assessoramento institucional unificado da Câmara dos Deputados compreende, além do Conselho de Altos Estudos e Avaliação Tecnológica, a Consultoria Legislativa, com seus integrantes e respectivas atividades de consultoria e assessoramento técnico-legislativo e parlamentar à Mesa, às Comissões, às Lideranças, aos Deputados e à Administração da Casa, com o apoio dos sistemas de documentação e informação, de informática e processamento de dados. Parágrafo único. O Conselho de Altos Estudos e Avaliação Tecnológica e a Consultoria Legislativa terão suas estruturas, interação, atribuições e funcionamento regulados por resolução própria. Art. 276. O Conselho de Altos Estudos e Avaliação Tecnológica, órgão técnico-consultivo diretamente jurisdicionado à Mesa, terá por incumbência: I - os estudos concernentes à formulação de políticas e diretrizes legislativas ou institucionais, das linhas de ação ou suas alternativas e respectivos instrumentos normativos, quanto a planos, programas e projetos, políticas e ações governamentais; II - os estudos de viabilidade e análise de impactos, riscos e benefícios de natureza tecnológica, ambiental, econômica, social, política, jurídica, cultural, estratégica e de outras espécies, em relação a tecnologias, planos, programas ou projetos, políticas ou ações governamentais de alcance setorial, regional ou nacional; III - a produção documental de alta densidade crítica e especialização técnica ou científica, que possa ser útil ao trato qualificado de matérias objeto de trâmite legislativo ou de interesse da Casa ou de suas Comissões. Parágrafo único. As atividades de responsabilidade do Conselho poderão ser deflagradas por solicitação da Mesa, de Comissão ou do Colégio de Líderes.”

52 reais. Assim, seguiremos para a análise do Princípio do Estado de Direito e do Devido Processo Legal para concluir que a legitimidade e justificação das decisões políticas é uma exigência constitucional. O conceito de Estado de Direito49 envolve aspectos materiais e formais e podemos, embora haja oscilação entre os entendimento de diversos juristas - algumas visões mais abrangentes e outros mais limitadas sobre o seu conteúdo - resumir de forma geral esses aspectos. O conteúdo material do princípio do Estado de Direito envolve, certamente, outros princípios como o da legalidade, separação dos poderes, proteção dos direitos fundamentais, além é claro da proteção dos direitos humanos. Já em relação ao conteúdo formal do Estado de Direito, podemos dizer que há certo consenso em torno de alguns elementos: (i) as pessoas como um todo e também o Poder Público devem se submeter à lei e obedecê-la; (ii) a lei deve ser efetivamente capaz de guiar a conduta das pessoas; (iii) como decorrência de (ii), a lei deve ser prospectiva, razoavelmente estável, geral, clara e compreensível; e (iv) um Judiciário independente, e ao qual o acesso deve ser facilitado, deve assegurar o cumprimento da lei. 50 Nesse sentido, se considerarmos que qualquer agir Estatal pode ser considerado como lei, sem maiores considerações, qualquer ato estatal mesmo que obscuro, abusivo, discriminatório, ilógico, incompreensível poderia, em última análise, estar respeitando as exigências do Estado de Direito do ponto de vista formal. No entanto, o conteúdo material e substantivo do princípio é o que faz o balizamento necessário para que o princípio tenha alguma função, ou seja, o agir estatal deverá respeitar não só o conteúdo formal do Estado de Direito, mas também o material, de forma que os demais princípios constitucionais, como a proteção dos direitos fundamentais, dos direitos humanos, entre outros, sejam igualmente considerados no agir estatal.

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Constituição de 1988: “Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:” 50 BARCELOS, Ana Paula de. Direito constitucional a um devido procedimento na elaboração normativa: direito à justificativa. Op. Cit., p. 114.

53 No que tange ao princípio do devido processo legal51, não pretendemos fazer grandes apanhados históricos, uma vez que o que nos interessa para o presente estudo não é a faceta processual do princípio, mas o seu conteúdo substantivo. Resumidamente, a ideia de devido processo legal tem a ver com a atuação normativa do Estado. A proposição de uma lei envolve, em última análise, imposição de restrições às liberdades e ao patrimônio das pessoas, de maneira que essa atuação deveria observar certos limites – que foram se desenvolvendo ao longo do tempo. Em suma, o devido processo legal envolve, dentre várias outras coisas, a imparcialidade do Estado e as garantias de defesa por parte dos governados. Nesse sentido, o principio do devido processo legal serve como um mecanismo de controle da razoabilidade e proporcionalidade dos atos do Poder Público, já que a atuação estatal destina-se a afetar de alguma forma a liberdade e os direitos das pessoas - positiva ou negativamente. Mas o que seria atender à proporcionalidade? A doutrina e jurisprudência têm entendido que “(…) atenderá à proporcionalidade a norma ou ato que seja capaz de atender a três testes sucessivos: o da adequação lógica entre os meios empregados e os fins a que eles se destinam; o da vedação do excesso ou da necessidade, que envolve uma comparação entre os meios adotados pela norma ou ato e outros eventualmente menos gravosos para os direitos envolvidos e igualmente capazes de produzir os resultados pretendidos; e, por fim, o teste identificado como da proporcionalidade em sentido estrito, que cuida de um confronto da norma ou ato com o sistema constitucional como um todo, de modo a aferir se, ao pretender realizar determinado fim, ela ou ele respeita minimamente as demais normas constitucionais. Como se pode perceber, a adequação lógica e a necessidade constituem exames internos, tendo em conta a norma ou o ato em si mesmo: seus motivos, meios (efetivamente adotados ou alternativos) e fins. Já a proporcionalidade em sentido estrito descreve um confronto da norma com o sistema externo a ela, a saber, com o sistema constitucional como um todo. O confronto externo é próprio da possibilidade de controle de constitucionalidade que decorre da superioridade hierárquica da Constituição.” 52

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Constituição de 1988: “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...)LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;” 52 BARCELOS, Ana Paula de. Direito constitucional a um devido procedimento na elaboração normativa: direito à justificativa. Op. Cit., p. 118.

54 Ocorre que a Administração Pública atua no mundo real, onde a análise do que é razoável ou proporcional é muito mais complexa do que na teoria. Além disso, ela atua de forma prospectiva, precisando editar normas sem a garantia de que elas vão atingir efetivamente, no futuro, os resultados pretendidos. É nesse ponto que o devido procedimento na elaboração normativa e sua exigência por justificativas têm importância. Ao expor razões e informações e abordar necessariamente três temas básicos − qual o problema que a norma pretende resolver, qual o resultado final esperado com sua execução e quais os custos e impactos antecipados em consequência da norma − cria-se necessariamente uma restrição a normas completamente irrazoáveis ou desproporcionais, como se a norma tivesse que passar previamente pelos testes da proporcionalidade, sem que se crie uma espécie de controle de constitucionalidade prévio. A exigência por justificativas, embora não garanta resultados, certamente funciona como um incentivo à adequação da norma. Essa ideia tem grande valor, uma vez que boa parte dos problemas de proporcionalidade de uma norma tem origem no momento de sua elaboração, sendo impossível dissociar a norma e o processo que lhe dá origem. Se não se enfrenta, durante o processo de elaboração da norma, o que ela pretende resolver e quais consequências ocorrerão disso, há grandes chances de essa norma também não cumprir futuramente com outras exigências constitucionais. Dessa forma, resta claro que quem elabora as normas também está vinculado a esses mesmos elementos trazidos pelas facetas substantivas dos Princípios do Estado de Direito e do Devido Processo Legal, não podendo elaborar normas incompreensíveis, ilógicas, discriminatórias, ou seja, sem sentido, e sem demonstrar, por meio de justificativas, que as normas propostas se adequam ao sistema constitucional. É nesse ponto que o devido procedimento na elaboração normativa entra: a elaboração de justificativas pelo Poder Púbico permite maior clareza e compreensibilidade sobre a norma, além de incentivar sua adequação aos princípios, dentre outros, da proporcionalidade e razoabilidade. Em resumo, se considerarmos que o devido procedimento na elaboração normativa pode ser considerado uma decorrência lógica dos princípios constitucionais do Estado de Direito e do Devido Processo Legal e que, somado a isso, são reais as exigências constitucionais pelo envolvimento do maior número de pessoas nas decisões políticonormativas – como já foi demonstrado nesse capítulo – resta claro concluir que as exigências

55 por maior legitimidade e justificação feita pelo modelo de democracia deliberativa, quando aplicados na produção normativa por meio do devido procedimento na elaboração normativa, tem o condão de contribuir para a democracia brasileira e suas crescente busca por melhor representatividade democrática.

56 6.

Conclusão Muito foi dito e é necessário fazer um apanhado das principais ideias para

entendermos melhor a que ponto se pretendeu chegar com o presente estudo. Quando tratamos da democracia deliberativa, nos primeiros capítulos, passamos por uma parte bastante teórica, mas logo em seguida pudemos verticalizar a discussão para as realidades do modelo político brasileiro. Em um primeiro momento, analisamos o conceito de democracia deliberativa e sua história. Vimos que as grandes discussões sobre o tema se deram nos anos 1980 com o crescimento do ativismo em prol dos direitos humanos. Em resumo, percebemos que democracia deliberativa consiste na ideia de que a produção legítima de leis deriva da deliberação pública dos cidadãos e que, dentre várias características, no modelo deliberativo, a democracia possui uma estrutura de condições sociais e institucionais que facilita e promove a discussão entre cidadãos livres e iguais, criando condições favoráveis de participação, associação e expressão, institucionalizando, também, o ideal de justificação política. Por outro lado, concluímos também que o conceito de democracia deliberativa está longe de ser pacífico e, para tal, falamos sobre algumas divergências teóricas. Vimos que um dos problemas fundamentais da democracia deliberativa reside na sua justificação, ou seja, como afirmar que um governo, leis ou até mesmo políticas públicas específicas são democráticas e deliberativas? Reparamos que os teóricos da democracia deliberativa distinguem, de um modo geral, a teoria da democracia deliberativa de acordo com teses que propõem um tipo de justificação epistêmica ou valorativa e as que propugnam uma justificação procedimental. No entanto, concluímos que, para o que se propunha nesse estudo, poderíamos sintetizar o pensamento de vários teóricos traçando alguns elementos essenciais comuns para a democracia deliberativa. O primeiro consistiu na ideia de razão pública. O segundo elemento seria um quadro de instituições democráticas constitucionais em que atuariam os corpos legislativos deliberativos e, por fim, o terceiro elemento seria o conhecimento e desejo por parte dos cidadãos de seguir a razão pública e realizar seu ideal em suas condutas políticas.

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Em um segundo momento, falamos sobre a questão da legitimidade e da racionalidade no modelo deliberativo, percebendo que quando se deve tomar uma decisão cujo assunto é de interesse comum de todos, alcança-se um maior grau de legitimidade e racionalidade quando as instituições estão arranjadas de forma que essa decisão resulte de processos de deliberação coletiva conduzidos de modo racional e equitativo entre os indivíduos livres e iguais. Vimos que, nesse ponto, o modelo deliberativo se diferencia dos demais: o próprio processo deliberativo seria capaz de criar a legitimidade necessária para a tomada de decisão. Sendo assim, o modelo deliberativo contaria com as legitimações criadas não só pela regra da maioria, mas também por um processo deliberativo pré-definido. Em seguida, constatamos que o processo deliberativo possuía não apenas o caráter legitimador, mas também o educativo, sendo simultaneamente coletivo e individual, cumprindo também com a necessidade legitimatória de uma tomada de decisão política e criando um ambiente rico, com pontos de vistas múltiplos e conflitantes – essenciais para a política. No final desta parte, nos indagamos sobre as principais possíveis problematizações: pressuporia a deliberação política um público razoável, com certo grau de instrução e cultura? E, em segundo lugar, considerando os múltiplos pontos de vista dentro de uma democracia pluralista, não seria impossível a exploração de todas as possibilidades argumentativas? Esclarecemos que, em consonância com as ideias de alguns pensadores do tema, essas problematizações não importavam muito. A primeira delas porque em qualquer outro modelo de democracia os diferentes níveis de cognição já são uma realidade e já influenciam diretamente a própria decisão. Por outro lado, embora no modelo deliberativo esse desnível também exista, a deliberação pública traz duas particularidades que tornam o problema menor: ela pode diminuir, paulatinamente, os abismos de acesso à educação e cultura dos indivíduos, na medida em que o próprio processo de deliberação consiste num acesso à informação, além de obrigar que as partes mais instruídas adequem o seu discurso, ou seja, argumentos, às capacidades daqueles menos instruídos.

58 Percebemos então que seria possível ultrapassar as problemáticas da (i) necessidade de um público razoavelmente instruído e (ii) a grande multiplicidade de pontos de vista em uma democracia pluralista, combinando (a) a articulação de boas razões em público com (b) um modelo altamente procedimentalista de democracia. Isso ocorreria porque o próprio processo de articular boas razões em público força o indivíduo a pensar sobre o que seria uma boa razão para todos os outros envolvidos, restringindo, ainda que em pequena medida, a multiplicidade de pontos de vista. Além disso, as problemáticas seriam ultrapassadas porque as especificações procedimentais do modelo democrático-deliberativo privilegiariam uma pluralidade de modos de associação, ressaltando que os modos de associação poderiam ser diversos. Em um terceiro momento, nosso objetivo passou a ser a demonstração sucinta do por que a deliberação pública tem um valor exclusivamente instrumental no aperfeiçoamento da qualidade das decisões na democracia, tendo a igualdade no processo de deliberação um valor intrínseco fundamentado nas exigências de justiça. Apresentamos resumidamente três tipos diferentes de valores que a deliberação pública pode ter na tomada de decisão, quais sejam: (i) os resultados objetivos da deliberação pública; (ii) o valor intrínseco da deliberação pública; (iii) a condição de justificação política da deliberação pública. Resumidamente, concluímos: a deliberação permite aos indivíduos compreenderem melhor os interesses existentes na sociedade, e, por conseguinte, a própria sociedade; ademais, sob o ponto de vista de que cabeças mais instruídas sobre uma sociedade tomam melhores decisões, tivemos motivos para pensar que uma democracia que promova a deliberação pública tomaria decisões melhores. Vimos também que, mesmo quando a deliberação pública produz mais desacordos do que acordos, do ponto de vista democráticoinstitucional isso pode ser positivo. Ponderamos que num ambiente onde as partes deliberam umas com as outras, manifesta-se algum tipo de respeito entre os cidadãos. Além disso, o ambiente da deliberação pública melhora as condições cognitivas, habilitando o cidadão a entender melhor o que está em jogo numa decisão política. Nesse contexto, restou claro que a deliberação é valiosa instrumentalmente, sendo um instrumento para tomar decisões mais bem informadas, considerando uma maior multiplicidade de pontos de vista, o que, em última análise, tornaria a decisão mais qualificada.

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Por fim, nos concentramos na deliberação como um contexto de justificação política. Segundo esta ideia, a deliberação é valiosa por ser uma condição de justificação das instituições sociais, que chegam a certas decisões com ajuda da deliberação pública. Não obstante as múltiplas problematizações sobre o assunto, chegamos à conclusão de que não se pode negar que uma decisão política que passa pelos procedimentos propostos por um modelo deliberativo de democracia é mais facilmente justificada do que as decisões que não passem por esses crivos procedimentais. Sendo assim, quanto mais bem deliberada é uma lei, política pública ou, em última instância, uma decisão política, mais chances possui de ser também melhor justificada e aceita. Em um quarto momento, partimos para um debate acerca da necessidade de se encontrar respostas aos problemas de participação advindos de crises próprias às democracias contemporâneas, inclusive a brasileira. Neste contexto, estabelecemos que a nossa preocupação estaria na forma com que são tomadas as decisões político-normativas, ou seja, quem as tomaria e como as tomaria. O que se pretendeu demonstrar a partir dessa parte é que as propostas apresentadas pelo modelo democrático-deliberativo são perfeitas para suprir as demandas de aperfeiçoamento na forma com que as decisões politicas são ou deveriam ser tomadas. Constatamos que todas as características apresentadas sobre a democracia deliberativa, como o seu poder legitimador, aperfeiçoador de qualidade, desenvolvedor do interesse político nos indivíduos, capacidade informadora e também seu contexto justificatório podem ser a resposta perfeita para a necessidade de melhoria nas formas de tomada de decisão. Para isso, explanamos recente tese desenvolvida pela professora Ana Paula de Barcellos sobre a existência de um direito a um devido procedimento na elaboração normativa e o correlato dever, por parte do Poder Público. A tese que se sustentou foi que existe um direito difuso a um devido procedimento de natureza procedimental toda vez que algum órgão estatal – Legislativo e Executivo, ou qualquer outro – se ocupe da elaboração de normas. O conteúdo essencial desse processo envolveria o dever do proponente da norma de apresentar, de forma pública, as razões pelas quais considera que a tal norma deve ser editada e as informações que as fundamentam, ou seja, o dever de dar justificativas.

60 Explicamos que em relação ao conteúdo das justificativas, elas deveriam conter razões e informações e abordar necessariamente três temas básicos: qual o problema que a norma pretende resolver, qual o resultado final esperado com sua execução e quais os custos e impactos antecipados em consequência da norma. Eventualmente esse procedimento deveria também incluir a participação de interessados e o contraditório dessas razões e dessas informações. Em seguida, destacamos com dados algumas particularidades do sistema político brasileiro, mostrando que aproximadamente 80% das agendas das Casas Legislativas são dominadas por propostas advindas do Poder Executivo e que, por uma série de motivos, esses atos normativos não são alvo de amplo debate público, sendo o seu trâmite legislativo bastante acelerado e concentrado. Assim, chegamos a algumas conclusões acerca do sistema político brasileiro, de forma que restou evidente que as necessidades por melhorias no sistema representativo são urgentes e que as ânsias democráticas por justificativas são reais. Em um quinto momento, passamos à análise de algumas normas constitucionais, bem como de princípios e regimentos internos das Casas Legislativas para demonstrar que as exigências por justificativas, presentes no devido procedimento na elaboração normativa, encontram respaldo constitucional. Percebemos que são diversas as previsões constitucionais acerca da participação e ampliação do debate público e que numa democracia, como é entendida pela Constituição, a apresentação de razões é uma exigência essencial, sendo o devido procedimento na elaboração normativa uma especificação relativamente básica dessa exigência no contexto da elaboração normativa, ou seja, é um mecanismo que visa concretizar essa exigência. Por fim, chegamos à conclusão de que se considerarmos que o devido procedimento na elaboração normativa é uma decorrência lógica de alguns princípios constitucionais e que, somado a isso, são reais as exigências constitucionais pelo envolvimento do maior número de pessoas nas decisões político-normativas, tanto no contexto fático quanto no contexto normativo, resta claro concluir que as exigências por maior legitimidade e justificação feita pelo modelo de democracia deliberativa, quando aplicados na produção normativa por meio do devido procedimento na elaboração normativa, tem o condão de contribuir para a democracia brasileira e sua crescente busca por melhor representatividade democrática.

61 7.

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