Democracia e intermediação de interesses

May 20, 2017 | Autor: Manoel Santos | Categoria: Lobbying, Advocacy and Lobbying, Grupos De Interesse
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Democracia e intermediação de interesses O dilema autonomia vs controle Manoel Leonardo Santos 31 de Janeiro de 2017 - 12h47

Decisões políticas afetam, invariavelmente, diferentes interesses. Sejam decisões de natureza distributiva, redistributiva, que envolvam valores morais ou simbólicos, elas afetam pessoas, grupos e segmentos da sociedade de diversas formas. Portanto, em regimes democráticos essas decisões resultam, e assim deve ser, de complexos processos nos quais se envolvem tomadores de decisão, de um lado, e interesses organizados de outro. Sendo assim, a questão central a ser enfrentada por qualquer regime democrático é como lidar com a intermediação de múltiplos, e frequentemente conflitivos, interesses representados por diferentes grupos que se organizam em qualquer sociedade. Um dos fundadores do pluralismo, Robert Dahl (1982) sugere que “organizações independentes são altamente desejáveis numa democracia, pelo menos em democracias de larga escala”. Grupos que defendem interesses específicos são, para o autor, necessários ao funcionamento do processo democrático em si. Eles cumprem importantes funções como mobilizar coletivos, organizar e comunicar ao governo demandas da sociedade, assim como recrutar elites políticas. Em suma, são uma correia de transmissão entre os interesses dos indivíduos e o Estado. Com isso, cumprem o relevante papel de intermediação desses interesses, ajudando a minimizar o poder coercitivo do governo e garantir a liberdade política. Contudo, a independência e a autonomia dos grupos de interesses criam a oportunidade para o dano, porque as organizações podem utilizar sua autonomia, sua liberdade e seus recursos para defender interesses exclusivamente privados e concentrados e assim perpetuar injustiças, privações de outros grupos e aprofundar desigualdades, mais do que as reduzir. Para Dahl, portanto, o dilema que a autonomia dos grupos de interesses coloca para democracia é, na verdade, um aspecto particular de um dilema mais geral da vida política, qual seja, autonomia vs controle. Sistemas políticos em democracias contemporâneas têm lidado com esse dilema de diferentes formas. Países europeus, por exemplo, organizam as demandas da sociedade

em torno de uma representação corporativista de interesses. Esses sistemas corporativistas se caracterizam pela regulamentação da representação política de setores econômicos, seja de trabalhadores seja de empresários, de maneira que se garanta o monopólio e a centralização dessa representação. Sistemas articulados de representação de interesses corporativistas se apoiam, portanto, em fundamentos como a unicidade sindical, o monopólio da representação, a territorialidade e a organização federativa das organizações. A representação máxima desses interesses é geralmente centralizada em entidades de cúpula. As centrais sindicais de caráter nacional, como as conhecemos no Brasil. No continente norte-americano, o caminho foi outro. Democracias como Estados Unidos e Canadá apostaram no pluralismo como fundamento de seus sistemas políticos e expressam essa opção na forma de intermediar as relações entre estado, interesses privados e demandas sociais. A aposta desses sistemas políticos foi regulamentar o mínimo possível a ação desses interesses, evitando promover o monopólio da representação. Sistemas de representação de interesse pluralistas apostam, portanto, na livre associação e na competição entre grupos pela representação dos interesses dos cidadãos. Essa competição por representação também se expressa em outro tipo de competição, a competição por influência política. Dessa forma, a ação “atomizada” (e não concentrada) de representação de interesse potencializa aquilo que chamamos de lobbying. Uma intensa, individualizada e pontual interação entre decision makers e profissionais que representam interesses específicos. Contrastando com a ideia de um grande pacto social, objetivo típico dos sistemas corporativistas. De forma bastante resumida, a ideia é que sistemas do primeiro tipo, corporativistas, apostam na ideia de que se deve perseguir uma concertação social, ou seja, um pacto relativamente pacífico e negociado entre capital e trabalho, intermediado pelo Estado. No segundo caso, sistemas de representação de interesses pluralistas apostam que grupos de interesse, por não monopolizarem a representação, terão que levar outros grupos de interesses em consideração. Deriva dessa descentralização – ou pluralismo se preferir -, a ideia de que grupos, por não controlarem e monopolizarem representação, tem que se tolerar mutuamente e, frequentemente, formar coalizões de grupos para barganhar com outros setores e com o Estado suas perdas e ganhos. Em uma frase, o primeiro modelo aposta numa solução centralizada, o segundo em mecanismos de mercado. Esses diferentes desenhos institucionais, como quaisquer outros, tem vantagens e desvantagens. Não se trata, portanto, de assumir esse ou aquele como o melhor modelo político. Cada um desses países tomou decisões e desenhou historicamente suas instituições e sua legislação para lidar com essa questão levando em conta as suas próprias características econômicas, sociais, culturais e políticas. No Brasil, o modelo corporativista foi implementado nos anos 1930, de forma autoritária, como forma de lidar com uma crescente população urbana e com o início de uma proletarização. Em que pese já termos passado por inúmeras alterações constitucionais desde lá, até hoje persistem vigentes entre nós estruturas corporativistas de representação de interesses. A CLT é o diploma legal que regula essa representação, baseado nos princípios da unicidade sindical, territorialidade, contribuição sindical compulsória e organização federativa hierárquica (com entidades de cúpula). Esses são os fundamentos do monopólio da representação no sistema político brasileiro.

Acontece que a sociedade e a economia avançam e desafiam a estabilidade e a eficácia das instituições políticas. Hoje, o que se percebe é que a representação de interesses especiais em nosso sistema político não está resumida a este modelo. Observa-se, mais claramente desde a nova ordem constitucional de 1988, mas mesmo antes, que temos um pluralismo de representação de interesses cada vez mais acentuado no Brasil. A muito que a representação de interesses deixou de ser exclusividade das entidades corporativistas, e como resultado do processo de desenvolvimento econômico e da diferenciação social, cada vez mais diferentes grupos se formam e se organizam em busca da defesa de seus interesses específicos. Entidades como associações de caráter nacional e local defendem cada vez mais, e sem prejuízo da representação corporativista, múltiplos interesses econômicos na nossa sociedade. Ao mesmo tempo, entidades que representam interesses difusos se multiplicam e se organizam cada vez mais em torno de temas como os direitos humanos, das minorias, do meio ambiente, do consumidor, entre outros temas. Desse avanço do pluralismo no Brasil, depreende-se que os interesses organizados da nossa sociedade não podem ser mais ser intermediados pelo estado apenas com uma legislação que induza a concertação. A ação cada vez mais atomizada de associações empresariais, grupos de ambientalistas, de defensores dos direitos de minorias, de think tanks e outras formas de organização caracterizam um ambiente político que permite que diferentes segmentos expressem seus interesses de forma cada vez mais plural. Como resultado disso, a ação atomizada gera inúmeros inputs que o sistema político tem que processar. Esses inputs são operacionalizados de diversas formas, seja por campanhas coletivas, manifestações de massa, posicionamento na opinião pública, aquilo que chamamos grassroots lobbying, seja por ações de lobbying direto. Em especial neste último caso, o lobbying se intensifica e a competição política e a barganha passam a ser cada vez mais presentes como modus operandi dos interesses organizados em interação com o Estado. Em suma, nosso sistema político hoje é híbrido, e a intermediação de interesses por parte do Estado tem que lidar tanto com organizações do sistema corporativista quanto com um pluralismo cada vez mais intenso e fragmentado. Bem ou mal, para os interesses organizados de forma corporativista, temos legislação. Não falta quem defenda uma ampla reforma sindical, mas bem ou mal a atuação desses setores organizados têm uma regulação e processos de concertação relativamente bem estruturado, o que falta é uma regulação que dê conta do pluralismo crescente no nosso sistema político. O que estamos dizendo aqui não é nenhuma novidade. O debate sobre a regulamentação do lobby no Brasil não é recente. Pelo menos desde 1984, por iniciativa do então Senador Marco Maciel, esse debate está presente no Congresso Nacional. Um longo caminho foi percorrido até hoje. Desde lá, nada menos que 17 proposições podem ser identificadas ao longo do tempo. Algumas com tramitação concluída, sem sucesso, e outras ainda em apreciação. Dessas 17 proposições, pelo menos 12 são substancialmente diferentes. A apreciação dessas proposições legislativas sugere diferenças significativas em pelo menos três aspectos: i) o escopo da regulamentação; ii) o alcance da regulamentação; e iii) o instrumento legislativo utilizado pelos seus autores para tentar viabilizar a ideia.

Além do debate no âmbito do Poder Legislativo, pode-se também, embora mais recentemente, identificar muitas iniciativas por parte do Poder Executivo em direção à regulamentação da atividade. Este debate, contudo, ainda não se converteu em nenhuma ação reguladora. Recentemente uma janela de oportunidades se apresenta. Trata-se da profunda crise de credibilidade por que passam nossas instituições políticas, em virtude do descortinar de escândalos de corrupção de magnitude ainda não apreciada por nenhum de nós. Pelo menos não pela maioria de nós. Muito embora não se deva defender a regulamentação do lobby como forma de combate a corrupção, lobby, afinal, é um mecanismo democrático e com previsão constitucional de representação de interesses, pode-se sem maiores dificuldades defendê-la como forma de aperfeiçoar a democracia. Tornar as relações entre público e privado mais transparentes e/ou promover uma relação mais equânime entre os grupos mais poderosos e os menos estruturados é uma das expectativas com a regulamentação. Em suma, embora não seja antídoto para os problemas de corrupção, não resta dúvida de que uma regulamentação da atividade de lobby pode aperfeiçoar o processo decisório, no limite, induzindo pelo menos três valores caros para a qualidade da democracia: participação, acesso e accountability. Felizmente é possível identificar avanços recentes no processo legislativo. Esses avanços trazem novidades alvissareiras. Substitutivo de autoria da Deputada Cristiane Brasil (PTB/RJ), recentemente aprovado na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, aperfeiçoa as propostas em curso e abre espaço para uma excelente oportunidade. Depois de longo período, estamos finalmente mais próximos de aprovar uma legislação sobre o tema. O texto está bem maduro, equilibra bem o dilema autonomia vs controle, mas ainda há o que melhorar. O debate não está encerrado e a proposta ainda pode, e deve, receber ajustes. Mas não há dúvida de que o Substitutivo representa uma rara janela de oportunidades sobre a qual precisamos nos debruçar. Não será saudável para o nosso sistema político continuar sem uma previsão legal que separe a atividade de lobby – ou Relações Governamentais, como corretamente preferem os profissionais -, de práticas cada vez menos aceitas pela sociedade. Estamos diante da oportunidade de separar o que é a legítima e democrática representação de interesses da corrupção e do tráfico de influência. Representar interesses de forma profissional é uma tendência em sociedades que se desenvolvem economicamente, e uma realidade no sistema político brasileiro. O Desenvolvimento econômico gera diferenciação social, a escalada virtuosa dos direitos políticos e sociais profissionaliza as atividades de advocacy, como preferem os militantes por direitos difusos. Essa é uma realidade inexorável. Torcer o nariz ou impedir o avanço dessa legislação, seja por ignorância, preconceito ou desinformação, será um erro que a história não perdoará. Manoel Leonardo Santos - professor do Departamento de Ciência Política da UFMG, Vice-diretor do Centro de Estudos Legislativos da UFMG e pesquisador visitante do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada).  

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