DEMOCRACIA PARLAMENTAR E CAPITALISMO: HÁ POSSIBILIDADE DE CONCILIAÇÃO?
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DEMOCRACIA PARLAMENTAR E CAPITALISMO: HÁ POSSIBILIDADE DE CONCILIAÇÃO? Ana Flávia Vital João Vitor Sales de Araújo Souto RESUMO. O presente trabalho tem como objetivo avaliar a viabilidade de uma democracia parlamentar no contexto das sociedades capitalistas. Analisando, primeiramente, as críticas à democracia parlamentar aplicada, o trabalho visa estudar a relação entre democracia e capitalismo de modo a determinar se há compatibilidade entre os dois modelos. Palavras chave: democracia, democracia parlamentar, capitalismo ABSTRACT. This article aims to evaluate the viability of a parliamentary democracy in the context of capitalist societies. Firstly analysing the criticisms directed towards the concretisation of parliamentary democracies, in the present work the correlation between democracy and capitalism will be investigated in order to determine whether the two models are compatible. Key words: democracy, parliamentary democracy, capitalism 1. Introdução A concepção de democracia é proveniente da Grécia antiga, e, nesse contexto, era realizada diretamente, ou seja, a população – isto é, aqueles que eram considerados aptos a participar da vida política – manifestava suas perspectivas na ágora e não era alienada da sua decisão por um representante de seus anseios. A democracia direta, no
entanto, foi se tornando paulatinamente inviável, tendo em vista o crescimento populacional e o enaltecimento da vida privada. O povo ateniense, saudosamente relembrado como portadores da égide da democracia, contudo, possuía escravos, e apenas um contingente populacional composto exclusivamente por homens possuía o privilégio de votar. Assim, os escravos eram capazes de fornecer as condições materiais de subsistência da população, as mulheres cuidavam do âmbito privado e apenas os homens poderiam dedicar sua existência à gestão da polis. A democracia direta, nesse contexto, pode ser chamada de democracia aristocrática, já que o privilégio de participação era arbitrariamente restrito àqueles que possuíam o privilégio do título de cidadãos (RHODES, 2004, p. 1518). Ademais, ainda hoje possuímos gradações de cidadania, mesmo com o sufrágio universal e outras invenções que pregam emancipação para todos os seres humanos. O poder hegêmonico violentamente impõe um parâmetro de existência, e os indivíduos que se distanciam desse parâmetro são invariavelmente impossibilitados de exercer sua cidadania plena. No lento caminhar da história, diversas formas de governo foram concebidas, e a predominante contemporaneamente é a democracia parlamentar. Buscando sanar a impossibilidade pragmática da democracia direta, essa consiste, substancialmente, numa forma de governo em que a soberania popular e a divisão igualitária de poder entre toda a população existem, entretanto, são exercidas através da seleção de representantes eleitos por procedimentos democráticos, que, no parlamento, deliberarão sobre as questões concernentes ao estado. 2. A democracia parlamentar e o capitalismo Segundo Joaquim Carlos Salgado, a história do pensamento ocidental fundamentase num embate entre liberdade e poder. Vivemos, hodiernamente, numa degeneração do estado ético que possuía legitimidade no uso de seu poder e pretendia caminhar para a emancipação absoluta. Essa degeneração se dá pela instrumentalização das mulheres e dos homens: na medida em que a liberdade deixa de ser tautológica e se torna intrínseca a uma lógica de mercado, necessariamente os cidadãos tornamse
subservientes, e sua liberdade é amplamente condicionada pelo poder. Esse poder, no entanto, contém as particularidades do mercado. Deixando de ser livres para si , tornamonos ser para o outro , detentores de uma liberdade instrumentalizada e restringidos pelos grilhões do capital que coagem nossa autonomia e transformam nossa força de trabalho em mercadoria (SALGADO, 1998). O homem alienado daquilo que produz, por conseguinte, está inexoravelmente separado do mundo, e quanto mais seu trabalho se torna mercadoria, mais incisivamente essa separação ocorre (DEBORD, 1967, p. 29). Assim, enquanto vítimas da dominação econômica absoluta da sociedade civil, um sistema que pressupõe a liberdade se torna incongruente com a realidade. Os estados democráticos de direito estão, contemporaneamente, vivendo num estado de exceção permanente. O estado de exceção ocorre quando, devido a circunstâncias extraordinárias e imprevisíveis, o ordenamento jurídico é suspenso – supostamente por tempo limitado – no intuito de reestabelecer a normalidade previamente vigente (AGAMBEN, 2003, p. 2730). Entretanto, em decorrência da complexificação contínua do sistema capitalista especulativo, o direito é deixado de lado em detrimento da decisão “racional” de economistas aptos a decidirem pela população, caracterizando o paradigma do estado tecnocrata. Nesse sentido, os parlamentares que possuíam o dever de representar os interesses da população, embora vistos como aqueles providos dos meios adequados e legítimos para decidir em nome da população, se tornam meramente simulacros dos desejos das grandes corporações. O abismo existente entre os interesses dos representados e dos representantes numa democracia parlamentar possui, desta feita, duas dimensões. A primeira consiste numa impossibilidade de mudanças significativas que não sejam consentâneas com o desenvolvimento do mercado, já que, como mencionado anteriormente, os parlamentares são restritos em seu poder decisório e representativo pela “racionalidade” administrativa e econômica do estado. Assim, os votos se tornam ineficazes, já que os eleitos serão instrumentalizados e sucumbirão ao poder absoluto do capital. A segunda dimensão, não menos relevante, é a dimensão da resignação. O sistema representativo se justifica como necessário através da ideia de que todas as outras possibilidades de efetivação da democracia falharam, e, portanto, estamos lidando com um processo lógico de exclusão de alternativas. Assim, quando ocorre o fracasso desse sistema, os
cidadãos são culpados por terem utilizado sua ínfima soberania – que existe apenas de tempos em tempos, no período de eleições de forma equivocada. O ônus do fracasso recai sobre quem lança os dados, quando, na realidade, os dados estavam viciados desde o início (e tinham vontade própria). Ademais, a inviolabilidade do procedimento democrático de seleção de representantes nos torna passivos e obedientes, já que quando o hiato entre interesses dos parlamentares e dos cidadãos são postos em perspectiva, somos induzidos a pensar que a ação política apropriada é esperar o próximo período eleitoral, e não concretizar a força imanente da vida política por meio de ações diretas, como a desobediência civil. 3. A democracia e o capitalismo Em sua obra On Democracy , Robert A. Dahl (2000, p. 8586) propõe que a democracia ideal – ou poliarquia, como a chama – deve ser dotada de seis instituições políticas centrais, que garantirão as reais participação e manifestação dos desejos dos cidadãos. Apesar de nunca identificadas conjuntamente em um único Estado, são estas: 1. Representantes eleitos 2. “Eleições livres, justas e frequentes, [...] nas quais a coerção é relativamente incomum” (DAHL apud CARONE COSTA JÚNIOR, 2015) 3. Liberdade de expressão 4. Acesso a fontes alternativas de informação 5. Autonomia associativa 6. Cidadania inclusiva A Dahl, somase Bobbio (1992, p.146), que vê na democracia a realização do valor supremo da liberdade, de modo que se atinge a questão central: é possível haver democracia no capitalismo? Enquanto a eleição de representantes se faz possível não apenas em tese como também se materializa em diversas experiências estatais, o mesmo não pode ser dito da liberdade, tendo em vista que o sistema capitalista pressupõe a disparidade de indivíduos, parte dos quais se encontra submetida a uma minoria de patrões. A busca de
lucros cada vez maiores por parte dos últimos caracteriza um incessante movimento em direção à precarização dos que estão a eles subordinados, de modo que, a despeito das declarações formais de liberdade, os indivíduos são privados não apenas de direitos que lhes garantiriam plena cidadania como também do efetivo domínio sobre si e sobre suas ideias. No contexto do capitalismo mais fortemente liberal, com a mínima intervenção estatal, não haveria sequer direitos trabalhistas que pudessem proteger o trabalhador da virtual escravização, de modo que sua alienação atingiria os máximos níveis. Tornamse impossíveis a concretização de seus desejos e a realização de sua individualidade, e a falta de liberdade é facilmente identificável. Em face, porém, das concessões feitas aos trabalhadores por parte dos capitalistas, a falta de liberdade se faz menos evidente. A alienação nos tempos modernos se faz mais sutil, porém o sistema econômico todavia demanda do povo a venda da sua força de trabalho para assegurar a sua existência material, tornando os trabalhadores invariavelmente escravos de sua condição. Necessitando gastar a maior parte de seu dia com trabalhos alienantes (no sentido de o produto final do empreendimento ser expropriado pelo empregador), os trabalhadores sofrem empecilhos para concretizarem sua participação na gestão da vida pública. A isto, se soma uma mídia controlada precisamente por aqueles que detém o poder econômico (MARX, 1968, p. 21). Se, por um lado, o jurista alemão Carl Schmitt afirma que as duas características essenciais da democracia são a publicidade e a discussão (SCHMITT, 1988, p. 35), por outro, contemporaneamente, as informações acerca da providência do estado tecnocrata são obscurecidas e distanciadas reiteradamente da população pela classe detentora de poder, que controla e enviesa as publicações para manter seu domínio hegemônico sobre o estado. Possuidoras dos meios de comunicação em plena sociedade da informação, as classes economicamente dominantes encontram um solo fértil no qual plantar suas ideias, convencendo os espectadores de que os interesses minoritários da elite são, de fato, os interesses de todos.
A ideologia de que, através da ação política e da vida pública, mudanças não podem ser efetivadas perpassa o imaginário das classes subalternas, e o ciclo retroalimentativo de dominação perdura incólume, enquanto a discussão se torna, por sua vez, inócua, já que o capital cultural e intelectual são monopolizados por um estrato populacional específico, que domina a cultura desde a mídia de massa até as instituições de ensino. 3.1 Do povo, pelo povo, para o povo? Desde o início do processo eleitoral, a democracia é condicionada pelo capital. Os cidadãos que decidem disputar cargos políticos necessitam de subsídios exorbitantes para concorrerem e, invariavelmente, fazem acordos com grandes corporações, que efetuam o patrocínio em troca de um capital simbólico, o poder do representante para tornar decisões que facilitam o domínio da empresa sobre o âmbito político. A elite dominante conta, portanto, com o capital a seu favor, que lhe permite sustentar candidaturas e manipular a opinião pública, e, ao chegar ao poder, se utiliza ainda de uma ferramenta para a garantia do status quo: a segregação institucionalizada. Tratase da construção do “povo nacional”. Constróise uma nacionalidade comum sobre as “nacionalidades” préexistentes por meio de um processo violento de uniformização e negação da diferença e de sua subordinação ou extinção [...] Uniformizar, normalizar, padronizar são palavras essenciais para compreender o Direito e o Estado modernos. Da mesma forma, aqueles que não concordavam com os ideais do Estado moderno e não contribuíam para a legitimação do poder estatal, eram vistos como inimigos do Estado, ou melhor, inimigos da burguesia, da nobreza, do clero e do monarca. (MAGALHÃES, 2015, p.8687)
Enquanto Magalhães (2015, p. 8687) trata da uniformização que se deu durante a formação do Estado Moderno através do aprisionamento de indesejáveis primeiramente em manicômios e, em seguida, em instituições carcerárias, o relato se torna estranhamente atual quando se observa a realidade contemporânea. Nas sociedades capitalistas, observase um fenômeno que consiste na máxima “padronizese ou seja excluído”, que busca massificar indivíduos e exclui aqueles que
fogem à norma e se tornam inúteis ao sistema. Na realidade brasileira, esta situação pode ser ilustrada por instituições psiquiátricas, asilos e penitenciárias. Por um lado, há uma psicologia que, “para se consolidar como uma verdade, [fez] alianças, não somente com a classe dominante, mas também com vários outros aparelhos repressivos e ideológicos de estado”(MAGALHÃES, 2015), não mais que três décadas atrás legitimou o enclausuramento em manicômios de “epilépticos, alcoolistas, homossexuais, prostitutas, gente que se rebelava, gente que se tornara incômoda para alguém com mais poder” (BRUM apud ARBEX, 2013) e ainda hoje motiva a exclusão de indivíduos considerados indesejados – desde o envio de pessoas neuroatípicas para instituições nas quais são isoladas até a patologização de certas identidades LGBT+. Por outro, o encarceramento sistemático e brutal de certas classes subalternizadas. Socialmente vulneráveis, negros, jovens periféricos, indivíduos com ensino fundamental incompleto, pessoas LGBT – em especial travestis e transexuais – e mulheres transgressoras fazem parte de uma cifra oculta do sufrágio censitário que se instaurou no Brasil. Excluídos pela sociedade burguesa e proibidos de exercer seu direito ao voto segundo o art 15, III da Constituição Federal, são mais de 515 mil (BRASIL, 2012, p. 2728) os que não têm o direito de ser democraticamente representados perante uma sociedade que insiste que “bandido bom é bandido morto”. Diante de tal lacuna representativa, como seria possível falar em democracia – que dirá democracia parlamentar – dentro de um sistema que, para se legitimar como tal e garantir o poder político daqueles a quem o capitalismo interessa, sistematicamente exclui? 4. Conclusão A resposta parece lógica: não são apenas os problemas inerentes à democracia parlamentar que a tornam inviável, mas sim o modelo no qual se a quer inserir que gera uma incompatibilidade entre os princípios de ambos.
O esvaziamento enquanto agente político dos cidadãos, propiciado pela democracia parlamentar, serve um propósito de classe muito específico, e faz com que muros simbólicos intransponíveis sejam erguidos em torno da bastilha. A ideia falaciosa de que efetivamente detemos poder e autonomia é arraigada e cristalizada como um a priori histórico, mas se trata de um subterfúgio para contentamento dos cidadãos enquanto a dominação econômica do homem sobre o homem é cada vez mais ofuscada. A democracia parlamentar tacitamente nos distancia de nosso real potencial enquanto agentes políticos transformadores da realidade, pois promove a ideologia de que através da eleição de representantes – que são amplamente deturpados pelo sistema – a vida pública está consumada e podemos retornar para o âmbito privado acumular mercadorias. O próprio capitalismo é, afinal, incongruente com a democracia. Um sistema que prevê a exploração dos subalternizados, gera alienação e exclui aqueles que não sustentam e legitimam a elite que deseja o deseja manter ou não lhe são inteiramente funcionais simplesmente não poderia estar de acordo com um governo que pressupõe liberdade, representação universal e cidadania plena. Numa sociedade em que o direito, a política e a cultura são subservientes à economia, é impossível falar de uma identidade de interesses entre os que concedem poder e os que o recebem. A democracia parlamentar pode ser racional e necessária em sua elucubração teórica, mas, enquanto inserida num sistema econômico patológico e que estende sua dominação por todos os âmbitos da existência, é preciso vislumbrar a possibilidade de os cidadãos não delegarem seu poder político de transformação da realidade, além de resistirem veementemente a qualquer tipo de dominação, simbólica ou objetiva. 5. Bibliografia . AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. Sao Paulo: Boitempo, 2004, p. 2730. ARBEX, Daniela. Holocausto brasileiro . São Paulo: Geração Editorial, 2013.
BOBBlO, Norberto. Estado governo sociedade. Para uma teoria geral da política. 4ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. p. 146. BOURDIEU, Pierre. Les trois états du capital culturel . Actes de la recherche en sciences sociales, Paris, n. 30, 1979, p. 36. BRUM, Eliane. Os loucos somos nós . In: ARBEX, Daniela. Holocausto brasileiro . São Paulo: Geração Editorial, 2013. p. 1314. BRASIL, Presidência da República. Mapa do encarceramento: os jovens do Brasil. Brasília,
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Disponível
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CARLOS SALGADO, Joaquim. O Estado Ético e o Estado Poiético. Revista do tribunal de contas do estado de Minas Gerais, 1998. CARONE COSTA JÚNIOR, Eduardo. Discussão e publicidade acerca do impacto da lei . Belo Horizonte: D’Plácido. 2015. p. 3796. DAHL, Robert A. On Democracy . New Haven: Yale University Press, 2000. p. 8586. DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Buchet/Chastel, 1967, p. 29. IPEA. A Aplicação de Penas e Medidas Alternativas . Rio de Janeiro, 2015. Disponível em: Acesso em 11/07/2016. JOHN RHODES, Peter. Athenian Democracy. Oxford Unity Press, 2004, p. 1518. LINCOLN, Abraham. Discurso de Gettysburg . Gettysburg, Cemitério Nacional de Gettysburg, 1863. (Comunicação oral)
MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Infiltrações e diversidade: a desconstrução do Estado Moderno. Coleção Direito e Diversidade, vol 1. Montes Claros, 2015. p. 7195. MARX, Karl. O Capital livro 1. Coleção Crítica da Economia Política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Critique of the German Ideology. Moscou: Progress
Publishers,
1968.
p.
21.
Disponível
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Acesso em 11/07/2016. SCHMITT, Carl. The Crisis of Parliamentary Democracy . First MIT Press paperback edition, 1988, p. 35.
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