«Demoro três quartos de hora a escrever um livro de poemas», entrevista realizada a Leopoldo María Panero por David Vegue Ollero e Germán Labrador Méndez em Sagaroça, no dia 27 de Abril de 2002 | Tradução de Pedro Serra [Documento inédito · 2002].

May 27, 2017 | Autor: Pedro Serra | Categoria: Poesía, Poesía española del siglo XX
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«DEMORO TRÊS QUARTOS DE HORAS A ESCREVER UM LIVRO DE POEMAS» Entrevista realizada a Leopoldo María Panero por David Vegue Ollero e Germán Labrador Méndez em Sagaroça, no dia 27 de Abril de 2002

Tradução de PEDRO SERRA

Ninguém ignora quem é Leopoldo María Panero (Madrid, 1948), nem a sua trajectória errante no panorama literário desde a precoce irrupção na década de setenta. A sua figura é, contudo, muito incómoda para o mundo literário. A sua presença não passa inadvertida. Atrai o olhar, os gestos e os perfis, as fotografias e os rostos estranhos. É sábado, podia ter sido qualquer outro dia, um sábado de Abril, e já nos estamos a encontrar com Panero há dois dias, de um Abril primaveral, e a acção tem lugar em Saragoça. Congresso de novos fogos, infestado de poetas novíssimos destruindo e criando (Castellet dixit). O espaço é ao mesmo tempo aberto e fechado, um grande pavilhão de um palácio de congressos amplo e restrito. As soirées da Sociedade Filarmónica deram a vez, nestes dias, a uma invasão de estudantes, poetas, críticos e professores. Foi congregada praticamente a totalidade dos especialistas no campo durante uma longa e intensa semana. E, claro está, os rostos de quase todos os implicados e fautores da invenção passearam por este chão, bastante limpo para a ocasião. Leopoldo María Panero chegou anteontem de manhã, esquelético, metido numa descuidada vestimenta que parece cingir-se sem querer a um dorso que claramente a rejeita. O andar é descompensado, errante, e enche o lugar de presença, talvez porque poucos minutos lhe bastam para imiscuir-se em cada metro quadrado. A sua trajectória é enigmática. Panero tem algo de

cinza renascentista. Enche o lugar de presença, mas também o torna irregular, convertendo-o numa corda bamba. A sua presença não implica ostentação. Não veio para figurar, mas sim a passear. É tão fácil encontrá-lo a mijar no w.c. como apoiado na barra do improvisado bar-livraria, convidado sabe-se lá por quem. Vai e vem da sala de conferências para a sala das comunicações, onde desfruta a inquietar aqueles que se atrevem a falar dele em sua presença. É possível reconhecê-lo a assinar dedicatórias com canetas emprestadas que quase nunca devolve. Fuma cigarros sem descanso mesmo quando está sentado nas poltronas (é o único que goza deste privilégio). Os maços meio-cheios ou meio-vazios que se amontoam nos seus bolsos somam o incrível número de cinco. Se o olhar se despista ainda é possível reconhecê-lo através do modo como ri, canino, impulsivo, fora de tempo, desfigurado. Sou o monstro da coca-cola repete com evidente convicção, antes de ensaiar outro dos seus esgares, e a gargalhada frenética explode de novo. Quando o faz, aproxima as mãos da cara, o que permite examinar com um certo cuidado o labirinto de manchas, nervos, veias e cicatrizes que se arracimam à volta dos pulsos. Quando Panero passa, o congresso levita e, de certo modo, evaporase. Apenas resta ele, e ele fica sozinho. Dá uma volta, aproximam-se-lhe intermitentemente grupos de curiosos. Em certas ocasiões, em meio do enorme hall do edifício, é possível encontrá-lo sem companhia, melancólico, triste, transfigurado, como um animal preso numa jaula. Não parece querer estar sozinho ou, pelo menos, não parece querer viver a solidão que, por ser quem é, ou como é, lhe tocou viver e habitar. Prova deste facto é que, no dia anterior [à entrevista], se aproximava dos estudantes e lhes pedia companhia durante as leituras das comunicações. Consta-nos que não somos os primeiros. Tudo é tão simples como um homem que não quer estar ou não quer saber-se sozinho. Os participantes neste congresso foram testemunhas de reencontros, cumprimentos, abraços emotivos e conversas entre a maioria dos poetas e

dos especialistas. Mas Panero está à margem de tudo isso. Apenas uma saudação tímida, algum gesto amigável de companheiros do grémio. Não veio para figurar, veio para passear, mas temos a sensação de que apenas o trouxeram para ser exibido, para que, precisamente, se passeie. Mais do que parte funcional do congresso, parece uma peça de museu, resulta ser o momento especial do espectáculo, um luxo que consiste em deixar-se ver para que as pessoas desfrutem e sintam que foi um bom investimento o dinheiro da entrada. Talvez não se possa fazer doutro modo, e a ele tãopouco parece causar-lhe muito incómodo o papel de bobo da corte. Mais ainda, é a atracção principal, a que todos esperam, uma atracção que se prolonga por dois dias, de manhã até à noitinha. Fora das salas de conferência, nos corredores, entre o público, o louco, o tenebroso, o maldito, leva a cabo a sua representação. Algo é certo: a sua presença é incómoda até para o circo que ganha o pão com ele. A sua intervenção, no dia anterior, foi a mesma solidão que transporta pelas salas do palácio, entre notáveis presenças ausentes. Há dois dias que nos encontramos com ele. A ideia da entrevista está pronta, bem como a do seu fracasso. Como sombra que vagueia pelos corredores, Panero não deixou de estar presente. Quando a noite começa a tornar-se mais longa nem sempre queria ir-se embora, para desespero do próprio Túa Blesa, até ser enfim levado de taxi para o hotel. Sozinho, na parte de trás do carro, com os braços numa postura muito sua: por detrás da cabeça. Agora está sozinho na barra do bar. Nem sequer levamos um elenco preciso de perguntas. Temos estado a trabalhá-lo durante semanas, familiarizando-nos com a sua poesia de há muito tempo, o que permite uma certa margem de confiança. Aproximamo-nos. Propomos-lhe a entrevista (a cena tem algo de engate numa discoteca). Concorda com a nossa proposta, e aponta uns cadeirões afastados, aonde nos leva com um «mas sentados». Seguimos, com uma

certa insegurança, o caminho instável, de equilibrista, que Panero vai traçando com um corpo surpreendentemente leve, acostumado às perguntas, à fama, à popularidade, desfrutando dos seus dois dias de festa e de prazer, quase bufoneando, sabedor que no domingo tudo acada e será necessário voar para onde, na sua reclusão, normalmente habita.

(PEN) ÚLTIMO LIVRO Acompanha-nos David Granados, um companheiro que não pretende intervir na entrevista, mas sim ser observador directo dela. Mal nos sentámos e preparámos para lançar-lhe a primeira pergunta, compreendemos que tudo o referente a Panero é ilusório, porque é ele quem dá início à entrevista dirigindo um comentário ao nosso companheiro: – Isso é pasta de executivo, de executivo agressivo, ou quê? – Eh... é uma máscara, Leopoldo. A entrevista ainda não começou, mas já estamos dentro dela, a anos luz do começo, porque esta entrevista escolheu ou vai desenhando um caminho inverosímil, vai erguendo um túnel que nos priva do que é habitual (talvez não possa ser de outro modo). De repente, aparece Ángel Guinda, o poeta cuja intervenção no congresso está prevista para dentro de uma hora, aproximando-se para o cumprimentar com uma voz cordial, tentando aparentar uma normalidade e um equilíbrio inexistentes. E acontece uma história dura de observar, dura de viver, dura de contar. É complicado enfrentar-se a Panero: – Leopoldo (ri com um movimento em falso), caraças! Como estás?

Panero, com maus modos, afasta bruscamente as mãos que queriam tocar-lhe a cabeça com carinho impostor, e recrimina-o: – Afasta, não me toques! Ángel Guinda insiste: Estás bem, então? Estás bem? E Panero, com a cabeça baixa, ignorando-o com pulcritude, mantém-se calado. Mas estás bem? Insiste uma vez mais Guinda, finalmente resigna-se e vai-se embora. Na sua intervenção no congresso, Ángel Guinda falará dos seus primeiros contactos com a poesia, da sua iniciação e, nessa breve revisão de certos acontecimentos biográficos, fala de Panero, e conta como tiveram em tempos uma relação muito próxima, até ao dia em que Leopoldo María se apresentou em casa de Guinda sendo já madrugada, e depois de sujar e deitar fogo à colcha da cama, decidiu, segundo as suas próprias palavras, «cortar a minha relação com Leopoldo María, porque já estava farto de o aguentar». Não passaram nem dois minutos e, como supunhamos, tudo o que na entrevista roçar o que é habitual será puro acaso. Panero vive num mundo àparte, joga num tabuleiro diferente. Perguntamos-lhe pelo seu último livro, penúltimo já, de forma a que o poeta sinta que acedemos a partilhar o mesmo tabuleiro de jogo, aquele em que Panero não é Panero mas outra pessoa diferente: – Acaba de sair um livro de Leopoldo María Panero que se chama «Águila contra el hombre», qual é a sua opinião sobre ele? – O título está trocado, pá. – Qual é o título original? – Chamava-se Diez monedas contra el hombre. – Por que é que o mudaste?

– (Ignorando a pergunta) Estava a falar de Jesus Cristo a propósito dos trinta dracmas famosos. Enquanto fuma sem parar, mantém a mão com que segura cada cigarro colada à boca. Este facto, unido a um tom quase de sussurro, uma dicção desgastada, e ao mau estado do seu maxilar, explica que haja partes da entrevista que tivémos que intuir, ou mesmo imaginar. Frases audíveis a meias, vogais impossíveis que se sucedem: ...mas depois tão-pouco o disse... É evidente que esta entrevista não vai ser exactamente uma conversação. São raros os momentos em que uma frase do poeta não seja uma sentença, um comentário ocasional fora de lugar e de tempo, ou em que as suas respostas tenham algo que ver com a pergunta. Outro problema acrescido: efectuamos as perguntas ao mesmo tempo que pensamos novos temas com que não se esgote a entrevista. De momento, parece que Panero se presta a continuar a falar desse livro: – É o que dizem, que eram trinta moedas de ouro. – Sempre me surpreendeu o facto de Judas ter de ser um mendigo, caso contrário não entendo como vendeu um tipo por trinta moedas. – Mas no fim, quando Jesus é crucificado, Judas deita fora o dinheiro. – Quem? – Judas, que no último momento deita fora o dinheiro. – Simbolicamente, não? Quando fala de poesia consegue não perder o fio à meada. A sua memória não cultiva a ruina, constrói-a. No dia anterior tinha recitado com precisão qualquer parte da sua obra, poemas escritos há mais de trinta anos que

conhece de memória. Ou também, se se proporcionava, textos de Ezra Pound, Pavese, Rimbaud ou Mallarmé, na sua música original. Ontem interrompia uma comunicação ao ritmo deslumbrante do Tiger, tiger de Blake. Aproveitando uma citação momentânea no meio de uma sucessão de palavras incompreensíveis, perguntamos-lhe se pode voltar a fazê-lo. Mas deseja com urgência uma garrafa de água e um de nós tem de ir comprá-la. Pede também «um cinzeirinho» e enquanto espera profere toda uma série de atributos sobre «a velha da aldeia».

O CONGRESSO DE NOVÍSSIMOS Anteontem, numa das salas de comunicações, anunciou aos assistentes a hora da sua «actuação», referindo-se à sua intervenção «oficial» no congresso, intervenção que foi uma leitura de poemas. De regresso com uma garrafa de água, pedido por pedido, instamo-lo, curiosos pela definição, a que se explique: – Anteontem, quando ias dar a tua conferência (assente), disseste que ias actuar às onze, consideras a conferência como uma actuação? – Que significa actuação, cinema? – Não, disseste que ias actuar. – Teatro? – Sim, como no teatro. – Não pensei nisso. Desculpem, tenho de ir à casa-de-banho. Com a desculpa levanta-se e deixa-nos sozinhos por uns momentos. A entrevista está a ser dura, porque se articula sobre bases improvisadas. Fórmulas de boa educação e cortesia, todos os acordos sociais desenhados para que comuniquemos, não conhecem forma com Panero. Por isso,

enquanto se ausenta, o que se repetirá intermitentemente durante a hora seguinte, são momentos bem-vindos, que nos permitem apenas desenhar a estratégia até à seguinte paragem. «pelos vistos sou a solução para dar o golpe de estado todos os dias»

O X DA EQUAÇÃO A aparição de Panero em Saragoça não passou inadvertida à imprensa local. A espectacularidade provocadora que o poeta significa torna-o um alvo desejado. No dia anterior foi-lhe dedicada uma páginas inteira, contrastando com o pequeno espaço reservado a Gimferrer, suposta intervenção principal que teve lugar no primeiro dia do congresso. Essa página, que começou por ser uma conferência de imprensa levada a cabo no Palácio de Congressos, proporcionava um título certeiro: Não sou o X de nenhuma equação. Com a mesma compostura de quem viaja até à casa-de-banho, Panero regressa e resgata a posição que tinha deixado antes, como se não tivesse acontecido nada. – Disseste que não és o X de uma equação, qual é a equação? – Não, é que pelos vistos sou a solução para dar o golpe de estado todos os dias. O sofá em que nos sentámos era incómodo para fazer uma entrevista, e vai sendo rodeado por gente curiosa que observa. Sentámo-nos no chão, mas a posição é também incómoda (parte de culpa é da inclinação para a frente do entrevistado), e somos obrigados a mudar de postura constantemente.

Passamos de estar sentados a estar de joelhos, ou de cócoras, alternadamente. Uma dessas vezes, o David apoia-se no sofá e deixa cair, junto do cinzeiro, o copo de água por onde Panero bebe. Vamos imediatamente buscar outra garrafa de água. No regresso perguntamos-lhe pelas comunicações sobre ele que se vêm sucedendo durante duas tardes, em duas salas cada tarde, e à razão de três conferenciantes por sala. – Que achas das comunicações que se estão a fazer sobre ti? Achas que são visões lúcidas, achas que entendem a tua obra? – Sobre a verdade e a mentira em sentido extra-moral. Um rapaz dos primeiros que vi (enfatiza) não estava mal. (Pensamos que se está a referir ao David, porque na noite anterior, no lugar onde, junto às projecções que formam parte do programa do congresso, se reúne parte dos assistentes, produziu-se um cruzamento entre os dois, e Panero, reconhecendo-o, felicitou-o pela comunicação com um afectuoso: «ouve, muito bem esta tarde». Contudo, não parece reconhecê-lo agora). Para além de que nunca perdi o fio. (Associando) Estamos na Caixa dos Fios,1 que é um electrochoque nocturno todos os dias. Estão mais loucos do que eu e do que no manicómio das Canárias. – Disseste ontem que... – Como estou aqui, só posso levar com um electrochoque (comprazido) de noite. – E disseste que nas Canárias te obrigavam a alimentar-te dos teus peidos. – Não, isso foi em Mondragón. – Mas tu propugnas uma alimentação à base daquilo que uma pessoa desprende. A Caixa dos Fios é o nome do lugar destinado às actividades nocturnas do congresso. Nota dos entrevistadores. 1

– Não, simbolicamente. – Simbolicamente? – Claro, claro, como a dama do Tyssen.

SEM INFLUÊNCIAS Um dos poemas de Leopoldo María Panero de que mais gostámos sempre foi o seu «Canto del llanero solitario». O começo (Verf barrabum qué espuma / Los bosques acaso no están muertos? / El libro de oro la celeste espuma los barrancos / en que vuela una paloma) parece perseguir o leitor. Perguntamos-lhe por alguns dos símbolos e partes mais misteriosas do poema. – No teu poema «El canto del llanero solitario», que representa Snark? – The Hunting of the Snark, que em princípio compara a psiquiatria e a caça ao homem. – E verf barrabum? Panero sobressalta-se e pergunta pelo significado de um gesto. Diante da situação incómoda, um de nós não tinha podido aguentar olhá-lo nos olhos, o que parece tê-lo incomodado de algum modo. Panero faz constantes comentários sobre a sua capacidade de ler a mente e de poder comunicar telepaticamente, bem como sobre dos gestos mais triviais que considera possuirem um significado dirigido a ele, sem deixar nunca clara a fronteira entre estar no gozo ou estar verdadeiramente irritado. Enquanto procuramos medir cada um dos movimentos sem esquecer o fantasma da paranóia, Panero continua a responder às perguntas. – (Peremptório) ... verf barrabum nada, uma interjeição.

– Houve quem dissesse ser parecido a um verso de Artaud. – Quem? – Artaud. (Panero cita um verso imperceptível). – É verdadeira essa influência? – Eu não fui influenciado por ninguém. Panero passa do sobressalto a uma proximidade súbita, quase de imediato: – Você tem outro poema que se chama «Homenaje a Catulo»... – Oh pá, trata-me por tu, não sou assim tão velho, pois não? – Tens um poema que se chama «Homenaje a Catulo» e que começa El culo de Sabenio está cantando...

Ele próprio continua a recitá-lo: – Non unquam digitum inquinare posses, e Germán prolonga a citação com a tradução: – Por muito que o toques não conseguirás sujar-te um dedo. Nesse poema justificas... Panero mancha-se constantemente com o gotejar das garrafas de água e talvez por associação de ideias com os versos comenta que tem outras calças no hotel e que terá que mudar de roupa. Tentamo utilizar o poema meio citado para encetar a questão das artes poéticas de Panero: – Dizes que o canto sai dos intestinos, que o poema é como um excremento. Mas parece que Panero não tem vontade de seguir por esse caminho, resolvendo a situação com uma resposta que nada tem que ver: – Há dez mil maneiras de pecar e decidi matar. Aconteceu o mesmo com os cigarros. Pela primeira vez na entrevista diz uma das suas habituais piadas que apenas ele considera extremamente engraçadas, rindo-se dela abertamente e sem escrúpulos. O seu riso ajusta-se ao que deve entender, mas não roça o desequilíbrio de que fomos

testemunhas em anteriores ocasiões, facto que propicia que possamos continuar a abordar o tema de outro modo. «O meu pai era também um grande poeta»

– Gimferrer, em Mascarada, também utiliza esse simbolismo. – Sim, gosto muito de Gimferrer como poeta, e num poema de extrapoesia não sabia se não era eu.

OU TAMBÉM É MENTIRA? Noutra entrevista realizada há anos, declara Panero ter pensado ao ler Gimferrer que «os monstros da poesia espanhola actual somos dois, Gimferrer e eu». Dando por válida essa admiração, tentamos tocar directamente o tema dos novíssimos através do poeta catalão: – Para além de Gimferrer, que achas dos outros poetas novíssimos? Não responde a este respeito mas, surpreendentemente, profere uma sentença: – O meu pai era também um grande poeta. A relação com o pai não foi precisamente afectiva. Prova pública do facto foi o controverso filme de Chavarri, o histórico documentário que soube captar o Desencanto de uma época. Entre as centenas de lugares onde ele e os seus irmãos desconstruíam a figura solene do pai, podemos citar apenas um, que os resume a todos: 1977, Andrés Trapiello recebe dos lábios de Leopoldo María: «a única coisa que não perdoo ao meu pai é que, podendo ter sido filho de Luis Cernuda, me condenasse a ser filho de um poeta medíocre, como foi Leopoldo Panero». É, no mínimo, peculiar esta súbita e

peremptória reivindicação do progenitor, e não sabemos a que se deve, se a um desejo de contrariar ou talvez por ter chegado o tempo em que aqueles rancores podem dar lugar a outro tipo de juízos. Contudo, tentamos, uma vez mais, obter a sua opinião sobre outros poetas novíssimos: – E o resto dos poetas que vêm aqui neste dias, que opinião te merecem? Mas Panero definitivamente não entra ou não quer entrar na questão. Com uma atitude a cavalo entre a ironia e a paranóia responde à pergunta dos poetas, mas esquecendo a concretização que lhe fizemos. – Gosto de Joseba Sarrabandía, é um escritor da ETA meu amigo a quem deram há pouco um prémio. Ou também é mentira? Especialista em encruzilhadas, Panero coloca pelo meio um compromisso moral. É ele que pergunta quando decide que deve ser assim, e diante do desconhecimento de quem fala e a sua picardia envenenada, é preferível não fazer ondas. Inocentemente, damos-lhe razão, em virtude do desafio: ...ou também é mentira?. – Não. – Não, repete, e talvez comovido por sentir-se apoiado diante das suas encruzilhadas, talvez sumido em sabe-se lá que pensamentos, ri comprazido. Um «não sei» é a resposta final que lhe damos. Mas parece que chegámos a um tema que Panero não está disposto a renunciar, e não tem pudor nenhum em manifestar as suas opiniões sobre algo tão espinhoso na actualidade espanhola como é a questão da ETA: – A ETA não existe, pois não? Agora resulta que os guardas... que a ETA é patogénica e que os guardas têm mania de perseguição. Supreendidos por esta declaração, não sabemos se o que acaba de dizer é uma sentença ou uma ironia em estado puro, e tomamos-lhe as palavras: – A

ETA não existe? Sem dúvida, Panero entrou no jogo de que mais gosta e controla os fios com grande destreza, pondo as coisas do avesso e desorientado tudo e todos: – A ETA não existe? – Foi isso que me pareceu ter percebido... – Houve pleno. – Pleno? – Sim. (Afirma peremptório. E ri-se com frialdade. Continua com fervor): A ETA é o único partido que luta pela democracia... (diz algo ininteligível pelo meio) ... não já a revolução permanente, como dizia Trotski, mas o golpe de estado permanente. Matemática pura. Bom, e nem sequer matemática, sou um escritor rodeado num país democrático, ou seja que para mim é um triunfo lamentável. É esse o x da equação. O tema é espinhoso. A seu semblante sério e nada condescendente. É curiosa esta súbita defesa da causa abertxale num homem que não teve peias em afirmar, em tempos, que os vascos eram um povo de bestas e bêbados (sic). Contradição Panero não admite réplica, e por isso tratamos de evitar seguir pelo caminho que trata de encetar. O famoso pássaro animado da Warner Bros. é outro dos chamativos motivos humorísticos de Leopoldo María, e vem-nos à cabeça como único modo de saltar para uma questão menos candente. – Consideraste o Tweety [confirmar] como símbolo de um ditador que defenestra o gato Silvestre em jeito de golpe de estado? – Não, não, não, a história é que me chamem assassino na televisão, até ao que me fez o Bush. – Mas tu não és um assassino, Leopoldo.

– (Faz uma citação ininteligível em francês) Sou o líder Robespierre! (faz um profundo silêncio, com o semblante de quem deseja continuar a falar) ...que era francês. – Mas tu és um poeta, não um assassino. – Sou um assassino. (Irónico) Tenho um livro que se chama Páginas de un asesino. E ponto final.

ESPANHA, A SEXUALIDADE, O MAL Se, como ficou demonstrado, a sua memória é à prova de bala para algumas coisas, paradoxalmente torna-se assaz precária de seguida. Tão depressa se esquece das caras como do que está a falar, ou finge que se esquece. Não é de menosprezar pensarmos que as lavagens ao cérebro terapêuticas, durante os internamentos, e o abuso de substâncias químicas que levou a cabo ao longo da vida, tenham algo que ver com esse facto. E, assim, vemo-nos obrigados a saltar de um tema para outro totalmente diferente. – Disseste que em Madrid, os únicos que não te insultavam pela rua eram as prostitutas e as crianças. Entrámos, irremediavlemente, no terreno do delírio e da paranóia, e a única maneira de sair parece ser procurando justificações biográficas. Mas Panero insiste: – Que dizes! Eram assassinos mas não me torturavam... era pela repressão sexual. – Achas que Espanha é um país sexualmente reprimido? – Pelos vistos dizem que o intuíam mas suponho que se o intuíam, obviamente não me teriam insultado, como insultaram a pintura, e menos ainda pela rua!

TODO O UNIVERSO EM CHAMAS POR CULPA DE ESPANHA David pede-lhe lume e mal Penero lho dá uma imediata associação ocorre na sua cabeça: – Muito bonito, o cosmos do céu (...) Como disse inicialmente, antiuniverso, se bem que agora esteja proibido dizer anti, pelos vistos, anti, anti-universo, é precisamente Deus para Isaac Asimov. O fogo e o tempo tiveram sempre na sua literatura lugares muito sugestivos: – E para Einstein, Deus é o tempo? – (Concordando) Muito lógico. – E para Peter Pan? – O hiper-cosmos, o céu das estrelas fixas como diziam os gnósticos, ou seja, não já todo o planeta mas todo o universo em chamas, por culpa de Espanha. – Espanha ameaça a ordem do universo? – Como dizia Heraclito, tudo voltará ao fogo original. – O que também diziam os pré-socráticos... – Bom, Heraclito e os pré-socráticos é o mesmo.

VIGIAR E CASTIGAR Leopoldo passou metade da vida, voluntária e involuntariamente, fechado em instituiçõe psiquiátricas, de maior ou menor envergadura, e a partir daí construiu um discurso sobre a loucura. Torna-se complicado, neste caso, discernir a sua vida da sua imagem literária:

– Dos diferentes símbolos que utilizas da loucura, qual te parece mais perfeito? O buraco, o... (Não reage. Repetimos-lhe a pergunta). – Não se pode falar em abstracto. Não, o que me interessava era falar sobre as gal manicomial. – Sobre o quê? – Gal manicomial, aquilo que chamo as gal manicomial. – O que é isso? – Acerca do mistério da morte de Panero in the life. Porque dão cabo deles nos manicómios, pá. – É uma instituição de morte, uma espécie de pena de morte, o manicómio? – Sim, caraças! Como já disse vezes sem conta no País Vasco, as prisões, os quartéis e os manicómios são lugares de privação da vida. Ainda continua o golpe. – És muito apreciado no País Vasco... – (De modo cálido) No País Vasco sou muito querido, salvaram-me a vida quando estava no manicómio de Mondragón, e pagaram-no demasiado caro. – Afirmaste que em Mondragón os enfermeiros te mijavam na cama... – Não, no Alonso de Vega. Tentaram matar-me em todos os manicómios de Espanha, salvo o Pedro Mata, com muito prazer. – E no que estás agora, tentaram matar-te? – Não se trata de que me tenham tentado matar, o caso é que, acredites ou não, me mataram de verdade. – Acredito. – Se a coisa vai de... (pensa) cançõezinhas... mi novio es un zombi, un muerto viviente.

Perante esta última alusão, rimo-nos, ou procuramos rir-nos em conjunto. Outro dos gags, pessoais e intransmissíveis. Aproveitamos este momento de hilaridade para tentar abordar o tema dos manicómios de uma perspectiva social, perguntando-lhe que opinião lhe merece a História da Loucura de Foucault. Diante da perplexidade que manifesta, tentamos reformular e matizar a pergunta: – Foucault mostra como a sociedade, desde o capitalismo, se esforçou por encerrar os indivíduos. Mas Panero não parece estar minimamente interessado, porque nem sequer se dá ao trabalho de pensar no assunto. Em vez disso, pergunta-nos pela nossa postura, porque estamos agachados. Há quase meia hora que estamos assim, e só agora parece que lhe importa. Com Leopoldo a entrevista começa uma e outra vez. É ele quem decide quando há que voltar a começar e deixar que a conversa, esse tecido de perguntas e respostas, pareça ser o que vem perpetuamente depois. E como se começássemos, ou já tivéssemos terminado, pergunta-nos se lhe vamos fazer fotos. As circunstâncias tinham-nos feito descurar alguns pormenores. Ao dizer que não, alegando ser estudantes e ter uma economia que não dá para isso, parece sentir-se de novo em conexão connosco e sorri. – Vocês são pobres?, pergunta-nos. – Oh pá, não, respondemos-lhe. Oferece-nos um irónico logicamente, e a entrevista volta a ser colocada no lugar em que tinha sido abandonada.

– (IN.) ...a questão [é que] me lavaram o cérebro e tentaram matar-me por ser revolucionário, isto é, por ser pobre.

«Uma sociedade de monstros. Temos de equiparar um lutador democrata com um monstro para fazer valer a democracia como monstruosa»

MONSTRO DA NATUREZA A memória de Panero, como já dissemos, é um paradoxo, diríamos que o poeta de Astorga tem um perplexo dom da recordação. Incapaz de seguir uma conversação, contudo, emana uma absorvente erudição e não pára de citar, e de se citar. Peculiar é a sua figura nas salas de comunicações, continuando e corrigindo as citações dos conferenciantes. Os poemas permanecem na sua memória como sulcos, sinais inequívocos. Perguntamos por tudo isto, pelo modo de construir os poemas e de os memorizar, supondo que apenas um compulsivo leitor de si próprio, tanto à hora de criar como depois desse momento, poderia desenvolver tal capacidade. Mas ele dá um passo mais além da nossa pergunta: – Porque sou tão inteligente, porque escrevo tão bons livros, porque sou tão sábio, como dizia Nietzche? Contudo, insistimos: – Escreves os teus poemas de uma assentada ou vais contruindo-os a pouco e pouco, às voltas sobre eles? – Não, se te digo sinceramente, se digo à hora de escrever... monstros, uma sociedade de monstros, temos que equiparar a um lutador democrata com um monstro para fazer a democracia como monstruosa. (Respira e enfatiza): Lope de Vega, Fénix de los Ingenios, Monstro da Natureza porque fazia uma comédia em cinco minutos. – E tu, fazes os teus poemas em cinco minutos? – Polia-a em cinco minutos. – (Pergunta incompreensível, tudo se contagia). – Mas fazes os teus poemas como monstros em cinco minutos? – Bom, três quartos de hora para ser exactos. – Três quartos de hora por poema? – Não, um livro.

– (Surpreendidos pela afirmação) Um livro? – E perfeitos.

NÃO SÓ PÍNDARO BRINDA COM ÁGUA Um grupo de jovens, dois rapazes e duas raparigas, para sermos também exactos, passam perto de nós e cumprimentam Panero ao longe. Panero saúda-os com o seu habitual «tudo bem, pá». Um dia antes, um crítico queixava-se: não sei o que se passa com vocês por causa do Panero, estão todos loucos. Não dava importância ao facto de a aceitação da sua poesia ser grande entre a juventude, porque a juventude também gosta do Sabina. Apesar das suas queixas, o facto é que os estudantes do congresso não deixaram de congregar-se à volta do poeta, dão-lhe cigarros, trazem-lhe livros para autografar, saúdam-no, convidam-no a uma coca-cola, e até o deixam (para terror dos organizadores, que conhecem o perigo de misturar álcool com o seu tratamento) sorver as suas cervejas. Talvez com Panero o tema desta atracção da juventude pela sua poesia possa ser abordada com mais delírio, misturado com outras obsessões, mas sempre, sem dúvida, limpamente. Por vezes seria bom recordar palavras de Panero, estas por exemplo: «Não utilizem a minha torpe biografia para julgar-me». – A tua poesia chega especialmente aos jovens, - dizemos-lhe -. – Só sei que adoro a juventude, - responde. – (Depois de um breve silêncio, muda de tema) Há um livro meu que se chama Páginas de un asesino. – Páginas de un asesino? – Sim, em Prodhufi-Libertarias, que penso que me estafaram. – Quem te estafou?

– A Prodhufi-Libertarias, que me queriam enganar. Os meus editores devem-me milhões. E o Anti-Cristo, isto é, o banco, porque a nação da pobreza hoje em dia é Jesus Cristo, a nível simbólico. (Faz um profundo silêncio e profere a seguinte sentença) Já sou rico. Já sou milionário, multimilionário. – Na ordem simbólica ou na ordem real? – Não, a nível real. – Multimilionário? Não acabas de nos dizer que os teus editores te devem milhões? «A dor desdobra-me. A psicanálise é a minha droga favorita» Mas Panero ignora a nossa pergunta para fazer uma nova petição: – Vê lá se me arranjas outra garrafinha de água. E o David faz nova viagem até ao bar. Entretanto, pergunta-se-lhe por David Nebreda, um fotógrafo que trabalha numa linha estética muito parecida à sua, com postulados plásticos que coincidem com algumas propostas ou artes poéticas de Panero. Mas Leopoldo responde a tudo com um prolongado silêncio. – No teu livro Poemas de la heroína, a heroína é um símbolo da loucura? – Bom, escrevi esse livro só para ganhar dinheiro. O que acontece é que está escrito com uma certa dignidade. Como dizia ontem (sic) nas Canárias, o dinheiro será um factor humilhante, mas o ruído também, e pelos vistos neste país ninguém tem nenhum. Essa garrafa de água, vem ou não vem? – Sim, sim, está a chegar, vêm duas... – Como se chama, David não é? (Chega o David com a água. Por precaução, desta vez trouxe duas garrafas).

«Desde 1987, ano em que me tentaram matar pela primeira vez, levo vinte anos a viver na merda do inferno, de manicómio em manicómio» – Sim, David. – Quero um Michelangelo!, como dizia Eliot. – Continuas a fazer psicanálise, Leopoldo? – (Falando consigo próprio) Sou republicano. (E para nós) Não, autoanaliso-me como Freud. – E chegaste a alguma conclusão? – Gostaria de prestar homenagem ao pormenor. A nossa maneira dos gestos. Analiso os olhares. Divirto-me, pá. A dor desdobra-me, como dizia... a psicanálise é a minha droga favorita. – Afirmaste que levas vinte anos a viver num inferno. – Sim. Desde 1977, ano em que me tentaram matar pela primeira vez, levo vinte anos a viver na merda do inferno, de manicómio em manicómio, de gal manicomiais em gal manicomiais. – Viveste também etapas em Marrocos e em Paris... – Queriam matar-me no paredão e ponto final. Sou a parede, mas não me vou colocar no paredão (ininteligível) porque sou um mundo.

TIGER, TIGER – Que te parece o modo como Borges utiliza o tigre? O tigre, o símbolo do tigre.

– O tigre é o símbolo do diabo. – E no famoso poema de Blake também? É neste momento que Panero, em vez de atender à nossa pergunta, nos brinda com um fragmento recitado do famoso poema de Blake, como lhe tínhamos pedido no início da entrevista. Ao transcrever o recitado, damo-nos conta de que Panero recita este poema com variante de sua própria lavra, uma per-versão muito pessoal, mais musical do que poética (estas palavras não são para ser lidas mas sim para ser ouvidas): – Tiger, tiger, burning bright in the forest of the sky what the nature with the night... – Consideras, então, o tigre como um símbolo do diabo? – Não (matiza), do diabo americano. – E o cu, é um símbolo de quê na tua obra? – (Pensando) Fase sádico-anal, como dizia Freud. Isto é, a agressividade, se quiseres. É um termo que me lembra a psiquiatria, que odeio até à morte, como compreenderás. – E que diferenças há, para ti, entre a psicanálise e a psiquiatria? – Ninguém entendia por que razão continuava a viver, não é? De qualquer forma, ainda que se não possa provar legalmente as ressurreições, o veneno sim. Se não uma morte biológica, morte clínica. Bom, morte clínica e morte biológica. Com a ajuda de Pacharrito... que é um tipo que passa três dias na cama, morto, se levanta e se põe a andar às voltas. Não é precisamente militar.

– A psiquiatria mata através de drogas que arruinam a mente, com venenos (intuimos que o famoso Pacharrito está, na cabeça de Panero, relacionado com tudo isto)? – Não tenho nada de parvo, mas é como se o fosse. A inteligência aborrece-me, como publicar artigos (...), no Egin não sei que histórias tinham comigo, ou histórias de artigos para que pudesses lê-los. Sabes ler? – Mais ou menos. – Um ano a colaborar no Egin. – No Egin? – Sim, vocês são os mais complicados do mundo (afirma, rindo-se).

DIZ-SE QUE VAIS À MISSA – Qual é a tua opinião do livro de Túa Blesa, Leopoldo María Panero, el último poeta? – É um livro de filosofia? Acidentalmente, porque tudo nesta entrevista parece ser um mero acidente, ouve-se a palavra Jesus. E Panero elabora um discurso pouco menos que inteligível. As palavras monge e Lúcifer («o dedo do monge no dedo de Lúcifer», parece dizer) vão-se repetindo como ilhas no meio de um mar inconexo de sucessões e distorsões lexicais. «Lúcifer que se extradita sozinho – sentencia – ou também é mentira?» e continua perguntando-nos se acreditamos que os padres são patogénicos. Tentamos sair da situação com uma exclamação que o possa dar por satisfeito e permita que a entrevista retome, ou melhor adquira, a ordem natural: Tamanha empresa! Mas acontece exactamente o contrário, Panero parece seduzido pelo novo tema de conversa e inverte os papéis de entrevistador e entrevistado.

– E não há padres operários? – Sim, mas cada vez há menos, Leopoldo. – É normal. Há muito catolicismo extremista, fanático. – Padre José María Erizondo in nineteen sixty nine. (Silêncio incómodo que Panero resolve com outro juízo radical, saindo da surpreendente linearidade em que, ilusoriamente, parecia que nos tínhamos instalado): Ezra Pound era poeta maldito, mas eu não. Tudo o que parece ser linear na natureza de cada acto incomoda aparentemente Panero. Rompe constantemente qualquer ordem saltando de um tema a outro, de uma resposta a uma sentença. Neste momento, aproveitamos a sua fluidez para deixá-lo falar o mais possível. Mal Panero se feche no seu mutismo, será difícil poder fazer avançar a entrevista a partir das suas monossílabas. É necessário lançar-lhe uma pergunta depois de outra, para que assim, nessa agitação, continue a falar e a entrevista continue. Uma declaração pontual do capelão do Sanatório Psiquiátrico Irmãos São João de Deus serve-nos para lançar-lhe a seguinte pergunta: – Leopoldo, dizem que vais à missa. – (Sorri) Fax da ideologia não sei o que é. – Não, fax não, vais à missa, não é? – Se não se pode pôr no anúncio, será necessário... sequestrar-me a mim próprio. Tenho que ir ao julgamento... – Ir a julgamento? – Sim, sim. – Mas como é que vais a julgamento se já estás morto? (Irado, diante a ideia de ter sido burlado) Não estou a falar de ir ao Juízo Final. A um julgamento normal e corrente, e que pode ser o julgamento de Nüremberg.

– Nüremberg? – (Ininteligível) Afrodite, pelo menos. (Depois de um silêncio) A base do copo contra o paredão. O verniz tão-pouco produz mais-valia e é do proletariado... (volta a calar-se e com tom afectuoso inverte novamente a ordem da entrevista): Mais-valia, sabes o que é? – Sim, claro. – (Respondendo à sua própria pergunta) ...O Capital de Marx. Ou tãopouco existe? – Sim, o capital continua a existir. – Não, o capital é o que ganhava a cama (?) burguesa, que é o pretexto e o desvio constantes. – Desculpa, Leopoldo, não te tínhamos entendido... – Teatro, sabes o que é? Pois no que não podemos cair é no pão, pão, queijo, queijo. – E que te parece a televisão? – O quê? – A televisão...

PANERO, NÃO MATES MAIS – A televisão? (Parece pensar a resposta, mas na verdade estava a pensar noutra coisa): Sou partidário de falar de mim e não trouxe nada decente. Panero, não mates mais. – Incomoda-te que as pessoas falem tanto de ti? – (Ininteligível) ...Não, o problema é ter sofrido a pena de morte e não me apetece minimamente. – Afirmaste que a pena de morte é o único crime a sangue frio. – Exacto. Uma execução sumária sem julgamento é tentativa de assassinato e ponto final.

– Onde gostarias de estar, realmente, neste momento? (em que sanatório, ou em que cidade, mas Panero brinca e sorri respondendo à letra) – Na cama, a sonhar. – Não, mas, gostarias de viver mais afastado da sociedade, ou não dependendo de um dos seus organismos? – Vou ver se me podem internar legalmente no psiquiátrico do hospital nas Canárias, e ponto final. Senão, no hotel, tenho dinheiro e ponto final.

«O final da poesia está em Pound e o final do romance em Joyce, ou era o que pensávamos, e que só faltava por entender um livro, que era o do Apocalipse, isto é, a revolução mais estranha do mundo» – Lês... (interrompe) – Aviso-te que em voz baixa. – Que livros costumas ler agora? Que tipo de literatura? – Nada. Hoje li umas páginas de Eduardo Haro Ibars, de que não gosto nada como poeta. – Não gostas porquê? – Fui amante dele, (explicando) porque sou bissexual (bebe meia garrafa de água de uma só vez). – E há algum poeta actual que te seduza, a sua obra, a sua poesia...? – Colinas, que actua hoje. Tenho muita vontade de o ver.

Antonio Colinas, que foi convidado para vir ao congresso, não assistiu por se encontrar na China. Explicamos ao Panero. E como resposta encadeia, temeroso da burla, duas perguntas: – Que horas são? Mas, na China? Que foi lá fazer? – Foi dar umas conferências, convidado por várias universidades. Antonio Colinas disse de ti que sempre admirou a tua obra e a tua pessoa. Parece-te um elogio? – (Com o olhar perdido e ignorando a pergunta): Antonio Colinas é um grande poeta. – E que te parece o seu último livro, Tiempo y abismo, chegaste a lê-lo? – Não, não li, mas gostaria de ler. – Que te parece a trajectória de Colinas como poeta? – Um poeta mais alto? – O poeta que mais admiras? – O meu poeta favorito... (pensativo) Antonio Colinas. – Mais que Pound? – Mais que Pound. Não, igual a Pound. Também gosto de Pound. – E, contudo, disseste que Pound tinha acabado com a poesia. – Sim, o final da poesia está em Pound, e o final do romance está em Joyce, ou pelo menos é o que acreditávamos, e que só ficava por entender um livro, o livro do Apocalipse, isto é, a revolução mais estranha do mundo. – Já foi afirmado que Narciso en el acorde último de las flautas é o teu melhor livro, estás de acordo? – Não, quando (ininteligível) escrevi (?) três livros numa semana, um Dioscuros, outro Flores de la (...) Nuestra Señora que perdi numa livraria de artistas em Ayuso e outro Páginas de poesía política, que publiquei em Visor. – Que sentiste com a recente morte de Cela?

– Quem, Cela? – Sim, parece-te que estava sobrevalorizado? – Cela estava muito sobrevalorizado, e por outro lado não o matei eu. «Posso terminar eu? O final dos poemas e dos textos é do que mais gosto» Neste momento produz-se um silêncio demasiado longo. Impõe-se o fim. Nada resta para improvisar. Não houve nenhuma constante durante a conversa, foi tudo um fluxo monocromático que foi produzindo formas de que ainda não somos muito conscientes. Por fim, dizemos a Panero que podemos dar por concluída a entrevista, mas uma vez mais enganamo-nos, e oferece-nos o que pode muito bem ser um poema inédito: – Posso terminar eu? – Sim, claro. – O final dos poemas e dos textos é do que mais gosto. (Silêncio) Dizia... (con solenidade) comuniquei telepaticamente com o Sol e Urano, como o do falcão boémia comunicava telepaticamente com o sol e não estava louco, e disse-lhe que estava completamente farto de me peidar, fracassados de ser sem mundo e disse: Espanha uma merda e eureka!, como dizendo. – Obrigado por tudo, Leopoldo.

A entrevista descarrilou. As costas ressentem-se. Panero levanta-se de um salto, apaga o cigarro, acende outro e bebe a água que sobrava. Ao pôr-se em pé caiu-lhe um botão do casaco. Apanhamo-lo e damos-lho: – Leopoldo, isto é teu. – Não (nega peremptório, recusando o botão). É do Peter Pan.

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