Dentro e fora da história: a distinção teórica entre sociedades quentes e frias no pensamento de Claude Lévi-Strauss

July 15, 2017 | Autor: Francine Iegelski | Categoria: Theory of History, Claude Lévi-Strauss, Historia Intelectual, Teoria e metodologia da história
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Francine Iegelski. Dentro e fora da história. A distinção teórica entre sociedades quentes e sociedades frias no pensamento de Claude Lévi-Strauss. (FFLCH-USP)

Entre os historiadores, de uma maneira geral, há um consenso velado a propósito dos estudos antropológicos de Claude Lévi-Strauss. O estruturalista seria, se o circunscrevermos nos limites desse consenso, o defensor de uma ciência, a antropologia, que faz a abstração do tempo para chegar à compreensão das sociedades ditas primitivas, pois Lévi-Strauss ficou famoso por privilegiar o que muitos chamaram de corte sincrônico, feito em detrimento da diacronia. 1 Mas esse argumento não é ainda suficiente para proscrevê-lo dos assuntos caros aos historiadores, já que foi Braudel, em seu artigo A longa duração2, quem considerou que o pensamento estruturalista poderia servir muito bem para pensar as sociedades primitivas, aquelas em que o tempo é quase imóvel, e, por isso, o objeto da antropologia, mas não as sociedades complexas, em que o tempo é constituído de múltiplas e complexas durações e, por isso, assunto dos historiadores. O que mais parece incomodar àqueles que se negam a pensar as proposições teóricas de Claude Lévi-Strauss para a história da cultura é a sua audácia em estender as hipóteses formuladas para entender as sociedades primitivas às sociedades contemporâneas, como uma maneira original de explicar os fenômenos culturais das duas. O livro mais emblemático de Lévi-Strauss nesse sentido é justamente O pensamento selvagem, pois, nele, o autor empreende a análise da maneira pela qual o pensamento do homem primitivo opera em comparação ao pensamento do homem civilizado. É justamente nesse “osso”, para usarmos o jargão sartreano, que delimitamos a preocupação central de nosso artigo. Nossa pretensão é a de entender a distinção teórica formulada por Lévi-Strauss entre sociedades quentes, as que estão dentro da história, e sociedades frias, que, por sua vez, estão fora da história. Mas isso ainda não seria suficiente para integrá-lo numa discussão de historiadores, alguém poderia nos objetar. Por isso, com a exposição dos problemas por nós proposta, pretendemos mostrar que Lévi-Strauss tinha preocupações teóricas e metodológicas a respeito de sua disciplina e sempre as pensou em relação aos problemas teóricos e metodológicos da história. Eis que assim aparece algo talvez útil aos historiadores, que são os problemas relacionados à teoria e à metodologia da história. 1

François Dosse conta a aventura estruturalista afirmando a visão de que, em Lévi-Strauss, o corte sincrônico simplesmente faz desaparecer o estudo da diacronia. Não podemos concordar cabalmente com a análise de Dosse, visto que Lévi-Strauss não entende sincronia e diacronia como pares opostos, mas sim complementares. A esse propósito ver Dosse, F. História do estruturalismo. Volume I: o campo do signo, 1945-1966. trad. Álvaro Cabral. São Paulo: Ensaio; Campinas, São Paulo: Editora da Unicamp, 1993 e Lévi-Strauss, C. O campo da antropologia. Trad. Sonia Wolosker. In: Lévi-Strauss, C. Antropologia estrutural dois. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1993. 2 Braudel, F. História e ciências sociais. A longa duração. In: Braudel, F. Escritos sobre a história. trad. J. Guinsburg e T.C.S da Mota. São Paulo: Perspectiva, 1969. Texto integrante dos Anais do XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. ANPUH/SP-USP. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. Cd-Rom.

Nossa intenção com esse artigo é fazer uma exposição dos argumentos de Claude Lévi-Strauss em O pensamento selvagem. Esperamos, dessa forma, poder mostrar aos historiadores que o pensamento de Lévi-Strauss sobre o homem e a cultura traz à tona questões que merecem ser pensadas ainda hoje, evidenciando, assim, que as idéias também teimam em envelhecer. A distinção teórica entre sociedades quentes (“civilizadas”) e sociedades frias (“primitivas”) não corresponde a categorias reais, mas a um objetivo heurístico de Lévi-Strauss, qual seja, o de classificar as sociedades da maneira pela qual elas representam o seu grau de historicidade. Lévi-Strauss acredita que as sociedades estudadas pelos historiadores e pelos etnólogos diferem umas das outras menos por características objetivas do que pela imagem subjetiva que fazem de si próprias. 3 Posto isso, devemos ter em mente que o grande desafio dos estudos de Lévi-Strauss é o de reabsorver humanidades particulares em uma humanidade geral, “para reintegrar a cultura na natureza e, finalmente, a vida no conjunto de suas condições físico-químicas”.

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Assim, nessa

busca em compreender como o pensamento humano funciona, Lévi-Strauss concebeu a distinção sociedades quentes e sociedades frias, já que todos os homens, sejam os primitivos ou os civilizados, têm uma maneira de elaborar sua compreensão do tempo, seja para negá-lo ou para interiorizá-lo e fazer dele o motor de seu desenvolvimento. Levando em consideração nossos argumentos anteriores, seria ingenuidade pensar que Lévi-Strauss desconhece o fato de que toda sociedade está na história e que, por isso, toda sociedade muda. Lévi-Strauss nos diria: ora, isso é a própria evidência. Estar na história é uma condição comum, mas existem maneiras diferentes de reagir a essa condição comum. A projeção que cada sociedade realiza de si mesma, acredita Lévi-Strauss, é parte essencial de sua realidade e pode nos levar à compreensão da maneira pela qual o entendimento humano opera. É aqui que Lévi-Strauss acredita poder restabelecer a vida no conjunto de suas condições físicoquímicas, pois o funcionamento da mente humana, para ele, deverá ser respondido especialmente em nível biológico, pressupondo, assim, essas condições físico-químicas. O objetivo das sociedades frias ao ignorar a sua condição de estarem inseridas no transcurso do tempo é o de tornar permanentes, o quanto for possível, os estados que consideram “primeiros” em seu desenvolvimento. Dessa maneira, graças às instituições que se dão – as regras de casamento, as relações de parentesco, os sistemas classificatórios totêmicos e

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Lévi-Strauss, C. História e Etnologia (1983). In: Textos didáticos. trad. Wanda Caldeira Brant. Campinas: IFCH/Unicamp, 2004, n.24, p.9-10. [Lévi-Strauss, Histoire et Ethnologie, Annales E.S.C, v.38, n.6, 1983, p.1.218]. 4 Lévi-Strauss, C. O pensamento selvagem. trad. Tânia Pellegrini. Campinas, São Paulo: Papirus, 1997, p.275. [Lévi-Strauss, C. La pensée sauvage. Paris: Plon, 1962, p.327]. Texto integrante dos Anais do XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. ANPUH/SP-USP. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. Cd-Rom.

os ritos – as sociedades primitivas procuram anular o efeito que os fatores históricos poderiam ocasionar sobre seu equilíbrio e sobre sua continuidade. As sociedades primitivas não negam exatamente o devir histórico, mas admitem-no como uma forma sem conteúdo. Lévi-Strauss explorou essa idéia mostrando que os indígenas constituem e reafirmam, através de relatos míticos, uma fidelidade obstinada a um passado concebido como modelo intemporal. Esse modelo exprime uma prática adotada consciente ou inconscientemente por uma justificação repetida de cada regra, de cada técnica e de cada costume, por meio de um argumento: aprendemos com nossos antepassados. 5 É como se, para o homem primitivo, o passado se refletisse nas imagens que ele vê do presente, embora essas imagens não sejam rigorosamente parecidas umas com as outras. O homem primitivo concebe um antes e um depois, mas sua única significação é a de se refletirem um no outro. Estaríamos propensos a dizer aqui que Lévi-Strauss simplifica de maneira flagrante o pensamento do indígena sobre suas atividades, sobre seus costumes ou sobre suas relações com os antepassados, ao passo que Lévi-Strauss nos responderia que esse nosso estranhamento com sua caracterização vêm justamente de nossa dificuldade em entender uma atitude que contradiz de maneira contundente a necessidade de mudança de nossa civilização. O selvagem incorpora o tempo em sua prática e em seu pensamento e faz isso para garantir a perpetuação do quadro de suas atividades individuais e coletivas. No pensamento selvagem, a diacronia serve justamente para integrar-se e colaborar com a sincronia, sem o risco de que entre elas surjam novos conflitos. É por isso que nas sociedades indígenas os ritos aparecem como uma expressão cultural que, segundo Lévi-Strauss, serve para equilibrar as forças ou os acontecimentos sociais que poderiam causar o desequilíbrio do grupo, a exemplo da morte:

Ora, os ritos de adoção, indispensáveis para convencer a alma do morto a partir definitivamente para o além, onde assumirá seu papel de espírito protetor, são normalmente acompanhados de competições esportivas, de jogos de destreza ou de azar, entre dois campos constituídos de acordo com uma divisão ad hoc em duas metades: tokan de um lado, kicko de outro; e afirmamse expressamente, repetidas vezes, o jogo opõe os vivos e os mortos, como se antes de desembaraçarem definitivamente dele os vivos oferecessem ao defunto o consolo de sua última partida. 6

Vislumbremos, com essa citação, em quais conclusões Lévi-Strauss quer chegar. Nos jogos rituais de adoção (que acontecem quando um membro do grupo morre), feitos pelos índios algonkin e fox, da América do Norte, jogam simbolicamente os mortos contra os vivos, e sabe5 6

Idem, p.262. [Idem, p.313]. Idem, p.47. [Idem, p.45].

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se, por antecipação, quem será o vencedor. O vencedor é o time que representa os mortos. E por quê? Para ganhar um jogo é preciso “matar” um adversário simbolicamente. Dando o triunfo à equipe dos mortos, os indígenas acreditam construir a ilusão, para o morto, de que ele é o verdadeiro vivo. Assim, na correlação de forças do jogo biológico e social, uma situação que causa uma assimetria no grupo, a morte de alguém, é superada pelo ritual que deixa os mortos ganharem para que estes possam deixar os vivos em paz. Assim, os mortos reintegram-se à vida da sua antiga comunidade na forma de um antepassado, que receberá regularmente rendas, tabaco e comidas. Percebe-se, assim, que o ritual, para Lévi-Strauss, tem um caráter conjuntivo que auxilia os indígenas a integrar a diacronia na sincronia. Ele é conjuntivo porque institui uma união, ou relação orgânica entre dois grupos dissociados no início, a exemplo dos mortos e dos vivos, que, depois dos jogos rituais de adoção, passam a estabelecer uma relação simbólica de equilíbrio. Vê-se assim como a diacronia – representada aqui pela passagem do tempo que faz com que um homem nasça, cresça e morra dentro de um grupo – passa a ser integrada à sincronia através dos rituais desenvolvidos pelos povos primitivos, pois esse homem que morreu de fato volta para seu antigo lugar, como se estivesse vivo, sob a forma de um antepassado. Já nas sociedades quentes, Lévi-Strauss considera que o tempo é incorporado de bom grado e, pela consciência que tomam disso, essas sociedades ampliam suas conseqüências em grandes proporções. Lévi-Strauss lembra que Marx e Freud nos ensinaram que o homem só tem sentido com a condição de se colocar sob o ponto de vista do sentido. Dessa maneira, ele identifica, nas sociedades civilizadas, uma preocupação em estabelecer a continuidade da passagem do tempo, que nos faria compreender as mudanças do homem e das sociedades, com o fim de alcançar um sentido para estes dois últimos. Entretanto, para Lévi-Strauss, o sentido estabelecido na relação entre continuidade e mudança não é, como muitos pensadores modernos supõem, a exemplo de Sartre, um dado da realidade. Antes, o sentido dessa relação inscreve-se na maneira pela qual as sociedades civilizadas conceberam e incorporaram uma noção de tempo e de conhecimento histórico. Lévi-Strauss considera que, nas sociedades quentes, a preocupação com o conhecimento histórico se revela de maneira “intersticial e uniente, já que procura superar uma descontinuidade original ligando objetos entre si”.

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Aparece-nos, aqui, um ponto

importante para entendermos a compreensão que Lévi-Strauss tem do conhecimento histórico, por isso delimitaremos o que significa, para ele, a descontinuidade original da história. Lévi-Strauss considera ilusório e contraditório acreditar que o conhecimento histórico concebe o devir histórico como um desenrolar contínuo. Isso, sem dúvidas, causa arrepios aos

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Idem, p.291. [Idem, p.349].

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ouvidos dos historiadores. Investiguemos as causas e os objetivos dessa afirmação forte e desaforada de Lévi-Strauss, para, depois, se for o caso, recoloca-lo em seu lugar de pensador mal-quisto na história. Toda a ciência, segundo Lévi-Strauss, precisa se utilizar de um código para analisar seu objeto, mesmo se esse objeto for de uma realidade contínua, como é caso do objeto reivindicado pelo historiador. Assim, ele considera que a cronologia é o código do historiador, no sentido de organizar os conteúdos do conhecimento histórico, já que não há história sem datas. LéviStrauss sabia da celeuma que essa sua colocação poderia causar entre os historiadores, mesmo assim acrescenta que, para aprender história, o iniciante primeiro procura reduzi-la a um corpo descarnado, formado pelas datas, que é o código distintivo do conhecimento histórico:

Não sem razão, reagiu-se contra esse método enfadonho, muitas vezes, porém, caindo no excesso inverso. Se as datas não são toda a história nem o mais interessante na história, elas são aquilo na falta do que a própria história desvaneceria, pois toda sua originalidade e especificidade estão na apreensão da relação do antes e do depois, que estaria condenada a se dissolver se seus termos não pudessem ser pelo menos virtualmente datados. 8

Retomemos o argumento a partir da citação acima: Lévi-Strauss não desconsidera que a originalidade e a especificidade da história como ciência estejam na apreensão do antes e do depois daquilo que ela busca compreender, ou seja, de seu objeto. Ele acrescenta ainda que, sem as datas, esse projeto se torna impossível. Entretanto, Lévi-Strauss não concorda com a idéia de que o conhecimento histórico dá sentido à passagem do tempo pelo código cronológico como se as datas formassem uma série contínua. Para Lévi-Strauss, no lugar de uma série contínua, a cronologia desenvolvida pelo conhecimento histórico constitui-se na formulação de classes de datas: Não é, então, apenas ilusório mas contraditório conceber o devir histórico como um desenrolar contínuo, começando por uma pré-história codificada em dezenas ou centenas de milênios, prosseguindo na escala dos milênios a partir do 4.º ou do 3.º e continuando, em seguida, sob a forma de uma história secular entremeada, ao bel-prazer de cada autor, de pedaços de história anual dentro do século, ou diária dentro do ano, ou mesmo horária, dentro de um dia. Todas essas datas não formam uma série, elas provêm de espécies diferentes. 9

O autor exemplifica seu argumento quando diz que a codificação que utilizamos em préhistória não é preliminar à que nos serve para a história moderna e contemporânea: “cada código remete a um sistema de significações que é, pelo menos teoricamente, aplicável à totalidade

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Idem, p.287. [Idem, p.342]. Idem, p.288. [Idem, p.344].

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virtual da história humana”.

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Se a codificação utilizada para compreender um período da

história humana não é a mesma utilizada para entender outro período, Lévi-Strauss conclui logicamente que não é possível, assim, entender as organizações das datas promovidas pelo conhecimento histórico como sendo uma organização serial. Vem daí sua consideração anterior que propusemos averiguar, quando disse que a história, nesse caso o conhecimento que se formulou sobre a história em nossa civilização, parte de uma descontinuidade original:

Se o código geral não se resume em datas que se possam ordenar em série linear mas em classes de datas em que cada uma fornece um sistema de referência autônoma, o caráter descontínuo e classificatório do conhecimento histórico aparece claramente.11

Abrindo essa discussão, Lévi-Strauss pretende demonstrar, antes de tudo, que nossa idéia da história e da passagem do tempo também deve ser problematizada, tal como fazemos quando nos vemos diante das sociedades selvagens e encaramos com certo estranhamento o fato de elas não necessitarem organizar o tempo como nós o organizamos. A idéia da mudança lhes incomoda, por isso se esforçam por integrá-la em uma estrutura para fora do tempo. A idéia da mudança, para nós, move a busca por um sentido, mesmo que saibamos ser esse um sentido não plenamente alcançável. Nosso esforço é, justamente, para Lévi-Strauss, o de tentar suprimir essa descontinuidade da qual parte nosso conhecimento sobre a história, ligando períodos e datas dispostos em classes como se elas estivessem em séries que, por princípio, não estão logicamente ligadas. Esclarecendo os sistemas de diferenças em que residem as formulações das sociedades primitivas e civilizadas sobre as representações de seus respectivos graus de historicidade, não podemos perder de vista que Lévi-Strauss pretende chegar aos elementos que nos informam melhor sobre o que há em comum entre essas sociedades. Nesse caso em particular, ou seja, o das representações do grau de historicidade de cada sociedade, Lévi-Strauss identifica em todas elas um gosto pela diacronia. Nas sociedades frias, esse gosto se desenrola nas tramas de uma sincronia que lhe assegura o equilíbrio. Já nas sociedades quentes, o gosto pelo diacrônico está relacionado ao nosso gosto em contemplar a passagem do tempo e dar sentido para as coisas do presente, como sendo elas um jogo entre continuação e transformações verificáveis no passado. O gosto pela diacronia entre nós ajuda a suprimir as descontinuidades que não gostamos de ver na elaboração de nosso conhecimento sobre a história. Vem daí, segundo Lévi-Strauss, a fascinação dos historiadores pelos documentos. Ele nos mostra, entretanto, que os povos

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Idem, p.288. [Idem, p.344]. Idem, ibidem. [Idem, p.345].

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primitivos também cultivavam o que, para eles, podemos considerar como o equivalente aos documentos das sociedades modernas, os churinga. Entre os povos aranda, da Austrália central, o papel dos churinga, segundo Lévi-Strauss, é o de compensar o empobrecimento das dimensões diacrônicas entre seus grupos:

Sabe-se que os churinga são objetos de pedra ou de madeira, de forma mais ou menos oval com as extremidades pontudas ou arredondadas, muitas vezes gravadas com sinais simbólicos; às vezes, também, simples pedaços de madeira ou seixos não-trabalhados. Qualquer que seja sua aparência, cada churinga representa o corpo físico de um ancestral determinado e é solenemente atribuído, geração após geração, ao vivo que se acredita ser esse ancestral reencarnado. Os churinga são empilhados e escondidos em abrigos naturais, longe dos caminhos freqüentados. Periodicamente são retirados para inspeção e manuseio e, em cada uma dessas ocasiões, eles são polidos, engraxados e coloridos, não sem que antes lhes sejam dirigidas preces e encantamentos. 12

Nessas sociedades, os churinga têm um caráter sagrado, pois eles representam simbolicamente os ancestrais totêmicos dos indivíduos que estão vivos. Entendamos bem: LéviStrauss não vê o churinga, nem tampouco ele acredita que os aranda vejam-no assim, como o corpo do ancestral. Para ele, o churinga traz “a prova tangível de que o ancestral e seu descendente vivo são uma única carne”, 13 já que os aranda entendem seus ancestrais totêmicos não como heróis individualizados – como o fazem os arabanna e os warramunga, outros povos australianos – mas como uma multidão indistinta. Assim, é como se, antes de nascer, cada indivíduo aranda sorteasse o ancestral anônimo de que seria a reencarnação. Os churinga representam, para os aranda, o corpo simbólico desse ancestral totêmico, e, apesar de serem simbólicos, ou justamente por isso, os churinga têm um caráter probatório para esses povos. Os churinga são, para os povos aranda, o passado materialmente presente. Lévi-Strauss, depois de descrever o papel e o caráter sagrado dos churinga, compara-os, analogamente, aos documentos que tanto encantam os historiadores e os indivíduos em geral de nossa sociedade. Ora, diz Lévi-Strauss, nós não cuidamos de nossos arquivos como os povos aranda cuidam de seus churinga? Não os armazenamos em lugares seguros, não cuidamos de sua conservação e, quando os seguramos em nossas mãos, uma espécie de tremor e respeito não nos acomete os sentidos? Os documentos, os arquivos, não representam também para nós algo palpável de nosso passado, páginas rasgadas e amarelecidas, “fatos e gestos de nossos ancestrais, história de nossas moradas desde sua construção ou sua primeira cessão”

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? Caso

acontecesse um cataclisma, e perdêssemos todos os nossos documentos originais, todos os 12

Idem, p.264. [Idem, p.316]. Idem, p.268. [Idem, p.318]. 14 Idem, p.264. [Idem, ibidem]. 13

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nossos arquivos, não sofreríamos uma dor terrível, mesmo se o conteúdo desses documentos já estivesse salvo e os acontecimentos a que eles se referem não dependessem mais deles para a sua comprovação? Lévi-Strauss pondera ainda que, por si mesmos, os documentos “são desprovidos de um sentido, que se origina inteiramente de suas repercussões históricas e dos comentários que os explicam, ligando-os a outros fatos” 15. O que o autor quer dizer com essa frase provocativa é: os documentos, em si mesmos, são apenas papéis, como são apenas pedaços de pau ou pedra os churinga sagrados dos povos aranda. Entretanto, nesses dois casos, existe o homem e existe a cultura, que dota papéis, pedras e paus de complexos significados. O que nos permite por em relação, então, pelo argumento de Lévi-Strauss, os churinga dos aranda e os documentos das sociedades civilizadas é o gosto pelo diacrônico, o gosto pelo contato com a factualidade, mesmo que saibamos que essa factualidade possa ser questionável. Ela pode até não ser a referência direta, o dado empírico direto – como o churinga não é o corpo do antepassado –, daquilo que estamos procurando:

E nada se parece mais, em nossa civilização, com as peregrinações que os iniciados australianos fazem periodicamente aos lugares sagrados, conduzidos por seus sábios, que nossas visitas-conferências às casas de Goethe ou de Victor Hugo, cujos móveis nos inspiram emoções tão vivas quanto arbitrárias. Aliás, como para os churinga, o essencial não é que a cama de Van Gogh seja exatamente aquela onde se afirma que ele dormiu; tudo o que o visitante 16 espera é que lha possam mostrar.

O sentido das visitas dos povos primitivos aos lugares considerados por eles sagrados, tem, para Lévi-Strauss, o mesmo sentido daquele que envolve o homem civilizado quando visita importantes museus ou sofisticados arquivos de sua sociedade, qual seja, ao olhar para objetos ou documentos antigos, que encarnam o passado, temos a sensação de ultrapassar “a contradição de um passado terminado e de um presente onde ele sobrevive”. 17 Em nossa exposição, procuramos demonstrar como Lévi-Strauss trabalhou, em O pensamento selvagem, com aquilo que ele chama de sistemas de diferenças e de propriedades comuns nas sociedades frias e nas sociedades quentes. Esses sistemas de diferenças e de propriedades comuns nos dão as pistas para compreender melhor o que Lévi-Strauss entende por pensamento selvagem e pensamento civilizado. Queremos chamar a atenção do leitor para o fato de que foi percorrendo o pensamento de Lévi-Strauss justamente sobre as questões caras aos historiadores, entre as quais, a cronologia, a relação entre continuidade e mudança e os 15

Idem, p.268. [Idem, p.320]. Idem, p.271. [Idem, p.323]. 17 Idem, p.269. [Idem, p.321]. 16

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documentos, que chegamos até esse momento da argumentação. Esse caminho certamente não é nenhuma coincidência, e o apontamos explicitamente para que o leitor possa identificar, a partir de nossa exposição, como Lévi-Strauss pensou os problemas que chamaríamos próprios da antropologia, colocando-os em relação aos problemas da história. Lévi-Strauss quer saber, em última instância, como a mente humana funciona. Esse seu objetivo intelectual é tributário de uma tradição filosófica moderna que remonta ao século XVII e que se desdobra até hoje nas especulações sobre o entendimento humano, seja na filosofia, na neurociência ou na biologia. Podemos situar as preocupações de Lévi-Strauss sobre as funções mentais dos homens na indagação kantiana de como é produzido o entendimento, já que foi o próprio Lévi-Strauss, na abertura de O cru e o cozido, quem disse que Paul Ricoeur fez uma formulação certeira sobre seu pensamento, quando o classificou de “um kantismo sem sujeito transcendental”, 18 pois, para Lévi-Strauss, todas as perguntas que se refiram ao homem devem encontrar respostas no próprio homem e não alhures. Acrescentamos à consideração de Ricoeur a colocação de Aragão, quando considera, apoiado em Rossi, que Lévi-Strauss é tributário do pensamento de Kant menos pelos conteúdos particulares da doutrina desse último, mas antes pelo seu modo de colocar o problema do conhecimento. Apontamos, então, a relação de Lévi-Strauss com Kant especialmente na formulação desse último em torno das relações entre o conhecimento e o seu objeto, estabelecida no livro Crítica da razão pura19, na proposição de que a faculdade de conhecer não é regulada pelo objeto, mas sim que o objeto é regulado pela faculdade de conhecer. Por isso entender a cultura e a arquitetura lógica da história, para Lévi-Strauss, significa também entender como o cérebro humano funciona, já que é ele quem organiza primeiro essa arquitetura. Sendo assim, Lévi-Strauss acredita que existam caracteres universais do pensamento humano que podem nos explicar certas escolhas ou procedimentos culturais das sociedades e que, como uma via de mão dupla, os procedimentos culturais e as projeções subjetivas que cada sociedade faz de si podem nos guiar rumo ao desvendamento dessas formas mentais humanas. A idéia que Lévi-Strauss tem de pensamento selvagem e pensamento civilizado é constituída sob esse ponto de vista. O princípio fundamental que move o pensamento científico, para Lévi-Strauss, pode ser encontrado tanto no pensamento do homem primitivo quanto no do homem civilizado. Esse

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Ricoeur, apud. Lévi-Strauss, C. O cru e o cozido. (Mitológicas v.1). trad. Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Cosac & Naify, p.30. [Lévi-Strauss, C. Le cru et le cuit. Paris: Plon, 1962, p.19]. 19 Kant, I. Crítica da razão pura. Trad. Manuela Pinto dos Santos e Artur Fradique Morujão. Lisboa, Edições 70, 1989. Texto integrante dos Anais do XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. ANPUH/SP-USP. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. Cd-Rom.

princípio fundamental corresponde à necessidade de ordenação do pensamento diante do mundo:

Os cientistas suportam a dúvida e o fracasso, porque não podem fazer de outra maneira. Mas a desordem é a única coisa que não podem nem devem tolerar. Todo o objetivo da ciência pura é conduzir a seu ponto mais alto e mais consciente a redução do modo caótico de percepção, que começou num plano inferior e provavelmente inconsciente, com a própria origem da vida. 20

Para Lévi-Strauss, o que move a curiosidade do homem primitivo pelas coisas – expressa na necessidade de classificação das plantas, animais e elementos do mundo sensível – é justamente a mesma curiosidade que move o pensamento do homem civilizado e essa curiosidade se refere a um princípio fundamental da faculdade do entendimento humano, isto é, o princípio de ordenação. Dessa maneira, aquilo que corresponde ao pensamento científico do homem primitivo, o pensamento mágico, é uma enorme variação sobre o tema da causalidade:

Mas não se poderia ir ainda mais longe e considerar o rigor e a precisão que o pensamento mágico e as práticas rituais testemunham como tradutores de uma apreensão inconsciente da verdade do determinismo enquanto modo de existência de fenômenos científicos, de maneira que o determinismo seria globalmente suposto e simulado, antes de ser conhecido e respeitado? 21

Sim, Lévi-Strauss leva essa proposição até o final e acrescenta que o pensamento mágico difere da ciência por uma exigência de determinismo mais imperiosa e mais intransigente. Assim sendo, as operações mentais das sociedades primitivas e civilizadas diferem menos na natureza que na função dos fenômenos aos quais são aplicadas. Arriscaríamos dizer que, para Lévi-Strauss, o pensamento selvagem aplica-se aos fenômenos sensíveis espaciais, quando organiza e opera sua especulação do mundo sensível em termos de sensível, ou seja, quando ordena a natureza pelas propriedades sensíveis dos reinos vegetal e animal. Para Lévi-Strauss, o pensamento selvagem é intemporal e quer apreender o mundo como uma totalização sincrônica e diacrônica ao mesmo tempo. Nesse sentido, o pensamento selvagem pode ser definido como um pensamento analógico porque “ele constrói edifícios mentais que lhe facilitam a inteligência do mundo na medida em que se lhe assemelham”,

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ou, dito de outro modo, no pensamento selvagem, as coisas são agrupadas de

acordo com suas propriedades sensíveis. 23 20

Simpson, G.G, apud Lévi-Strauss, 1997, p.24. [Simpson, G.G apud Lévi-Strauss, 1962, p.16]. Lévi-Strauss, 1997, p.26, grifos do autor. [Lévi-Strauss, 1962, p.19]. 22 Idem, p.291. [Idem, p.348]. 23 Citamos aqui um belo exemplo que Lévi-Strauss retira de uma fórmula terapêutica dos indígenas para esclarecer ao leitor o que significa agrupar as coisas de acordo com suas propriedades sensíveis e de que maneira podemos 21

Texto integrante dos Anais do XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. ANPUH/SP-USP. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. Cd-Rom.

O pensamento civilizado, ou, para Lévi-Strauss, a razão analítica, está ocupado em reduzir as separações e dissolver as diferenças que o mundo se lhe apresenta, incorporando o tempo e fazendo dele o motor de seu desenvolvimento. Essa preocupação geral em estabelecer a continuidade entre as coisas pode ser percebida num aspecto particular da razão analítica, o do conhecimento histórico concebido por estas sociedades. Assim, a preocupação de continuidade do conhecimento histórico “aparece de fato como uma manifestação na ordem temporal de um conhecimento não mais descontínuo e analógico [o do homem primitivo] mas intersticial e uniente”.

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Lévi-Strauss concorda assim com a caracterização de Pierre Auger a respeito do

pensamento moderno, em que, nesse último, “contínuo, variabilidade, relatividade, determinismo seguem juntos”. 25 Vemos que ambos os pensamentos, tanto o do homem primitivo quanto o do civilizado, estão empenhados em induzir um princípio de ordem no universo. O que os difere essencialmente é a maneira pela qual eles efetuam essa operação, que depende também das condições objetivas observadas em suas sociedades. Mais uma vez, não parece ser aqui coincidência o fato de Lévi-Strauss ter pensado em exemplificar a maneira pela qual podemos entender o pensamento do homem civilizado justamente por meio do conhecimento com o qual nos ocupamos, o conhecimento histórico. Isso posto, poderíamos ir mais além e dizer: ora, se uma das características essenciais da razão analítica é a busca por reduzir as separações e dissolver as diferenças que o mundo se lhe apresenta, Lévi-Strauss a mastiga fielmente, pois não é exatamente esse o seu objetivo intelectual quando estabelece a comparação entre as sociedades quentes e as sociedades frias?

Referências bibliográficas

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entender essa operação mental: “A verdadeira questão não é saber se o contato de um bico de picanço cura as dores de dente mas se é possível, de um determinado ponto de vista, fazer “irem juntos” o bico do picanço e o dente do homem (congruência cuja fórmula terapêutica constitui apenas uma aplicação hipotética entre outras), e, através desses agrupamentos de coisas e seres, induzir um princípio de ordem no universo”. Idem, p.24. [Idem, p.16]. 24 Idem, p.291. [Idem, p.349]. 25 Auger, P. apud Lévi-Strauss, 1997, p.291. [Idem, ibidem]. Texto integrante dos Anais do XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. ANPUH/SP-USP. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. Cd-Rom.

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Texto integrante dos Anais do XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. ANPUH/SP-USP. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. Cd-Rom.

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