Denúncia, Submissão e Preconceito: crime sexual contra a mulher em Juiz de Fora (1890-1900).

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Descrição do Produto

1 Editor Renato Carlos de Menezes - Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Renato Marinho Brandão Santos - Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Editoração da Edição ( Em questão: O ensino de História) Drª. Maria Inês S. Stamatto - Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) Ms. Crislane B. Azevedo - Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) Assistente de Edição Felipe Morais de Melo - Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Miguel Pereira Neto - Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Márcio Adriano Tavares Fernandes - Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Renato Marinho Brandão Santos - Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Conselho Editorial Drª. Maria da Conceição Fraga - Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Miguel Pereira Neto - Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Renato Carlos de Menezes - Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Renato Marinho Brandão Santos - Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Conselho Consultivo Ms. Alexsandro Donato Carvalho - Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). Drª. Ana Teresa Marques Gonçalves - Universidade Federal de Goiás (UFG). Dr. Angelo Adriano Faria de Assis - Universidade Federal de Viçosa (UFV). Drª. Anita Waingort Novinsky - Universidade de São Paulo (USP). Drª. Anne-Marie Pessis - Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Dr. Carlos Guilherme Octaviano do Valle - Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Drª. Clarice Nascimento de Melo - Universidade Federal do Pará (UFPA). Dr. Durval Muniz de Albuquerque Júnior - Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Dr. Francisco Alcides do Nascimento - Universidade Federal do Piauí (UFPI). Drª. Julie Antoinette Cavignac - Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Doutorando Leandro Pereira Gonçalves - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Drª Lívia Lindóia Paes Barreto Schleder – Universidade Federal Fluminense (UFF) Drª. Maria Dulce Barcellos Gaspar de Oliveira - Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Drª. Maria Emília Monteiro Porto - Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Drª. Margarida Maria Dias de Oliveira - Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Ms. Stela Pojuci Ferreira de Morais - Universidade da Amazônia (UNAMA).

2 Normalização Miguel Pereira Neto - Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Revisão de Texto Felipe Morais de Melo - Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Projeto/Editoração eletrônica Márcio Adriano Tavares Fernandes - Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Figura da Capa Estudante Van Gogh

3 SUMÁRIO

Apresentação

04

Denúncia, submissão e preconceito: crime sexual contra a mulher em Juiz de Fora (1890-1900) (Leandro Pereira Gonçalves; Thaís Rodrigues de Oliveira e

09

Lívia Filgueiras Azevedo Torres)

Ensinar história: o papel do professor

29

(Marlos Magno Gomes de Menezes)

A exclusão do incluído: a busca pelo equilíbrio

39

(Ana Cristina Oliveira da Silva e Vanda Sarmento Borges Mesquita)

A construção do racismo no Brasil e seus efeitos na atualidade

48

(Eduardo Fernandes Souza G. Sena)

O aprendizado escolar através da imagem no livro didático de História: uma experiência

57

(Genilson de Azevedo Farias)

A importância da leitura no ensino de História (Paula Lorena Cavalcante Albano)

73

4 APRESENTAÇÃO

Os artigos presentes neste número são frutos de uma experiência bem sucedida de integração entre graduação e pós-graduação, entre ensino e pesquisa. São resultados de

projetos de pesquisa desenvolvidos em sala de aula de Educação Básica. Tem-se também um artigo correspondente à temática História e Sexualidade correspondente à parte destinada à publicação de artigo de tema livre na Revista. Argumenta-se, no senso corrente, que o ensino de História não é fácil. Vários autores, quando trabalham com a Prática de Ensino em História, como Dufour1, informam que seus alunos criticam a falta de cultura geral nos adolescentes, dificultando ainda mais a compreensão da história. Outros autores levantam mais problemas ao ensino da disciplina quando questionam, como André Lefbvre, se a criança de doze anos não tem o sentido da duração histórica tanto quanto não tem o de espaço geográfico.... O autor duvida se a prática da história pode assim favorecer o desenvolvimento do sentido temporal. Para ele, o problema se coloca exatamente ao inverso: sem noção de tempo, é impossível realizar o estudo da história...2 Assim, no exercício da disciplina de graduação Prática de Ensino em História, em 1999, percebeu-se o interesse e o desejo premente dos alunos por uma atualização e reflexão sobre o ensino dessa matéria. Da mesma forma, os cursos que formam professores para atuarem na educação básica são pressionados pelas mudanças no campo do trabalho, exigindo mudanças na educação, e pelo avanço da tecnologia, configurando a sociedade virtual, com repercussão no espaço escolar3, motivando uma grande procura de alunos da graduação e pós-graduação em educação e de professores da rede de ensino público por atualização sobre o ensino de História em sua prática docente.

1

DUFOUR, Andrée. Histoire de l’Éducation au Québec. Québec: Les Éditions du Boréal, 1997. p.113.

2

LEFEBVRE, André. De l’enseignement de l’histoire. Québec: Guérin, 1996. p.23.

3

PROJETO DE ESTRUTURAÇÃO DOS CAMPOS DE ESTÁGIO PARA A FORMAÇÃO DE

PROFESSORES DA EDUCAÇÃO BÁSICA. Coordenação pedagógica das Licenciaturas. Natal: Departamento de Educação/ Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2006. p.3.

5 Notava-se, por outro lado, uma ausência de pesquisas nessa área aqui no Estado, mesmo tendo o Programa de Pós-Graduação em Educação já produzido, na época, duas dissertações de Mestrado e uma Tese de Doutorado dentro dessa temática.4 Surgia, então, da necessidade de uma reflexão sobre o ensino de História e sua prática, a idéia deste projeto. Além disso, os cursos de licenciatura se defrontavam com uma nova legislação – Resoluções nº 1 e nº 2 do Conselho Nacional de Educação, 2002 –, determinando o cumprimento de 400 horas de prática de ensino como componente curricular e 400 horas de estágio a serem integralizadas nas escolas de educação básica.5 O projeto de pesquisa, registrado na Pró-reitoria de Pesquisa e compondo a Base de Pesquisa Epistemologia e ensino-aprendizagem: escola e socialização, tinha como objetivos refletir sobre o ensino de História, contribuir para a melhoria da qualificação do pessoal docente nessa área e realizar experiências docentes para a implementação do novo currículo das licenciaturas. Por isto, previa-se que o segundo ano do projeto tivesse um caráter experimental, pois se pensava em aplicar os resultado das investigações na reformulação da disciplina Prática de Ensino em História, denominada Estágio Supervisionado pela nova legislação. A partir dos resultados observados e analisados, seria possível divulgar resultados através de artigos publicados em revistas especializadas e/ou da participação em eventos científicos na área. Entretanto, no decorrer do desenvolvimento da pesquisa e no desenrolar da prática docente, percebeu-se que a proposta sobre o ensino de História para a formação de professores ainda não estava apresentando resultados satisfatórios, sendo necessário que o projeto fosse algumas vezes renovado e outras vezes reformulado. Percebeu-se que, quanto à técnica, à forma de ensinar História, assim como não há uma única versão para o mesmo evento, também não existe uma única fórmula definitiva, que seja infalível, sobre como ensinar a matéria. Isso passa certamente pela reflexão e planejamento do professor sobre seus alunos e o contexto desses. O professor, na sua prática diária, deve ser capaz de mostrar aos seus alunos que eles são agentes do processo histórico, o que eles irão perceber igualmente quando o professor, ao refletir sobre a sua prática, adotar medidas inovadoras com o fim de despertar no aluno o interesse sobre aquilo que está ao seu redor. A reflexão sobre as próprias formas

4

5

ANDRADE, João Maria Valença. O Conceito de cultura e a apreensão da historicidade na 4ª série. Natal: UFRN/ PPGED, 1998. (Tese de Doutorado) ; GÓIS, Francisca Lacerda. Da história vivida à história contada, o conceito de tempo histórico na 2ª série do 1º grau. Natal: UFRN/PPGED, 1994. (Dissertação de Mestrado); MORAIS, Grinaura Medeiros de. A história ensinada nas escolas de 2º grau. Natal: UFRN/PPGED, 1997. (Dissertação de Mestrado). PROJETO DE ESTRUTURAÇÃO... Op. Cit. P.3.

6 de aprender e ensinar é considerada um elemento-chave dos processos de ensinoaprendizagem. A última modificação, em 2008.1, acompanhando os debates recentes sobre o tema, propunha a elaboração de um projeto de pesquisa sobre ensino de História, de caráter experimental, a ser colocado em execução na sala de aula das escolas campo de estágio, possibilitando incorporar a experiência em investigação na formação do professor. Igualmente, nesse mesmo semestre, foi integrada à experiência dos estágios supervisionados a Docência Assistida, com execução pela doutoranda Crislane B. Azevedo e com a orientação dos trabalhos pela Profa. Dra. Maria Inês S. Stamatto, também responsável pela referida disciplina na graduação. Considerando a importância do exercício da prática docente para os doutorandos em educação e a necessidade de integração entre graduação e pós-graduação em prol da docência e da pesquisa nas instituições de ensino superior, a Docência Assistida estava prevista nas atividades de doutoramento em educação e de acordo com o que preceitua a Resolução n. 100/99 – CONSEPE-UFRN. As atribuições da doutoranda foram desenvolvidas, em conjunto com a professora da disciplina, em aulas para os graduandos sobre ensino e pesquisa na Educação Básica. Isso auxiliou na elaboração dos projetos e acompanhamento dos graduandos nos campos de estágio, tanto no momento de construção (Estágio I) quanto no período de execução dos projetos (Estágio II), em escolas campo de estágio em Natal. Essa ênfase na pesquisa educacional, em um entrelaçamento de níveis de ensino, sem dúvida contribuiu para aperfeiçoamento do exercício da pesquisa nos estudos desenvolvidos sobre o ensino de História e na consolidação de um programa para a formação de professores na UFRN. Os resultados alcançados foram altamente promissores. Mesmo considerando-se o processo ainda em andamento, houve alunos que já apresentaram suas pesquisas em eventos e publicações da área. Os artigos que ora se apresentam neste número da Fazendo História mostram-se como fruto dessa premissa. Seus autores, a partir de projetos elaborados e/ou executados em turmas de Ensino Fundamental, refletem sobre suas experiências como professores-estagiários e demonstram a articulação entre a graduação e a pós-graduação em um diálogo conjunto em prol da Educação Básica. Os textos resultantes da análise de práticas didáticas, planejadas teóricometodologicamente, permitem-nos pensar sobre a história ensinada a partir de duas dimensões: A História e o sentido da escola e a História em sala de aula. Para que ensinar História? Para formar cidadãos? Para desenvolver o sentimento patriótico? Para a manutenção de uma ordem estabelecida? Para uma leitura crítica do

7 mundo em que se vive? São questões que podem ser captadas nas entrelinhas dos textos ora apresentados. São caminhos ainda abertos para a pesquisa em ensino de História.

O primeiro texto corresponde à parte da Revista destinada à publicação de artigo de temática livre. O trabalho de Leandro Pereira, Lívia Filgueiras e Thaís Rodrigues, Denúncia, submissão e preconceito: crime sexual contra a mulher em Juiz de Fora (1890-1900), versa sobre violência sexual sofrida por mulheres na década de 90 no século XIX em Minas Gerais. Com base em pesquisa arquivística, os autores analisam os crimes e os processos investigativos e a relação entre as mulheres violentas e a sociedade da época. Ao focar o olhar sobre o docente, Marlos Magno, em Ensinar história: o papel do professor, faz uma reflexão sobre a importância da empatia nas relações professoraluno como uma das condições básicas para uma melhor aprendizagem dos discentes. Pretende investigar a relação da representação que comumente se faz da disciplina História e o interesse dos alunos pela mesma, o que interfere na aprendizagem do conhecimento histórico. Procura demonstrar como a didática do professor é fundamental na influencia pelo interesse ou repulsa do aluno pelo conteúdo de História. Vanda Mesquita e Ana Cristina Silva, por sua vez, focam a atenção no aluno, especificamente em um aluno portador de deficiência auditiva e em seu processo de aprendizagem na disciplina História, que foi observado em um ambiente de turma regular de ensino. Com base na análise de dados, frutos de observações e depoimentos, as autoras apresentam possibilidades de práticas que questionam os meandros de um processo de inclusão. Refletem se a inclusão em uma sala de ensino regular corresponderia às expectativas dos órgãos envolvidos no projeto de inclusão de alunos com

deficiência

auditiva

e

sobre

quais

alternativas

técnico-educacionais,

psicopedagógicas e sociais criadas no sistema regular de ensino poderiam contribuir para o processo de aprendizagem desses alunos, especialmente para o ensino de História. Com relação ainda à história e ao sentido da escola, Eduardo Sena fecha as reflexões desta primeira parte da Revista – A história e o sentido da escola – com uma análise sobre as origens de práticas racistas no país em Racismo no Brasil: da Colônia à atualidade. Questiona de onde vêm os conceitos que se julgam como verdadeiros e qual a explicação lógica e racional para se justificar a discriminação racial na contemporaneidade. Em sala de aula: História - Parte II - Genilson Farias, com seu O aprendizado escolar através da imagem no livro didático de História: uma experiência, dedica-se aos possíveis tratamentos dados à imagem na aula de história, tomando por base o acervo iconográfico dos livros didáticos dos alunos, especificamente, para o presente

8 artigo, as imagens que retratam o escravo negro no espaço urbano da cidade do Rio de Janeiro da época imperial. O autor chama a atenção para o fato de que a iconografia é um recurso bastante utilizado já há algum tempo e também é uma fonte histórica bastante rica em significados que precisam ser explorados. Em outra perspectiva, Paula Lorena Albano, em A importância da leitura no ensino de História, possibilita-nos pensar sobre as relações entre a aprendizagem em História e a necessidade do domínio do código escrito apontando como uma possibilidade de trabalho, em prol do desenvolvimento dos alunos, a prática da interdisciplinaridade. Parte do pressuposto de que, para o ensino de História, a leitura é primordial. Dessa forma, o estudo tem por objetivo analisar a leitura como uma construção de significados e, por conseguinte, demonstrar como a prática leitora contribui para a compreensão significativa dos conteúdos da disciplina História. Os dados e análises aqui apresentados são de responsabilidade de seus autores, professores em formação. As orientações a esses, em suas pesquisas, visaram ao desenvolvimento da reflexão sobre a própria prática, vislumbrando-se a possibilidade de promover neles um processo de autonomia intelectual e profissional, base para a tomada de posturas e decisões frente às questões postas em seus ambientes de trabalho e possibilitar ainda que, ao investigar a própria prática docente, eles tivessem clara a propriedade e a necessidade da articulação constante entre teoria e prática. As perspectivas para os trabalhos dos próximos semestres mostram-se, assim, promissoras, acenando para mudanças significativas e positivas para a prática do docente de História, possibilitadas por meio da promoção de experiências inovadoras para os alunos da disciplina Estágio Supervisionado. Pensa-se que os resultados divulgados desta pesquisa poderão contribuir para a melhoria da qualificação dos professores de História e permitir um apoio teóricopedagógico a pesquisadores em formação e professores. Por meio da efetivação do exercício da observação, da construção de questões de pesquisa, da busca de dados e análise com base em referenciais teórico-conceituais, os autores deixam evidente que formar o professor-pesquisador em história não é apenas algo desejável, mas, sobretudo, imprescindível e possível. Março, 2009 Profa. Dra. Maria Inês S. Stamatto Profa. Ms. Crislane B. Azevedo

9 DENÚNCIA, SUBMISSÃO E PRECONCEITO: Crime sexual contra a mulher em Juiz de Fora (1890-1900)6 Leandro Pereira Gonçalves7 Lívia Filgueiras Azevedo Torres 8 Thaís Rodrigues de Oliveira9

RESUMO

A presente pesquisa consiste em fazer uma análise da causa dos crimes sexuais em Juiz e Fora entre 1890 a 1900. Através do Código Penal de 1890 e da Constituição de 1891, procurou-se verificar como a justiça tratava tais crimes e, com isso, observar o desenvolvimento das investigações, o tratamento às testemunhas, a possível punição ao agressor e principalmente os cuidados com a vítima. Investigou-se nos processos o tratamento da Justiça em relação às mulheres violentadas sexualmente. Verificou-se ainda qual era a forma com que a sociedade lidava com essas mulheres e se contribuía para desconsiderar as ações e falas femininas. Deseja-se saber qual o grau de envolvimento das vítimas de crimes sexuais com a prostituição, ou seja, se elas a consideravam um caminho viável ou se ela era a única opção em suas vidas. Desse modo, observaremos se os processos eram arquivados ou se tinham procedimento legal perante a Justiça. Palavras-chave: Crimes sexuais; Juiz de Fora; Mulheres. ABSTRACT

The present research consists in doing an analysis of how sexual crimes took place in the city of Juiz de Fora, in the state of Minas Gerais, Brazil, between 1890 and 1900. According to the Brazilian Penal Code of 1890 and the Constitution of 1891, it was tried to verify how justice dealt with such crimes and, therefore, observe how the investigations were done, how witnesses were treated, how punishment was done to the aggressors and mainly the care for the victims. It was investigated in criminal processes that there was unfavorable treatment by the Justice in relation to women sexually 6

Este artigo é uma versão ligeiramente modificada do Projeto de Iniciação Científica ligado ao Centro de Pesquisa do Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora, que recebeu auxílio do Programa de Bolsa de Iniciação Científica (PROBIC) - 2007/2008, coordenado pelo Prof. Ms. Leandro Pereira Gonçalves. 7 Professor assistente do Curso de História do Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora; Doutorando em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; Mestre em Literatura Brasileira pelo Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora; Especialista em História do Brasil pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais; Licenciado em História pelo Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora; e-mail: [email protected]. Participante como pesquisador dos Grupos Literatura e Autoritarismo (UFSM/CNPq); Observatório da Indústria Cultural (UFF/CNPq) e Cidadania, Trabalho e Exclusão (UFJF/CNPq). 8 Graduada em História pelo Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora; e-mail: [email protected]. Participante do Grupo Observatório da Indústria Cultural (UFF/CNPq) 9 Graduada em História pelo Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora; e-mail: [email protected]. Participante do Grupo Observatório da Indústria Cultural (UFF/CNPq)

10 abused. It was still noticed how society dealt with these women and if it contributed to disregard the feminine actions and speech. It is intended to know the degree of involvement with victims in sexual crimes concerning prostitution. In other words, whether they considered it a viable way or the only option for their lives. Thus, we will notice whether the processes were filed or had normal proceeding before Justice. Key words: Sexual crimes; Juiz de Fora, Women.

A sociedade brasileira vive inserida em um processo no qual os crimes sexuais acontecem frequentemente, mas pouco é feito para deter o criminoso. Sabe-se que isso não é um acontecimento atual, pois a mulher foi e ainda é tratada com humilhação e descaso por seus respectivos pais, namorados, maridos, vizinhos, até mesmo desconhecidos. A justiça está se dedicando aos crimes sexuais, mas ainda há certo desconforto por parte das mulheres em ir às delegacias e denunciar o violentador. A situação piora ainda mais quando a mulher é violentada pelo marido. A mulher dificilmente o denuncia, pois tem medo de que algo aconteça com ela ou até mesmo com sua família, ou então há uma reconciliação do casal e a acusação é retirada. No dia 07 de agosto de 2006, o Presidente Luís Inácio Lula da Silva sancionou uma lei para Punir, Prevenir e Erradicar a Violência contra Mulher. O Brasil é o 18° país da América Latina a ter uma lei dessa natureza. Quase 30% das mulheres brasileiras já sofreram agressões pelos seus parceiros ou ex-parceiros. A falta de uma legislação específica vem assegurando a impunidade dos violentadores. A situação surge de uma ameaça que logo evolui para assassinatos, estupros ou qualquer tipo de violência, e quase nada é feito para evitar tal ato. A nova lei modifica o Código Penal e torna possível que os agressores sejam presos em flagrante ou tenham prisão preventiva quando ameaçarem a integridade física da mulher. Não existe mais o pagamento de multas ou cestas básicas. Os crimes agora serão julgados em varas criminais até a instituição dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra Mulher no âmbito dos estados. A medicina social apresentava, como características femininas, algumas questões biológicas, como o recato, a fragilidade, o predomínio das faculdades afetivas sobre as intelectuais, a subordinação da sexualidade à vocação maternal. O homem estava ligado a características como exaltação da força física, autoridade exacerbada e sexualidade sem freios. Cesare Lombroso, um médico italiano e nome conceituado da criminologia no final do século XIX, dizia que as mulheres que possuem um erotismo intenso e de forte inteligência seriam privadas do sentimento de maternidade, característica inata da mulher normal, e, assim, eram consideradas extremamente perigosas. Por isso,

11 formavam-se as criminosas natas, as prostitutas e as loucas, que deveriam ser afastadas imediatamente da sociedade. Durante muito tempo, a história era baseada nos grandes heróis e nos grandes acontecimentos, que, em sua maioria, eram representados e exercidos pela classe social mais elevada. Era isso o que era realmente importante e digno para a história. Atualmente, a utilização de novos focos de pesquisa é algo que ocorre com freqüência no meio acadêmico, como consequência da renovação francesa da História com os Annales nos anos 1920. Segundo essa Nova Historiografia, tudo que se passou é objeto de interesse da História e é com ela que pode ser percebida a sua totalidade, pois através da visão defendida pela Nova História, os fatos e acontecimentos não têm importância alguma, mas sim os critérios escolhidos pelo historiador. Portanto, é possível afirmar que tudo que possui registro é histórico, tendo, assim, a possibilidade de análise. A partir de 1960, a história das mulheres juntamente com outros gêneros passou a ser uma constante na historiografia brasileira. A dificuldade em fazer uma pesquisa sobre as mulheres e fazer uma reconstrução da atuação delas na sociedade é bastante relevante. Quando o estudo está ligado às mulheres de classe mais baixa, a situação piora ainda mais, devido à escassez documental. Porém, os processos criminais estão fazendo vir à tona a vida delas. Com isso, pode-se descobrir os problemas, as crenças, as brigas e as exigências afetivas, enfim, as normas que norteavam sua existência e a sua cultura. A cidade de Juiz de Fora em Minas Gerais, entre o século XIX e XX, foi um local de grande importância no Estado e no País. Em 1889, foi criada a Hospedaria Horta Barbosa, que alojava os imigrantes que iriam trabalhar nas lavouras e indústrias de Juiz de Fora e região. No mesmo ano, o empresário Bernardo Mascarenhas cria na cidade uma das maiores fábricas têxteis da região, colocando ali mulheres da cidade e muitas estrangeiras. Era comum a violência sexual contra as operárias dentro e fora das fábricas, mas o assunto era pouco divulgado e, para não perderem o emprego, elas se calavam. Notam-se alguns processos de defloramento e estupro na cidade de Juiz de Fora datado entre 1890 e 1900, quando foram averiguados que a sentença dos acusados em muitos casos reflete pouca punição pelo crime que cometeu ou simplesmente não existe. Encontram-se também processos arquivados por falta de provas contra o acusado. Depara-se também com processos que envolveram menores, órfãs e prostitutas, sendo estas humilhadas pela profissão e por terem sido violentadas. A violência contra a mulher é algo comum dentro da sociedade brasileira e em especial na juizforana. A preocupação em julgar tais crimes nem sempre foi centro da preocupação do governo brasileiro, como ocorre nos dias atuais. O descaso e o preconceito com a mulher brasileira é uma constante no tratamento dado pela justiça.

12 O fato de agredir, estuprar uma criança ou uma mulher adulta são fatos que têm acontecido desde muito no Brasil. Há algum tempo, o homem não era punido por crimes que cometia, pois, no Código de 1830, alguns direitos estavam garantidos: se o mesmo assassinasse sua esposa, caso fosse comprovado que a mesma estava mantendo uma relação extraconjugal, não haveria o porquê de qualquer condenação; e se o marido descobrisse que a sua esposa, quando contraiu o matrimônio, não era mais virgem, o casamento poderia ser anulado. Mas se a mulher descobrisse que o homem estava mantendo relação com outra mulher, o mesmo seria qualificado em concubinato, não em adultério. Mas não foi assim sempre. A partir do Código Penal de 1890, a situação, pelo menos jurídica, começou a mudar. O novo código previa punições aos homens que assassinaram suas mulheres, independente de qual razão fosse. Os crimes sexuais continuaram a permanecer no Código de 1890, sofrendo algumas modificações penais. Contudo, na prática, não foi bem assim. As mulheres agredidas sexualmente, quando apareciam às delegacias para denunciar, viam seus agressores nas ruas pouco tempo depois. Poucos agressores foram parar atrás das grades e muitas mulheres ficaram sem justiça. As mulheres estudadas do século XIX no Brasil estão seguindo o processo de industrialização que alavancava o país, saindo de casa e indo para as fábricas trabalhar, garantindo, assim, o sustento familiar e criando certa independência em relação à dominação masculina.

Logicamente que os homens não aceitavam essa liberdade

feminina e alguns mais radicais diziam que essas mulheres não eram aptas ao casamento, pois as corretas deveriam ser as que cuidavam do lar, do marido e dos filhos. Muitos livros estão aparecendo sobre a História das mulheres, sobre como elas viviam, como era o seu cotidiano e como os homens enxergavam as mesmas dentro da sociedade brasileira. Assim, através de processos, biografias e até de documentos de homens dos séculos anteriores, podemos criar uma nova história nacional, mas de um ângulo diferente: a das mulheres que por tanto tempo ficaram abafadas dentro de suas casas ou então deixadas de lado por uma historiografia tradicional voltada simplesmente para o universo masculino. Durante o século XIX até as três décadas iniciais do século XX na Europa e no Brasil, estudos sobre a himenolatria10 estavam sendo aprofundados. Os europeus estudaram em média 300 mulheres com diferentes classificações: prostitutas, crianças, viúvas, virgens, mulheres casadas e cadáveres, para assim fazer uma melhor avaliação quando houvesse algum crime sexual. No Brasil, segundo Sueann Caulfield, um médico chamado Peixoto também fez um estudo sobre o hímen das brasileiras, mas este fez uma análise mais extensa, trabalhando com 2.701 mulheres. A conclusão dessa pesquisa 10

Estudos sobre o hímen.

13 foi um livro chamado Sexologia forense, possuindo citações dos trabalhos europeus e que ainda continha muitos erros na concepção da perícia quando o assunto era avaliar o hímen. Peixoto acreditava que a vantagem que ele teria sobre os europeus estaria sobre a demografia e a cultura brasileira. Para o médico, principalmente no Rio de Janeiro, a falta de mulheres na cidade fez com que a importância das mesmas fosse de extrema valia, criando, assim, um fetichismo sobre o hímen, fazendo com que os homens morressem e matassem pela virgindade da mulher.11 Alguns médicos legistas brasileiros foram contra o estudo de himenolatria realizado por Peixoto e mostraram uma grande preocupação que as autoridades jurídicas também possuíam em relação à honra sexual e à virgindade feminina durante os 50 anos de vigência do Código Penal de 1890, o primeiro do período republicano. Os juristas que escreveram as leis na Primeira República acreditaram que uma atenção à honra sexual e à virgindade daria um aspecto de progresso ao país.12 A medicina social assegurava, como características femininas, por razões biológicas, a fragilidade, o recato, a submissão, o predomínio das faculdades afetivas sobre as intelectuais, a subordinação da sexualidade à vocação maternal. As mulheres não podiam manter relações sexuais antes do casamento, o que as levariam a uma condição desfavorável, pois não seriam mais classificadas como honestas, termo este que também não seria utilizado quando elas tivessem uma relação extraconjugal.13 Não era somente a medicina social que estava preocupada com a honestidade das mulheres. Muitos juristas, quando foram criar o Código Penal de 1890, mostraram uma grande preocupação com os crimes sexuais, principalmente com o estupro e o defloramento,14 e sabiam que a perda do “selo” traria problemas tanto na condição social quanto moral das vítimas. Os juristas acreditavam que a virgindade era a única coisa que a mulher deveria levar para o casamento, como um dote, e que se não houvesse uma repressão mais severa contra tais crimes, as vítimas seriam um alvo muito fácil à prostituição.15 O historiador Boris Fausto, em seu estudo Crime e Cotidiano: a criminalidade em São Paulo (1880-1924), analisa uma significação ao crime de defloramento, dizendo que o mesmo se define como uma preocupação central da sociedade com a honra feminina, direcionada para uma peça anatômica, o hímen. Assim, o hímen seria uma forma de controlar e classificar as mulheres puras e impuras. A mulher deve preservar o seu “selo”, para que não seja classificada como mulher “desonesta”. Quando o homem

11

CAULFIELD, Sueann. Em defesa da Honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro (1918-1940). Campinas: UNICAMP, 2005, p.52. 12 idem, ibidem, p.54. 13 SOIHET, Rachel. Mulheres pobres e violência no Brasil urbano. In: PRIORI, Mary Del (org.). História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2004. p. 363. 14 Mulheres violentadas com até 20 anos. 15 CAULFIELD, op. cit., p. 78.

14 descobre que a moça com quem se casou não possui o hímen, o mesmo começa a se colocar em uma posição de “frouxo”, que confiou em uma mulher furada.16 Na obra Meninas Perdidas: os populares e o cotidiano do amor no Rio de Janeiro da Belle Époque, a historiadora Martha de Abreu Esteves descreve que quando acontecia um crime sexual ou estupro, os advogados não aceitavam qualquer discurso da ofendida. A vítima teria de mostrar que era uma “mulher de conduta”, cumprindo seus papéis sociais, que estariam voltados para a submissão ao homem e a reserva ao lar e aos filhos. Se a sua fala não mostrasse isso, a possibilidade da mesma em conseguir êxito no processo só diminuiria. Em alguns processos analisados por Martha de Abreu, nota-se ainda que os representantes da Justiça afirmam que há uma associação correta para casos assim, que seria o sexo, amor e casamento. Se fosse comprovado que haveria alguma intenção de casamento, com certeza a vítima teria uma honra melhor e se houvesse essa ligação entre sexo e casamento, o crime de defloramento provavelmente seria retirado.17 Os juristas do final do século XIX acreditavam que as “mulheres de família, que vivem sossegadas em casa e sob a proteção da mãe, sabiam conservar a sua virgindade e os seus sentimentos”.18 A mulher “honesta até poderia ter relações sexuais solteira, desde que tivesse certeza de que o casamento era esperado”.19 Alguns médicos e juristas estavam atentos, dizendo às mães de classe menos abastada que suas filhas não deveriam freqüentar as ruas sozinhas, pois fora de casa encontraria o desvio, o incorreto. A vigilância deveria ser sempre utilizada, pois as novas preocupações com a moralidade deveriam ser levadas mais a sério. Isso tudo mostraria uma idéia de modernidade ao país, que agora se “preocupava” com as condições das famílias menos favorecidas. Mas essa exigência não pôde ser cumprida devido às condições em que as famílias mais pobres viviam. As mulheres não poderiam ficar em casa esperando companhia como as moças ricas; estas deviam trabalhar, ajudar no sustento da casa, estar sempre à procura de sobrevivência.20 A historiadora Martha de Abreu também relata as condições das mulheres que saíam às ruas. As moças que fossem à rua entre o horário de 14h às 17h e estivessem acompanhadas eram dignas e direitas. As que saíam sozinhas não poderiam ser corretas e não serviriam para se casar. Alguns depoimentos dos homens das camadas mais humildes mostram os valores da ordem sexual. Não aceitavam que as mulheres saíssem desacompanhadas e fossem a determinados locais, chamando-as de desonestas e inaptas

16

FAUSTO, Boris. Crime e cotidiano. São Paulo: EDUSP, 2001, p.181. ESTEVES. Martha de Abreu. Meninas Perdidas: Os populares e o cotidiano do amor no Rio de Janeiro da Belle Époque. Rio de Janeiro: Paz e Terra,1989, 55. 18 CAULFIELD, op. cit., p. 76. 19 ESTEVES, op. cit., p. 56. 20 SOIHET, op. cit., p. 365. 17

ao matrimônio.

21

15 Quando alguma mulher processava algum homem, logo os

advogados desejavam saber como e quando esta freqüentava a rua, pois o lugar da mesma era em casa, cuidando tanto das suas obrigações e se divertindo somente no lar.22 Sendo assim, a mulher quando sofria algum crime, seja ele sexual ou não, teria de passar por uma série de perguntas que, dependendo das respostas, as colocariam em uma posição desfavorável, mesmo sendo vítimas. Quando a mulher era violentada, o processo de estigmatização era frequente. A agressão é vista como uma atitude própria do homem e a desconfiança sobre a mulher é imensa. Diante de uma sociedade machista, nota-se que a mulher era sempre posta em questão, pois a dúvida era se realmente o crime tinha acontecido à base da força empregada em cima da violentada, sendo cogitado muitas vezes que não. A importância da honra feminina era levada a sério e algumas mulheres foram ao extremo e assassinaram os homens que tentaram cometer algum crime sexual ou aqueles que realmente o fizeram.23 O fato era que, mesmo quando havia os crimes sexuais, o casamento era praticamente impossível de acontecer. Tal fato só acontecia na alta camada da sociedade por motivos burocráticos e para preservar os bens familiares. Já na camada popular, esses problemas eram inexistentes, por isso, na maioria dos casos, o casal era amasiado. Rachel Soihet, em um artigo no livro História das Mulheres no Brasil, diz que no Rio de Janeiro entre 1890 e 1920, mesmo que a maioria da população trabalhadora não contraísse o casamento, quando acontecia, ele era visto com um valor muito expressivo e diz ainda que nos processos criminais, quando era casada, a mulher já possuía uma grande vantagem.24 A historiadora Cláudia Fonseca, no mesmo livro, possui um artigo chamado Ser mulher, mãe e pobre, que analisa os casamentos e verifica que, quando esses acabam, os maridos em alguns casos desejavam a guarda das crianças. Quando o processo era aberto, algumas mulheres declaravam que os seus cônjuges as maltratavam, chegando até a espancá-las e que não ajudavam nas despesas da casa, mostrando, assim, que as mulheres, além de serem mulheres e mães, ainda passavam por cima de alguns preconceitos, como trabalhar fora para garantir o sustento da casa.25 Em Algumas notas sobre se pensar com o gênero, Fabiana Cardoso Malha Rodrigues faz uma análise sobre o gênero e como que a História das Mulheres vem crescendo vertiginosamente nas últimas décadas. Autoras como a estadunidense Joan Scott, na década de 60 e 70, dizia que era necessário firmar novos conhecimentos e 21

ESTEVES, op. cit., p. 170. idem, ibidem, p.44. 23 SOIHET, op. cit., p. 304. 24 idem, ibidem, p.369. 25 FONSECA, Cláudia. Ser mulher, mãe e pobre. In: DEL PRIORE, Mary. (org.) História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 1997, P.523. 22

16 conceitos pautados pelo avanço da História das Mulheres, utilizando assim o gênero. Tal história obteve sua alavanca a partir do movimento feminista na década de 60, das mudanças historiográficas e com os estudos da Antropologia, História Social, História das Mentalidades e História Cultural, que fizeram com que a mulher fosse o sujeito e o objeto da História. A Antropologia Cultural também obteve um papel muito significante, na medida em que seu fazer História deixou de estar pautado nos costumes ditos “tradicionais” e dominantes características do movimento iluminista do século XIX.26 A historiadora Andréa Lisly Gonçalves, autora do livro História e Gênero, escreve que mesmo os grandes precursores dos Annales, March Bloch e Lucien Febvre, na década de 30, ao apontarem seus estudos para a história da relação cotidiana, instauraram a possibilidade de que as mulheres fossem incorporadas de uma forma sutil à historiografia. A contribuição dos Annales para o estudo das mulheres é de grande importância, pois com seu “alargamento progressivo do campo histórico às práticas cotidianas, aos comportamentos vulgares, às mentalidades comuns”, acabou criando condições intelectuais adequadas para a inclusão da mulher como sujeito histórico.27 Nos anos da década de 1990, houve uma incessante luta entre os historiadores na tentativa de criar definições entre o masculino e o feminino. Mesmo tendo decretado o fim do sujeito universal masculino, as pesquisas direcionadas às mulheres seguiam sendo uma “história paralela”. A condição feminina que surgia como elemento essencial para cimentar uma unidade entre os protagonistas históricos que estavam aparecendo não parecia resistir aos desafios colocados pela história social, por mostrarem que não foi sempre que as diferenças entre homens e mulheres se revelaram fundamentais ou ainda que a diferença entre os sexos sobrepunha-se às distinções de classe, etnia e raça.28 Muitos estudos estão se aperfeiçoando no que diz respeito ao gênero. Mas ainda há muito que se estudar, porque a constante insuficiência presente na conceituação deixa o pesquisador necessitado de teoria e método para seu estudo e muitas das teorias que estão sendo utilizadas não se revelam por inteiro, sendo, desse modo, disformes e contendo vários significados. Mesmo as mulheres sendo alvo de estudos vistos hoje como “machistas”, de passarem por vários preconceitos como trabalharem fora de casa, de serem maltratadas e estigmatizadas por vários adjetivos quando perdiam sua “honra”, o que acontecia quando um processo criminal era aberto e o que estava envolvido era um crime sexual? Tais assuntos estão sendo estudados há pouco tempo e, devido aos arquivos, podemos 26

RODRIGUES, Fabiana Cardoso Malha. Algumas notas sobre se pensar com o gênero. Pensando com o gênero. Niterói: Núcleo de Estudos Contemporâneos, UFF, 2002, p.1. 27 GONÇALVES, Andréa Lisly. História e Gênero. Belo Horizonte: Autêntica, 2006, p.55. 28 idem, ibidem, p.69.

17 ter em mãos alguns processos, que nos permitem, assim, ter acesso a alguns acontecimentos e comportamentos da época. Todos os acusados de crimes estão enquadrados dentro de um Código Penal, sendo esse construído para regulamentar uma sociedade e enquadrar os indivíduos que quebram qualquer lei escrita em tal documento. Segundo Mariza Corrêa, o Código Penal tem a “função de estabelecer limites, de autonomia de cada um e as punições a que estão os sujeitos que ultrapassam estes limites”.29 O Código Penal de 1890, o primeiro da República, segundo Sueann Caulfield, fez uma mudança na penalidade por estupro, reduziu o tempo máximo da punição por estupro de 3 a 12 anos para 1 a 6 anos, o que incluía relação sexual consensual com mulheres menores de 16 anos. Outra modificação feita foi em relação ao tempo e à idade máximos para as vítimas de defloramento. A pena subiu de de 1 para 4 anos de prisão30 e a idade de 17 para 20 anos (crime analisado como emprego de sedução engano ou fraude). No dia 24 de janeiro de 1890, de autoria de Rui Barbosa, foi estabelecida a regulamentação do casamento civil, ficando, então, abolida a jurisdição eclesiástica, sendo o único casamento válido aquele realizado por autoridades civis. Com isso, foram especificados ainda quais seriam os motivos para a anulação de um casamento. O matrimônio só poderia ser desfeito quando um dos cônjuges consentisse ou por erro essencial que houvesse a respeito da pessoa do outro. Na verdade, esse erro está dividido em quatro: o que relata sobre a identidade, honra e boa fama de um dos cônjuges; o que se refere à ignorância de crime inafiançável anterior ao casamento, cometido por um deles; o que diz respeito à ignorância de defeito físico irremediável ou moléstia grave e transmissível; e o que condiz ao defloramento da mulher, ignorado pelo marido. A honra da mulher está atribuída, como está manifesto, aos bons costumes, sendo, ainda, sua dignidade questionada a partir da virgindade, indício de uma boa mulher, recatada e honesta. Se a sua condição de não mais virgem for posta em questão, o marido da mulher desonesta terá a lei ao seu lado, anulando, assim, o casamento.31 As meninas de classe mais alta deveriam ficar no máximo entre 2 a 3 anos namorando para que o noivado logo acontecesse. Isso acontecia para que o noivo pudesse arrumar a sua vida financeira e para evitar que as intimidades fossem mais aprofundadas. Já as moças de classe menos abastada não se preocupavam com o tempo. Essa questão sempre foi levada mais a sério pela elite. Se as meninas se preocupassem com o lado financeiro para começar a manter as relações sexuais, elas permaneceriam virgens para todo o sempre. O ato sexual acontecia, na maioria dos casos, quando o 29

CORRÊA, Mariza. Morte em família: representações Jurídicas e Papéis Sexuais. Rio de Janeiro: Grall, 1983, p.87. 30 CAULFIELD, op. cit., p. 74. 31 CORRÊA, op. cit., p. 88.

18 relacionamento estava apenas começando e as mães, em muitos casos, não sabiam do namoro da filha com o rapaz.32 Algumas meninas, mesmo declarando que foram forçadas, enganadas ou seduzidas, não ficaram presas às formalidades morais, como, por exemplo, um namoro com regras e comportamentos. Não passava necessariamente na cabeça das moças a idéia fixa de casamento, sendo esta pregada pela sociedade. A noção de casamento depois do ato sexual, sendo ele forçado ou não, era uma norma típica da camada mais abastada. Logicamente que as mulheres mais humildes desejavam um casamento, um companheiro, mas isso não era necessariamente a única saída quando o ato sexual acontecia. O casamento, enquanto norma, não regulava a sexualidade das camadas populares.33 Quando uma moça honesta recorria até a Justiça dizendo que havia sido deflorada pelo seu noivo e, logo após um determinado tempo, a mesma negasse a acusação, o juiz deveria desconsiderar essa segunda alegação, pois era inaceitável que uma mulher mantivesse relações sexuais com um homem que não fosse seu futuro marido. Uma moça de família e honesta era ingênua e transparente, seus pensamentos eram previsíveis. Essas moças nunca iriam manter relações extraconjugais, a não ser que fossem forçadas ou ludibriadas.34 O historiador Sidney Chalhoub aborda alguns processos criminais de mulheres das camadas populares que não seguiam a conduta tradicional, ou seja, que não eram submissas aos seus homens e sofriam, por isso, represálias ao longo do romance. Alguns crimes aconteciam porque as mulheres eram mais independentes e não tinham vergonha em assumir, em alguns casos, uma outra relação, deixando o companheiro indignado, cometendo, em consequência, o homicídio.35 Já outras mulheres não tinham medo de ir até a delegacia para denunciar o agressor quando sofriam um crime sexual, mesmo quando o agressor era noivo, pai, irmão ou até o marido. Quando a ofendida comparecia até a delegacia para abrir um processo de defloramento, a mesma era logo encaminhada para o corpo de delito. Assim, os peritos analisariam se o acontecimento fora recente ou remoto, para reforçar a defesa ou a acusação. Se a moça dissesse que foi ofendida na época indicada pelos peritos, a margem de ela ter uma vantagem no processo era significante. Em alguns processos citados no livro Crime e Cotidiano: a criminalidade em São Paulo, são colocados alguns termos técnicos que os peritos utilizavam, como o “canal vaginal dilatado”, indicando habitualidade de coito. Alguns advogados da defesa utilizavam tais

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ESTEVES, op. cit., p. 74. idem, ibidem, p.167. 34 CAULFIELD, op. cit., p. 77. 35 CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da Belle Époque. São Paulo: Brasiliense, 2005, p.218. 33

19 termos para adquirirem algumas vantagens, dizendo que a constatação de que a queixosa tem canal vaginal dilatado equivale a um verdadeiro atestado de prostituição.36 A polícia, quando era notificada do defloramento, estupro, aborto ou infanticídio, sujeitava as mulheres a situações constrangedoras, como dizer nos mínimos detalhes o ato sexual e passar por exames médicos que as humilhavam. Não se pode esquecer que as mulheres do século XIX não conheciam seu corpo por uma questão moral. A mulher não poderia ter nenhum contato com seu corpo, pois isso era vulgar e vergonhoso. Essa relação era mediada por sentimentos de culpa, de impureza, de diminuição, de vergonha por não ser mais virgem, a vergonha do exame ginecológico, a vergonha de estar menstruada, expressa em termos como “mancha”, “anormal”, “gasta”, entre outros.37 Segundo Boris Fausto, quando uma mulher é vítima de defloramento, a não presença dos pais piora mais o caso. O pai dá à família certo ar de proteção, “preservando” a honra das moças da casa e assegurando qualquer dano de qualquer membro da família. Assim, quando existe um defloramento, o pai é o maior responsável pelo futuro da vítima, fazendo o acusado se casar ou não.38 A situação fica muito difícil para a vítima que não possui nenhum homem para ajudá-la. Quando não há a presença da mãe, a perda da mulher está ligada ao lado afetivo, pois é ela que ensina os modos para a filha. A situação fica muito frágil quando a educação da menina está ligada à madrasta, que em alguns casos não lhe dá a devida atenção. No período de 1890 a 1900, ocorreram 34 processos de crimes sexuais em Juiz de Fora. O objetivo da pesquisa é demonstrar a ação da violência e seus complicadores baseado no primeiro código penal republicano que foi colocado em prática em 1890, sendo que nossa abrangência será restrita até o fim do século XIX. É possível perceber que, na maioria dos processos, quando as vítimas do sexo feminino procuravam os órgãos públicos para a sua defesa e para esclarecer o ocorrido, essas mulheres da Comarca de Barbacena39, além de serem ouvidas, tinham nos investigadores a confiança e a crença de que as mesmas falavam a verdade, ou seja, de que elas eram honradas e honestas e que mereciam crédito até que se provasse o contrário. Eram tratadas como qualquer pessoa que merece ser ouvida e ter seu relato averiguado e, havendo constatação de sua fala, ter o agressor punido. Em muitos processos, a investigação não era concluída devido à retirada da queixa, falta de provas ou até mesmo suspenso sem uma explicação existente nos autos. Em nossa pesquisa, verificamos que muitos processos são semelhantes e, devido a isso, selecionamos cinco

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FAUSTO, op. cit., p. 182 SOIHET, op. cit., p. 332. 38 FAUSTO, op. cit., p. 201 39 Comarca responsável pela cidade de Juiz de Fora. 37

20 processos que tiveram uma continuidade e uma análise detalhada do crime pelos órgãos de investigação. A Justiça procurava averiguar o fato denunciado através de autos de perguntas que envolviam a vítima, o agressor, parentes e também, em sua grande maioria, pessoas comuns que faziam parte do cotidiano tanto da vítima quanto do acusado. Nesses autos, era pedido ao interrogado que fornecesse dados como a idade, a profissão, a cidade natal, residência atual, a nacionalidade e, em alguns casos, consta também a cor da pele do autuado. Quando se tratava da vítima, era pedido a ela que contasse com detalhes o que ocorreu e quem a violentou. Desse modo, os oficiais de justiça, ao interrogar as testemunhas, podiam averiguar a veracidade do fato denunciado pela vítima, como também se assegurar de que se tratava de moça honesta e honrada, ou seja, digna de atenção por parte da lei. Em analise dos processos, deparamo-nos com casos em que a pessoa que fez a denúncia não foi a própria vitima, senão algum parente ou mesmo um responsável. Ocorreram também casos em que a vítima era uma criança e, por tanto, incapaz de saber como proceder. Nesses casos, portanto, alguém fazia a denúncia em seu lugar. Constatamos também a prevalência de casos nas camadas mais baixas, que tinham o mesmo tratamento perante a lei se comparados aos casos ocorridos em camadas mais elevadas. Muitos desses processos não foram concluídos, deixando margens para dúvida, pois foram interrompidos sem especificar se houve averiguação dos fatos e qual a atitude tomada na constatação dos mesmos. Para os processos que tinham andamento, o procedimento era sempre o mesmo. Após a denúncia, os oficias convocavam as testemunhas, essas respondiam o auto de perguntas e os oficiais averiguavam se o que a vítima dissera era verdade, além de confirmar a honestidade e honra da mulher. Outro procedimento muito comum era o exame de corpo delito, em que o exame era como que a palavra final, o comprovante de que houve ou não violação do corpo da vítima. Essas moças, mesmo sendo tratadas como qualquer uma, eram merecedoras de serem ouvida e não estavam imunes ao preconceito e a desconfiança de serem ou não honradas. O processo n° 9707 de 1895 condenou José Mathias Barbosa; o mesmo foi acusado de ter deflorado Ignes Cortes, menor, de 11 anos de idade. A denúncia foi feita pelo pai da vítima, Antônio Cortes, no dia 24 de janeiro do citado ano. Segundo relato do pai da vítima, Ignes brincava na porta de casa quando o acusado lhe pediu para comprar uma garrafa de bebida na venda. A menina obedeceu e, ao voltar, foi arrastada para dentro. A casa encontrava-se com todas as janelas fechadas. José, então, a forçou a tomar grande quantidade de bebida e, quando a menina já não estava mais em suas perfeitas condições, a violentou. Após a averiguação dos fatos feita pelo auto de perguntas no dia 13 de fevereiro, José foi preso sob a acusação de defloramento previsto

21 no artigo 268 acrescido dos parágrafos 2º e 3º do artigo 41, que agravam a circunstância por se tratar de dano irreparável. José Mathias Barbosa foi julgado e condenado pelo júri, incurso no grau máximo do artigo 267 com pena a cumprir 7 anos de prisão celular.40 Notamos que todo o processo, desde a denúncia, a averiguação dos fatos através dos autos de perguntas e do exame de corpo delito ao julgamento e condenação, se desenvolveu relativamente rápido, fazendo com que a justiça fosse devidamente cumprida. Aqui se tornou mais forte a presença da honra, não só se tratando da feminina, mas também da honra que se estende a toda família, colocando o pai como o defensor do que foi perdido. Outro processo semelhante é o de nº 10233, no qual o agressor é cunhado da vítima de nome Josina Augusta da Silva, de 11 anos. Duarte Gonçalves da Silveira é acusado de estuprar a menina, ameaçando-a de contar a toda família que os dois tinham um caso se a menina falasse algo. Durante o processo, descobrimos que a menina era órfã de mãe e o pai não se importava com Josina, deixando-a aos cuidados dos tios Dionísio José Gonçalves e sua esposa Rita Pires de Moraes desde os 5 anos de idade quando sua mãe falecera. O processo, como os outros, tem seu andamento da mesma forma, com os autos de perguntas para a confirmação do ato e o exame de corpo delito. Mas o diferencial nesse processo são as considerações acerca do exame físico em Josina. Os médicos que a examinaram afirmaram não ter havido cópula carnal porque Josina não tinha seus órgãos genitais completamente desenvolvidos e, com isso, o ato foi impossibilitado. Essas conclusões tiveram influência nas pesquisas sobre “himenolatria” realizadas com diversas mulheres em diferentes condições, conforme referência anterior. As pesquisas sobre a “himenolatria” que são discutidas por Mariza Corrêa (1983) demonstram que não só os médicos, mas também os juristas, estavam preocupados com o hímen da mulher. Eles relacionavam essas pesquisas ao progresso, à razão, característica da nova República em construção, que queria dar um caráter moral ao país. Desse modo, declararam os médicos que, por não ter havido cópula carnal, Josina ainda era virgem e honesta. Duarte é julgado com base nos artigos 268 e 269 com a pena de grau máximo combinado com o artigo 39, que diz agravada a pena quando o crime é premeditado. Porém, ele tem descontada a terça parte do tempo de 6 anos de prisão por estar assegurado pelo artigo 63, o qual diz que, quando um artigo não tem pena especial para a tentativa da prática do crime, a pena se reduz à terça parte. Um fato peculiar encontrado nesse processo foi uma carta, escrita pela professora de Josina, que afirmava ser a menina de bom caráter, comportada, educada, obediente e

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O código penal de 1890 estabeleceu novas modalidades de prisão, considerando que não deveria mais haver penas perpétuas e coletivas, limitando-se as penas restritivas de liberdade individual a, no máximo, trinta anos, com a prisão celular, reclusão, prisão com trabalho obrigatório e prisão disciplinar.

22 honrada. Aqui também constatamos a presença marcante da moral e da honra, dos bons costumes e comportamentos exigidos pela sociedade para a mulher. No processo que corresponde ao nº 9587, quem vai à delegacia fazer a denúncia é o responsável pela menor, que é órfã e vive sob os cuidados do tio, o Padre Houssim. O suposto deflorador, um ex-escravo de nome Jovelino Custódio da Conceição, foi criado pelo padre e contratado como cozinheiro da casa vizinha. Segundo a vítima, os dois mantinham relacionamento amoroso escondido do tio por medo de punição, mas que nunca haviam tido relações sexuais até o dia em que ele a forçou. O acusado nega o crime sem negar a ocorrência da relação sexual. Segundo Jovelino, os dois mantinham relações sexuais com o consentimento de Paula, que, apesar de menor, com apenas 15 anos, não era mais virgem. O acusado afirmou que quando chegava à noite, a menina deixava a janela de seu quarto aberta para que Jovelino entrasse e, nesses encontros, os dois mantivessem relações sexuais com o consentimento de Paula. Durante o processo, percebemos a tentativa da menina de incriminar Jovelino. O processo tem andamento e é chamada a testemunhar uma vizinha, de nome Marina de Jesus, que confirma a veracidade da fala de Jovelino e coloca Paula como uma pessoa desonrada. Segundo a testemunha, “a menor está há tempos entregue a mais torpe devassidão”. Esse processo comprova como a moral e a honra estavam diretamente ligadas e eram imprescindíveis para demonstrar o bom caráter e a confiabilidade da mulher. Vizinhos confirmaram também as visitas noturnas de outros homens ao quarto de Paula e a classificam como devassa, impura e, portanto, indigna de confiança. Esse fato elimina completamente a possibilidade de estupro por parte de Jovelino. O exame de corpo delito é feito, porém não é confirmado o estupro. Notamos que, quando Rachel Soihet (1989) fala da questão da importância da honra e da estigmatização da mulher diante da sociedade patriarcal e machista, ele a coloca sempre em questão. Nesse caso, podemos verificar tais aspectos, pois não sabemos se Paula foi realmente estuprada, pois o seu comportamento “incorreto” a colocou em posição para ser retalhada, acusada de leviana, ter sua confiabilidade colocada em risco, inocentando Jovelino de algum possível mal cometido. Esse processo não menciona o código e imaginamos que o motivo seria por deixar claro que o crime sobre o qual estava falando era o de estupro, que corresponde ao artigo 269 do Código Penal de 1890. No processo nº 9595, José Intrier seduz a menor Maria da Conceição, de 14 anos, com a promessa de se casar com ela. A menina engravida e a mãe denuncia o autor. Durante o processo, a menina falece, mas o mesmo tem seu andamento. José é preso e condenado por defloramento, previsto no artigo 267 e 268, combinado com o artigo 272, que presume ter havido violência, pois a pessoa ofendida era menor de 16 anos. A

23 ação policial não é interrompida pelo fato de a agredida ter falecido. A justiça continua com seus trâmites legais e o agressor é penalizado. A promessa de casamento tornava-se uma garantia para essas mulheres que confiavam seu corpo a homens que não cumpriam as promessas. Semelhante ao processo anterior, no processo nº 9254, a menor Maria Ferreira é induzida pela mãe a ter relações com Francisco, que era morador da cidade de Petrópolis. Ele conheceu a mãe da vítima no centro da cidade de Juiz de Fora e com ela foi morar na mesma residência na qual residia também Maria Ferreira Chaves. Com o não cumprimento da promessa de se casar, Maria se encontrou assustada e, com medo de ser difamada após ter perdido sua honra em troca de falsas promessas, vai trabalhar em casa de George Batista como doméstica. Depois de alguns meses trabalhando nessa residência, Maria denuncia George de tê-la violentado sexualmente. No decorrer das investigações, Maria se arrepende, volta atrás, conta a verdade e retira a acusação contra George. Esse processo é um exemplo de como a honra feminina está relacionada à honestidade sexual. Como afirma Veracley Lima Moreno (2005), a sociedade patriarcal legitimou o pensamento dominante masculino por vias informais como também por institucionais, como a Igreja, a família e a educação, colocando como natural esse ou aquele comportamento e recriminando ferozmente quem comportasse de forma diferente do esperado e do permitido. A honra feminina está diretamente ligada à preservação da família e da moralidade pública. As mulheres das classes baixas, ainda mais que as da elite, precisavam a todo momento provar que eram honradas. Esse medo de ser considerada desonrada levou Maria Ferreira Chaves a acusar George por um mal cometido por outro. O processo parece ser encerrado quando Maria conta a verdade e retira a acusação, mas não é especificado se a justiça abre outro inquérito para o verdadeiro agressor. Concluímos que Maria não teve sua honra reclamada. Analisando os processos criminais, pode-se perceber a necessidade de se criar uma nova ordem na tentativa de manter os bons costumes. Essa nova política extremamente moral concedeu à mulher a responsabilidade de manter a ordem através da família e do comportamento regrado, ordenado por valores morais transmitidos, como já foi dito, pelo sexo masculino, que dominava os costumes, a moral, ou seja, o pensamento em geral. A pesquisa analisou 34 processos, dos quais destacamos os que mais se encaixavam no objetivo deste ensaio. Em muitos processos, a investigação não era concluída devido à retirada da queixa, falta de provas ou era até mesmo suspenso sem uma explicação existente nos autos. Em nossa pesquisa, verificamos que muitos processos são semelhantes. Devido a esses fatores, selecionamos cinco processos que tiveram uma continuidade e uma análise detalhada do crime pelos órgãos de investigação.

24 A partir dessas análises, chegamos à conclusão de que as mulheres eram ouvidas, mas a responsabilidade de conservar a moral e ser a mantenedora do lar e da família não deixou de ser uma constante de suas vidas. O Código Penal de 1890 foi um dos motivos que impulsionou os juristas da época para mostrar o novo regime, ou seja, o republicano. Esse regime trazia consigo a idéia de desenvolvimento, de ciência e progresso. Junto a isso, os responsáveis por essa nova ordem queriam mostrar que o Brasil, além de ser um país que seguia as idéias de modernidade, era uma nação que seguia a moralidade. Essa função de manter os costumes ficou a cabo das mulheres, que sofreram duras penas ao tentarem se adaptar a essa nova ordem que levantava a bandeira do desenvolvimento, do progresso, cobrando um comportamento submisso e “correto” aos olhos da sociedade. Percebemos, então, que essas mulheres eram ouvidas, aparentemente bem tratadas, pois a mulher que entrava na delegacia para dar o seu relato era honrada, até que se provasse o contrário. A honestidade sexual era o ponto alto das preocupações nos processos.

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27 Data: 23-08-1894. Processo:N° 10252 Data: 10-12-1894. Processo: N° 10234 Data:11-12-1894. CAIXA 16 – Fundo: Fórum da Câmara de Juiz de Fora. Série 18. Processo: N° 9707 Data: 24-01-1895 Processo: N° 10233 Data: 11-03-1895. Processo: N° 1608 Data: 02-04-1895. Processo: N° 1607 Data: 21-08-1895. Processo: N° 10362 Data: 11-07-1896 Processo: N° 1606 Data: 16-08-1896. Processo: N° 9588 Data: 04-09-1896. Processo: N° 10245 Data: 15-12-1896 Processo: N° 9591 Data: 22-02-1897

28 Processo: N° 9593 Data: 15-03-1897. Processo: N° 1605 Data: 19-04-1897 Processo: N° 9594 Data: 24-06-1897. Processo: N° 9598 Data: 22-09-1897 Processo: N° 10239 Data: 27-09-1897. Processo: N° 10242 Data: 12-01-1898. Processo: N° 10970. Data:13-07-1898. Processo: N° 10232. Data: 18-07-1898 Processo: N° 9456 Data: 29-10-1898 Processo: N° 10216 Data:11-07-1899. Processo: N° 9586 Data: 19-05-1900 Processo: N° 9596 Data: 13-07-1900. Processo:: N° 9585 Data: 01-12-1900.

29 ENSINAR HISTÓRIA: o papel do professor nas representações dos alunos sobre a História. Marlos Magno Gomes de Menezes41 RESUMO

Muitos jovens concluem o ensino básico sem perspectivas de ingressar na carreira acadêmica, muito menos numa graduação de História, em decorrência das várias deficiências no ensino escolar. Salas apertadas ou super lotadas, insuficiência, má conservação ou ausência de recursos áudios-visuais que auxiliem o processo de ensinoaprendizagem. No caso específico da disciplina de História, o papel secundário que lhe é atribuída pela sociedade ou a classificação de disciplina meramente decorativa (ou narrativa) tolhe muitas vezes o interesse dos alunos pela mesma, o que, aliado a uma prática docente comprometida com esses estereótipos, resulta numa apreensão limitada do conhecimento histórico. Dentre tantas deficiências, pretende-se analisar nesta pesquisa como os procedimentos didáticos do professor em sala de aula influenciam nas representações dos alunos sobre a disciplina histórica e o perfil do “bom” professor desejado pelos mesmos. Em suma, pretende-se investigar como a didática do professor (seu relacionamento com os alunos, seus métodos teórico-metodológicos) influencia no interesse ou repulsa do aluno pelo conteúdo de História. Do ponto de vista pedagógico, este trabalho propõe ser mais um olhar sobre a didática dos professores no cotidiano escolar. Contudo, apresentamos um olhar relevante ao avaliar o peso de uma prática docente desvinculada do ato de educar ou que, mesmo bem intencionada, não consegue atingir esse fim. Palavras-chaves:

representações;

interação

entre

professor

e

alunos;

aprendizagem.

ABSTRACT

Many young people finish the basic teaching without perspectives of going into the academic career, even less in a History graduation, because of the several flaws in school teaching. Tight or crowded rooms, insufficiency, bad conservation or absence of audio and video resources that help the teaching-learning process. In the specific case of the History subject, the secondary paper that it’s given to it by society or the subject classification as merely decorative (or narrative) makes smaller the students’ interest for it that with a teacher’s practice compromised by these stereotypes result in a limited apprehension of the historical knowledge. Among so many flaws it’s intended to analyze in this research how the teachers didactic procedures in the class room influence in the students’ representation above the historic subject and the “good” teacher profile wished by them. In resume, it’s intended to investigate how the teacher’s didactic (his relationship with the students his teoric41 Aluno de Licenciatura Plena do curso de História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – 8º período. Professoras orientadoras: Maria Inês Sucupira Stamatto e Crislane Barbosa Azevedo.

30 metodologic methods) influences the student interest or disgusting for the History content. In the pedagogic point of view this work proposes to be one more look above the teachers’ didactic on the school quotidian, however relevant when analyzing the weight of a teachers’ practice not linked to the teaching act or that, well intended, can’t reach this mean. Key-words: representation; interaction between teacher and students; learning.

Introdução Muitos jovens concluem o ensino básico sem perspectivas de ingressar na carreira acadêmica, muito menos numa graduação de História, em decorrência das várias deficiências no ensino escolar. Salas apertadas ou super lotadas, insuficiência, má conservação ou ausência de recursos áudios-visuais que auxiliem o processo de ensinoaprendizagem. No caso específico da disciplina de História, o papel secundário que lhe é atribuída pela sociedade ou a classificação de disciplina meramente decorativa (ou narrativa) tolhe muitas vezes o interesse dos alunos pela mesma, o que, aliado a uma prática docente comprometida com esses estereótipos, resulta numa apreensão limitada do conhecimento histórico. Ao nos propormos à temática deste projeto de pesquisa, a ser realizado no período do Estágio II, disciplina obrigatória para formação docente no curso de História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, partilhávamos do seguinte conceito: o papel desempenhado pelo professor e sua interação positivo-negativa com os alunos facilita ou dificulta a aprendizagem dos mesmos, bem como interfere nas representações dos discentes acerca da práxis e funcionalidade da disciplina histórica. Visando a atingir os objetivos propostos por esta pesquisa, dentre eles, identificarmos as representações dos alunos sobre História e o papel de um “bom” professor, ministramos aula numa turma do 8° ano do ensino fundamental na Escola Estadual Desembargador Floriano Cavalcante na cidade do Natal. Recorremos ao método da pesquisa-ação, um mosaico de abordagens teóricometodológicas que nos proporcionou uma auto-reflexão, enquanto sujeitos desta pesquisa, junto à possibilidade de unirmos teoria e prática. A pesquisa-ação pressupõe envolvimento do aluno-professor ou do professor em um processo contínuo de investigação de sua própria prática pedagógica com o objetivo de promover uma ação, uma vez que trabalharia as representações dos alunos acerca de nossa própria docência durante o estágio. Dois questionários foram elaborados e distribuídos aos alunos, visando a coletar e analisar suas expectativas acerca de nossa prática docente e suas representações sobre História durante os dois meses do estágio. O primeiro questionário foi aplicado logo no primeiro contato que tivemos com a turma e o segundo, na aula de encerramento. Além

31 dos questionários, das observações e das anotações dos comportamentos, conceitos e opiniões dos alunos foram contínuos e reavaliados. 1. Entendendo os alunos: uma experiência de auto-avaliação e compreensão de suas representações Atualmente, sobretudo a partir da década de 1980, vem crescendo o debate entre os educadores sobre a influência das emoções, valores e representações dos alunos na aprendizagem. Muitos avanços já são perceptíveis em práticas pedagógicas que visam a considerar esses fatores, tais como o construtivismo. Tal debate nos proporciona um novo olhar sobre os nossos alunos, principalmente para compreendermos que os alunos não são “páginas em branco”, nas quais o professor deve anotar conteúdos e notas pontuais. O aluno traz para escola não somente caderno, livros didáticos, canetas ou pincéis, mas uma gama de valores. Com ele, entram na escola a família, a condição financeira e social, as crenças e concepções de mundo, as alterações biológicas e psicológicas. Segundo Paín,42 entender o aluno e a complexidade de seus valores é especialmente determinante no diagnóstico do problema de aprendizagem, na medida em que nos permite compreender sua coincidência com a ideologia e os valores vigentes no grupo. Amparados nas novas perspectivas pedagógicas, salientamos que a própria concepção dicotômica que ainda persiste sobre aprendizagem precisa ser quebrada: ao professor cabe ensinar, dar aula, atribuir notas; ao aluno assistir a aula (no sentido bem literal do termo), escutar e tomar a nota. O ato de educar exige um comprometimento, um querer se aventurar em mundos adversos ao seu, em terras antes desconhecidas. Saber que professor e aluno inserem-se no mesmo processo de aprendizagem, aprendendo juntos um com o outro. Para tanto, é preciso autocrítica e auto-conceito. Como disserta Duek,43 o professor é um profissional que necessita refletir sobre seu autoconceito, buscando o autoconhecimento, pois a relação professor-aluno vai além da transmissão de conteúdos, envolvendo as características psíquicas de ambos. O tema central deste trabalho resulta de inquietações anteriores sob um olhar retrospectivo das experiências vividas enquanto aluno do Ensino Médio da rede pública. Sentíamos dificuldade de assimilar os conteúdos matemáticos, físicos e químicos (estes em maior grau) devido à péssima relação que tínhamos com os professores que lecionavam tais disciplinas. Esses professores pareciam mais preocupados com o cumprimento da carga horária, a proximidade das férias e feriados. Priorizavam os 42 43

PAÍN, Diagnóstico e Tratamento dos Problemas de Aprendizagem. Viviane Preichardt Duek é especialista em Educação Especial e Mestranda do Programa de Pós-

Graduação em Educação/CE/UFSM.

32 alunos com boas notas e que deles sentavam próximos, parecendo explicar os assuntos somente para esses. Não se esforçavam para construir uma relação positiva com aqueles que estavam aquém da aprendizagem dos conteúdos de sua disciplina. A antipatia pelos professores ocasionou-nos o desinteresse pelas disciplinas que lecionavam. Convém valer-nos das palavras do professor Georges Gusdorf

44

, as quais

afirmam que se quando “adultos esquecemos o que em crianças aprendemos o que nunca desaparece é o clima desses dias de colégio: as aulas e o recreio, os exercícios e os jogos, os colegas”. Ou seja, aqui está assinalado o valor pedagógico da relação professor-aluno que fica marcado, positiva ou negativamente, na personalidade de cada educando. Ainda sobre o peso que exerce o professor no desenvolvimento das capacidades do indivíduo, recorremos ao trabalho desenvolvido pela professora Maria Isabel da Cunha45 que, apesar de frisar o peso da relação professor aluno, não reduz o significado dessa interação ao âmbito da sala de aula, como assinala Gusdorf. Ela marca toda a vida. Propendendo-nos a compreender as representações dos alunos acerca da disciplina histórica, precisamos, primeiro, perceber que a disciplina de História faz parte de um contexto maior de sociedade e ressaltarmos historicamente sua evolução enquanto componente do currículo escolar. Podemos destacar dois grandes momentos significativos na evolução da disciplina de História. O primeiro momento ocorre no século XIX, com a introdução do ensino de História na grade curricular. O país vivenciava a pós-independência e os líderes do movimento ansiavam pela construção de uma história pátria que fizesse a “genealogia da nação”, para fundamentar suas raízes na tradição européia e na visão eurocêntrica do mundo. O segundo momento ocorreu nas décadas de 30 e 40 do século XX, período no qual os intelectuais eram convocados e subsidiados pelo Estado Varguista a descerem das “torres de marfim” para participarem da elaboração de uma História da Nação ancorada no desenvolvimentismo e nacionalismo exacerbado que visavam a eliminar as diferenças regionais.46 A visão de História compartilhada, por exemplo, pela maioria das escolas públicas e/ou privadas, como uma disciplina com um fim cívico e moral, que desperte interesse pelo passado da Nação e seus heróis, ainda persiste e permeia os calendários letivos (Tiradentes na Inconfidência, Dom Pedro I na Independência entre outros)47, bem como se encontra pautada nas exigências pretendidas pelos dois grandes momentos citados da 44

GUSDORF, George CUNHA, Maria Izabel da. A relação professor-aluno. In: Ilma Passos Alencastro. Veiga. Repensando a didática. Campinas, SP: Papirus, 1998. 45 CUNHA apud ZAMBONI, Ernesta. Representações e linguagens no ensino de história. Revista Brasileira de História. 1998, vol. 18, no. 36, pp. 89-102 46 Parâmetros Curriculares Nacionais, p. 19, 2001. 47 Embora tenha havido nas últimas décadas do século XX um esforço para ampliar o leque de visões e abordagens historiográficas acerca de múltiplos sujeitos da e na História, o dia do índio, por exemplo, ainda é comemorado com atividades culturais ou curriculares que o romantizam e o colocam submisso e passivo às determinações do homem branco europeu. O índio é sempre e somente vítima, nunca protagonista.

33 evolução nacional de nossa disciplina. Ou seja, exigências que ultrapassam os limites estreitos da sala de aula. Para Cunha, a escola exige comportamentos adequados a seu histórico e sua credibilidade. Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN)48 trazem uma perspectiva nova, evidenciando uma História crítica dos fatos, preocupada em acompanhar os avanços historiográficos e com o rompimento dos métodos tradicionais de ensino – memorização e reprodução – tendo em vista ensinar para os alunos a História como se faz história. Será assim que se ensina na prática a nossos alunos? O que eles pensam da disciplina de História? As representações são construções mentais que fazemos acerca da realidade e são influenciadas por nossos valores e experiências, individuais ou coletivos. A representação não é a realidade em si, apesar de fazer parte da mesma, mas o que absorvemos do real, o que percebemos ao nosso redor. A representação é aquilo que se tornou palatável a cada um de nós e que, evidentemente, condicionará nossas ações para atingir determinados fins. Ou seja, dependendo da maneira como concebemos (ou representamos) as coisas, atuaremos em nossa realidade formulando conceitos e valores que permearam nossas relações do presente. Nas representações e linguagens produzidas pelos alunos sobre o conhecimento histórico, podemos afirmar, ancorados na pesquisa da professora Ernesta Zamboni,49 que elas estão inseridas num contexto atual de mudança de paradigmas, Há uma crise dos valores contemporâneos, ao fim de uma visão homogênea e absoluta em considerar e analisar os fenômenos sociais e históricos, à visão unitária do mundo, ao questionamento dos discursos científicos, à idéia de progresso, de nação e formação de nacionalidade que caracterizaram, e às vezes ainda caracterizam, o ensino de história em determinada época. A Escola, portanto, não está isenta dessas mudanças econômico-sociais.

No

caso específico de nossa área do conhecimento, a sua evolução, enquanto disciplina da grade curricular (como já foi evidenciado), permitiu-nos perceber que os objetivos do Estado e das elites brasileiras condicionaram a disciplina ao papel de legitimadora de ideologias e à construção de um mito de unidade nacional.50 Ideologias queridas e favorecidas materialmente pelas elites do país. Atualmente, elites que buscam legitimação diante de um mundo do descartável, efêmero, volante.

48

Os Parâmetros Curriculares Nacionais de História utilizados nesta pesquisa foram sancionados na administração do então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso. 49 Parâmetros Curriculares Nacionais. p. 89-102, 1998 50 As reformas empreendidas pelo Ministério da Educação na gestão Capanema, durante o Governo Vargas, no ano de 194, estão perfeitamente ancoradas nessa perspectiva.

34 Diante disto, destacamos aqui a abrangência da interação professor/aluno, em que “ser professor e ser aluno extrapolam a relação de ensinar-aprender os conteúdos de ensino”. Ambos precisam compreender seu papel e desempenhá-lo criticamente nesta sociedade que muitas vezes mina suas potencialidades. O ensino de História excede a capacidade de memorização de datas e fatos passados. Ele deve, sobretudo, levar os alunos ao questionamento de sua própria realidade, identificando problemas e possíveis soluções.51 O exercício da docência deve proporcionar e nos proporcionou uma auto-reflexão e permitiu elaborar práticas educativas que entendam o aluno como sujeito e auxiliem no processo de aprendizagem do mesmo. Procuramos dar voz aos alunos, saber o que pensam, o que esperam da escola, da disciplina e do professor. Os questionários por eles respondidos permitiram-nos identificar suas representações. Torna-se inegavelmente relevante compreendermos os nossos alunos a partir do que eles pensam de nós e do saber que partilhamos, para melhor nos comprometermos com uma prática pedagógica vinculada ao ato de desvendar o desconhecido, construir conhecimento novo e desenvolver relações interpessoais positivas. 2. Refazendo histórias: experiências da docência e análise dos dados coletados O exercício da docência permitiu-nos entrelaçar histórias, desvendar outros “mundos”. O primeiro contato que tivemos foi bastante produtivo, repleto da pouca experiência que tínhamos, mas também de muitas expectativas. Após exercermos contatos verbais, os alunos foram indagados através de um questionário escrito sobre o que aprendem quando estudam História, o que esperam da disciplina e do professor estagiário. Nesse primeiro questionário, por meio do qual buscávamos compreender como os alunos concebiam um bom professor de História, percebemos respostas variadas. Trinta e dois alunos responderam esse primeiro questionário.52 As competências que, segundo a maioria deles, o bom professor precisa ter é “saber ensinar”, “ter clareza na explicação”, “ser atencioso”, “saber lidar com os alunos”, “colocar moral na turma”, “ser extrovertido” e “relacionar conteúdos com diversão”. Houve ainda quem considerasse importante “liberar cedo” e “melhorar a nota”. Esses últimos souberam exigir bem o cumprimento de suas expectativas. No decorrer de nosso estágio, diante dos dados coletados, esforçamo-nos para atender ou superar essas expectativas. Logo nas primeiras atividades, percebíamos a dificuldade dos alunos de fazerem reflexões, escreverem textos, expressarem opiniões, 51

Parâmetros Curriculares Nacionais. p. 43, 2001. A faixa etária dos mesmos gira em torno dos 12/ 13 anos de idade. Para usarmos a linguagem escolar, eles encontram-se na “idade própria” para tal série. 52

35 refazerem conceitos, visando a construir um pensamento crítico acerca do que nos foi deixado sobre o passado. Constatamos a ausência do hábito da leitura e crítica de textos. A maioria dos alunos somente se esforçava, mesmo que minimamente, para concluírem alguma atividade se essas valessem nota. Não estavam interessados na aquisição ou produção de conhecimento histórico, muito menos em reelaborar alguns conceitos sobre a importância da disciplina. Importava-lhes atingir a média e serem aprovados. Os alunos, mesmo que em sua maioria considerem importante o saber ensinar, em primeira e na única pessoa do professor, como passos iniciais para uma boa relação deste com seus alunos, ressaltaram a necessidade dos aspectos afetivos, de se ter um contato mais aberto com o mediador da disciplina. Os contatos ideais são aqueles que gerem atenção, paciência, comprometimento com a aprendizagem daqueles que estão com dificuldades na assimilação dos conteúdos. Essas constatações concordam com a hipótese deste projeto de que uma boa relação entre o professor e seus alunos facilita no processo de aprendizagem. Nossas aulas foram pautadas na intenção de criar vínculos com os alunos, para que fossem estimulados a estudar e partilhar suas idéias, dificuldades e preferências,53 haja vista considerarmos a sala de aula como um espaço formador para o aluno, espaço em que ele aprende a pensar, elaborar e expressar melhor suas idéias e a ressignificar suas concepções. Ainda no primeiro questionário, os alunos responderam sobre o que aprendem quando estudam História (pergunta com resposta dissertativa) e se a História os conduz a refletir ou a decorar datas ou nomes de heróis (pergunta com resposta objetiva). As respostas não concordaram com o andamento e evolução das atividades realizadas no decorrer de nossa disciplina. Vinte e dois alunos concordavam que a História nos permite refletir sobre o que aconteceu no passado para compreender o presente. No entanto, quando indagados sobre o que aprendem em História, foram concisos ao dizer: “tudo o que aconteceu no passado”, “nomes de reis e rainhas”, “história de alguns heróis de nosso país no passado”, “coisas antigas”. Interessante foi a resposta de um dos alunos sobre essa mesma questão e que representou bem a visão de História que muitos deles partilham: “em História aprendi que Napoleão era gay e que ele conquistou vários lugares”. Essa afirmação permite-nos perceber que o que lhes era ensinado era a História dos grandes acontecimentos, dos grandes personagens, do sujeito individual, uma História pensada como um conjunto de acontecimentos singulares, excepcionais, formada por pessoas excepcionais (reis, príncipes, governantes, nobres). Realidade distante das tendências historiográficas do século XX, que abandonaram a noção do sujeito individual e reivindicavam 53

Atividades como perguntar-lhes, antes de aplicar qualquer conteúdo, como foi o final de semana, pois nossa aula se dava na segunda-feira e reflexões de vida baseadas em frases de grandes autores mostraramse bastante produtivas.

36 progressivamente a inclusão de novos personagens na História, e das propostas dos 54

Parâmetros Curriculares Nacionais que, dentre os objetivos do ensino de História na escola, destaca que o aluno compreenda “que as histórias individuais são partes integrantes de histórias coletivas”.55 Concluímos que concebiam a História como uma totalidade, como se o que estivesse contido no livro didático fosse o próprio passado ou “tudo o que aconteceu no passado”. Para a maioria, a História consiste numa disciplina “decorativa”, puramente narrativa, ancorada a uma visão exclusivamente política dos fatos. Uma História distante de nós, como se constituísse um mundo particular, restrito ao passado. Uma visão que implicitamente exclui o próprio historiador do processo de construção do conhecimento e também a nós, novos atores sociais. No segundo questionário, aplicado em nossa aula de encerramento, aumentamos a quantidade de perguntas com o intuito de perceber se houveram mudanças nas concepções dos alunos sobre a História e o papel do professor. Ampliamos um pouco mais nossa visão e perguntamos sobre a importância de se estudar história ou a possibilidade de prestarem vestibular para um curso superior de história ou que envolva essa disciplina. Trinta e sete alunos responderam a esse último questionário,56 no qual mais de 75% consideraram a História como uma matéria que simplesmente estuda o passado (estudar História para os mesmos, conforme resultado obtido do questionário anterior e das outras atividades realizadas em sala, consiste em aprender/decorar o que aconteceu no passado distante, pertencente aos reis e rainhas). Essa visão estava evidentemente nutrida pelos seus professores de História (anteriores e atual), que, segundo eles, reforçavam aulas majoritariamente expositivas, sem participação dos alunos, as quais terminavam com exercícios para casa [sem qualquer acompanhamento], com questões objetivas ou pesquisas do tipo “quem foram os líderes do movimento da Inconfidência Mineira?”. Indagados se pretendiam fazer vestibular para História, vinte e três alunos, mais de 60%, disseram que não. Outros argumentaram que estudar História não é importante, posto que não é matéria obrigatória para concursos. Mesmo assim, a maioria dos alunos não demonstrou repulsa à História; simplesmente viam-na como uma disciplina complementar. Após essas análises, podemos concluir que realmente o papel do professor enquanto mediador ou ditador57 do processo de produção do conhecimento histórico 54 55

A Escola do Annales (décadas de 1920/30) reivindica a multiplicidade de sujeitos da e na História. Parâmetros Curriculares Nacionais, p. 43, 2001.

56

Realizamos ainda perguntas orais e escrevemos no quadro as opiniões dos alunos sobre o que consideram como um bom professor. Em contrapartida, colocamos também no quadro aquilo que esperávamos por bons alunos.

57

Aqui o termo ditador foi empregado no sentido de evidenciar “aquele que dita” e rege todo o processo de produção do conhecimento, ou seja, o professor que se limita à exposição oral de conteúdos e desconsidera os referenciais dos alunos

37 influencia na concepção e/ou interesse dos alunos pela disciplina histórica. Esses interesses ou desinteresses foram perceptíveis na ocorrência ou ausência de participações verbais dos discentes durante as aulas quando solicitados. Sendo mediador, o professor não expõe tudo o que sabe pelo prazer de ser admirado ou de modo algum expõe o conteúdo sozinho; mas busca a participação e a opinião dos alunos, fomenta a curiosidade dos mesmos e incentiva-lhes a percorrer os caminhos da pesquisa, reflexão, análise crítica. Durante nossa prática docente, buscamos refazer nosso modo de proceder ou agir. O que fazer para que os alunos tenham interesse novo pela História? Essa pergunta nos inquietou e nosso esforço foi exatamente voltado para refazer essas concepções, renovando neles o interesse pela História e tentando aproximá-los da produção do conhecimento histórico. Os objetivos de nossas aulas foram sendo reformulados a cada contato com os alunos, visando a atingir um melhor aproveitamento dos conteúdos pelos mesmos. Os momentos expositivos foram pautados nas dificuldades deles quanto à apreensão do saber histórico. Os alunos não tinham noção de como era produzido o conhecimento histórico, por quem era produzido, como era produzido, como chegou até nós etc. Trabalhamos com bibliografias que expunham opiniões diferentes sobre o mesmo fato. Utilizamo-nos de recursos disponíveis a cada um deles - cadeiras, fardamentos, riscos nas paredes da sala para explicar os conceitos de fonte (documento) e bibliografia (produção de conhecimento histórico baseado nas fontes). Recorremos à produção e a (re)produção de textos a partir dos conteúdos dados em sala de aula.58 Um dos textos trabalhados em sala de aula foi o da professora Lucia Lippi Oliveira, As festas que a república manda guardar, diante do qual pretendíamos que os alunos refletissem sobre a criação de algumas datas oficias e heróis da nação a serem comemorados e propagados pela História do Brasil. Visávamos, exatamente, a contrabalançar a visão de História expressa pelos alunos no primeiro questionário acerca de uma História das grandes personalidades. Evidenciamos os sujeitos emudecidos da História (pobres, camponeses e escravos, índios, homens livres e sem posses, analfabetos etc) principalmente quando tratamos o assunto referente à Independência política do Brasil.59 Pretendíamos, no entanto não foi possível, utilizar mapas e vídeos, que poderiam também servir de introdução a um novo tema ou conceito histórico. Esta pesquisa permite-nos afirmar que o professor, não somente ele, mas toda a instituição escolar e a sociedade, pode se comprometer com uma educação de sucesso 58

Consideramos que a produção textual age como força motriz que impulsiona o gosto pela pesquisa histórica e análise crítica dos fatos. 59 Nossas aulas foram pautadas pelo plano de unidade do professor da disciplina, que nos orientou a seguir três capítulos do livro didático por ele utilizado: COTRIM, Gilberto. Saber e fazer História História Geral e do Brasil 8ª série, 3ª ed. 2005 rev.

38 que forme pensadores, não meros reprodutores, que forme sujeitos críticos e atuantes, personagens do cenário histórico. Ou então, pensando (e construindo) um futuro próximo, deixar a alternativa de esses alunos conceberem a História como ciência rica e possível de ser estudada profissionalmente.

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39 A EXCLUSÃO DO INCLUÍDO: a busca pelo equilíbrio Vanda Sarmento Borges Mesquita (UFRN)60 Ana Cristina Oliveira da Silva (UFRN)61 Professoras orientadoras: Mestre Crislane Azevedo e Doutora Maria Inês Sucupira Stamatto62

RESUMO

O foco deste trabalho é a perspectiva de atendimento às vozes que clamam pela democracia, pela cidadania e a educação especial para portadores de deficiências auditivas, entre outras. Há muito esse assunto vem sendo o centro de alguns debates e reflexões sobre a situação, pois, até o século XVIII, a “deficiência” estava ligada a questões místicas e de ocultismo. Este trabalho mostra o resultado de estudos durante o Estágio II, disciplina obrigatória do curso de História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. As observações foram realizadas sobre um aluno que cursa o 8º ano de uma escola pública situada na cidade do Natal. O aluno em questão, portador de deficiência auditiva, não faz leitura labial e desconhece a linguagem em LIBRAS. A sua inclusão em uma sala de ensino regular corresponde às expectativas dos órgãos envolvidos no projeto de inclusão de alunos com deficiência auditiva? Quais as alternativas técnico-educacionais, psicopedagógicas e sociais criadas no sistema regular de ensino que podem contribuir para o processo de aprendizagem do aluno observado? Do ponto de vista pedagógico, a pesquisa se justifica na medida em que se torna relevante um planejamento de aula que possa proporcionar um melhor ensino ao aluno deficiente auditivo sem que, com isso, haja uma interferência na aprendizagem dos outros alunos ouvintes. Palavras-chaves : inclusão; técnicas pedagógicas; instrumentos pedagógicos; aprendizagem.

ABSTRACT The focus of this work is the perspective of attendance to the voices that call for the democracy, the citizenship and the special education for carriers of auditory deficiencies, among others. It has very this subject comes being the center of some debates and reflections on the situation, therefore until century XVIII, the “deficiency” was on the mistics questions and of ocultism. This work shows the result of studies during Period of training II disciplines obligator of the course of History of the Federal University of the Rio Grande do Norte. The comments had been carried through on a 60

Aluna de Licenciatura Plena do curso de História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – 8º período. Endereço para contato UFRN CCHLA Departamento de História. Telefone contato 88188432(84). [email protected] 61 Aluna de Licenciatura Plena do curso de História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – 9º período. Endereço para contato UFRN CCHLA Departamento de História Telefone contato 88951378(84). Kriska_16hotmail.com 62 Professoras do Departamento de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – orientadoras.

40 pupil who attends a course 8º year of a situated public school at the Natal city. The pupil in question, carrier of auditory deficiency, does not make labial reading and is unaware of the language in sign language. Its inclusion in a room of regular education corresponds to the expectations of the involved agencies in the project of inclusion of pupils with auditory deficiency? Which the technician-educational, psycopedagogical and social alternatives created in the regular system of education that can contribute for the process of learning of the observed pupil? Of the pedagogical point of view the research if justifies in the measure where if it becomes excellent a planning of lesson where if it can provide one better education to the auditory deficient pupil without with this it has an interference in the learning of the other pupils listeners. Key-words: inclusion; pedagogical techniques; pedagogical instruments; learning.

A educação inclusiva está no centro de um debate há muito travado entre os prós e contras para sua completa efetivação. O objetivo deste trabalho foi o de verificar que procedimentos pedagógicos foram adotados em relação à inclusão de alunos com deficiência auditiva. O aluno em questão para este estudo é portador de deficiência auditiva e não faz linguagem labial. No caso, realizamos observações e tomamos alguns depoimentos em uma sala de aula de 8º ano, na qual ministramos aula de História durante um bimestre. Procuramos aprofundar como se dá na realidade a inserção de alunos com necessidades especiais auditivas, as suas dificuldades com relação à ação docente, bem como as necessidades formativas que requerem compreensão para uma prática pedagógica inclusiva. A opção pelo estudo de caso usando a metodologia da etnografia deveu-se ao fato de que essa metodologia permite investigar as relações e interações entre o aluno deficiente, o professor e os alunos ouvintes numa escola inclusiva sob a perspectiva intercultural, Conforme Souza:63 “A abordagem etnográfica vem se firmando enquanto importante instrumento de pesquisa na área educacional na América Latina” (1997. p.139). Como questões norteadoras, propomos: a inclusão do aluno colocado em uma sala de ensino regular tem correspondido ao que se propõe o Ministério de Educação com relação à meta de maior rendimento do aluno? A utilização de recursos visuais proporciona ao aluno melhores condições de aprendizagem de História, tornando-a mais igualitária, mais justa? Os procedimentos adotados pela escola para uma análise da sala de aula ao lado das experiências e das vivências do sujeito envolvido na pesquisa se coadunam?

63

SOUZA, M.P.R. de. As contribuições dos estudos etnográficos na compreensão do fracasso escolar no Brasil. In: MACHADO, A.M.; SOUZA, P.R. de, (orgs.) Psicologia escolar: em busca de novos rumos. São Paulo: Casa da psicologia, 1997. P.139.

41 1. A educação especial através do tempo

Até o século XVIII, a “deficiência” encontrava-se ligada a questões místicas e de ocultismo. Para o cristianismo, a idéia de condição humana como imagem e semelhança de Deus incluía perfeição física e mental. Os portadores de deficiências, por sua vez, eram colocados à margem dessa condição por não apresentarem “semelhança com Deus” (MAZZOTA, 1996, p.160). Outro fator a ser mencionado diz respeito ao fato de o “deficiente” ser, antes de tudo, segundo o senso comum da época, um “incapacitado” e de condição imutável, fazendo com que a sociedade não se preocupasse em criar serviços para atender às necessidades individuais dessas pessoas. No Brasil, a organização de serviços para atendimento a deficientes visuais, auditivos, deficientes mentais e deficientes físicos teve início no século XIX, inspirada nas experiências da Europa e Estados Unidos. Gilberta Jannuzzi,64 em seu levantamento histórico sobre Educação Especial no Brasil, conclui que essa foi o centro das atenções e preocupações “apenas nos momentos e na medida exata em que dela sentira necessidade os segmentos da sociedade”. Para ela, ainda no Brasil Colônia surgiram instituições de atendimento à pessoa diferente, apontando que, no século XIX, a educação popular e, sobretudo, a dos “deficientes mentais”, não era motivo de preocupação da sociedade, havendo registros apenas de algumas iniciativas isoladas. A inserção da Educação Especial na política educacional brasileira ocorreu, de fato, somente no final dos anos cinqüenta e início da década de sessenta do século XX. Os anos oitenta do século XX foram marcados por muitas mudanças no âmbito social. A Declaração de Salamanca65 põe em prática um conjunto de princípios que refletem as novas políticas educacionais, dentre as quais destacamos: o direito à educação é independente das diferenças individuais; as necessidades educativas especiais não abrangem apenas algumas crianças com problemas, mas todas as que possuem dificuldades escolares; a escola é que deve se adaptar às especificidades dos alunos, e não o contrário; o ensino deve ser diversificado e realizado num espaço comum a todas as crianças. 2. Nossa experiência 64

JANNUZZI, Gilberta S. de M. A luta pela educação do deficiente mental no Brasil.2.ed. Campinas:

Autores Associados, 1992. P.9. 65

A Declaração de Salamanca foi aprovada na Conferência mundial sobre necessidades educacionais especiais: acesso e qualidade, sob o patrocínio do Ministério da Educação Ciências e Tecnologias da Espanha e pela UNESCO.

42 Ao se pensar na inclusão de alunos com necessidades educacionais especiais na sala de aula regular, é preciso ter em mente que isso exige mudanças no que diz respeito à preparação dos professores, alunos e demais integrantes desse espaço chamado escola, além de alterações em suas políticas educacionais. Nesse cenário, o currículo padrão é deixado de lado para dar espaço à construção de uma aprendizagem baseada em uma prática pedagógica centrada na necessidade do aluno, prática que não se limite unicamente em transmitir uma instrução teórica. Para que esses alunos possam obter resultados favoráveis, é importante se considerar alguns aspectos, tais como o compromisso e a dedicação da equipe pedagógica. Há uma polêmica causada entre os que defendem a idéia de que os portadores de necessidades especiais apresentam diferenças muito grandes em relação aos alunos do ensino regular e, por isso, devem ser educados em um sistema específico, que contenha metodologias próprias. A não inclusão seria algo necessário, pois esses portadores dentro de uma sala regular prejudicariam o trabalho com os outros alunos. Porém, existe uma segunda vertente que defende a inclusão, alegando que é por meio das diferenças que se deve trabalhar o ensino, pois a relação interpessoal é uma realidade complexa, que se inicia na aceitação do “outro” com as suas diferenças, tornando, assim, o espaço da sala de aula muito mais rico. De acordo com essa visão, a educação especial seria um problema, por privar a todos do convívio com as diferenças, além de reafirmar uma discriminação socialmente estabelecida. Inspirada na Declaração Mundial de Educação para Todos66 e na Declaração de Salamanca, a Educação Inclusiva defende o acesso de todos à escola, mediante mecanismos e práticas educativas que respeitem as necessidades do educando. A partir dessa questão, cabe indagar que procedimentos adotados pelas escolas inclusivas possibilitam ou limitam o desenvolvimento das potencialidades do aluno portador de deficiência auditiva na sala de alunos regulares. O discurso que dá ênfase à “educação para todos”, “cidadania”, “inclusão”, “direito à diversidade”, “respeito às diferenças” é apropriado por diferentes interesses político-ideológicos, que soam na maioria das vezes como meros clichês, pois, mais que um discurso composto de frases feitas, deve-se tomar atitudes concretas e não demagogas, como na maioria dos casos ligados à educação. Dada a importância da sala de aula na construção de significados e nas relações sociais, as reflexões aqui apresentadas foram feitas com base na análise dos depoimentos dos sujeitos dessa pesquisa sobre as seguintes questões. Perguntado sobre as mudanças provocadas em sua prática pedagógica, o professor responsável pela 66

A Conferência Mundial sobre Educação para Todos foi realizada em 1990, na Tailândia, sob o patrocínio da UNICEF, PNVD, UNESCO e Banco mundial.

43 disciplina de História afirmou que muito pouco mudou, já que suas aulas continuam voltadas para os ouvintes, usando como argumento a não leitura labial do aluno e o fato de ele, o professor, não dominar a linguagem em LIBRAS. Segundo o professor, as mudanças apontam pequenos ajustes nas práticas de ensino e nas rotinas da sala de aula, tais como a utilização mais acentuada do quadro e do giz. No caso específico da sala do 8º ano, as maiores reclamações vindas dos alunos ouvintes diz respeito à obrigatoriedade da transcrição do resumo da aula posta no quadro para um maior acompanhamento do aluno portador de necessidades especiais. Alguns alegam que, por causa de um aluno, todos têm de copiar, tornando, assim, a aula mais lenta, opinião com a qual o professor concorda, mas, por uma questão de ética, ele não poderia deixar somente o aluno deficiente copiar, o que não seria uma atitude politicamente correta. Perguntado sobre os principais questionamentos e dificuldades da função docente, o professor respondeu que a burocracia seria um grande entrave para a utilização dos aparelhos utilizáveis para prática pedagógica e que a escola não prioriza os pedidos feitos pelos professores, que têm alunos com qualquer tipo de deficiência, não só auditiva, como é o caso do aluno em questão. Outro tipo de dificuldade apontado pelo professor é o fato de se pegar dando aula para uma turma de alunos regulares e, quando se olha para o aluno surdo-mudo, ter a certeza de que ele não o está ouvindo, gerando uma sensação de frustração, um vazio. E um maior questionamento vem da diversificação dos métodos a serem utilizados na aprendizagem dos alunos na totalidade, isto é, abrangendo os chamados “normais” e os com deficiência auditiva. Em seguida, o professor lista que não pode utilizar a música com instrumento de aprendizagem, apesar de que ele gostaria de montar um projeto em que se utilizaria a música para o estudo de História, idéia essa logo abortada diante da permanência do aluno surdo na sala de alunos regulares. Foi por nós sugerido que a música poderia ser substituída pelo uso da literatura no ensino de História. A sala de aula, como espaço de construção de um saber, deve proporcionar aos seus estudantes um momento de fazer pesquisa, dando, assim, oportunidade de os alunos descobrirem o espaço histórico e com ele se envolverem. O filme, apesar de ser um recurso visual, também não pode ser utilizado com muita assiduidade, porque, segundo o professor, o aluno não tem uma agilidade muito grande na parte da leitura, visto que nos filmes as legendas passam muito rapidamente. Outra sugestão que apresentamos, através do argumento de que a prática de filmes em sala de aula tem sido um dos recursos mais utilizados pelos professores, na medida em que há uma maior aceitabilidade por parte dos alunos, foi a de que se utilizem os filmes de Charles Chaplin, que tem tudo a ver com o aluno deficiente auditivo, pois a mímica,

44 a pantomímica e a linguagem corporal utilizada em seus filmes são de fácil entendimento tanto para o aluno deficiente como para os alunos ouvintes. No caso da impossibilidade dos filmes de Chaplin, pode o professor providenciar outro filme com legendas, contanto que seja providenciado um “script” por escrito ou até mesmo um resumo do filme para um prévio entendimento do aluno deficiente. É necessário um olhar crítico e observador acerca das práticas significativas que dão abrangência tanto ao aluno deficiente como aos ouvintes. Procuramos dar voz aos alunos que convivem com o aluno observado, pois a caracterização do ambiente educacional do incluso deve ser realçada nas relações entre ele e os alunos regulares. Todos os debatedores sobre o assunto inclusão são unânimes em afirmar que devemos derrubar as barreiras físicas e psicológicas e que se deve buscar a acessibilidade a todos. Na análise sobre o convívio do aluno enfocado com os outros alunos, podemos observar que, para uns, o fato de estar no mesmo espaço físico com um aluno com deficiência auditiva só traz como negativo o fato de se “perder tempo” copiando do quadro os esquemas passados pelo professor. Contra essa prática, eles usam como argumento o fato de estar tudo no livro didático, não havendo razão de o professor obrigá-los a copiar quando só um aluno tem deficiência? Para outros, esse fato não causa nenhum transtorno. Fora isso, não nos deparamos com nenhum outro tipo de discriminação com relação à situação. Levando-se em consideração que acreditamos que o papel da escola é construir cidadania através do acesso ao conhecimento, isto só é possível se dentro da sala de aula tivermos pessoas com diferentes credos, saberes, pessoas sem deficiências aparentes, com deficiências para que, sobretudo, possam passar pela experiência de conviver com a diversidade, tão necessária para vida. Nessa sala, em específico, não fica evidente qualquer tipo de segregação quanto ao aluno envolvido, pelo contrário, os alunos mostram-se solidários, em sua grande maioria, na hora de prestar ajuda ao aluno com essa dificuldade especial. Ao longo de todo um processo investigativo, buscamos observar algumas das dificuldades presentes na ação docente, apesar de não compartilharmos com o argumento de que o despreparo do professor seja um álibi para a não inclusão do aluno deficiente auditivo. Isso fica claro a partir do discurso dos pesquisados, evidenciandose a existência de muitas dificuldades na realização do trabalho pedagógico com o aluno portador de deficiência auditiva. Fica claro também que essas barreiras encontradas pelo professor vão desde a relação estabelecida entre o professor e o aluno, entre este e os demais alunos ouvintes,

45 e do conjunto professor/alunos regulares/aluno deficiente/equipe. Endossamos Massetto67, quando afirma: [...] “O processo de aprendizagem se realiza através do relacionamento interpessoal muito forte entre alunos e professores, enfim, entre alunos, professores e direção. Cria-se assim um clima afetivo, responsável, em muitos aspectos, pelo sucesso (ou fracasso) da aprendizagem. [...] a aprendizagem é um processo intencional, isto é, orientado por objetivos a serem alcançados por seus participantes. Interessa a esse processo que os alunos consigam aprender bem o que se propõe, através da organização de condições apropriadas.(1997, p.14-15)

A imposição do Governo para que os alunos com qualquer tipo de deficiência freqüentem escolas comuns tem trazido uma maior e mais séria reflexão acerca da nossa concepção de escola e das nossas práticas pedagógicas. Se não estamos preparados, precisamos urgentemente nos preparar, discutir e apresentar alternativas para uma sólida escola inclusiva. A elaboração de dezenas de projetos para incluir deficientes auditivos nas escolas não basta por si só. O aluno pode até se sentir bem ao conviver com os outros colegas que o aceitam, mas, no futuro, se sentirá frustrado quando se reparar com a realidade e começar a encontrar obstáculos a sua frente. Certamente ele irá culpar todo o sistema educacional, que se preocupou em colocá-lo em uma sala de aula junto aos chamados alunos regulares, mas não se preocupou em prepará-lo para a realidade da vida. No caso do aluno observado durante o período mencionado do estágio, podemos concluir que, no processo de inclusão, o sujeito seja capaz de compreender as muitas linguagens e múltiplos códigos que estão envolvidos, como, por exemplo, a pintura, a charge, o cinema, as histórias em quadrinhos. A verdadeira prática de leitura ultrapassa a decodificação de letras ou imagens visuais para a extração de informações, privilegiando, dessa maneira, os alunos não portadores de deficiência auditiva, havendo, portanto, uma maior interação entre discente e docente na sala de aula. Perguntado, durante a pesquisa, se ele se sentia à vontade na sala de aula junto aos outros colegas, ele respondeu que se sentiria melhor em uma sala onde as aulas pudessem ser ministradas por professores na linguagem de LIBRAS68, evidenciando-se, portanto, a necessidade de uma implementação efetiva de uma política de inclusão 67

MASSETO, Marcos Tarciso. Didática: a aula como centro. São Paulo: TDF, 1997. p.14-15. 68

Quanto à utilização da Língua de Sinais do Brasil em nossas escolas regulares, há alguns obstáculos. Como primeiro obstáculo, podemos elencar a necessidade de intérpretes e não há um número suficiente de profissionais qualificados para desempenhar essa função. São muitas escolas que aceitam crianças portadoras de deficiência auditiva e, com um número ínfimo de intérprete, torna-se inviável um acompanhamento mais adequado em tempo hábil. Uma solução mais viável seria, portanto, a capacitação do profissional do ensino já atuante no domínio de LIBRAS.

46 educacional. Do contrário, corre-se o risco de mantermos o aluno na mais completa exclusão. Temos, portanto, de buscar o equilíbrio. Acreditamos que as experiências merecem ser compartilhadas com todos os profissionais da escola, tendo em vista que são experiências que levarão à plena inclusão do aluno deficiente no contexto da educação. As trocas de experiências entre os professores de outras disciplinas farão surgir estratégias. A estratégia lingüísticopedagógica que está sendo discutida neste artigo é de suma importância para todos os profissionais envolvidos com o aluno deficiente, não deixando de fora a consciência de que existem três grupos que atuam diretamente com o indivíduo: em primeiro lugar, podemos incluir a família; em seguida, a escola regular onde o aluno se encontra inserido; e o terceiro, e não menos importante do que os anteriores, um centro de apoio que, para o caso do aluno em questão, tivesse um professor intérprete fluente em linguagem de sinais. Nesse centro, o aluno poderia buscar apoio quando achasse necessário para dirimir as dúvidas advindas das disciplinas em que não se usa muito a lógica e para as quais seria necessária uma leitura mais pormenorizada. Esse ambiente poderia ser desenvolvido no espaço escolar. O uso da expressividade pode ser citado como exemplo de estratégia, pois o deficiente auditivo não pode ouvir as mudanças do tom de voz que por vezes se faz necessário por parte do professor para manter a ordem na sala de aula. Por isso, é imperativo que se utilizem expressões faciais, gestos ou movimentos corporais para ser entendido o que o professor quer comunicar. Os educadores são unânimes em desenvolver algumas características para uma aprendizagem voltada para o futuro, tais como o uso da criatividade, da imaginação, a consideração do aluno como sujeito da aprendizagem e como alguém capaz de refletir e tirar suas próprias conclusões, o professor como orientador e facilitador das atividades do aluno e a transdisciplinaridade69. Portanto, essa preocupação tem de ser transferida também para o aluno com deficiência auditiva: que alunos com esses tópicos devemos formar para o futuro? Se for essa nossa meta, quais estratégias devemos adotar? A palavra final sobre o assunto deverá ser dada o mais breve possível, pois como já foi dito antes, corremos o risco de estarmos excluindo um aluno supostamente incluído.

Considerações finais

69

Várias disciplinas trabalham, por determinado tempo, uma temática comum, embora sob a ótica específica. Exemplo: violência. Esse tema pode ser discutido pelas disciplinas de Geografia, História, Matemática (uso da estatística), ciências etc. Em todas elas, os recursos visuais são plenamente utilizáveis e auxiliam uma maior compreensão, tanto para os alunos ouvintes como para o aluno deficiente.

47 Com base em tudo que nós vivenciamos em sala de aula durante esses dois meses, podemos, enfim, concluir que não basta somente incluir um aluno especial em sala de aula regular; é preciso, antes de tudo, uma política de preparação do corpo docente para não somente recebê-lo, mas também prestar-lhe toda e qualquer assistência possível. Há uma lei que obriga a contratação de profissionais fluentes em LIBRAS para auxiliar o professor em suas aulas, porém achamos ser mais viável e menos onerosa a capacitação de docentes na linguagem LIBRAS , assim como em Braille, no caso dos deficientes visuais, visando a ajudar os alunos especiais em toda e qualquer inclusão dentro e fora de sala de aula.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFIA ANDRÉ, Marli Eliza D.A.de,Tendências atuais da pesquisa na escola. Cadernos Cedes. V.18 n.43 Campinas. Dez.1997. FERREIRA, Júlio Romero. A nova LDB e as necessidades educativas especiais. Cadernos Cedes. V.19 n.46 Campinas. Set. 1998. JANNUZZI, Gilberta S. de M. A luta pela educação do deficiente mental no Brasil.2.ed. Campinas: Autores Associados, 1992. MASSETO, Marcos Tarciso. Didática: a aula como centro. São Paulo: TDF, 1997. MAZZOTA, Marcos José da S. História da educação especial no Brasil. Temas em educação especial. São Carlos, n.1. 1990. NIDELCOFF, Maria Teresa. Ciências sociais na escola: para alunos de 12 a 16 anos. São Paulo: Brasiliense, 2004. SOUZA, M.P.R. de. As contribuições dos estudos etnográficos na compreensão do fracasso escolar no Brasil. In: MACHADO, A.M.; SOUZA, P.R. de, (orgs.) Psicologia escolar: em busca de novos rumos. São Paulo: Casa da psicologia, 1997.

48 A CONSTRUÇÃO DO RACISMO NO BRASIL E SEUS EFEITOS NA ATUALIDADE Eduardo Fernandes Souza G. Sena70 Profª Dr . Maria Inês S. Stamato (orientadora)71 a

RESUMO O presente trabalho tem por finalidade fazer um breve estudo sobre as origens do racismo no Brasil, a fim de aplicá-lo à sala de aula, despertando e familiarizando no aluno o interesse pela História, mostrando que essa importante disciplina, ao contrário do que se pensa, não está “perdida” em um tempo distante, podendo ser não somente formadora do conhecimento didático, mas também contribuindo para a formação de um cidadão crítico e capaz de compreender a sociedade e o mundo no qual está inserido, ao mesmo tempo em que se torne um indivíduo tolerante com as diferenças comuns e naturais ao ser humano. É interessante notar que essa forma de realizar o estudo em sala de aula tem diversos benefícios, como: fazer a aproximação aluno/documentos históricos, estimulando a pesquisa; mostrar como era a relação entre “raças” na sociedade colonial brasileira e até que ponto houve mudanças significativas; como questões tão atuais e polêmicas muitas vezes têm sua origem no passado. Com tais percepções, o aluno passa a se interessar mais pela História. Essa didática pode ser utilizada como forma auxiliar ao se abordar praticamente qualquer assunto em História, utilizando-se da mesma problemática com outros focos centrais, como a mulher na sociedade, o homossexualismo, entre outros. Obviamente o tema é deveras complexo, não havendo a ambição de esgotar o assunto, visto que ele está sendo enfocado sob uma determinada perspectiva. Palavras-chave: índio, negro e discriminação.

ABSTRACT The purpose of this work is to present a short study in the sources of the racism in Brazil, in order to use this knowledge in classroom practices, aiming to arouse the interest of the students in History and become it familiar, as well as to enlighten the importance of the discipline. In contrast to all the students believe, History is not a purposeless knowledge from former times; it is not only a didactic knowledge, but also a basic tool for formation of a conscious citizen who is able to understand the society and the world where he is inserted. Thus, it is possible to make him a tolerant individual to the common and natural human differences. One observes that this way of carrying out the study in class provides several benefits as: a) To get the students closer to historical documents what can stimulates the research; b) To show the interracial relation in the Brazilian colonial society and the influences to the present society, besides to induce the reflection: up to which point were there changes in the situation? c) To understand how frequently current and polemic issues seem to find their sources in olden time. Thus, the students start to be more interested in History. This didactic strategy can be employed as auxiliary skill for any subject in History, once it can be used the same set of problems in relation to other focal points as the woman in society, 70 71

- Graduando em História-Licenciatura na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (8º período). - Profª Dra. do Departamento de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

49 homosexualism among others. Obviously, the subject-matter is very complex and it is impossible to come to the end of the resources, since it is focused on a certain perspective. Key-words: Indian, Black people and Racial segregation.

De onde vêm certos conceitos que julgamos verdadeiros? Qual a explicação lógica e racional para justificarmos a discriminação racial na contemporaneidade? Por que negros e índios, povos basilares na formação racial do Brasil, são, ainda hoje, alvo de preconceito, intolerância, necessitando de assistência governamental direta para terem suas garantias e condições de vida em paridade com os “brancos” (ou com quem assim se considera)? A discriminação racial mostra-se das mais diversas formas, seja implícita naquela novela da Televisão em que sempre o papel de empregada doméstica fica para a mulher negra ou aquela outra que mostra o inocente índio balançando-se despreocupadamente em sua rede; ou explícita – tal como cita Dagoberto J. Fonseca, a piada [que] na relação entre negros e brancos [e índios] na sociedade brasileira configura-se como um processo discriminatório e de descontração, projetando-se como discurso de dissimulação, de consolidação e de denúncia de exclusão social.72

Saindo do conjunto maior e partindo para um subconjunto da sociedade - a escola, podemos deduzir que a reação da criança e do adolescente em grande parte das vezes não poderia ser outra: pelo processo da repetição essa chaga é passada adianta tal como uma doença, dando continuidade, mesmo que inconscientemente, a propagação dessa cisma em nossa sociedade. Ao analisarmos alguns documentos e textos referentes ao Brasil colônia, verificamos que a preocupação da metrópole em “branquear” a população do Brasil vem desde o início do longo processo para fixar o homem à terra e garantir a defesa do vasto território tão cobiçado por diversos países europeus. Assim, começa a difusão da idéia de superioridade do “branco”, seus costumes, crenças, modo de pensar e agir deveriam ser o modelo para substituir a cultura do índio e do negro. Indo de encontro a essa política, mesmo que de forma às vezes inconsciente, verifica-se que a resistência deles (do índio e do negro) é um meio para se impor e reafirmar as suas culturas: o índio que teima em adorar seus deuses ou o negro da senzala a capoeirar. 72

Fonseca, apud SILVA, Hélio Jr. Discriminação Racial nas Escolas: entre a lei e as práticas sociais. Brasília: Escritório da Unesco no Brasil, 2002, p. 36.

50 Um fator interessante a se observar, que de certa forma chega a aproximar o modo de vida (mesmo que em proporções diferentes) de ibéricos e indígenas, é a constatação de Sérgio Buarque de Holanda, em seu Raízes do Brasil, acerca dos portugueses e espanhóis: O que ambos admiram como ideal é uma vida de grande senhor, exclusiva de qualquer esforço, de qualquer preocupação. E assim [...] as nações ibéricas colocam-se ainda largamente no ponto de vista da Antiguidade Clássica. [...] O que os portugueses vinham buscar era, sem dúvida, a riqueza, mas riqueza que custa ousadia, não riqueza que custa trabalho.73 (grifo próprio)

Segundo Stuart Schwartz, o Governador Diogo Mendes, em 1610, disse que: “Estes índios, [...], é gente mui bárbara a que em si não têm governo nenhum nem por si podem governar e são nisto tão faltos em tudo que nem no que lhe toca a seu sustento guardam para amanhã o que lhes sobeja hoje”,74 constata-se uma visão intolerante e limitada, mesmo para época. Ora, antes da chegada do português no Brasil já havia uma vasta população vivendo aqui, inclusive os próprios portugueses constataram isso, então, pressupõe-se que já existia, pelo menos, uma mínima organização social, mesmo que esta não seja nada semelhante à existente nos territórios do velho mundo. Constatamos o mesmo tipo de pensamento quando analisamos o que Gabriel Soares de Sousa afirma que eram “mais bárbaros que quantas criaturas que Deus criou”,75 concluindo ainda que por não possuírem em seu idioma as letras F, L, R, os índios não eram capazes de respeitar a Fé, a Lei e o Rei. Mas na verdade eles tinham, sendo que a seu modo. Vejamos como mesmo sem a presença de um rei institucionalizado e reconhecido pela Igreja, os índios conferiam respeito a pessoas importantes de sua tribo (cacique, pajé), que gozavam de certos privilégios. A fé existia, sim, mas à maneira deles. Adoravam seus deuses representados por elementos da natureza. Por fim, não há que se falar em uma sistematização de leis feitas pelos índios. Contudo, podemos supor que mesmo na mais tenra idade da humanidade, para se constituir qualquer aglomerado de pessoas, houve a necessidade de leis fundamentais implícitas. Mesmo se imaginarmos que o Governador Diogo Mendes chegou a essa conclusão ao observar que esses povos viviam em constantes conflitos e guerras intertribais, não poderíamos supor que toda essa animosidade partisse de um modo de vida considerado primitivo. As nações européias também conviviam, historicamente, 73

-HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26ª edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 38 e 40. 74 -SCHWARTZ, Stuart. Segredos Internos. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p.42. 75 - MESGRAVIS (1989, p.44)

51 umas com as outras em constante atrito. Indo mais além, os motivos que levavam esses embates não podem ser comparados aos conflitos entre as diversas etnias indígenas no Brasil. Na Europa, na maioria das vezes, as guerras aconteciam por intolerância religiosa (a mesma intolerância que seria transplantada para a colônia). Aqui, para os nativos, a guerra era uma necessidade cultural que já ocorria desde antes da chegada do europeu. No Brasil, a primeira mão-de-obra utilizada foi a nativa. Consoante Berta Ribeiro, “O tráfico regular de negros teve início em 1568, uma vez que era muito mais barato apanharem-se escravos índios na mata, do que pagar 20 a 30 libras”76 por escravo africano. Segundo Schwartz “O período de 1540 a 1570 marcou o apogeu da escravidão do gentio nos engenhos do litoral brasileiro [...]”.77 Essa mão-de-obra farta e disponível vai causar contendas entre colonos, ordens religiosas (mais especificamente os jesuítas) e a metrópole que, por várias vezes, vai intervir e intermediar questões entre quem dependia da mão-de-obra indígena (colonos) e quem detinha o poder sobre essa força de trabalho (jesuítas). Segundo a Igreja, a escravidão indígena era “parcialmente” aceitável. Isso se deve em parte pelo mito do “bom selvagem”. Nas palavras do padre Manuel da Nóbrega, “[o índio é como] um papel em branco, onde se podia escrever à vontade”.78 Posteriormente o mito cai por terra, o mesmo padre jesuíta que em outrora retrata a docilidade aborígine, irá reconhecer que “[o indígena é] um ferro frio que só se Deus quisesse meter na forja se haveria de converter [a fé cristã]”.79 Sendo assim, a escravização dele estava embasada pelas “guerras justas” e pela necessidade de salvar a sua alma - uma forma implícita e conveniente de subjugação. Ao mesmo tempo, o governo português não tinha meios econômicos suficientes para efetivar o seu projeto de colonização. Os colonos dependiam diretamente do índio para comer, ajudar a defender o vasto litoral (aliás, os índios também serão usados pelos franceses e holandeses contra os portugueses) e desbravar as matas. Então as “guerras justas” passaram a ser usadas indiscriminadamente: se de um lado o jesuíta tinha a missão de catequizar o indígena, o colono necessitava dele para enriquecer às custas de seu esforço. Tal como o negro para o senhor de engenho, o índio também foi os “braços e as pernas” dos europeus que disputaram o território brasileiro na parte inicial da colonização. Ao contrário, em relação ao africano, a escravização era perfeitamente aceita, estimulada e utilizada pela própria Igreja. Tornando-se a principal força motriz nos

76

-RIBEIRO, Berta Gleizer. O índio na história do Brasil. 6ª ed. São Paulo: Global, 1983, p. 35. -SCHWARTZ, Stuart. Segredos Internos. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 46. 78 -RIBEIRO, Berta Gleizer. Op. cit.. 79 -RIBEIRO, Berta Gleizer. Op. cit.. 77

52 períodos conhecidos como o Ciclo do Açúcar, a Mineração do Ouro e o Café, chegando finalmente ao período que se convencionou chamar de Segundo Reinado. Porém, sabe-se que Portugal não contava com meios econômicos suficientes para efetivar o seu projeto de colonização, sendo entregue à “iniciativa privada” essa tarefa. O tráfico negreiro vai ser um importante meio de renda para a metrópole. Das colônias americanas, o Brasil foi o principal destino dos africanos. Essa enorme quantidade de cativos deságua, por exemplo, em Minas Gerais, conforme atesta Cláudio Vicentino, Gianpaolo Dorigo: “...em 1776, 52% [dos moradores] eram negros e 25%, mulatos”.80 Então, criou-se um grande problema: ao mesmo tempo em que Portugal queria o “branqueamento” da população do Brasil, estimulava indiretamente a miscigenação. Podemos compreender o estímulo deliberado da miscigenação racial através das medidas oficiais. A intervenção direta do governo foi necessária para que os problemas relacionados ao índio fossem solucionados. A partir de 1755, o casamento entre índias e brancos seria recompensado, conforme o trecho do texto de Fátima Lopes: “[..] os soldados luso-brasileiros, após um ano de casados, poderiam dar baixa para tratarem das terras recebidas como dote”81 (grifo próprio). Esse tipo de união passa a ser protegida pelo Estado. A questão que ficara era se os homens que não casados ou os soldados que não eram casados com índias não receberiam, então, o dote e outras permissões especiais? Pode-se supor o sentimento de revolta que essa ação protetora do Estado pode ter causado, estimulando a segregação racial. O índio poderia ser visto perfeitamente como um “incapaz privilegiado”. Em uma carta enviada do Conde de Oeiras (o futuro Marquês de Pombal) para seu irmão, Mendonça Furtado, lêem-se em um trecho recomendações acerca do comportamento dos índios, nas quais estava escrito que eles eram “muito propensos à preguiça”.82 As medidas oficiais em relação ao escravo negro eram mais nocivas, pois, além de não reconhecerem seus direitos, tinham caráter punitivo até para a miscigenação entre índios e negros. Os índios “oriundos de pretas escravas”83 não possuíam os mesmos privilégios; assim previa a Lei de 6 de junho de 1755. Potencializando essa revolta e seus efeitos no cotidiano da vida colonial, essa lei mostra que a posição do negro era ainda mais desfavorável que a do índio. Mesmo que essas medidas tenham um caráter estritamente prático, como o de povoar e fixar o homem na terra para defendê-la,

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dificultar possíveis invasões e

-VICENTINO, Cláudio, DORIGO, Gianpaolo. História do Brasil. 1ª ed. São Paulo: Editora Scipione, 2000, p. 135. 81 -LOPES, Fátima Martins. Em nome da liberdade: as vilas de índios do Rio Grande do Norte. Sob o diretório Pombalino no século XVIII. Recife: UFPE, 2005. Tese de Doutorado, p. 68. 82 -LOPES, Fátima Martins. Op. cit. 83 -LOPES, Fátima Martins. Op. cit.

53 promover o “branqueamento” da sociedade colonial, na prática, além de promover tudo isso, também estimulavam ainda mais as diferenças raciais. De fato, a situação do escravo africano não era nada fácil, não tinha o enorme poder dos jesuítas ao seu lado, nem a legislação oficial o favorecia. A escravização negra foi mais devastadora que a escravização do índio, tanto pelos séculos que perdurou quanto pela violência empregada para deslocar pessoas de um continente a outro totalmente estranho. Até o preço de “venda” o desfavorecia, sendo antagonicamente maior que o do índio, pois a instabilidade da saúde e da expectativa de vida do gentio fazia deles um investimento de alto risco. Essa situação contribuiu para explicar por que os preços dos escravos índios era muito menor que os dos africanos, por que estes últimos tinham mais chance de serem treinados para tarefas especializadas nos engenhos... 84

A resistência física fazia do negro uma “mercadoria” mais valiosa. O “objeto negro” se torna mais cobiçado e caro. Portanto, nos dois casos (índios e negros), nota-se que a intervenção direta do Estado pode ter sido extremamente nociva, dilatando o sentimento de superioridade racial. Até que ponto a população colonial foi influenciada por essas ações, não somente na matéria, com a obrigação de cumprir atos normativos, mas também na forma de agir e pensar acerca das pessoas com “cores” de pele diferente das suas? 1. A prática do ensino A partir dessas reflexões, foi colocado em prática um projeto de pesquisa voltado para as questões raciais, aplicado em turmas do 7º ano em duas escolas da rede municipal (Natal e Parnamirim) de ensino. Ao abordar o tema sobre a colonização do Brasil, foi feita a explanação normal do assunto, sem aprofundar o tema propriamente do projeto. Inicialmente foi solicitado que os alunos interpretassem de forma rápida a parte iconográfica de livros didáticos que continham imagens de negros e índios, sendo o próximo passo a abordagem do assunto sobre a colonização. Depois foi escolhido um trecho de texto (alguns constam neste Projeto) para ser lido junto à turma. No decorrer da leitura, era sempre estimulada a participação dos alunos para que estes notassem, sem que o professor diretamente explicasse, o tema “implícito” da aula. A tentativa foi usar uma espécie de “dedução” por parte dos alunos, de modo a utilizar o conhecimento que eles já possuíam do mundo em que vivem na leitura da 84

-SCHWARTZ, Stuart. Segredos Internos. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 52.

54 figura (fotos e outros tipos de imagens naturalmente prendem a atenção de crianças e adolescentes) sem haver qualquer explicação inicial. Eles olhavam e interpretavam a figura, dividindo a opinião pessoal com a turma. Foi feita, pelo professor, uma pergunta: qual é a mensagem que a foto passa para você? Depois da explicação pelo professor do assunto previsto para a Unidade (colonização do Brasil) e das atividades relacionadas (tarefas de classe e trabalhos em grupo), o docente inicia a leitura do texto selecionado. Juntando o conhecimento prévio com as aulas dadas sobre a colonização do Brasil e o texto final, os alunos compreendiam o tema que o professor queria passar. Quando faziam juntos (professor e alunos) a interpretação do texto, era feita outra pergunta: se vocês fossem professores e quisessem dar uma aula utilizando o texto que foi lido, qual seria o tema da aula? A resposta dada pelos alunos variava, mas na maioria das vezes continha a palavra “discriminação”. Com isso, o aluno é induzido a dar explicações formuladas pela sua vivência e pelo conhecimento adquirido. Nos últimos instantes da aula, foi explicada pelo professor e lançada uma questão polêmica dos dias de hoje: foi perguntado aos alunos se eles concordam ou não com o sistema de cotas reservadas para índios e negros para ingresso em uma universidade pública. Baseando-se em tudo que foi explicado, a maioria deles concordou com as cotas, pois conseguiram compreender o quanto negros e índios sofreram e ainda sofrem discriminação e como isso prejudica o acesso a uma universidade pública e ao mercado de trabalho. Um indivíduo só é capaz de emitir uma opinião equilibrada e lógica sobre um determinado assunto quando tem o mínimo de conhecimento, caso contrário é dada a velha resposta para justificar uma opinião: o “porque sim”. Essa justificativa vem carregada de um imenso vazio argumentativo, que mostra falta de conhecimento global (passado, presente e perspectivas de futuro) sobre o mundo. Com o estudo feito e a prática de ensino, chega-se à conclusão de que hoje é necessária a existência de algum tipo de interferência governamental com fins de, pelo menos em médio prazo, amenizar as discrepâncias e injustiças sofridas por essas “raças”. Um caso curioso, acontecido na Universidade de Brasília, vale ser lembrado. Dois irmãos gêmeos se escreveram para o programa de cotas para afro-descendentes oferecido para o vestibular. Um deles teve o seu pedido deferido, o outro, negado. Então fica a pergunta: que tipo de critério confiável podemos utilizar para caracterizar a descendência racial?

55 Indo mais além da questão puramente racial, está a questão social. Sabe-se que a maioria da população de baixa renda, as piores condições de moradia (acesso ao saneamento básico, ruas calçadas etc.) afetam majoritariamente afro-descendentes. Com o intuito de diminuir essas injustiças vale citar o exemplo do Rio de Janeiro. Lá, 20% das vagas das universidades são destinadas a estudantes da rede pública de ensino, outros 20% para candidatos negros.85 Caso seja feita uma comparação com os dados do IBGE, no censo realizado em 2000 (82,8% dos estudantes das universidades são brancos, 8% negros e 9,2% compostos pelas outras etnias),86 compreende-se que ainda são tímidas as ações oficiais diante da tamanha desigualdade, mas essas poucas já são um começo. Nesse quesito, o “branqueamento” imposto pela Coroa portuguesa no Brasil colonial foi “bem sucedido”. Porém a reparação do mal que vem de séculos não vai ser simplesmente feita quando uma pessoa de baixa renda, negro ou índio, estiver em uma universidade pública. Depois do ingresso desse indivíduo em uma “elite cultural”, como será a vida acadêmica de um aluno que muitas vezes não tem sequer condições de se deslocar (passagem de transporte urbano) para a universidade? Como ele conseguirá se manter nos longos anos de estudo? Concluí-se que as ações do governo precisam ir mais adiante, por exemplo, através da matrícula dessa parcela da população em uma universidade. A mudança de postura precisa começar com os eleitores dos governantes. Em pleno século XXI, o mundo vivencia um problema muito antigo: a dificuldade em lidar com o semelhante. O desconhecido, fruto da ignorância, é visto como uma ameaça, por isso deve ser “repelido”. O espaço escolar torna-se um importante meio de educação, não somente didática (como já foi citado), mas também um ambiente em que as pessoas possam começar a compreender o real significado do respeito às diferenças e aos direitos comuns. É preciso reformular a frase: “o meu direito começa quando termina o seu”. Diretos simplesmente não acabam, eles devem coexistir harmoniosamente. Para que isso ocorra, a boa educação (familiar e escolar) é indispensável na busca desse resultado.

85 86

Informação disponível em www.cotasnobrasil.blogspot.com. Acesso em 20 de novembro de 2008. Idem.

56 REFERÊNCIAS

COTAS no Brasil (2007). Sistema de cotas para negros e índios. Disponível em http://cotasnobrasil.blogspot.com/2007/09/sistema-de-cotas-para-negros-endios_24.html. Acesso em 20 novembro de 2008 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26ª edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. LOPES, Fátima Martins. Em nome da liberdade: as vilas de índios do Rio Grande do Norte. Sob o diretório Pombalino no século XVIII. Recife: UFPE, 2005. Tese de Doutorado. MESGRAVIS, Lima. O Brasil nos primeiros séculos. São Paulo: Contexto, 1989. RIBEIRO, Berta Gleizer. O índio na história do Brasil. 6ª ed. São Paulo: Global, 1983. SCHWARTZ, Stuart. Segredos Internos. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. SILVA, Hélio Jr. Discriminação Racial nas Escolas: entre a lei e as práticas sociais. Brasília: Escritório da Unesco no Brasil, 2002. VICENTINO, Cláudio, DORIGO, Gianpaolo. História do Brasil. 1ª ed. São Paulo: editora Scipione, 2000.

57 O APRENDIZADO ESCOLAR ATRAVÉS DA IMAGEM NO LIVRO DIDÁTICO DE HISTÓRIA: uma experiência Genilson de Azevedo Farias87 Professora Drª : Maria Inês Sucupira Stamatto88 (Orientadora) Professora Drª: Crislane Barbosa de Azevedo89 (Co-orientadora) RESUMO

Desde a fase embrionária, o objetivo que norteou esta pesquisa foi a descoberta de um método para auxiliar os alunos e professores do Ensino Fundamental a aprender e ensinar história através das imagens contidas nos livros didáticos. Recurso bastante utilizado já há algum tempo, a iconografia é uma fonte histórica bastante rica em significados, que traz, implícita ou explicitamente, as escolhas do produtor e todo o contexto no qual foi gestada, idealizada ou inventada. Para a realização desse trabalho, tomamos como fonte primária as imagens que retratam o escravo negro no espaço urbano da cidade do Rio de Janeiro à época imperial, imagens essas presentes no livro didático de história adotado pela Escola Estadual Floriano Cavalcante, localizada no bairro de Mirassol, cidade do Natal. O livro didático de história tomado como foco das nossas inquietações foi Saber e Fazer História, do professor Gilberto Cotrim, e nessa empreitada, trabalhamos com alguns conceitos que estão diretamente arraigados ao campo de trabalho do historiador, tais como fonte e documento histórico. Nesse sentido, este trabalho apresenta algumas singularidades que o diferenciam frente a outras pesquisas já realizadas que abordam a imagem iconográfica no livro didático de história, ou seja, ele traz os resultados de uma experiência pessoal e profissional no âmbito do Estágio Supervisionado II numa turma de alunos do 8° ano (Ensino Fundamental) da escola acima citada. Palavras – Chave: Imagem, Livro Didático, Ensino de História.

ABSTRACT

Since its infancy, the goal that guided this research was the discovery of a method to help students and teachers from elementary school to learn and teach history through the images contained in the textbooks. Appeal widely used for some time, the iconography is a source very rich in historical meanings, which brings implicitly or explicitly, the choice of producer and the whole context in which the pregnancy, idealized or invented. For this work, taken as a primary source images that portray the black slave in urban areas of the city of Rio de Janeiro to the imperial era, these pictures in the textbooks of history adopted by the State School Floriano Cavalcante, located in the district Knaresborough, city of Natal. The textbook of history taken as a focus of our concern was: Knowing and Doing History teacher's Gilberto Cotrim, and in this undertaking, working with some concepts that are directly rooted to the labor camp's historian, such as source and historical document. In that sense, this work has some 87

Bacharel e Licenciando pelo curso de História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN. 88 Professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN/ Programa de Pós-Graduação em Educação. 89 Mestre em educação pela Universidade do Estado da Bahia e Doutoranda em Educação pela UFRN.

58 peculiarities that differentiates front of other studies already conducted to address the iconographic image in the textbook of history, that is, he brings the results of a personal and professional experience within the Stage II in a class of Supervised students from 8 years (elementary school) above the school. Key-Words: Image, Textbook, Teaching History.

Introdução A história, enquanto campo do conhecimento, vem passando atualmente por uma profícua renovação no campo do ensino e da produção do conhecimento histórico, tendo em vista o aumento do número dos programas de pós-graduação nas universidades brasileiras e da maior circulação de historiadores pelo exterior, desenvolvendo e participando de discussões e pesquisas.90 Nessa perspectiva, estamos nos desapegando de uma forma de história tipicamente dogmática e teórica, desapego que reflete as mudanças que estão ocorrendo devido à incorporação dessas novas experiências ao trabalho cotidiano do historiador e do professor de história. Vale também destacar a contribuição significativa da renovação historiográfica iniciada com a criação da École dos Annales em 1929.91 A partir desse momento, a história ganhou contornos mais amplos, repercutindo na introdução de novos objetos, novas abordagens, renovando os enfoques, introduzindo outras fontes e documentos como as imagens para fins de análise histórica.92 Essas tendências foram tão profícuas metodologicamente que promoveram a aproximação da história com outras ciências humanas, mudando completamente a ótica tradicional da história. Outrossim, estimulou ainda o desenvolvimento de outras áreas, como a história da educação. Em consonância a essa realidade, Eduardo França Paiva salienta que o professor, enquanto historiador, deve estar sempre atento com a matéria-prima do conhecimento histórico, ou seja, as fontes, em suas diferentes naturezas. Nesse sentido, é preciso saber

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PAIVA, Eduardo França. História & Imagens. Belo Horizonte: Autêntica, 2002. p. 12. A Escola dos Annales constitui-se num movimento historiográfico que surgiu em torno do periódico acadêmico francês Revue des Annales. Os seus fundadores foram os historiadores Marc Bloch e Lucien Febve. Em geral, costuma-se dividir a trajetória da escola em três fases ou gerações. São elas: a primeira, liderada por Marc Bloch e Lucien Febve; a segunda, dirigida por Fernand Braudel; e a terceira formada por um comitê, liderada por Le Goff, Marc Ferro e E. Le Roy Ladurie. 92 CARDOSO, Ciro. MAUAD, Ana Maria. História e imagem: os exemplos da fotografia e do cinema. In: CARDOSO, Ciro Flamarion, VAINFAS, Ronaldo(org.): Domínios da história: Ensaio e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997. p. 401. 91

59 Lidar com essa diversidade de registros, saber indagá-los e desconstruí-los, saber contextualizá-los e explorá-los para deles retirar versões ou fazer com que eles subsidiem as nossas versões, isto é, apropriarmo-nos criticamente deles e usá-los metodicamente: esses são os procedimentos básicos do historiador e isso é o que deveria ocorrer nas salas de aula desde o ensino fundamental.93

Salientando assim que o número de fontes que podem ser exploradas na sala de aula pelo professor é realmente vasto: gravuras, filmes, mapas, fotos, jornais, dentre outros,94 apropriamo-nos das reflexões desse autor e delimitamos o objetivo do presente trabalho a apresentar como o aluno do Ensino Fundamental aprende história através das imagens contidas no livro didático.

1. A imagem enquanto fonte primária O livro didático de história, a despeito de alguns professores e pesquisadores que desconsideram o potencial da sua utilidade, é um instrumento educacional complexo e que abre a possibilidade para diferentes reflexões. Ele também é um objeto cultural de difícil definição, tendo em vista que no seu processo de confecção, circulação e consumo é envolvido e entrelaçado o trabalho coletivo de muitos profissionais.95 Sendo na atualidade um recurso muito importante no processo de ensinoaprendizagem de jovens e crianças, o livro didático é o material impresso mais utilizado no universo das escolas públicas brasileiras. A análise de sua trajetória tem mostrado que esse material vem sofrendo mudanças ao longo da sua história, o que nos faz acreditar que essa renovação seja fruto de profícuas discussões entre professores, pesquisadores e autoridades governamentais acerca da sua melhoria.96 Há mais de um século que as imagens vêm sendo utilizadas por editores e autores de livros escolares. Segundo Ernest Lavisse,97 historiador francês e autor de várias obras pedagógicas, o principal objetivo que justifica a inclusão de imagens nos livros didáticos seria o de “ver as cenas históricas”. Ele também acreditava que elas facilitavam a memorização dos conteúdos. Considerando as observações de Lavisse em seu estudo publicado na década de 80, cabe-nos indagar se, ainda hoje, tal objetivo permanece. A sociedade contemporânea é intensamente bombardeada por diversas categorias de imagens: cinematográfica, artística etc. A forma rápida com que elas são impostas 93

Idem. Ibidem., p. 13. Idem. Ibidem., p. 12-13. 95 BITTENCOURT, Circe. Livros didáticos: entre textos e imagens. In : O saber histórico na sala de aula. 8. ed. São Paulo: Contexto. 2003. (Repensando o ensino). P. 71. 96 COSTA, Emilia Viotti da. Sugestões para a melhoria do ensino da História no curso secundário. In: Revista Pedagógica, ano Sexto, vol. VI, 11/12, 1960. p. 100. 97 LAVISSE, Ernest. Histoire de France: cours élémentaires français. Paris: Colin, 1887. 94

60 nos meios de comunicação de massa no nosso dia-a-dia leva-nos a desqualificá-las e esquecê-las à medida que outras novas sejam colocadas à nossa frente. Isso se dá justamente pela dinâmica da informação visual que vem se amalgamando na sociedade atual, que atribui à imagem um papel de agente informativo e de portadora de informações e de significações. Nesse sentido, a forma com que são impostas pelos diversos recursos difusores faz com que seja imprescindível entendê-las enquanto atividade e produção humana, ou seja, a imagem possue sua própria história. As imagens impressas no livro didático, em seus diferentes tipos e estilos, devem ter seu uso relacionado a uma função no processo de aprendizagem dos jovens e das crianças, isto é, ela não deve servir de “tapa buraco” no projeto gráfico do livro.98 A ausência de uma postura crítica por parte dos profissionais que elaboram esse recurso didático em relação aos processos de produção e o desconhecimento das raízes históricas da imagem pode fazer com que a escola absorva, incorpore e faça uso desse recurso de uma forma equivocada. Cabe aqui ressaltar a importância da equipe pedagógica da escola no momento da escolha do livro didático a ser adotado. A iconografia, como defendido até aqui, é uma fonte histórica bastante rica em significados, que traz, implícita ou explicitamente, as escolhas do produtor e todo o contexto no qual foi gestada, idealizada ou inventada.99 Além de ser “utilizada, em diversos períodos, como forma de propaganda, de transmitir informações, de exprimir devoções e visões de mundo”.100 O trabalho com fontes imagéticas se faz produtivo se atentarmos para a compreensão de que elas não possuem compromisso com o conhecimento histórico em si nem foram produzidas para servirem como instrumento didático. Nesse sentido, este trabalho apresenta algumas singularidades que o diferenciam frente aos outros trabalhos já realizados que abordam a imagem iconográfica no livro didático. Ele traz os resultados de uma experiência pessoal no âmbito de uma turma de alunos do 8° ano (Ensino Fundamental) da Escola Estadual Desembargador Floriano Cavalcante, localizada no bairro de Mirassol, cidade do Natal. Usamos como fonte primária o livro didático de história do 8° ano (Ensino Fundamental) adotado na escola citada, partindo da realidade que, na maioria das escolas públicas do nosso estado, o livro didático inclui-se e figura como o único recurso pedagógico disponível para o trabalho com os alunos. A escolha da série referida também se deu por atualmente constatarmos facilmente que os livros didáticos 98

MAUAD, Ana Maria. As imagens que educam e instruem: usos e funções das ilustrações nos livros didáticos de história. In: OLIVEIRA, Maria Margarida Dias; STAMATTO, Maria Inês Sucupira. O livro didático de história: políticas educacionais, pesquisas e ensino (org.). Natal: EDUFRN, 2007. p. 112. 99 PAIVA, Op. Cit. p. 17. 100 ABREU, Jean Luiz Neves. Difusão, produção e consumo das imagens visuais: caso dos ex-votos mineiros do séc. XVIII. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 25, nº 49. 2005. p. 197.

61 até o 8º Ano são mais ricos em ilustrações coloridas do que os destinados ao Ensino Médio. Essas situações estimulam e aguçam a necessidade de se estabelecer uma reflexão-critica sobre essa importante ferramenta no exercício da profissão. Essas inquietações iniciais fizeram-nos refletir também sobre as relações tão intimamente atreladas e pertinentes no espaço acadêmico atual onde existe a tão conhecida distinção hierárquica: Ensinar/Estudar história e Fazer/Produzir história. Essas distinções, muitas vezes, ficam limitadas e enquadradas em dois pólos distintos, ou seja, as modalidades da Licenciatura e a do Bacharelado respectivamente. Conforme Joana Neves, quando o professor apresenta o conhecimento sobre um determinado assunto como “um problema a ser resolvido pelo aluno”,101 abre-se a possibilidade para este atuar como um pesquisador à proporção que ele possa refazer os passos do processo de pesquisa e chegar a uma conclusão/Conhecimento que, para o discente, é novidade. E foi exatamente esse processo que buscamos implementar no âmbito do Estágio Supervisionado. A nossa preocupação em analisar as imagens do livro didático de História foi a mesma que instigou Liana Dantas da Costa a trabalhar com o tratamento dado ao negro no livro didático de 5ª a 8ª séries,102 ou seja, uma preocupação com o fato de serem nessa séries em que os alunos começam a ter contato com a história como disciplina obrigatória, passando a estudar conteúdos que vão ser fundamentais para a sua vida, como por exemplo, a escravidão, a abolição e a situação dos ex-escravos após a Lei Áurea de 1888. A assimilação desses conteúdos pelos referidos alunos é importante, principalmente quando vislumbramos a sociedade em que estão imersos e percebemos que o carro-chefe mais pronunciado e evocado atualmente é a inclusão social. Inclusão do negro, do índio, do deficiente, do homossexual e dos praticantes das diversas religiões existentes na nossa sociedade moderna. Todavia, mesmo depois de tantas discussões e esclarecimentos no meio acadêmico, que se estendem para o meio escolar e social como um todo, muitos dos direitos concernentes aos brasileiros são feridos e deixados de lado, principalmente os que se se relacionam às minorias, como os negros. É justamente a obtenção dos valores do respeito e da tolerância religiosa e cultural, bem como de uma consciência cidadã o que esses temas podem proporcionar aos adolescentes. Para a transmissão daqueles temas aos alunos, adotamos como referência básica o próprio mundo do aluno,103 ou seja, as notícias dos telejornais, as telenovelas, filmes e 101

NEVES, Joana. Como se estuda história. Revista de Ciências Humanas. João Pessoa: Ed. UFPB, 1980. Ano 2, n°4, p. 68. 102 COSTA, Liana Dantas. O tratamento dado ao negro nos livros didáticos de história do Ensino Fundamental entre os anos de 1988 e 2007. Natal, 2007. p. 4. (Monografia de fim de curso pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte). 103 NEVES, Op. cit., p. 65-94.

62 propagandas, uma vez que as visões acerca do negro veiculadas através desses meios de comunicação são mais próximas, acessíveis e podem ser mais facilmente percebidas a partir das próprias vivências dos discentes. No bojo dessas assertivas, Abreu104 coloca que a história cultural tem procurado destacar as condições sociais e culturais de produção e recepção das imagens. Para ele, essas questões são direcionadas para os ex-votos mineiros, que permitem a abordagem dos aspectos de produção e consumo de arte na sociedade mineira do século XVIII. Em seu trabalho, faz o resgate das circunstâncias nas quais as imagens foram encomendadas, bem como o contexto material e o local onde se desejavam exibi-las. Ele salienta ainda, para a necessidade de se conhecer como se difundiam as formas de representação dessas imagens, seus pintores e a que público se destinavam. Cerri,105 por sua vez, propõe o exemplo da publicidade como tema histórico no período do “milagre econômico brasileiro” (1969-1973). Justificando o valor da propaganda enquanto documento fundamental para a pesquisa de história e o ensino dessa ciência, toma como exemplo específico três peças publicitárias com o mesmo conteúdo histórico selecionadas nas revistas Veja e Visão do início dos anos de 1970. As peças selecionadas por ele fazem menção a uma retomada e uma reutilização da imagem de D. Pedro I, qualificando-o como o eixo da conquista da independência. Dentre as possibilidades de abordagens das mensagens publicitárias no processo educativo, o autor salienta que elas podem ensinar história a partir de determinados pontos de vista e com objetivos pré-estabelecidos que ultrapassam a mera venda de produtos, como é típico das propagandas. A propaganda, segundo ele, difunde idéias importantes para o entendimento das relações sociais e de que o conhecimento histórico veiculado por ela é um recurso profícuo para a análise das raízes dos hábitos de consumo e dos comportamentos da sociedade que a produziu. Por exigir um nível maior de abstração, o autor sugere que as atividades com propaganda sejam feitas com alunos das séries finais do Ensino Fundamental e ao Ensino Médio. Para Bittencourt,106 a reflexão sobre as ilustrações dos livros didáticos impõe-se como uma questão de suma importância no ensino das disciplinas escolares pela função desempenhada no processo pedagógico. Ele levanta uma série de questões sobre as possíveis interpretações das populações indígenas ao longo da história ensinada no ensino primário e também sobre os métodos para a apropriação de estudos que vinculem o texto à imagem, possibilitando uma leitura crítica do acervo icônico selecionado com fins didáticos. 104

ABREU, Op. cit. p. 202-204. CERRI, Luis Fernando. A política, a propaganda e o ensino de história. Cad. Cedes, v. 25. n. 67, Set/Dez. Disponível em http: // www.cedes.unicamp.br. Acesso em 10/11/2008. 106 BITTENCOURT, Op cit., p. 70. 105

63 Em edições publicadas nos anos de 70 e 80 do século XIX e de autoria de religiosos, é perceptível o objetivo maior em destacar e ressaltar a importância histórica da obra missionária e civilizatória do trabalho de catequese. Nas obras didáticas dessa época, os grupos indígenas eram representados como “bárbaros” e as cenas escolhidas para ilustrar o material, em sua maioria, exprimiam e reforçavam a visão belicosa e selvagem das guerras e dos rituais antropofágicos. Na contramão desse processo, os missionários eram representados como heróis e santos “mártires” da Igreja. Borges107 também busca enfatizar o uso de iconografia em diferentes níveis educacionais, bem como as dificuldades encontradas pelos professores de história em explorar a rica relação entre história e imagens, sobretudo as fotografias. Sem desmerecer as fontes clássicas dos estudos históricos, toma a fotografia como síntese de elementos que podem realizar intermediações importantes na leitura e no resgate da memória histórica sobre os temas mais variados. Pensando a partir de Platão, ela coloca que a imagem deve ser olhada a partir da razão para que seu processo de percepção se faça mediante o diálogo entre os pólos do par verdade/falsidade.108 Ela salienta a necessidade de se entender que as imagens pertencem à ordem do simbólico. Também precisamos perceber que elas foram produzidas por diferentes sociedades e em diferentes épocas, trazendo códigos oriundos da cultura que as produziram. Em suma, a imagem [...] desperta sentimentos de medo, angústia, paixão e encanto. Resume e separa homens e mulheres, informa e celebra, reedita e produz comportamentos e valores. Comunica e simboliza. Representa.109

A autora fala ainda dos riscos de usar tal recurso na escola, uma vez que incorremos, erroneamente, em transmitir para os alunos que a imagem é o espelho real do passado, ou seja, que ela é testemunho puro da realidade que é apresentada em seu suporte.110 2. Um olhar sobre o prisma da prática Dessa forma, tomando por base as discussões realizadas até aqui, a utilização do recurso iconográfico dentro da sala de aula deve ser feita buscando entendê-las dentro do contexto em que foram produzidas, idealizadas, sonhadas, compreendendo quais intenções e valores giram em torno delas. 107

BORGES, Maria Eliza Linhares. História & fotografia. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. Idem. Ibidem., p. 25-27. 109 Idem. Ibidem., p.37. 110 BORGES, Maria Eliza Linhares. Op. Cit. p. 16. 108

64 As obras previamente selecionadas para a elaboração e a realização das atividades em sala fazem menção à forma como o negro foi retratado em aquarelas e fotografias de artistas conhecidos no período do Brasil Imperial. É interessante deixar claro que aqui fizemos uma opção, tendo em vista que o livro didático utilizado na turma111 possibilita-nos a abertura de um leque bastante vasto de outras iconografias igualmente interessantes sobre o tema e que são facilmente passíveis de aplicação e utilização em outras atividades. A preferência pelas referidas gravuras também foi pautada pelo recorte temporaltemático adotado pelo currículo escolar de história concernente ao 8º ano da escola, série em que ministramos 16 horas aula por meio do estágio supervisionado do curso de História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. No primeiro caso, as duas imagens utilizadas referem-se à presença de escravos negros no espaço urbano da cidade do Rio de Janeiro, a capital imperial, exatamente na primeira metade do século do século XIX, quando a população de cativos representava da metade a dois quintos do total de habitantes da corte.112 Tamanho volume de escravos, culturalmente diversos e pertencentes a etnias divergentes, era pilhado numa única região, dando à corte as características de uma cidade quase negra. Uma leitura bastante proveitosa quando tocamos nessa questão do escravo negro no espaço urbano é o trabalho de Juliana Farias.113 Ela propõe fazer uma análise das vivências dos negros no século XIX a partir de outro enfoque. Em Cidades negras, o negro que aparece não é mais o escravo cativo do espaço agrário açucareiro, mas um negro que participa e atua no espaço urbano das cidades de Salvador, São Luiz e Rio de Janeiro no recorte temporal acima citado. Para a autora, que trabalha com documentos policiais, ou seja, fontes oficiais, o espaço que se forma através da interação entre os negros é o espaço da manutenção da cultura, dos ritos e das práticas culturais. O segundo grupo de imagens escolhidas no nosso estudo refere-se às formas de trabalho a que o escravo negro urbano foi submetido na época do Império, sobretudo, após a abolição. Assinada a lei Áurea pela Princesa Isabel a 13 de maio de 1888, pouco ou nada mudou na vida do ex-escravo.114 O direito adquirido através do impulso e das lutas pela liberdade da Campanha Abolicionista, que movimentou vários setores da sociedade, não trouxe melhorias nem alterou a situação social dos negros após a “grande conquista”. Mesmo após a obtenção do status de libertos, muitos deles continuaram

111

COTRIM, Gilberto. Saber e Fazer história, 7ª Série. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2005. ALENCASTRO, Luiz Felipe de. Vida privada e ordem privada no Império. In: NOVAIS, Fernando A. (Coord.). História da Vida Privada no Brasil. São Paulo: Compainha da Letras, 1997. (História da Vida Privada no Brasil, 2)p. 24. 113 FARIAS, Juliana Barreto. Cidades Negras. São Paulo: Alameda, 2006. 114 A princesa Isabel, filha de D. Pedro II, assumiu a regência do Império no momento em que seu pai se encontrava na Europa. 112

65 trabalhando nas fazendas de seus antigos senhores, além de não serem vistos nem tratados como cidadãos. Como citado acima, as imagens escolhidas para a elaboração das atividades aplicadas na sala de aula foram quatro. A primeira (Figura 1) traz a representação artística de uma igreja católica imponente com diversos sobrados e campanários de outras igrejas que a circundam num segundo plano. Frente a essa igreja, no primeiro plano, é retratada uma fonte onde vários escravos estão se refrescando e abastecendo seus recipientes de água. A peça, que no livro de Gilberto Cotrim é devidamente referenciada, trata-se da aquarela Largo, Chafariz e Igreja de Santa Rita (1844), obra de Eduard Hildebrandt, pintor alemão que veio ao Brasil em 1844 como membro da Expedição Científica patrocinada pelo Imperador da Prússia, Frederico Guilherme. Durante o curto período que permaneceu em nosso país, produziu diversas aquarelas, nas quais registra paisagens, tipos humanos e cenas urbanas. Nesse sentido, a representação desse grupo social do Império na sua aquarela é bastante plausível com os objetivos estéticos de Hildebrandt, que tinha por incumbência, enquanto funcionário da coroa prussiana, retratar a presença negra no espaço da cidade sede do Império do Brasil. Gilberto Cotrim insere o quadro no texto que alude à Constituição de 1824 relacionando a concentração de torres de igrejas na cidade do Rio de Janeiro como um sinal do poder do catolicismo nesse momento, todavia não cita a Expedição Científica na qual veio o referido artista nem tão pouco os objetivos que o levou a pintar o quadro. (Figura 1) Largo, Chafariz e Igreja de Santa Rita (1844)

São Paulo:

FONTE: COTRIM, Gilberto. Saber e Fazer história, 7ª Série. 3. ed. Saraiva, 2005. p. 155.

66 A segunda (Figura 2) traz uma mensagem bastante semelhante a da primeira imagem. A figura em destaque é uma aquarela de Jean-Baptist Debret. Trata-se da aquarela Loja de rapé (1823).115 Debret foi um pintor e desenhista francês que integrou a Missão Artística Francesa (1816) chefiada por Joachim Lebreton. Solicitada por D. João VI, a missão idealizava, dentre outros objetivos, a organização de uma Academia Imperial de Belas Artes. Segundo Proença, a Missão Artística Francesa foi reflexo da necessidade dos colonos brasileiros de se europeizarem, ou seja, do anseio das elites em assimilar e imitar a cultura européia, tendo em vista que a família real portuguesa havia chegado ao Brasil oito anos antes, trazendo com ela uma série de reformas administrativas, sócioeconômicas e, sobretudo, culturais.116 (Figura 2) Loja de rapé (1824).117

FONTE: COTRIM, Gilberto. Saber e Fazer história, 7ª Série. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 156. O traço artístico de Debret registra a riqueza de vários tipos humanos nos seus cotidianos e em seus mais diversos espaços de atuação. Eternizações realizadas ao longo dos seus 16 anos de vivência na capital imperial do Brasil, entre esboços e aquarelas, reproduziu personagens, como funcionários públicos, membros da Igreja, senhores e senhoras da alta sociedade carioca oitocentista, além de sinhazinhas e escravos.

115

À época do Império, Jean-Baptist Debret tornou-se um artista de renome internacional graças às 220 ilustrações contidas em seu livro de três tomos: “Voyage Pitoresque au Brasil”, obra esta publicada na França entre os anos de 1834 e 1839. 116 PROENÇA, Graça. História da arte. 16ª edição. São Paulo: Saraiva. 2003. p. 210. 117 No livro didático de história adotado como fonte para nosso trabalho, o título apresentado para essa obra de Debret é “Loja de Rapé”, todavia, segundo o site www.bibvirt.futuro.usp.br, o título dado para a mesma é “Negociante de tabaco em sua loja”.

67 Na cena acima, percebemos alguns escravos negros acorrentados em frente a uma loja do centro do Rio de Janeiro. Ao fundo, à direita da imagem, vemos a presença da igreja atestando, mais uma vez, o poderio da religião católica no império. Assim, vemos novamente outro acontecimento corriqueiro no centro da capital Imperial que o artista teve a perspicácia de reproduzir, tendo em vista que o cotidiano, tal como Hildebrandt, fazia parte dos temas explorados por Debret em suas composições artísticas. Nesse sentido, Debret desnuda, em muitas das suas imagens, a dura realidade da escravidão de uma maneira bastante diversa dos relatos escritos. Por isso, seus trabalhos documentam a vida durante o século XIX e são muito reproduzidos nos livros escolares de história. Ainda no âmbito da avaliação do aspecto pictórico, reconhecemos que a peça procura estabelecer uma relação temática de vínculo com o texto. Em contrapartida, não percebemos uma maior intervenção de Cotrim na articulação entre o texto impresso e a imagem por ele utilizada em seu livro. (Figura 3) Fotografia de Christiano Júnior (1865).

FONTE: COTRIM, Gilberto. Saber e Fazer história, 7ª Série. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 188. A terceira (Figura 3) trata-se de uma fotografia de Cristiano Junior, o qual documentou a presença dos negros na cidade do Rio de Janeiro em meados do século XIX. A fotografia é de 1865, mas na atividade aplicada em sala, utilizamos esse recurso

68 visual para demonstrar para os alunos uma das muitas formas de trabalho que absorveram a mão-de-obra dos negros após a abolição da escravatura. A cena mostra dois escravos, um em pé e outro sentado. O que está em pé parece estar cortando o cabelo ou barbeando o negro que está sentado. No livro de Cotrim, a fotografia é devidamente referenciada, entretanto, ele não atenta para estas nuances como, por exemplo, que alguns fotógrafos produziam imagens de escravos dentro e fora de seus ateliês. Parafraseando Ciavatta: A reflexão sobre a natureza documental da fotografia enfatizada em nosso projeto implica também no seu tratamento enquanto monumento, ou seja, na análise de sua condição inevitável de construção histórica destinada à perpetuação de alguma memória, do ponto de vista do grupo social que produziu e/ou apropriou-se das fotos. Se por um lado a fotografia possui um caráter informativo, ela sempre é, simultaneamente, uma re-criação da realidade.118

Christiano Júnior, por exemplo, elaborou uma coleção de cartes de visite,119 nas quais escravos anônimos apareciam em diversas atividades cotidianas que, em sua maioria, eram encenadas no estúdio do fotógrafo. Em outras, posavam em trajes bem cuidados, as mulheres com turbantes e os homens bem trajados de terno, mas sempre descalços. “A escravidão era delineada, nesse caso, pela estética do exótico”.120 A quarta e última (Figura 4), por fim, traz para os expectadores a reprodução de uma fotografia de Marc Ferrez, foto essa que retrata mulheres negras no mercado do Rio de Janeiro em 1875.121 Ativo participante das exposições universais, Marc Ferrez foi um fotógrafo brasileiro que atuou na corte a partir da década de 1870, sendo sua especialidade as paisagens, além do registro do trabalho escravo nas fazendas de café. A imagem citada mostra-nos quatro senhoras negras, em torno de seus 40 a 60 anos, sentadas ao chão com cestos, cada um contendo frutas diversas. Mais uma vez, Cotrim faz a referência perfeita da imagem, mas não relaciona ao texto escrito nem procura contextualizar as intenções com que o fotógrafo produziu a fotografia. (Figura 4) Fotografia de Marc Ferrez (1875). 118

CIAVATTA, Maria. O mundo do trabalho em imagens: a fotografia como fonte histórica (Rio de Janeiro, 19000-1930). Rio de Janeiro: DP&A, 2002. p. 40. 119 Segundo Ana Maria Mauad, a principal motivação dos fotógrafos em produzir esses “catálogos” contendo inúmeras fotografias de negros, em que eles figuravam em diversas atividades cotidianas, era a mera curiosidade da Europa Oitocentista em conhecer a situação dos escravos da África e da América. Esse “interesse perverso” refletiu-se na exportação de diversas fotografias dos escravos brasileiros. 120 MAUAD, Ana Maria. Imagem e auto-imagem do Segundo Reinado. In: NOVAIS, Fernando A. (Coord.). História da Vida Privada no Brasil. São Paulo: Compainha das letras, 1997. p. 204/205. 121 Segundo Ana Maria Mauad, a profissão de fotógrafo não garantia uma renda regular, fazendo com que eles tivessem outras profissões paralelas: “eram pintores, relojoeiros, dentistas, negociantes e até mágicos”.

69

FONTE: COTRIM, Gilberto. Saber e Fazer história, 7ª Série. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 197. Como se tratou de uma pesquisa na qual, desde o início, pretendíamos fazer uma reflexão e analisar a forma como os alunos das séries finais do Ensino Fundamental poderiam aprender o conteúdo histórico através das imagens no livro didático de história do período já mencionado, este projeto adotou como metodologia a execução de algumas atividades na sala de aula, através de uma abordagem rica e didática do recurso das imagens. No âmbito metodológico, para introduzir o aluno na leitura de imagens do livro didático, adotamos os procedimentos sugeridos e aplicados por Bittencourt.122 As atividades aplicadas foram duas, as quais consistiam numa folha com duas imagens impressas lado a lado separadas das legendas escritas. Essas atividades faziam parte do planejamento e seguiam como recurso avaliativo da disciplina. Nesse primeiro momento, os alunos se depararam com a ilustração, deixando fluir as relações entre as imagens a sua frente e outras imagens com que já haviam tido contato em outros momentos e em outras experiências. Partindo dessa leitura inicial e “interna” da ilustração, os alunos começaram a especificar o seu conteúdo. Sugerindo tema, personagens, espaço, posturas, vestimentas, elementos diversos que eram frutos e ao mesmo tempo símbolos de uma época e que deixavam entrever elementos diversos do cotidiano social dos tipos humanos retratados. Tomando como base as percepções desses alunos, observamos que eles não se mantiveram passivos frente ao recurso iconográfico, uma vez que questionaram, indagaram e procuraram refletir sobre eles. 122

BITTENCOURT, Op. Cit. , p. 86/ 88.

70 Em seguida, concentramos e voltamos a atenção dos alunos para os elementos “externos” da imagem. Nesse momento, direcionamos a atividade para outros referenciais, como para a importância e o significado do documento como objeto do ofício do historiador, uma vez que, segundo Viotti Ao jovem só pode interessar a História na qual vibre o homem com seus problemas e anseios, aquela que busca no passado compreensão para o presente, mas que não abandona o sentido da especificidade do passado, fundamental para uma consciência verdadeiramente histórica.123

Foi a partir daí que exploramos todo o contexto da produção das imagens: “Como e por quem foi produzido? Para que e para quem se fez esta produção? Quando foi realizada?”.124 Questões essas que, segundo nossas impressões, fizeram os alunos refletirem sobre o conteúdo textual do livro e a sua relação com a imagem trabalhada. E foi justamente nesse momento que exploramos a forma como a ilustração está contida no texto, o uso ou não de legendas, o contexto histórico do livro didático etc. Por fim, chegou o momento das comparações de ilustrações reproduzidas em diferentes momentos. No nosso trabalho, como já afirmado anteriormente, utilizamos imagens provenientes de momentos diferentes, embora todas retratassem o mesmo tema e estivessem incluídas no mesmo recorte temporal, ou seja, o Brasil Império. Nesse sentido, através da sobreposição dessas fontes distintas, os alunos fizeram relações históricas entre permanências e rupturas. Foram salientaram, através de debate em sala, as permanências dos maus tratos com o negro mesmo após a abolição, o que se refletia em preconceitos e na falta de trabalho digno. Contextualizaram a situação deles atualmente e colocaram que os negros ainda são os mais atingidos pelo problema da miséria, da fome e da falta de moradia. Existe também contra os negros o preconceito racial que aparece de forma velada nas piadas racistas e nos papéis que lhes são reservados em programas de TV, filmes etc. Considerações Finais No nosso trabalho, partimos do pressuposto de que se os alunos conseguissem fazer relações entre as imagens visuais dispostas com o conteúdo do livro bem como com a sua própria realidade e o cotidiano, eles gostariam da matéria e, consequentemente, aprenderiam história, uma vez que, em nossa concepção, ninguém aprende história sem fazer conexões entre presente e passado.

123

COSTA, Emilia Viotti da. O problema da motivação no ensino de História. In: Revista de Pedagogia, XIII, São Paulo, USP, 1963. p. 28. 124 BITTENCOURT, Op. Cit., p. 88

71 Particularmente, no caso da turma tomada como objeto, percebemos que os objetivos que nortearam este trabalho foram amplamente alcançados. Esse resultado positivo refletiu-se nas respostas escritas nos trabalhos aplicados, bem como nas perguntas e inquietações suscitadas pelos alunos no momento da explicação do conteúdo e nos debates intraclasse. O estudo possibilitou ainda a ampliação do conhecimento dos alunos para a percepção de que o livro didático de história pode ser uma fonte histórica bastante profícua e que merece maior atenção e cuidado por envolver um grande número de pessoas na sua elaboração, confecção e consumo. Além disso, possibilitou a apreensão por parte dos alunos de alguns conceitos que estão diretamente relacionados ao ofício do historiador, como fontes e documentos. Nessa direção, os alunos concluíram que as ilustrações do livro didático também figuram como fontes primárias, pois seguem os códigos pictóricos da época de sua produção, revelam gostos, valores estéticos, formas de ser e agir, usos e desusos de indivíduos e grupos do período de produção. No plano dos resultados da pesquisa, ela revelou-nos também aspectos que ampliaram nossa visão e a dos discentes sobre as condições de vida e de trabalho do escravo negro no Rio de Janeiro no século XIX, mas, sobretudo, a pesquisa contribuiu para o enriquecimento das nossas futuras aulas que, como dito no início e ressaltado por Emilia Viotti da Costa, devem ser aulas mais ativas e que ampliem o conceito de história.125

REFERÊNCIAS ABREU, Jean Luiz Neves. Difusão, produção e consumo das imagens visuais: caso dos ex-votos mineiros do século séc. XVIII. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 25, nº 49, p. 197-124. 2005. ALENCASTRO, Luiz Felipe de. Vida Privada e Ordem privada no Império. In: NOVAIS, Fernando A. (Coord.). História da Vida Privada no Brasil. São Paulo: Compainha das Letras, 1997. p. 11-93 (História da Vida Privada no Brasil, 2). BITTENCOURT, Circe (org.). O saber histórico na sala de aula. 8. ed. São Paulo: Contexto. 2003. (Repensando o ensino). 125

COSTA, Op. cit., p. 98.

72 BORGES, Maria Eliza Linhares. História e fotografia. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. CARDOSO, Ciro Flamarion, VAINFAS, Ronaldo(org): Domínios da história: Ensaio de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campos, 1997. CERRI, Luis Fernando. A política, a propaganda e o ensino da História. Cad. Cedes, v. 25. n. 67, Set/Dez. 2005. Disponível em http: // www.cedes.unicamp.br. Acesso em 10/11/2008. CIAVATTA, Maria. O mundo do trabalho em imagens: a fotografia como fonte histórica (Rio de Janeiro, 19000-1930). Rio de Janeiro: DP&A, 2002. COSTA, Liana Dantas. O tratamento dado ao negro nos livros didáticos de história do Ensino Fundamental entre os anos de 1988 e 2007. Natal. 2007. ( Monografia de fim de curso pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte). COSTA, Emilia Viotti. Sugestões para a melhoria do ensino da História no curso secundário. In: Revista de Pedagogia, Ano sexto, vol. VI, 11/12, 1960. ______. O problema da motivação no ensino de História. In: Revista de Pedagogia, XIII, São Paulo, USP, 1963. COTRIM, Gilberto. Saber e Fazer história, 7ª Série. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. FARIAS, Juliana Barreto. Cidades Negras. São Paulo: Alameda, 2006. LAVISSE, Ernest. Histoire de France: cours élémentaires. Paris: Colin, 1887. MAUAD, Ana Maria. Imagem e auto-imagem do Segundo Reinado. In: NOVAIS, Fernando A. (Coord.). História da Vida Privada no Brasil. São Paulo: Compainha das Letras, 1997. p. 181-231 (História da Vida Privada no Brasil, 2). ______. As imagens que educam e instruem: usos e funções das ilustrações nos livros didáticos de história. In: OLIVEIRA, Maria Margarida Dias; STAMATTO, Maria Inês Sucupira. O livro didático de história: políticas educacionais, pesquisas e ensino (org.). Natal: EDUFRN, 2007. NEVES, Joana. Como se estuda história. Revista de Ciências Humanas. João Pessoa: Ed. UFPB, 1980. Ano 2, n°4. PAIVA, Eduardo França. História & imagens. Belo Horizonte: Autêntica, 2002. PROENÇA, Graça. História da arte. 16ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003. www.bibvirt.futuro.usp.br. Acesso em 06/02/2009.

73 A IMPORTÂNCIA DA LEITURA NO ENSINO DE HISTÓRIA Paula Lorena Cavalcante Albano Graduanda / UFRN / bolsista PIBIC - CNPq [email protected] Profª Orientadora Drª Mª Inês S. Stamatto PPGED / UFRN RESUMO

O presente artigo faz parte de um projeto vinculado à Base de Pesquisa “Epistemologia e ensino aprendizagem”, que foi desenvolvida durante o Estágio I e II do curso de História. O projeto baseia-se na problematização da prática da leitura no ensino de História, vista a sua importância para o ensino dessa e para a cultura letrada. Tal estudo tem por objetivos refletir sobre o ensino de História e sua prática em relação à leitura, como também analisar a contribuição desta como construção de significados e verificar como pode se tornar uma prática atrativa aos alunos da disciplina em questão. Para nos nortear no estudo dessa prática, tivemos como referencial o conceito empregado por Roger Chartier e outros autores da área. O desenvolvimento do projeto ocorreu através da pesquisa bibliográfica e de campo. Esta, realizada durante o estágio curricular II, foi desenvolvida a partir de atividades sistematizadas que proporcionaram aos alunos a prática da leitura de forma significativa e que foi concluída com a produção de um jornal pelos próprios alunos. Por fim, a pesquisa busca contribuir para o ensino e aprendizado da História, como também para a Educação em geral. Palavras-chaves: Educação; Leitura e História. RESUMEN

El presente artículo hace parte de un proyecto vinculado al Base de Investigación Epistemología y enseñaza aprendizaje, que desarrollada durante la pasantía I y II curso del Historia. El proyecto se basa en la problematización de la práctica de la lectura en la enseñaza de Historia, bajo su importancia para la enseñanza de ésta y para reflexionar sobre la enseñanza de Historia y su practica en relación a la lectura, como también analizar la contribución de esta como contrición de significados y verificar como puede convertirse una practica atractiva a los alumnos de la asignatura en cuestión. Para norteamos en el estudio de esta práctica tuvimos c referencial el concepto empleado por Roger Chartier y otros autores del área. El desarrollo del proyecto ocurrió por medio de la investigación bibliográfica y de campo, realizada durante la práctica profesional curricular II fue desarrollada a partir de actividades sistematizadas que proporcionaron a las alumnos la práctica de la lectura de forma significativa y que fue terminada con la producción de un periódico por los proprios alumnos. Finalmente, la investigación busca contribuí para la enseñaza y aprendizaje de la Historia, como también para la educación en general. Palabras-claves: Educación, Lectura e Historia.

74 Introdução Sabendo-se que o ato de ler é inerente ao estudo da História, procuramos refletir sobre a importância da prática da leitura no ensino dessa disciplina. Isto é, com o foco na leitura textual, iremos analisar como ela poderia contribuir para a construção significativa dos conteúdos da disciplina História. Para isso, o presente estudo norteou-se pela perspectiva de observar a prática leitora como uma construção de significados. Nesse viés, sobre o ato de ler, tivemos por orientadores teóricos autores como Anne-Marie Chartier, Roger Chartier e Isabel Solé, como também Lev Semenovich Vygotsky e César Coll para compreendermos melhor o desenvolvimento cognitivo da aquisição da linguagem do aluno. O nosso estudo surgiu durante a experiência no estágio curricular I e II do curso de graduação em História da UFRN, em que, a partir de observações feitas numa turma do 9º ano de uma escola pública da cidade do Natal/ RN, percebemos que os discentes, como em tantas outras séries, apresentam certa dificuldade na compreensão da leitura textual trabalhada pelo professor de História e, por sabermos que a disciplina exige de certa forma a presença dessa prática por parte dos estudantes, decidimos caminhar nessa direção. Então, durante o período em que nos encontramos em sala de aula, procuramos realizar diversas atividades com textos dissertativos que ajudassem no desenvolvimento da capacidade interpretativa da turma em análise. Ao final, os alunos produziram um jornal a partir das leituras realizadas sobre o assunto estudado no bimestre, como meio de avaliar o desenvolvimento do ato de ler e da linguagem escrita durante a efetivação do trabalho.

1. A leitura e sua importância A linguagem é um mecanismo relevante para a comunicação como mediador da realidade. A palavra, a qual constitui a unidade de pensamento e linguagem, pode ser manifestada a partir de mecanismos como a fala, os gestos e a escrita. Em nossa sociedade, tem-se como valor maior essa última modalidade, que foi se tornando, durante a História do Ocidente, preponderante em relação à oralidade. A escrita sempre esteve intimamente ligada à memória coletiva, a qual passou por várias transformações em diversas sociedades desde a oralidade, a prática desta e da escrita simultaneamente e, por fim, a preponderância dessa última. Ressaltamos que essas fases não ocorreram de forma linear, mas passaram por mudanças e continuidades.

75 As fases passadas pela memória coletiva marcaram o surgimento da escrita, pois a necessidade de se registrar aquela conduziu ao desenvolvimento desta, que começou a assumir a forma de inscrição. Nestas, eram registrados fatos considerados memoráveis para as sociedades, tornando-se, assim, uma técnica que contribuiu para resguardar a memória. Na antiguidade, a escrita já aparecia, mas ainda prevalecia a memória oral, sendo o ato de escrever destinado a poucos indivíduos que tinham a obrigação de registrar fatos administrativos, religiosos e históricos das sociedades, com a criação de arquivos e bibliotecas. Durante a Idade Média, a escrita ganhou mais espaço, pois, ligada à doutrina cristã, expande-se, formando uma cultura ao mesmo tempo oral e escrita. Contudo, “o escrito desenvolve-se a par do oral, pelo menos no grupo dos clérigos e literatos, há um equilíbrio entre a memória oral e memória escrita, intensificando o recurso ao escrito como suporte da memória”.126 A partir da Renascença, ocorreu uma revolução com a escrita por causa da imprensa, que se tornou responsável pela difusão da escrita e da leitura através da produção mais intensificada de livros e jornais. Mas foi no século XIX que a escrita se tornou preponderante, devido ao Movimento Iluminista, que valorizava somente documentos escritos em detrimento da memória oral. Então, esta começou a perder espaço em relação à memória escrituraria. A linguagem escrita, ao longo da História, foi se tornado de extrema importância para a sociedade ocidental e foi conduzindo para a formação de uma cultura baseada nas letras. A sua relevância tornou-se tão grande que, sem ter o domínio da escrita e leitura, apresenta-se difícil a inserção do individuo na sociedade e nos processos de conhecimento apresentados por ela, deixando-o, assim, na marginalização social. “Sabemos que em uma sociedade letrada, aqueles que não dispõem das ferramentas necessárias encontram-se em uma situação de desvantagem em termos gerais.” 127 Por isso, torna-se importante para os discentes a sua aprendizagem de forma significativa, o que ultrapassa os limites escolares, conduzindo à formação do aluno para própria sociedade em que está inserido. Então, norteados pela concepção de leitura como significação, entendemos que é necessária aos alunos uma compreensão do que se lê, ou seja, que eles dêem significado ao que lêem e, dessa maneira, torne-se atrativa a realização da compreensão do texto. Assim, não a fazendo de forma mecânica e simplesmente mnemônica, mas para se obter resultados positivos na aprendizagem, é importante trabalhar a capacidade de ler construindo significados. Para Vygotsky, o significado é inerente à palavra, é um fenômeno verbal e intelectual, que evolui, tornado-se “um autêntico processo de desenvolvimento, isto é, 126

GOOF, Jacques Le. História e memória. Campinas, SP: Ed. da UNICAMP, 1996. p. 450. TEBEROSKY, Ana; Et. Al. Compreensão de leitura: a língua como procedimento. Porto Alegre: ARTMED, 2003. 127

128

desenvolvimento de um conceito, de um significado ligado a uma palavra.”

76 É uma

relação dinâmica entre o pensamento, o intelecto e o signo verbal, a palavra desenvolvendo o significado. Como o próprio afirma, “uma palavra sem significado é um som vazio; o significado, portanto, é um critério da palavra, seu componente indispensável”.129 Por isso, é necessário trabalhar desde o início da formação intelectual do discente a questão da linguagem significativa, caso contrário, a verdadeira leitura não acontece, tornando-se apenas a reprodução de códigos soltos em um papel, pois “um texto só existe se houver um leitor para lhe dar significado”.130 Se o discente não consegue compreender o que está escrito, o ato de ler não é realizado. No autor acima citado, percebemos, também, o papel primordial do leitor como sujeito da prática realizada, que é a leitura. O aluno-leitor precisa ter a consciência de que não é um personagem passivo deste ato, mas alguém fundamental que pode e deve interferir no texto, quem tem muito a contribuir, porque traz em sua vida e história conhecimentos que podem ajudar na construção dos significados, os quais são transformados na interação com a leitura. Ler é, pois, um processo que transcende a capacidade de memorizar e identificar códigos, já que carrega em sua prática “a compreensão da linguagem escrita. Nesta compreensão intervêm tanto o texto, sua forma e conteúdo, como o leitor, suas expectativas e conhecimentos prévios.”131 Isto é, a leitura constitui-se em um ato interativo, no qual o aluno-leitor ao ler o texto interage o conhecimento novo adquirido com o que ele traz previamente, pois não é apenas uma “competência técnica, [...], mas um gesto que necessita das trocas de convívio”.132 Portanto, a leitura ultrapassa os mecanismos técnicos como também os interesses trazidos pelos produtores de textos, pois, à medida que ocorre a interação texto-leitor, constroem-se significados. Isso leva-nos a compreender que o ato de ler gera certa autonomia, mesmo que apresente limites, desafios ou tentativas de imposição de pensamentos, deixando espaços para o leitor refletir e ter suas próprias conclusões. Nas palavras de Chartier: A leitura é sempre apropriação, invenção, produção de significados. Segundo, a bela imagem de Michel de Certeau, o leitor é um caçador que percorre terras alheias. Apreendido pela leitura, o texto não tem modo algum – ou ao menos totalmente – o sentido que lhe atribui seu autor, seu editor ou seus comentadores. Toda história da leitura supõe, em seu principio, esta liberdade do leitor que desloca e subverte aquilo que o livro lhe pretende impor. Mas esta liberdade leitora não é jamais absoluta. Ela é cercada por limitações 128

BAQUERO, Ricardo. Vygotsky e a aprendizagem escolar. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998. p. 56. VYGOTSKY, L. S. Pensamento e Linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1993. p. 104. 130 CHARTIER, Roger. A ordem dos livros: leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII. Brasília, D.F.: Ed. da UnB, 1994. p. 16. 131 SOLÉ, Isabel. Estratégias de leituras. 6. ed. Porto Alegre: ARTMED, 1998. p. 23. 132 CHARTIER, A.; CLESSE,C.; HÈRBRAD, J. Ler e Escrever: entrando no mundo da escrita. Porto Alegre: ARTMED, 1996.p. 52. 129

77 derivadas das capacidades, convenções e hábitos que caracterizam, em suas diferenças, as práticas de leituras.133

Nesse contexto, encontramos vários agentes que fazem parte da vida do aluno e o acompanham na sala de aula e nas suas leituras e que, muitas vezes, são responsáveis por gerar maneiras próprias de ler e compreender o que é lido. A saber, alguns desses agentes podem ser espaços, tempo, família, amizades, meios de comunicação, situação financeira, ideologias e concepções inseridas na sua vida, ou seja, todo um mundo que cerca o estudante e o influencia na significação que ele concede ao que está lendo.

2. A importância da leitura no ensino de História Para o ensino de História, a leitura é primordial. Essa disciplina, como sabemos, exige certa capacidade e domínio da língua escrita por parte dos que a estudam e dela não deve ser feito algo mecânico ou de caráter simplesmente memorizador. Esse é um componente que tem a sua importância, ajudando na aprendizagem, mas é necessário que o aluno compreenda o que está sendo lido e consiga interpretar, dar significado tanto à prática de ler como ao que se encontra no texto. Sabemos que é possível usar outros meios para se ensinar a História, como cinema, teatro, imagens, mas tais meios também precisam ser lidos para serem entendidos. Contudo, o nosso trabalho se limitou a pesquisar o desenvolvimento da capacidade leitora textual, principalmente dos textos dissertativos e expositivos. A escolha desses tipos de texto foi proposital, pois o nosso interesse foi desenvolver a capacidade cognitiva do discente acerca da interpretação, da significação e argumentação a partir da cultura escrita, vista a dificuldade encontrada na turma em análise. Percebemos que, à medida que o aluno consegue significar o que está escrito no texto, e aqui se tratando do discurso histórico, na realidade está dando sentido também ao evento histórico que se estuda. Outro fator importante para se destacar na prática da leitura de textos/discursos históricos é o fato de terem em sua constituição um teor argumentativo, reflexivo e crítico, o que conduz o aluno-leitor a uma compreensão textual e reflexão, construindo, assim, significados, interpretações sobre o fato analisado. A escrita e a leitura textual contribuem para a compreensão das idéias, pois ajudam na organização do discurso histórico, como também afirma Certeau, ao dizer 133

CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador. São Paulo: Ed. UNESP, 1998. p. 77.

que “a escrita coloca em ordem os acontecimentos em desordem.”

134

78 Portanto, o texto

escrito ajuda-nos a organizar os eventos históricos estudados. Ficamos, então, diante da questão formulada desde o princípio: como a leitura poderia contribuir para a construção significativa dos conteúdos de História? Precisamos considerar que essa disciplina busca formar no estudante a capacidade de pensar histórica e criticamente sobre a vida das sociedades, dando significado ao seu estudo. No entanto, atentamos também para os conhecimentos prévios que a classe possui, através dos quais eles são influenciados no seu modo de pensar. Essa influência, por sua vez, deve ser trabalhada, pois pode representar facilitadores ou dificultadores do processo de aprendizagem dos conhecimentos históricos. Isso representa pensar o quanto é importante considerar o que o aluno já tem internalizado durante todo o processo de ensino-aprendizagem, tanto dentro do âmbito educacional formal quanto informal, e que está presente desde a sua idade tenra, fazendo parte da sua maneira de pensar. O conhecimento que o aluno possui a priori precisa de uma especial atenção ao ser considerado em sala de aula, para que o professor possa trabalhar Com o problema da desconstrução e reconstrução do conhecimento, ou seja, com o trânsito sempre problemático e desafiador entre conhecimentos tributários do senso comum e o conhecimento histórico a ser formulado sobre outros procedimentos.135

Isso para que o discente não construa anacronismos, acabando por ter uma visão distorcida do assunto estudado. Portanto, levando em consideração as afirmações de Vygotsky a respeito da aprendizagem, a qual sofre a influência do social, o conhecimento é recebido e reconstruído, isto é, ele não é absorvido e reproduzido, mas, à medida que é internalizado, sofre uma nova construção. Por isso, o conhecimento histórico ensinado ao ser recebido pelo estudante gera reconstruções devido às interações sociais que devem ser trabalhadas através da ajuda do docente. Por fim, percebemos a importância da linguagem escrita na formação significativa dos conteúdos históricos e na produção desse conhecimento e que o aluno, ao se deparar com os textos dissertativos, começa a compreender como essa produção é edificada.

134

CERTEAU. Michel de. Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002. p. 217. ZARTH, P. A. GERHARDT, M., CORSETTI, B., CAIMI, F. E. (Org). Ensino de História e Educação. Ijuí, RS: UNIJUÌ, 2004. p. 81.

135

79

3. Atividades com leitura no ensino de História Nosso projeto teve como foco de observação e aplicação uma turma de 9º ano em que os participantes possuíam uma faixa etária de 14 a 16 anos, ou seja, trabalhamos com adolescentes. Nessa fase da vida, como afirma Coll, os alunos já atingem um nível novo e superior de pensamento, que lhes permite conceber fenômenos diferentemente dos feitos anteriormente. O estudante já é capaz de trabalhar com representações, possuindo uma maior autonomia em relação ao raciocínio abstrato, sem limitar-se ao concreto, àquilo que se pode ver, mas desenvolve uma capacidade maior de abstração e dedução a respeito do problema explicitado. Diante disto, a leitura torna-se o ideal aliado no ensino da História, pois possibilita essa construção de representações distantes da realidade vivida por eles, ajudando-os na formação do pensamento formal. Portanto, nesse período da vida é possível adentrar em elementos mais abstratos que envolvem a História, trabalhando conteúdos mais distantes do cotidiano. Contudo, precisamos perceber que o desenvolvimento dos adolescentes não acontece de forma linear, em que todos conseguem se encontrar no mesmo nível de abstração e reflexão. É necessário compreender que eles passam por realidades, condicionamentos e ritmos diferentes de aprendizado devido à sua história pessoal, que, muitas vezes, limita ou expande, dificulta ou facilita esse processo de construção do abstrato, do conhecimento dedutivo. A partir dessas observações, elaboramos atividades. No primeiro momento, detivemo-nos em observar a turma e ver a possibilidade de trabalhar a leitura em classe. Esse período durou cerca de dois meses e, durante esse tempo, fomos observando que a turma tinha poucos momentos dedicados à leitura, o que nos revelou a falta de estímulo dessa prática. Na maioria das vezes quando a professora fazia atividades, como questionários, cujas respostas se encontravam no livro didático, os alunos queriam logo encontrá-las de forma rápida sem precisar exercer o raciocínio. Por fim, ao término desse passo, percebemos que muitos liam e não compreendiam, não conseguiam dar significado às palavras, reproduzindo-as de forma mecânica. No segundo momento, tentamos desenvolver a prática da leitura relacionada às aulas de História. Nesse período, o assunto estudado foi a Guerra Fria e a Era Vargas, trabalhado durante aproximadamente três meses. Entre as atividades propostas, estava a construção de um jornal do período getulista para o final do bimestre. Para isso, trabalhamos com variados textos, com diversificados temas, que formariam um jornal daquele período, a saber, classificados, propagandas, lazer, esportes, notícias, moda e

80 outros. Levamos para a turma exemplos de notícias da primeira metade do século XX e, a partir disso, começamos a trabalhar com os textos dissertativos e expositivos que explorassem os temas explicitados acima, como também utilizamos o livro didático da classe. Nesse caminho que traçamos para trabalhar a questão da leitura significativa, fizemos diversas atividades. No entanto, para iniciarmos a pesquisa, realizamos um primeiro exercício para identificar as dificuldades dos alunos. Entregamos diferentes textos sobre a Guerra Fria para grupos de quatro membros e pedimos para que lessem, colocassem em uma transparência o que tinham compreendido sobre o texto e apresentassem para a professora. À medida que eles iam lendo, passamos de grupo em grupo observando o desempenho. Percebemos, ao término da atividade, que muitos tinham dificuldade de organizar e expressar, tanto na escrita como na oralidade, o que tinham entendido; outros não conseguiam sequer entender o texto; e somente um grupo foi capaz de explicar o que tinha entendido conforme o que o texto pedia. Diante disso, percebemos que os alunos que deveriam, pela sua faixa etária, estar compreendendo os textos de nível mais abstrato que lhes foi colocado em sala de aula não conseguem acompanhar o ritmo de abstração e representação. A maioria repassava o que foi lido de forma mecânica, sem análise ou questionamento. No entanto, decidimos prosseguir com o estudo. Nesse período, utilizamos como referencial, para nos ajudar, algumas estratégias que a autora Isabel Solé propõe em seu livro Estratégias de leitura.136 O primeiro passo a ser traçado foi buscar conhecer temáticas de que os alunos gostassem para, assim, desde o início trabalhar a questão da motivação, lembrando que essa também se cria e se desenvolve. Então, como foi colocado acima, dividimos grupos a partir das afinidades com o tema. Para as aulas, foram levados diversos textos dissertativos e o livro didático, que eram trabalhados a partir de questionamentos lançados pela professora como: Que tenho que ler? Por quê? Para quê? Que sei sobre isto? O que é importante no texto ou não que possa prejudicar o objetivo para o qual se tem lido? Este texto tem lógica? Quais conclusões conseguimos retirar do texto? Sobre o que vocês acham que se trata o texto?137 Outro ponto trabalhado era, ao início de cada leitura, realizar discussões prévias para ajudar os alunos e despertar neles o desejo pela leitura do texto. Por fim, para finalizar este trabalho que buscou unir o ensino de História com a prática da competência leitora e, como conseqüência, o desenvolvimento da escrita, concluímos o bimestre com a elaboração de um jornal, descrito acima. A escolha por essa atividade final tinha por objetivo promover um trabalho divertido, no qual o aluno pudesse, de forma mais livre e criativa, expressar na escrita, de maneira crítica, o que

136 137

SOLÉ, ISABEL. Estratégias de leitura. 6. ed. Porto Alegre: ARTMED, 1998. SOLÉ, Isabel. Estratégias de leitura. 6. ed. Porto Alegre: ARTMED, 1998.

81 tinha aprendido com as leituras realizadas. Optamos também pelo jornal por ter sido um dos principais veículos de comunicação do período estudado, aliando assim a produção jornalística com o ensino da História e da importância desse meio para a sociedade da época. Para esse fim, pesquisamos trabalhos em sala de aula com a construção de jornais e buscamos a contribuição de autores como Chris e Ray Harris138 e Cecília Pavani, Ângela Junquer e Elizena Cortez139 para desenvolvermos a atividade. A partir da colaboração desses autores, realizamos, durante o bimestre, o exercício, que obteve certos resultados proveitosos.

Conclusão A leitura significativa é um rico instrumento na educação, não só para os conteúdos escolares e, de forma particular, históricos, mas por preparar o aluno para a vida em sociedade. Contudo, ao realizarmos esta pesquisa, percebemos que a prática leitora como construção de significação e o ensino de uma compreensão leitora são pouco desenvolvidos, devido à deficiência no desenvolvimento da competência dessa pratica por parte dos discentes e à falta de incentivos por parte dos docentes. Os resultados apresentados pelos alunos da sala de aula foram de uma melhora na compreensão leitora, apesar de ela ainda ser nitidamente insuficiente. Isso se deve ao pouco tempo para a realização do projeto. No entanto, sabemos que essa mudança esperada não seria alcançada em três meses, pois o desenvolvimento da leitura é um processo lento que precisa ser realizado constantemente. Diante disso, percebemos o quanto é importante que essa prática seja desenvolvida desde cedo na vida dos estudantes, para que, assim, possam desenvolver concretamente a capacidade leitora significativa. Por fim, a pesquisa revelou-nos o quanto é necessário aliar a História à compreensão leitora, pois, sem esta, torna-se impossível o discente aprender a construir crítica e reflexivamente o saber histórico.

138

HARRIS, Ray. Faça seu próprio jornal. 12. ed. Campinas, SP: Papirus, 1993. PAVANI, C.; JUNQUER, A.; CRTEZ, E. Jornal: uma abertura para a educação. Campinas, SP: Papirus, 2007. 139

82 REFERÊNCIAS BAQUERO, Ricardo. Vygotsky e a aprendizagem escolar. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998. CERTEAU. Michel. Universitária, 2002.

A

escrita

da

História.

Rio

de

Janeiro: Forense

CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador. São Paulo: Ed. UNESP, 1998. ______ . A ordem dos livros: leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII. Brasília, D.F.: Ed. da UnB, 1994. CHARTIER, A.; CLESSE,C.; HÈRBRAD, J. Ler e escrever: entrando no mundo da escrita. Porto Alegre: ARTMED, 1996. COLL, C.; MARCHESI, A.; PALACIOS, J. Desenvolvimento psicológico e educação: psicologia da educação. Alegre: Artes Médicas, 1996. HARRIS, Ray. Faça seu próprio jornal. 12. ed. Campinas, SP: Papirus, 1993. PAVANI, C.; JUNQUER, A.; CORTEZ, E. Jornal: uma abertura para a educação. Campinas, SP: Papirus, 2007. SOLÉ, Isabel. Estratégias de leituras. 6. ed. Porto Alegre: ARTMED, 1998. TEBEROSKY, Ana; Et. Al. Compreensão de leitura: a língua como procedimento. Porto Alegre: ARTMED, 2003. VYGOTSKY, L. S. Pensamento e Linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1993. ZARTH, P.; GERHARDT, M., CORSETTI, B., CAIMI, F. E. (Org). Ensino de História e Educação. Ijuí, RS: Ed. UNIJUÌ, 2004.

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