Depois de Bourdieu: abordagens sociológicas contemporâneas acerca das classes populares

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ANTROPOLÍTICA Nºº- 17

2º- semestre 2004

ISSN 1414-7378 Antropolítica

Niterói

n. 17

p. 1-291

2. sem. 2004

© 2005 Programa de Pós-Graduação em Antropologia e Ciência Política da UFF Direitos desta edição reservados à EdUFF - Editora da Universidade Federal Fluminense Rua Miguel de Frias, 9 - anexo - sobreloja - Icaraí - CEP 24220-000 - Niterói, RJ - Brasil Tel.: (21) 2629-5287 - Telefax: (21) 22629-5288 - http://www.uff.br/eduff -E-mail: [email protected] É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem autorização expressa da Editora. Normalização: Caroline Brito de Oliveira Edição de texto: Sônia Peçanha Projeto gráfico, capa e editoração eletrônica: José Luiz Stalleiken Martins Revisão: Rosely Barrôco e Icléia Freixinho Diagramação e supervisão gráfica: Káthia M. P. Macedo Coordenação editorial: Ricardo B. Borges Sumário em inglês: Agatha Barcelar Tiragem: 500 exemplares

Catalogação-na-fonte (CIP) A636

Antropolítica : Revista Contemporânea de Antropologia e Ciência Política. — n. 1 (2. sem. 95). — Niterói : EdUFF, 1995. v. : il. ; 23 cm. Semestral. Publicação do Programa de Pós-Graduação em Antropologia e Ciência Política da Universidade Federal Fluminense. ISSN 1414-7378 1. Antropologia Social. 2. Ciência Política. I. Universidade Federal Fluminense. Programa de Pós-Graduação em Antropologia e Ciência Política. CDD 300

UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE Reitor Cícero Mauro Fialho Rodrigues Vice-Reitor Antônio José dos Santos Peçanha Pró-Reitor/PROPP Sidney Luiz de Matos Mello Diretora da EdUFF Laura Garziela Gomes Diretor da Divisão de Editoração e Produção: Ricardo Borges Diretora da Divisão de Desenvolvimento e Mercado: Luciene Pereira de Moraes COMITÊ EDITORIAL DA ANTROPOLÍTICA Delma Pessanha Neves (PPGACP / UFF) Eduardo R. Gomes (PPGACP / UFF) Simoni Lahud Guedes (PPGACP / UFF) Gisálio Cerqueira Filho (PPGACP / UFF) Secretária:

Solange Pinheiro Lisboa Conselho Editorial da Antropolítica Alberto Carlos de Almeida (PPGACP / UFF) Argelina Figueiredo (Unicamp / Cebrap) Ari de Abreu Silva (PPGACP / UFF) Ary Minella (UFSC) Charles Pessanha (IFCS / UFRJ) Cláudia Fonseca (UFRGS) Delma Pessanha Neves (PPGACP / UFF) Eduardo Diatahy B. de Meneses (UFCE) Eduardo R. Gomes (PPGACP / UFF) Eduardo Viola (UnB) Eliane Cantarino O’Dwyer (PPGACP / UFF) Gisálio Cerqueira Filho (PPGACP / UFF) Gláucia Oliveira da Silva (PPGACP / UFF) Isabel Assis Ribeiro de Oliveira (IFCS / UFRJ) José Augusto Drummond (PPGACP / UFF) José Carlos Rodrigues (PPGACP / UFF) Josefa Salete Barbosa Cavalcanti (UFPE) Laura Graziela F. F. Gomes (PPGACP / UFF) Lívia Barbosa (PPGACP / UFF) Lourdes Sola (USP) Lúcia Lippi de Oliveira (CPDOC) Luiz Castro Faria (PPGACP / UFF) Luis Manuel Fernandes (PPGACP/UFF) Marcos André Melo (UFPE) Marco Antônio da S. Mello (PPGACP/UFF) Maria Antonieta P. Leopoldi (PPGACP/UFF)

Maria Celina S. d’Araújo (PPGACP/ UFF-CPDOC) Marisa Peirano (UnB) Otávio Velho (PPGAS / UFRJ) Raymundo Heraldo Maués (UFPA) Renato Boschi (UFMG) Renato Lessa (PPGACP / UFF - IUPERJ) Renée Armand Dreifus (PPGACP/UFF) Roberto Da Matta (PPGACP/UFFUniversity of Notre Dame) Roberto Kant de Lima (PPGACP / UFF) Roberto Mota (UFPE) Simoni Lahud Guedes (PPGACP / UFF) Tânia Stolze Lima (PPGACP / UFF) Zairo Cheibub (PPGACP / UFF)

SUMÁRIO NOTA DOS EDITORES, 7 DOSSIÊ: POR UMA ANTROPOLOGIA DO CONSUMO APRESENTAÇÃO: LAURA GRAZIELA GOMES E LÍVIA BARBOSA, 11 POBREZA DA MORALIDADE, 21 DANIEL MILLER O CONSUMIDOR ARTESÃO: CULTURA, ARTESANIA E CONSUMO EM UMA SOCIEDADE PÓS-MODERNA, 45 COLIN CAMPBELL POR UMA SOCIOLOGIA DA EMBALAGEM, 69 FRANCK COCHOY ARTIGOS A ANTROPOLOGIA E AS POLÍTICAS DE DESENVOLVIMENTO: ALGUMAS ORIENTAÇÕES, 99 JEAN-FRANÇOIS BARÉ ARQUIVO PÚBLICO: UM SEGREDO BEM GUARDADO?, 123 ANA PAULA MENDES DE MIRANDA A CONCEPÇÃO DA DESIGUALDADE EM HOBBES, LOCKE E ROUSSEAU, 151 MARCELO PEREIRA DE MELLO ASSOCIATIVISMO EM REDE: UMA CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA EM TERRITÓRIOS DE AGRICULTURA FAMILIAR, 167 ZILÁ MESQUITA E MÁRCIO BAUER DEPOIS DE BOURDIEU: AS CLASSES POPULARES EM ALGUMAS ABORDAGENS SOCIOLÓGICAS CONTEMPORÂNEAS, 191 ANTONÁDIA BORGES

RESENHAS LIVRO: MODÉRATION ET SOBRIÉTÉ. ÉTUDES SUR LES USAGES SOCIAUX DE L’ALCOOL, 213 LUDOVIC GAUSSOT AUTOR DA RESENHA: FERNANDO CORDEIRO BARBOSA LIVRO: GOVERNANÇA DEMOCRÁTICA E PODER LOCAL: A EXPERIÊNCIA DOS CONSELHOS MUNICIPAIS NO BRASIL, 217 ORLANDO ALVES DOS SANTOS JÚNIOR, L. C. DE Q. RIBEIRO E SÉRGIO AZEVEDO (ORGS.) AUTORA DA RESENHA: DEBORA CRISTINA REZENDE DE ALMEIDA NOTÍCIAS

DO

PPGACP

NEST – NÚCLEO DE ESTUDOS ESTRATÉGICOS, 227 DISCURSO DO PROFESSOR EURICO DE LIMA FIGUEIREDO, 231 RELAÇÃO DE DISSERTAÇÕES DEFENDIDAS NO PPGACP, 245 REVISTA ANTROPOLÍTICA: NÚMEROS E ARTIGOS PUBLICADOS, 273 COLEÇÃO ANTROPOLOGIA E CIÊNCIA POLÍTICA (LIVROS PUBLICADOS), 285 NORMAS DE APRESENTAÇÃO DE

TRABALHOS,

289

CONTENTS EDITORS NOTE, 7 DOSSIER: TOWARDS AN ANTHROPOLOGY OF CONSUMPTION FOREWORD: LAURA GRAZIELA GOMES E LÍVIA BARBOSA, 11 THE POVERTY OF MORALITY, 21 DANIEL MILLER THE CRAFT CONSUMER: CULTURE, CRAFT AND CONSUMPTION IN A POST-MODERN SOCIETY, 45 COLIN CAMPBELL TOWARDS A SOCIOLOGY OF PACKAGING, 69 FRANCK COCHOY ARTICLES ANTHROPOLOGY AND THE POLITICS OF DEVELOPMENT: SOME DIRECTIONS, 99 JEAN-FRANÇOIS BARÉ PUBLIC ARCHIVES: A WELL KEPT SECRET?, 123 ANA PAULA MENDES DE MIRANDA THE CONCEPTION OF INEQUALITY IN HOBBES, LOCKE AND ROUSSEAU, 151 MARCELO PEREIRA DE MELLO A CHAIN OF ASSOCIATIVISM: IDENTITY CONSTRUCTION IN FAMILY FARMING LANDS, 167 ZILÁ MESQUITA E MÁRCIO BAUER AFTER BOURDIEU: CONTEMPORARY SOCIOLOGICAL APPROACHES TO POPULAR CLASSES, 191 ANTONÁDIA BORGES

REVIEWS BOOK: MODÉRATION ET SOBRIÉTÉ. ÉTUDES SUR LES USAGES SOCIAUX DE L’ALCOOL, 211 LUDOVIC GAUSSOT AUTHOR OF THE REVIEW: FERNANDO CORDEIRO BARBOSA BOOK: GOVERNANÇA DEMOCRÁTICA E PODER LOCAL: A EXPERIÊNCIA DOS CONSELHOS MUNICIPAIS NO BRASIL, 217 ORLANDO ALVES DOS SANTOS JÚNIOR, L. C. DE Q. RIBEIRO E SÉRGIO AZEVEDO (ORGS.) AUTHOR OF THE REVIEW: DEBORA CRISTINA REZENDE DE ALMEIDA PPGACP NEWS NEST – NÚCLEO DE ESTUDOS ESTRATÉGICOS, 219 SPEACH OF PROFESSOR EURICO DE LIMA FIGUEIREDO, 231 THESIS, 245 REVISTA ANTROPOLÍTICA: NUMBERS AND PUBLISHED ARTICLES, 275 PUBLISHED BOOKS AND SERIES – COLEÇÃO ANTROPOLOGIA E CIÊNCIA POLÍTICA, 285 RULES ON

PAPER PUBLICATION,

289

NOTA DOS EDITORES Com o número 17 da Revista Antropolítica prosseguimos na divulgação de temáticas contemporâneas nas ciências sociais que se constituem também em linhas de pesquisa nos dois programas do PPGACP. Destacamos, no presente dossiê, a linha de pesquisa Antropologia do Consumo, apresentada pelas professoras Livia Barbosa e Laura Graziela Gomes, com três artigos que elaboram algumas das mais importantes questões deste campo que vem se expandindo nos últimos anos. São também importantes contribuições os demais artigos, tratando de temas variados: políticas de desenvolvimento, associativismo em rede, arquivos públicos e uma reflexão teórica sobre a desigualdade no pensamento clássico. Devemos registrar o esforço dos pesquisadores e dos nossos programas para traduzir os artigos de autores estrangeiros, objetivando sua maior divulgação, sem contar com recursos especialmente destinados a este fim. Registramos, ainda, que têm sido fundamentais os subsídios para publicação destinados a nossa revista pela Pró-Reitoria de Pesquisa e PósGraduação (PROPP), da Universidade Federal Fluminense, através da Eduff, obtidos por meio de concorrência no ano de 2004. Este auxílio tem permitido uma maior agilização na produção da revista e a manutenção de sua periodicidade. Finalmente, registramos que nossa revista foi reclassificada pela Comissão Qualis/Capes como Nacional A, o que muito nos orgulhou. Continuaremos trabalhando em sua permanente melhoria. A Comissão Editorial

DOSSIÊ: Por uma antropologia do consumo

Os três artigos que compõem o Dossiê foram traduzidos por Agatha Barcelar.

LAURA GRAZIELA GOMES

E

LÍVIA BARBOSA

A PRESENTAÇÃO A expressão “antropologia do consumo”, utilizada neste volume para designar o dossiê do qual fazem parte os três artigos que se seguem, pode sugerir ao leitor tratar-se de uma perspectiva renovada da antropologia econômica ou mesmo de uma nova abordagem etnográfica da Economia. Entretanto, nada seria mais enganoso e distante do que se encontra na tradição clássica da antropologia. Embora desde os primórdios da disciplina houvesse uma preocupação constante dos antropólogos em investigar o modo como a dimensão material dos bens afeta a vida social,1 é preciso ressaltar que a preocupação dominante nesses trabalhos era com a produção e a circulação e, neste contexto, com as dimensões consideradas “tradicionais” da troca – a reciprocidade, o giftgiving – e com a sua identificação com princípios estruturais a partir das práticas rituais coletivas. Descartava-se, naquele momento, o estudo da apropriação diferencial dos bens no interior das sociedades. A atenção voltava-se sobre os modos de usos dos objetos desde que estes reafirmassem a perspectiva holística dominante na antropologia, que valorizava muito mais o fazer coletivo do que o individual e fundamentalmente aquilo que nos diferenciava deles: a dádiva da mercadoria, a reciprocidade da compra, a moralidade do interesse. Assim, o consumo enquanto lócus de experiências coletivas e individuais singulares, como algo que gera conhecimento sobre cada um de nós e o mundo que nos cerca não suscitava a atenção nem mesmo no contexto das sociedades modernas industriais. Ao contrário, a respeito destas últimas, uma perspectiva menos generosa em termos intelectuais e acadêmicos logo se impôs, qual seja, aquela em que o consumo

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e o consumismo modernos são tratados como sintoma do processo de perda dos valores tradicionais (destradicionalização), tudo isso embalado por um viés altamente moral e pessimista que enfatiza o nosso materialismo em face de uma pureza e autenticidades de relações sociais das sociedades “primitivas”. O que estava e está por trás disso era e é uma concepção ingênua de que o universo material, principalmente sob a forma de mercadoria, conspurca as relações sociais. O resultado dessa perspectiva é que ela, uma vez tendo atingido uma posição hegemônica, tornou-se praticamente uma ideologia, o que resultou numa ausência quase total de pesquisas empíricas e etnográficas que pudessem levar a uma relativização do consenso estabelecido. Aliás, a respeito do materialismo contemporâneo, os textos clássicos de Malinowski, Boas e Mauss, quando lidos de uma perspectiva instruída pelos modernos estudos de consumo, são exemplares no sentido de deixarem entrever que as sociedades primitivas e tradicionais foram e são capazes de desenvolver formas mais ou menos intensas de materialismo. Não importa que essas formas sejam ciclicamente desencadeadas (e controladas) através de um calendário ritual – caso do potlach e do kula – mas o fato é que ele existe. Portanto, o materialismo definido como atribuição de importância, apego aos bens materiais e estratégia de atribuição de status não é um atributo exclusivo da sociedade moderna, tal como afirma uma vasta literatura contemporânea. Menos ainda, é a sua interpretação como sintoma de degenerescência e perda de referências fundamentais. Neste contexto, aprofundarmo-nos na sua fenomenologia nos leva a mais do que conhecimentos sobre o consumo. Conduz-nos a questões centrais referentes à relação dos homens com o mundo material e de como esta se desenrola em diferentes universos sociais. Uma segunda reflexão que estes textos clássicos suscitam é a comparação entre consumo, ciclo de vida dos objetos e materialismo entre as sociedades primitivas e as contemporâneas. Nas sociedades tradicionais, observa-se um ciclo de vida mais longo para os objetos (as razões para tal são várias e não cabe discuti-las aqui) , donde a substituição ser igualmente mais lenta, o que não significa, de forma alguma, ausência de materialismo. Ao contrário, nesses casos onde o ciclo de vida é mais longo e a substituição é mais lenta, o materialismo implica lógicas de relação entre homem e objeto distintas da nossa, como por exemplo, o entesouramento dos bens materiais. Isto pode dar a impressão de que o consumo – entendido, via de regra, apenas como processo de aquisição – não ocorra com a mesma intensidade que nas sociedades moderANTROPOLÍTICA

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nas. O que é importante entender, para além das qualificações acerca das diferentes sociedades, é o real significado que a posse dos bens materiais tem para diferentes grupos sociais e as implicações que decorrem das diferentes concepções. Nas sociedades capitalistas avançadas, esta relação baseia-se numa lógica oposta, ou seja, o materialismo se expressa através da aquisição constante de novos bens seguida do descarte dos anteriores, o que implica um ciclo de vida mais curto para os objetos. Na verdade, hoje já em muitas sociedades, a taxa de descarte é próxima da taxa de aquisição de mercadorias. Esta é a razão pela qual no mundo atual o lixo se constitui em um grande problema e tornou-se objeto de investigação sociológica. Além da sua quantidade gerar novos problemas de gestão, de manipulação e disponibilidade que anteriormente não existiam, ele denuncia a forma particular de relação que estabelecemos com os bens materiais, na qual consumir não significa exatamente acumular bens ou assegurar a eles uma durabilidade maior.2 O importante a ser destacado, a partir destas reflexões, é que a relação com o mundo, com o outro e com a sociedade é sempre mediada, em todas as formações sociais, pelos objetos, mesmo aquelas mais carentes do ponto de vista dos recursos materiais. Em todas e quaisquer circunstâncias sociais, os objetos têm a sua materialidade capturada e classificada para fins simbólicos como bem demonstraram Lévi-Strauss (1970) e Shalins (1979),3 da mesma forma que em todas e quaisquer circunstâncias sociais, a força de sua materialidade se impõe de modo indiscutível, mesmo que silenciosa e humildemente, como nos chama atenção Miller em seu clássico Material Culture and Mass Consumption (1987). É através de nossa experiência com eles que construímos parte de nossas identidades culturais coletivas enquanto povo, sociedade, nação, classe/grupo social e parte de nossas subjetividades individuais idiossincráticas. Portanto, a materialidade é um elemento fundamental das nossas vidas – coletivas e individuais –, uma avenida para o nosso autoconhecimento, criatividade e auto-expressão, como nos indica Campbell (2004) no artigo que consta deste dossiê e em outros trabalhos (2003), já que por meio dela desenvolvemos toda nossa capacidade de construir o que somos pelo toque, pela espessura, pelo cheiro, pela densidade, pelas cores e pelas formas das coisas. Considerando-se, portanto, a importância da materialidade dos objetos na constituição das sociedades, das culturas e da própria subjetividade humana tanto no que se refere às diversas formas de materialismo desenvolvidas e identificadas, quanto no que diz respeito aos moANTROPOLÍTICA

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dos distintos de apropriação da cultura material pelos diferentes sistemas simbólicos, fato que aparece com bastante clareza na literatura clássica antropológica, é surpreendente que o materialismo tenha sido cuidadosamente circunscrito ao âmbito das sociedades complexas contemporâneas e, mesmo assim, dentro de um enquadramento moral como sintoma da desagregação desses universos sociais, algo que tem dificultado mais do que contribuído para elucidar a sua fenomenologia (Barbosa, 2004; Miller, 2002; Campbell, 2004).4 Esta constatação nos obriga de imediato a perguntar por que esses temas não se tornaram foco de uma atenção maior da antropologia desde então? Várias são as razões para isto e das quais não nos ocuparemos aqui. Mas se faz necessário registrar que foi preciso esperar a segunda metade da década de 1970 para termos os primeiros trabalhos que inauguram o novo campo de estudos do consumo.5 Trata-se de trabalhos fundamentais para consolidar o crescente entendimento da complexa relação entre cultura e consumo. Uma vez constituído, o campo dos estudos de consumo foi atravessado por um conjunto de debates, alguns dos quais permanecem relevantes até hoje e que dizem respeito a questões fundamentais da existência humana contemporânea, como é o caso do materialismo e da moralidade, da natureza da sociedade de consumo e do processo de comoditização da realidade. Foi justamente pensando em todas estas questões que convidamos três autores, cada um exemplar em seus respectivos campos de produção acadêmica, para publicarem em Antropolítica e trazerem ao público brasileiro, em primeiro lugar, um debate sobre o moralismo que tradicionalmente perpassou e ainda permeia os estudos de consumo, por mais populares que eles tenhamse tornado (Daniel Miller); em segundo lugar, uma teorização inovadora sobre uma modalidade de consumo e de consumidor contemporâneo – o craft consumer (Colin Campbell); e, em terceiro lugar, uma perspectiva igualmente inovadora de se pensar culturalmente a mercadoria, através de um de seus atributos mais óbvios, mas nem por isso sociologicamente mais compreendido: a embalagem (Franck Cochoy).

OS

ARTIGOS DO DOSSIÊ

O primeiro artigo que temos o prazer de apresentar é de autoria de Daniel Miller, antropólogo inglês da University College London, cujos trabalhos na área de consumo e particularmente da cultura material

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figuram hoje entre os clássicos do gênero. Ele já é conhecido do público brasileiro por seu livro Uma teoria das compras, publicado em 2002, no qual, a partir de uma abordagem estruturalista e da teoria do sacrifício de Georges Bataille, atribui à compra de bens provisionais o status de sacrifício compreendido como dádiva e devoção. Miller sugere que o ato do sacrifício é estrutural entre os humanos e que, ao longo da história, alterou apenas os seus sujeitos e objetos de devoção. Hoje a sociedade contemporânea apresenta idéias de amor e cuidado que sinalizam para mudanças profundas não só quanto ao seu significado como também na forma como estas se relacionam com a própria cultura material. Portanto, é possível analisar a nossa relação com o excesso de objetos que utilizamos para mediar nossas relações de afeto como uma forma de somar e não apenas de diminuir essas relações de afeto com os outros. O artigo de Miller incluído neste número, sugestivamente intitulado “Pobreza da moralidade” (The Poverty of Morality), é inspirado na obra de E. P. Thompson, The poverty of theory (1978). Como o título sugere, Miller investe contra a pobreza analítica que emana da mistura entre senso comum e moralismo que tem permeado os estudos de consumo. Embora o autor sinalize que, nos últimos 20 anos, a quantidade de trabalhos sobre o tema consumo aumentou consideravelmente, esta mudança não veio acompanhada, na mesma proporção, da qualidade esperada. Para Miller, a raiz deste desequilíbrio reside, justamente, no papel de controle que a moralidade tem exercido no interior das ciências sociais, notadamente no contexto dos estudos e pesquisas sobre consumo. Este se tornou o “locus” por excelência, a partir do qual a academia vem vaticinando suas posições relativas ao mundo. A partir desta constatação, Miller advoga uma mudança de estilo e direção para a antropologia, não de uma forma vaga e superficial. Ele sugere uma nova postura metodológica na análise da cultura material, das relações sociais e de nossas práticas contemporâneas em relação ao consumo. Postura esta que se caracteriza pela mesma “atitude respeitosa, empatia e paciência com que um bom etnógrafo se aproxima de seus ‘outros’”. Quando adotamos tal procedimento, constatamos que uma série de interpretações superficiais e simplistas acerca do tão falado “materialismo contemporâneo” não resistem ao confronto do encontro etnográfico. Neste, a culpa e a ansiedade de grupos específicos da sociedade sobre a própria vida e o desejo distante de eliminar a pobreza e a desigualdade no mundo cedem lugar à intricadas relações que mantemos com a nossa abundante cultura material. ANTROPOLÍTICA

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Segundo o autor, a cultura material apresenta uma série de vantagens em relação às pessoas quando é utilizada como veículo para a expressão de sistemas simbólicos.5 Uma delas é o fato de sua manipulação liberá-las da tarefa de serem elas mesmas veículos para a expressão de valores, permitindo, conseqüentemente, uma maior liberdade para tratarmos a nós mesmos e aos outros em termos de nossas características idiossincráticas e mais flexíveis em relação às formas mais estereotipadas e fixas das sociedades tradicionais. Esta argumentação nos remete para o início desta apresentação, quando afirmamos que uma das diferenças relativas ao consumo e a manipulação de objetos entre as chamadas sociedades primitivas ou tradicionais e as sociedades complexas e individualistas não está na ausência ou mesmo na pouca intensidade do materialismo, mas no fato de naquelas o consumo e a relação com a cultura material serem, em grande parte, presididos e, portanto, controlados, pelos rituais coletivos. Nas sociedades modernas e individualistas contemporâneas, o consumo e a relação com a cultura material, embora continuem sendo objetos de ritualizações, passaram a ser, em grande medida, um fato da vida privada e uma decisão individual. Como enfatiza Miller, “o aumento da cultura material, conjugado ao complexo simbolismo das mercadorias de consumo de massa tendem a abrandar o tratamento das pessoas como estereótipos”. Miller não teme as acusações de materialismo, capitalismo e americanização que perpassam as análises do consumo contemporâneo. Ao contrário, investe com disposição contra todas elas, não para negá-las de forma simplista e ideológica, mas para destrinchá-las nos seus pressupostos implícitos, em relação aos quais observa uma adesão irrefletida e completamente ignorante quanto ao que se está exatamente rejeitando nessa sociedade, quando a elegemos como o paradigma do poder demoníaco do consumismo. Como ele afirma, a tarefa hoje é recuperar a humanidade do consumidor, inteiramente reduzida a uma imagem retórica na crítica do capitalismo. “A crítica moralizante do consumo desumaniza e feitichiza o consumidor, e conseqüentemente, serve à causa do próprio capitalismo que se propõe criticar”. O nosso segundo convidado para participar deste dossiê é Colin Campbell. Seu livro A ética romântica e o espírito do consumismo moderno certamente já é um clássico dos estudos de consumo, tendo sido publicado no Brasil somente em 2002, apesar de a edição original inglesa datar de 1987. O livro apresenta uma nova interpretação do consumismo e materialismo contemporâneo, na contramão das tradicionais acusações sobre a qualidade da sociedade moderna individualista. Seguindo ANTROPOLÍTICA

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os passos de Weber, Campbell propõe demonstrar a hipótese de que o consumismo moderno surgiu no contexto da pequena burguesia, urbana e rural, ou seja, no interior do mesmo grupo social que costumava criticar os hábitos de vida da aristocracia. Esta ironia da história mostra o quanto é perigoso cedermos às evidências do senso comum. Seguindo a tese de Henry James e tantos outros romancistas do século XIX, essa pequena burguesia, entre uma volta de parafuso e outra, cria para si própria uma nova subjetividade e moralidade, cuja conseqüência mais contundente é uma nova concepção de hedonismo, um hedonismo baseado na imaginação, na fantasia auto-ilusória. Em seu texto para este dossiê, Campbell nos apresenta uma outra tese inspirada e provocativa sob o título de “O consumidor artesão: cultura, artesania e consumo em uma sociedade pós-moderna”, a saber, um sugestivo contraponto às teorias vigentes sobre o caráter alienante do consumo de massas e do consumidor. Além de chamar atenção para a complexidade envolvida na atividade de consumo na sociedade contemporânea, tradicionalmente ignorada por ser estigmatizada pelos cientistas sociais, a tese desenvolvida por Campbell é a de que estamos assistindo a uma mudança na natureza da atividade de consumo na sociedade contemporânea. Esta mudança caracteriza-se pela presença de um componente de artesania no ato de consumir, contrariando, assim, o senso comum, que representa a atividade de consumo inteiramente dominada pelo automatismo, pela alienação, porquanto resultante da manipulação dos consumidores. Não se trata de mais um texto atribuindo ao consumo um papel de “resistência” de grupos e sociedades ao avanço do capitalismo. Ao contrário, Campbell está preocupado em indicar que o consumo hoje permite a homens e mulheres a possibilidade de “serem eles mesmos”, ou seja, superarem, pelo consumo, a tão propalada alienação que lhes foi atribuída. Partindo da oposição teórica tradicional entre trabalho artesanal e produção em massa, o primeiro representando o que existe de essencialmente humano, autêntico e criativo, e o segundo, representando o trabalho mecânico e alienado, Campbell nos apresenta uma versão alternativa para o eterno “consumidor manipulado e alienado” da moderna teoria de consumo de massa. O artesão tradicional, pelo menos como foi definido por autores como Marx, Veblen, entre outros, é aquele que investe sua subjetividade e criatividade no objeto produzido, ao mesmo tempo que detém o controle tanto do design quanto das condições de produção. Campbell sugere que o consumidor artesão (craft consumer) é aquele que exerce conANTROPOLÍTICA

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trole similar sobre a sua atividade de consumo e investe nela sua subjetividade e criatividade. Assim, enquanto na teoria marxista, na teoria crítica e na visão romântica é a produção artesanal que detém a possibilidade de melhor exprimir a essência do humano através do trabalho, para Campbell, a atividade de consumir, tal como ela vem sendo exercida no mundo contemporâneo, resgata, também, esta possibilidade. Da mesma forma que o artesão escolhe o design para o produto, seleciona o material necessário e se engaja na produção, o consumidor artesão também escolhe a matéria-prima, concebe diferentes produtos a partir dela e se engaja diretamente em certos tipos de “produção”, colocando tanto a sua subjetividade quanto as suas habilidades e conhecimentos na obtenção do resultado almejado. Embora tenhamos tradicionalmente oposto produção e consumo, estas duas atividades não são tão opostas como fomos levados a crer, se nos dispomos a olhá-las de uma outra perspectiva. É claro que não produzimos matérias-primas para consumo próprio em todas as esferas de nossa vida cotidiana, nem consumimos apenas produtos artesanais, nem mesmo tudo o que existe de uma forma que poderia ser definida como artesanal. Mas, o que cada dia se torna mais evidente, advoga Campbell, é que uma forma artesanal de consumir está se espraiando pela sociedade contemporânea. Coleção de objetos, aumento do interesse em gastronomia, decoração de casa, jardinagem, modas são exemplos sugestivos de que o consumidor não aceita mais o produto obtido no mercado. Ele o customiza, não no sentido tradicional deste termo, ou seja, de ajustá-lo às necessidades do consumidor de um ponto de vista funcional, pragmático, mas do ponto de vista estético existencial. Ao imprimir seu gosto, sua personalidade, seu estilo ao produto que adquire o consumidor artesão funda uma nova estética da existência, uma nova “arte de si” que se funde e pode vir a corresponder, de fato, a um projeto de vida mais amplo, de toda uma vida, que se desenrola aos poucos, com acertos pequenos, com a elaboração de detalhes e o desenvolvimento gradativo de conhecimento especializado. Campbell conclui seu artigo sugerindo que da mesma forma que existem dois modos contrastantes de produção existem também duas formas distintas de consumo. Estas não correspondem ao consumo de diferentes modalidades de produtos (o consumo de produtos feitos por artesãos não é a mesma coisa do consumo artesão), mas há, pelo menos, duas formas básicas de nos relacionarmos com as mercadorias. Do mesmo modo que a produção artesanal é significativamente menor se comparada com as mercadorias produzidas, a oportunidade que ela ANTROPOLÍTICA

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oferece para a auto-expressão e criatividade humanas equivale ao consumo artesão em termos da oportunidade que este oferece para a expressão das mencionadas qualidades humanas. Esta forma de consumo não só existe como está florescendo na sociedade de consumo contemporânea. Se assumirmos que esta tendência irá continuar no futuro próximo, existe a possibilidade de uma sociedade pós-moderna na qual o consumo artesão não é apenas a forma dominante de consumo, mas também o principal modo de auto-expressão. Finalmente chegamos ao terceiro autor, Franck Cochoy, francês e professor de sociologia na Université de Tolouse, que gentilmente nos concedeu o direito de traduzir a conferência que proferiu durante o I Encontro Nacional de Antropologia do Consumo. Como os demais textos selecionados para este dossiê, a tese do autor é igualmente provocativa, já que ela vai contra outro lugar-comum estabelecido: o fetichismo da mercadoria. De acordo com o autor, nos tempos atuais, ao contrário do que supôs Marx, uma das formas de singularização da mercadoria é justamente revelar as relações de produção que subjazem a ela, enfim, dar a conhecer ao consumidor o modo como foi produzida. Cochoy sugere que ao mesmo tempo que a mercadoria e o consumo estão sendo politizados – o que não significa que o consumo ganharia mais dignidade moral por causa disso –, a política está sendo também mercadologizada. Por causa disso, para entendermos melhor esse processo, torna-se importante tratar comparativamente a política e o consumo – o uso dos bens materiais – e captar algumas analogias entre um universo e outro. Segundo Cochoy, existe um lugar onde essa analogia já aparece e onde ela pode ser mais bem compreendida sociologicamente: trata-se daquele aspecto mais visível das mercadorias, pelo qual elas são expostas para serem olhadas, desejadas e manipuladas. Cochoy sugere, então, uma investigação minuciosa das embalagens, pois para ele “a embalagem capta o produto (o envolve, o mascara e o reapresenta) e, portanto, cativa o consumidor (o fascina e o informa, o atrai e o detém, o destaca e o prende)”, sugerindo, com isso, que o mesmo ocorre com a política. O autor prossegue insistindo no papel da embalagem que, longe de ser anódino ou puramente mercadológico, pode transformar profundamente tanto a cognição do consumidor quanto as estratégias de oferta do próprio mercado. Fundamentalmente, Cochoy nos propõe fazer uma sociologia da embalagem. Segundo ele, esse investimento nos levaria a conhecer algumas das virtudes morais e políticas que os produtos encerram – ao mesmo tempo que nos ajudaria a entender e a lidar melhor com as ANTROPOLÍTICA

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virtudes mercadológicas que a política possui. Permitiria também desvendar toda uma história social da produção e daquele produto em particular que se encontra codificada em um dos atributos mais particulares da mercadoria, justamente aquele que a singulariza – onde está a marca – mas que é ao mesmo tempo o mais descartável. Esse paradoxo que a embalagem encerra – ser o aspecto mais visível, mais fundamental para a singularização da mercadoria e, ao mesmo tempo, o mais perecível e descartável – é um fator simbólico relevante para entendermos a fronteira “entre o mercado e o não-mercado, [...] o limite entre o espaço da troca comercial e as outras esferas mais humanas, mais sagradas, mais culturais que a antropologia econômica tem reclamado em identificar e estudar”.

N OTAS 1 Tomemos três estudos considerados clássicos para o surgimento da antropologia, a saber, Argonautas no Pacífico Ocidental, de Malinowski, o Ensaio sobre a dádiva, de Mauss, e os estudos de Boas sobre Potlach. Em todos eles aparece uma preocupação com a cultura material e as suas formas de circulação no interior das sociedades estudadas. Entretanto, esta preocupação posteriormente é relegada a um plano inferior em favor de uma valorização maior dos estudos sobre representações sociais, apesar de os estudos arqueológicos mostrarem e indicarem o papel relevante que os objetos possuem para o conhecimento das sociedades desaparecidas e antigas, no sentido de materializarem valores, simbolizarem diferenças sociais e estabelecerem distinções entre outros. 2

As razões para esta insaciabilidade por bens têm sido teorizadas por vários autores. Entre as mais recentes teorizações, destacam-se as interpretações de Bauman e Campbell.

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A apropriação simbólica da cultura material e das relações com ela encontra-se presente também na obra do mais ilustre pensador antropólogo contemporâneo, Claude Lévi-Strauss. Em um texto célebre, intitulado “O Pensamento Selvagem”, Lévi-Strauss discutiu de forma acurada a importância que os selvagens devotam ao conhecimento dos recursos naturais e materiais. Esse diletantismo, ao mesmo tempo materialista e empiricista, segundo Lévi-Strauss não está fundado numa retórica da necessidade, ou seja, não pode ser explicado como orientado pela busca de satisfação das chamadas necessidades básicas.

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The world of goods (1978) de Mary Douglas e Baron Isherwood, La Distinction (1979) de Pierre Bourdieu e o capítulo final – O Pensamento Burguês – de Cultura e razão prática de Marshall Shalins (1979) podem ser considerados as certidões de nascimento dos estudos de consumo na antropologia. Embora estes autores ainda não tivessem como tema central especificamente o consumo, eles destacaram a dimensão cultural do consumo e o próprio materialismo como que precedendo a dimensão prática e econômica (produção), além de seu papel fundamental no mundo contemporâneo como mecanismo de ordenação, classificação, mediação e reprodução social. Note-se ainda que, dos três livros, somente o de Marshall Sahlins foi publicado no Brasil ainda na década de 70 (1979). The world of goods teve de esperar mais, sendo aqui publicado somente em 2004, e La Distinction, a despeito da enorme popularidade de Bourdieu entre os cientistas sociais brasileiros e de boa parte de sua obra já ter sido editada entre nós, ainda não tem uma tradução em português.

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A este respeito, ver Grant McCracken, 2003.

ANTROPOLÍTICA

Niterói, n. 17, p.11-20, 2. sem. 2004

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A N I E L

P OBREZA

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Professor de Cultura Material no Departamento de Antropologia da University College London. Atualmente, conduz uma pesquisa de campo sobre o conceito de valor na política econômica contemporânea. Seus livros mais recentes incluem: Capitalism: An Ethnographic Approach (Berg, 1997); A Theory of Shopping (Polity/ Cornell Universisty Press, 1998); Virtualism: A New Political Economy (ed.), com J. Carrier (Berg, 1998); The Internet: An Ethnographical Approach, com Don Slater (Berg, 2000); Car Cultures (ed.) (Berg, 2001); e The Dialectics of Shopping (Chicago University Press, 2001). Endereço: Department of Anthropology, University College London, Gower Street, London WC1E 6BT, UK [e-mail: [email protected]]

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Gostaríamos de agradecer a Sage Publication a permissão de tradução e publicação deste artigo de Daniel Miller anteriormente editado no Journal of Consumer Cuedore, vol.1, nº 2, nov. 2001.

DA

M

I L L E R*

M ORALIDADE **

Este artigo defende a idéia de que o estudo do consumo é freqüentemente regido por uma preocupação ideológica de punir a sociedade por seu materialismo em detrimento de uma moralidade alternativa oriunda de uma preocupação empática com a pobreza e com o desejo de ampliar o acesso de todos aos recursos materiais. Exemplos são dados dos benefícios advindos do aumento da quantidade de bens para as pessoas em certas circunstâncias. Uma ideologia materialista é favorecida mais pela associação entre consumo e produção do que pelo estudo dos consumidores em si mesmos e de seus esforços para discriminar entre as conseqüências positivas e negativas das mercadorias. O tipo de moralidade que se contesta aqui está, também, associado a uma crítica generalizada à americanização, que tende a atribuir aos Estados Unidos toda a culpa e responsabilidade pelo retrocesso do desenvolvimento global e local. A tese da americanização tende, ainda, a ignorar a contribuição de boa parte do resto do mundo na produção da cultura de consumo e do capitalismo contemporâneo e a negar qualquer autenticidade da cultura de consumo regional. Paralelos com o ensaio de E.P. Thompson, The Poverty of Theory, e sua crítica às posições ideológicas descomprometidas com o estudo da experiência humana são traçados. Palavras-chave: americanização; cultura de consumo; materialismo; moralidade; pobreza.

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Se há 20 anos o consumo era um tema indevidamente negligenciado por todas as disciplinas, hoje nosso problema parece constituído de um dilúvio de trabalhos escritos sobre nossa relação com bens materiais, proporcional ao enorme fluxo dos próprios bens. Pretendo argumentar, no entanto, que este enorme fluxo de trabalhos escritos talvez acrescente apenas um pingo de compreensão a respeito da natureza do consumo, os consumidores e a cultura de consumo. A discrepância entre a quantidade e a qualidade das pesquisas resulta, em grande parte, do papel central ocupado pela moralidade na pesquisa sobre o consumo, que levou essa área de estudos a tornar-se mormente um espaço em que os acadêmicos possam demonstrar suas posturas diante do mundo, em vez de um lugar em que o mundo se poste como um possível contraponto empírico a nossas hipóteses sobre ele. Escreverei esse artigo sob a forma de um comentário geral, já que não desejo citar qualquer exemplo particular daquilo a que me oponho. Minha desculpa é que essa é uma circunstância inusitada em razão de as pessoas a que eu mais me oponho estarem provavelmente entre as que eu mais admiro e respeito. Prefiro imensamente os moralistas declarados que critico aqui às posturas amorais, ou mesmo imorais, daqueles que eles estão criticando. Isto é um apelo para que se mude de estilo e de orientação, mas estou tentando não perder muitos amigos como conseqüência! Meus alvos parecem ser interdisciplinares, incluindo estudiosos de sociologia, estudos culturais, economia e estudos de consumo. Minha caracterização me parece em grande parte imprecisa em relação à história e eu teria de confessar um viés que me faz pensar que a antropologia tenda a ser mais sutil. A postura que estou criticando me parece mais característica da – embora de modo algum restrita à – produção acadêmica dos Estados Unidos, onde, eu argumentaria, tem havido uma persistência considerável tanto na forma de moralismo quanto nas crenças sobre o porquê de as pessoas consumirem. Tomese, por exemplo, a centralidade da competição por status e da emulação tanto para Veblen quanto na obra recente de Schor (1998), estando a principal diferença entre ambos na extensão em que Schor julga ter esse fator se difundido pela população como um todo.

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CONSUMO É MATERIALISTA ?

Minha posição básica é extremamente simples. Parece-me que os textos sobre consumo estão saturados por uma profunda inquietação, sentida de modo mais acentuado por acadêmicos de boa situação econôANTROPOLÍTICA

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mica, principalmente nos Estados Unidos, acerca da possibilidade de serem materialistas demais. A isso, combina-se um desejo genuíno de criticar as desigualdades e a exploração decorrentes de vários aspectos do capitalismo moderno, assim como, mais recentemente, um ambientalismo estridente. Juntos, estes fatores produziram uma verdadeira indústria, que consiste na crítica a quase todos os aspectos do consumo como um meio de atacar o tricéfalo Cérbero do materialismo, capitalismo e exploração do planeta. Essa postura moral é tão poderosa que se recusa a ser alterada pela exposição aos inúmeros estudos concretos sobre os consumidores e o consumo, nos quais eles aparecem como algo muito diferente do que essa crítica exige que sejam para que expressem sua posição moral. O resultado é uma visão extraordinariamente conservadora do consumo. De certo modo, o consumo, através da história, tem sido visto como algo intrinsecamente mau. Enquanto a produção cria o mundo, o consumo é o ato através do qual nós o exaurimos. Visões contemporâneas perpetuam o juízo histórico do consumo como uma doença devastadora (PORTER, 1993), cujos diagnóstico e prognóstico já foram decretados; o único debate legítimo é o que versa sobre sua cura. Não há nisso uma grande surpresa, já que meu argumento segue estritamente a excelente história desse mesmo moralismo publicada por Horowitz (1985). Embora ele mostre algumas mudanças na natureza desse moralismo através do tempo, são as continuidades na postura ideológica básica até o crescimento do consumerismo1 que surpreendem. Minha questão não acrescenta nada além do argumento de que isso continua a ser válido hoje. Quer dizer, os trabalhos em circulação sobre “mega-shoppings” e “compras na realidade virtual” estão na verdade reciclando textos e argumentos que talvez atravessem milênios (SEKORA, 1977). O que tudo isso impede não é apenas um confronto oportuno com estudos concretos sobre o consumo e os consumidores, mas o surgimento de uma crítica alternativa, baseada nesse confronto acadêmico, que seja suficientemente sutil para ser criticada nos complexos e contraditórios processos de consumo que podem ser efetivamente observados (MILLER, 1998b, 2001). Considerarei estas três hipóteses: o consumo é materialista, o consumo é capitalista, e o consumo é incompatível com o ambientalismo. Também considero, sucintamente, algumas outras teorias obsoletas que deixam rastros no despertar desse moralismo, em particular a hipótese de que o consumo de massa é uma forma de americanização do mundo. Mas o tema central é o materialismo. ANTROPOLÍTICA

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A crítica ao materialismo é extraordinariamente elementar. Há, nessa literatura, um sentimento persistente de que indivíduos ou relações sociais puros são conspurcados pela cultura de mercado. De fato, o principal sentido do termo “materialismo” em linguagem coloquial é aquele que indica um apego ou uma devoção a objetos em detrimento de um apego ou uma devoção a pessoas. Deve haver pessoas para quem o problema do materialismo é genuíno. Estou certo de que todos deveríamos ser condolentes com a terrível situação dos cosmopolitas que julgam possuir pares de sapatos em demasia e se sentem culpados porque seus cereais não eram realmente orgânicos, ou porque compraram um presente para seus filhos em vez de passar com eles a quantidade necessária de “tempo qualitativo”. Suponho que haja muitas razões pelas quais tais pessoas sejam intimidadas pelo desperdício e pela quantidade de bens de consumo. Mas o que não é aceitável é que o estudo do consumo, e qualquer possível postura moral diante dele, seja reduzido a uma expressão da culpa e das ansiedades dessas pessoas. O que isso indica é uma moralidade totalmente diferente, uma ética baseada em um desejo veemente de erradicar a pobreza. Vivemos numa época em que a maior parte do sofrimento humano é resultado direto da falta de bens materiais. A maior parte da humanidade precisa desesperadamente de mais consumo, mais remédios, mais moradias, mais transporte, mais livros, mais computadores. Eu me consideraria um hipócrita se visse a aspiração de qualquer outra pessoa a um nível de consumo semelhante ao que desfruto com minha família como algo acima do razoável. Jamais encontrei – e quero dizer jamais realmente – um acadêmico empreendendo uma pesquisa sobre o tema do consumo que parecesse praticar em sua própria família tal nível de consumo substancialmente baixo. Assim, numa época em que mais da metade do mundo não possui bens de primeira necessidade, acho difícil respeitar uma abordagem do consumo cuja única consideração seja a superfluidade das mercadorias. De fato, penso que devemos começar com uma questão fundamental. A maioria das mercadorias beneficia a maioria das pessoas? Comecemos com a própria cultura material. Não acredito em um ser humano précultural, despojado do mundo material. Mesmo as filosofias orientais, que vêem a iluminação como a eliminação do desejo, não corroboram o termo coloquial “materialismo”, já que suas metas são eliminar o desejo tanto em relação a pessoas quanto em relação a objetos, enquanto se presume que a crítica contemporânea ao materialismo liberte as pessoas das coisas para que tomem parte em relações puramente sociais. Minha formação em antropologia tem como ponto de partida o conceito ANTROPOLÍTICA

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oposto de autenticidade. Nosso fundamento para relações sociais autênticas tende a ser Mauss (1954) que, no Ensaio sobre o dom, parte do exemplo de crianças trocadas como se fossem coisas e então considera coisas trocadas como se fossem pessoas. Quer dizer, a autenticidade da sociedade não-capitalista é vista na natureza inseparável de pessoas e coisas. É a trajetória em direção ao capitalismo que leva ao desenvolvimento de uma ideologia da pessoalidade pura (e.g. Sennet, 1976), assim como um distanciamento cada vez maior das coisas, que, durante o Iluminismo, começaram a ser vistas como algo radicalmente diferente das pessoas, como algo que poderia diminuir nossa humanidade em vez de realçá-la. Não quero repetir meus próprios passos até chegar à filosofia das relações entre sujeito e objeto que é apresentada como uma teoria geral da objetificação e, logo, da cultura em Miller (1987). Basta dizer que adoto uma visão dialética. A humanidade e as relações sociais só podem se desenvolver por intermédio da objetificação. Sujeitos são igualmente o produto de objetos e vice-versa (como exemplificado em BOURDIEU, 1977). É possível que estes objetos se tornem opressivos quando são separados de nós, como sugere Marx, sob o capitalismo, ou, como sugere Simmel, quando, com o desenvolvimento do subjetivo, não podemos mais assimilá-los. Como toda cultura, a cultura material é contraditória em suas conseqüências para a humanidade, mas isso não deveria diminuir sua centralidade para a própria possibilidade de nossa humanidade. No entanto, é claro que esse processo é um tanto diferente em uma sociedade com escassez de coisas e em uma sociedade com abundância. Em nossa imagem da cultura material dos aborígines australianos, pouquíssimos objetos e imagens formam a base de uma rede simbólica tão complexa que eles se tornam o suporte de projetos cosmológicos e sociais altamente sofisticados (MUNN, 1973; MYERS, 1986). Em nossa própria sociedade, no entanto, a extrema superabundância de coisas parece inviabilizar isso. Podemos, seguramente, ver a possibilidade, vislumbrada por Simmel (1978), de estarmos superficialmente ligados a tantas coisas que não nos envolvemos profundamente com nada, levando ao que o sociólogo alemão viu como a condição blasé de um determinado modo de vida urbana. Além disso, a literatura recente supõe que as condições sob as quais somos levados a desejar, por exemplo, bens de marca por meio de uma propaganda exaustiva são tão problemáticas que qualquer relação de identidade subseqüente, forjada através desses bens, tem de ser inautêntica.

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O que me incomoda é que esse espectro de uma pessoa superficial e ludibriada que se tornou um mero manequim para a cultura de mercado é sempre alguém diferente de nós mesmos. São as pessoas comuns, a ralé, o consumidor de massa, um descendente direto da velha “crítica à cultura de massa” dos anos 1960. Nunca se trata de uma pessoa como as encontradas no âmbito da entrevista etnográfica. Se, no entanto, abordarmos nossas próprias relações e práticas sociais com o mesmo respeito, a mesma empatia e a mesma paciência que um bom etnógrafo se esforça em ter com a evidente autenticidade dos outros, então, veremos algo bem diferente: um mundo onde um par de tênis da Nike ou um jeans da Gap podem ser extraordinariamente eloqüentes sobre o zelo que uma mãe tem por seu filho, ou sobre as aspirações de uma criança asmática a participar de esportes. Devemos começar com o reconhecimento de que há muitas coisas no mundo que vemos quase incontestavelmente como benéficas e que certamente vêm às nossas mentes quando pensamos em termos de erradicação da pobreza, tais como moradias adequadas, remédios baratos, roupas quentes e alimentos nutritivos. Por que tudo isso, de alguma forma, se tornou outra coisa que não consumo? Por que isso não é o fundamento da cultura de consumo? Por que, para usar o título de um livro anterior,2 temos tanto receio de reconhecer que existe o consumo? E não se trata apenas de objetos. Vemos pessoas cujas oportunidades no mundo aumentam constantemente graças a enormes volumes de conhecimento: a biblioteca que oferece infinitas possibilidades de livros, o transporte que lhes concede uma diversidade de lugares a serem experimentados, o desenvolvimento da tecnologia da informação, que me possibilita levar apenas uma hora, em vez de uma semana, para corrigir minha (terrível!) ortografia e usar e-mails para trabalhar com colegas da Austrália e não apenas os do meu departamento. Mas o que dizer das coisas do mundo cuja utilidade é menos óbvia? Será que realmente precisamos de centenas de modelos de calças, da culinária de todas as partes do mundo ou de um computador ainda mais rápido? Novamente, só podemos considerar tais coisas a partir daquele mesmo encontro respeitoso. Afinal, não é por reduzirem seu mundo objetal à simples necessidade utilitária que respeitamos os aborígines australianos – mesmo que nem todos constituam sociedades afluentes originais (SAHLINS, 1974). A idéia de que as pessoas da Amazônia, da Melanésia ou da Austrália aborígine foram ou são pessoas de necessidades simples ou básicas é uma distorção tão bizarra de um século de antropologia que ultrapassa os limites do crível. A essência ANTROPOLÍTICA

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dos ensinamentos antropológicos está justamente na riqueza do simbolismo desses povos, na interpretação das relações sociais e materiais, na maneira como a cosmologia e a moralidade são assimiladas e expressadas nos mitos, na cultura material e em outros suportes como esses. Os habitantes das ilhas Trobriand são conhecidos por suas enormes pilhas de inhames notavelmente longos e pelas viagens do kula para a troca de braceletes esculpidos em concha, não por seu apego a um funcionalismo estrito. Na maioria das vezes, os pobres são os mais categóricos em afirmar a centralidade do simbólico no consumo. Foram os que viviam nos bairros mais miseráveis da Inglaterra que conservaram o melhor cômodo da casa como um “salão” reservado quase exclusivamente para exibição (ROBERTS, 1973). Os aldeões camponeses da Índia freqüentemente contraem dívidas não por direitos fundiários básicos, mas para financiar festas de casamento. É a complexidade dos sistemas simbólicos dos povos do mundo, e não um utilitarismo ordinário, que os antropólogos procuram, esperam encontrar e celebrar em seus estudos. Assim, a questão que deveríamos colocar acerca de nossa própria sociedade é se haveria uma estrutura simbólica similarmente rica no âmbito de nossa própria cultura material. Para responder a esta questão, abordo nossa cultura material no mesmo espírito que abordaria a da Melanésia ou a da Amazônia, ou seja, através das nuanças da imersão etnográfica. Como exemplos, faço um resumo de duas dessas investigações etnográficas. A primeira (MILLER, 1998a) se refere a uma rua comercial no norte de Londres. O que fazem os fregueses com o excessivo volume e diversidade de bens? Em poucas palavras, meu argumento é que encontramos uma sociedade que no último século testemunhou transformações radicais em seus ideais de amor e zelo. Se antes se observavam gestos específicos baseados em normas sociais, como o marido levar flores à mulher nas sextasfeiras, hoje temos a impressão de que só se pode expressar o amor através da sensibilidade demonstrada pelo indivíduo para tudo o que aprendeu sobre a natureza particular da pessoa com quem se relaciona. Quando uma mãe faz compras para seu filho, ela pode achar que há centenas de peças de vestuário que seriam ótimas para todos os amigos de seu filho, mas ela o ama o bastante para se importar imensamente com o equilíbrio exato entre aquilo que os colegas de seu filho irão considerar “legal” e o que sua família irá considerar respeitável, o bastante para rejeitar tudo o que encontra e continuar procurando até achar um artigo que satisfaça essa necessidade sutil e exigente. Uma mulher que tenha a impressão de que seu namorado prestou atenção suficiente a ponto de acertar o número dos sapatos que lhe desse de ANTROPOLÍTICA

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presente irá pensar, quando estiver desacompanhada, que realmente tem um namorado a zelar. Como isso está relacionado com o comércio e o capitalismo, examinarei mais adiante; por agora, meu único interesse é sugerir que é possível que as pessoas apropriem essa superabundância de bens para realçar, em vez de diminuir, nossa afeição por outras pessoas. Meu segundo exemplo é extraído de Trinidad (MILLER, 1994), onde um surto da indústria petrolífera fez com que a ilha deixasse de ser uma região em desenvolvimento para se tornar relativamente rica, com acesso a grandes volumes de bens de consumo. Meu argumento é que os habitantes de Trinidad, tal como os aborígines australianos, estão preocupados em encontrar um meio de objetificar seus valores e suas normas morais. Antes da chegada do consumo de massa, o principal veículo dessa tarefa eram as outras pessoas. Em suma, os trinidadianos tinham visões sólidas e explícitas sobre “como são as mulheres”, “como são os indígenas”, “como são as pessoas de grande importância”. Em minha análise, sugeri que a maior parte desses vigorosos estereótipos dualísticos sobre gênero, classe, etnia e assim por diante, são o resultado da elaboração de um conjunto fundamental de valores igualmente dualísticos que procedeu da experiência radical da modernidade, particularmente através da ruptura com a escravidão e da subseqüente centralidade da liberdade. Em suma, tal como na maioria das sociedades, as categorias relativas a pessoas se tornam os objetos que objetificam nossos valores. Analisei, então, os produtos de consumo de massa, os carros, as roupas, as mobílias que surgiram com o surto da indústria petrolífera e sugeri que, durante aquele período, as categorias relativas a pessoas foram substituídas por categorias relativas a coisas como o meio de objetificar esses valores e dualismos fundamentais. Como veículo para a expressão desses sistemas simbólicos, a cultura material apresentou inúmeras vantagens sobre as pessoas. Ademais, isso, em parte, liberou as pessoas do ônus de serem objetificadas para a expressão de valores e levou a uma maior liberdade para que as pessoas sejam tratadas mais em termos de caracteres peculiares e menos como meros símbolos ou estereótipos representantes de um determinado valor ou uma posição moral. Assim, nesse caso, o crescimento da cultura material e o complexo simbolismo dos bens de consumo de massa tenderam a diminuir o tratamento de pessoas como estereótipos. Assim, em ambos os casos, o simples desejo de se comportar como um antropólogo tradicional – com isso, quero dizer o desejo de considerar empaticamente a perspectiva das pessoas com quem se trabalha, sejam ANTROPOLÍTICA

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elas londrinas ou trinidadianas – cria a possibilidade de se investigar a apropriação da cultura material nos dois ambientes de modo análogo ao como se estuda a cultura material da sociedade aborígine australiana. Não pretendo sugerir que a perspectiva pós-moderna sobre a superficialidade exacerbada seja impossível. Pelo que me é dado saber, se eu fosse realizar uma pesquisa de campo em partes de Los Angeles, eu finalmente encontraria esses, por assim dizer, pobres ricos materialistas, que perderam a capacidade para tudo que vá além de relacionamentos superficiais com pessoas e coisas. Mas precisamos, no mínimo, considerar a possibilidade de que o volume excessivo da cultura material contemporânea pode, entre certas pessoas e em certas circunstâncias, realçar sua humanidade e desenvolver sua sociabilidade. Durante minha própria pesquisa de campo, verifiquei que o materialismo que está sendo combatido é, na verdade, bem mais predominante entre os empobrecidos. É quando trabalho com desempregados ou com aqueles que vivem em abrigos governamentais que encontro pessoas que sacrificaram seu interesse pelos outros, algumas vezes seus próprios parentes, por um desejo excessivo ou uma necessidade desesperada de coisas. São as pessoas sem estudo que tendem a ter dificuldade em apropriar a superabundância de bens porque um conhecimento e um exame minuciosos são requisitos para se assimilá-los. As pessoas que se achavam incapazes de lidar com seus equipamentos de cozinha foram as que também tinham dificuldade em fazer amizades e construir uma vida social (MILLER, 1988). Essas experiências me levam a ter a impressão de que possuo evidências para argumentar que melhorias na educação, na riqueza e nos relacionamentos das pessoas com suas culturas materiais também são, freqüentemente, o fundamento para intensificar suas relações sociais. Porém, parece-me que as pesquisas sobre o consumo, sobretudo as realizadas nos Estados Unidos, são motivadas por algo completamente diferente do desejo de se estudar efetivamente o consumo ou os consumidores, por algo muito afastado desse comprometimento com a experiência etnográfica ou equivalente, baseada em um encontro empático com os consumidores. Antes, eu vejo, nas discussões mais recentes sobre o consumo, uma espantosa continuidade à obra fundamental de Veblen e dos que o precederam.3 A marca dessa crítica “veblenesca” é sempre tomar os exemplos mais extremos de consumo conspícuo como caracterização de todo e qualquer consumo. Assim, da mesma forma que antes era do minúsculo setor dos nouveaux riches – aqueles que podiam arcar com as despesas de lacaios e outros empregados semelhanANTROPOLÍTICA

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tes – que saíam os verdadeiros consumidores de Veblen, agora é sempre o excesso manifesto de consumidores ricos que vem a representar o próprio consumo. Assim como Veblen afirmava o valor puritano do trabalho e a prioridade da utilidade sobre a exibição, hoje, as expressões simbólicas nunca são “necessidades” verdadeiras e estão restritas à expressão de valores negativos como a competição por status ou uma avidez insaciável. Consumo continua sendo o consumo conspícuo e o consumo vicário baseado na emulação e no desejo de negar o trabalho. A única coisa que mudou com o passar de um século foram os exemplos utilizados para ilustrar os argumentos. Como escrevi em outro lugar (MILLER, 1995), julgo problemática a idéia de que o consumo seja tanto algo intrinsecamente bom quanto algo intrinsecamente mau. Não pretenderia induzir, a partir dos dois casos que acabei de apresentar, qualquer tipo de conclusão, sugerindo que o consumo tem de ser sempre visto como uma coisa boa. Esses são os dois lados de uma moeda a que o consumo parece interessar apenas como uma postura diante de um comentário quase sempre simplista sobre a moralidade do Zeitgeist. Quanto a isso, ainda há uma distinção considerável entre os estudos acerca de uma cultura material, dedicados ao encontro etnográfico com as relações dialéticas da cultura como práticas sociais e materiais, e alguns estudos culturais, que parecem reduzir o estudo do consumo à sua possível contribuição para o que se chama de “debates” e que acomodam diversos exemplos do consumo como uma luta heróica ou como um ato de resistência. Creio que minha postura diante do consumo tem sido coerentemente dialética (MILLER, 1987, 2001). Suponho que haja elementos igualmente positivos e negativos em todos os avanços desse tipo e que a tarefa da política seja a de aumentar as possibilidades do bem-estar humano e amenizar seus efeitos negativos.

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CONSUMO É CAPITALISTA ?

O título desse artigo pretende evocar o ensaio clássico de E. P. Thompson, Pobreza de Teoria [The Poverty of Theory] (1978). A importância de Thompson está no fato de que, na época em que ele escreveu sua crítica voraz a Althusser, a teoria – tal como a moralidade – devia ser considerada como uma coisa intrinsecamente boa para os acadêmicos, de modo que atacar a teoria ou a moralidade seria o mesmo que profanar o sacrossanto. De fato, seu ensaio continua sendo exemplar na medida em que, como pretendo demonstrar, o problema da crítica ao ANTROPOLÍTICA

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consumo como uma cultura capitalista tem muito em comum com a crítica ao capitalismo que caracterizou o marxismo ocidental dos anos 1970, e aquela está cometendo uma série de equívocos e fazendo juízos errôneos muito semelhantes aos desta. De um lado, havia nessa época uma profunda e necessária crítica à desigualdade, que espero que a maioria dos acadêmicos ainda apóie. As idéias marxistas pareciam constituir, para a maioria dos acadêmicos da Europa ocidental, a própria essência de uma crítica moral, de um sentimento de que os males sociais tinham de ser expostos e combatidos. Infelizmente, diversas tendências no interior desse movimento podem ter sido, a longo prazo, contraproducentes para a crítica à desigualdade. A primeira era parte do que Thompson chamou de Pobreza de teoria. Ele argumentou que a teoria (hoje eu diria moralidade) podese tornar uma forma de enclausuramento, que só reconhece o mundo quando aquilo que se observa é gerado pela postura que se adota diante deste mesmo mundo. Se o consumo é capitalista, então apenas os atos de consumo que são coerentes com a imagem predominante do capitalismo são reconhecidos como um consumo verdadeiro. Em segundo lugar, a teoria se torna abstraída de sua relação com o empírico. Althusser desconsiderou a pesquisa histórica como mero empirismo. Thompson, pelo contrário, afirma que o fundamento da pesquisa histórica está no conceito de experiência que consiste em um compromisso de se envolver empaticamente e ao máximo com a experiência que as pessoas têm de seu tempo. Enquanto moralidade e teoria parecem não ter tal encontro como requisito (pois já conhecem aquilo a que se opõem), a investigação etnográfica que pretendo promover, assim como a investigação histórica promovida por Thompson, representa uma busca por uma investigação empática sobre o que é experimentado (THOMPSON, 1978, p. 199-200). Por isso, hoje eu afirmaria que o encontro empírico tornou-se, com efeito, a fonte mais apropriada para o radicalismo contemporâneo, em contraposição às reivindicações de radicalismo ilegítimas, baseadas em uma teoria ou moralidade. Ainda, estudos acadêmicos sérios e abrangentes que se dediquem a comunicar a humanidade dos consumidores – e não a usá-los apenas para testar hipóteses – permanecem conspicuamente raros em quaisquer pesquisas disciplinares sobre o consumo. Por isso, é igualmente importante não presumir que o consumo sob o capitalismo seja apenas consumo capitalista. Thompson não tinha dúvidas de que estava estudando o capitalismo, mas ele jamais consentiu que sua descrição da classe trabalhadora inglesa fosse um mero peão ANTROPOLÍTICA

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no jogo da crítica ao capitalismo. Na verdade, seu principal esforço foi o de resgatar a descrição dos trabalhadores e levá-los de volta à humanidade efetiva do que é experimentado. Foram os teóricos que reduziram o proletariado a um simples tema a ser empregado na retórica radical. Similarmente, hoje o esforço é o de resgatar a humanidade do consumidor, impedindo que seja reduzida a um tropo retórico da crítica ao capitalismo. Na verdade, a crítica moralista ao consumo desumaniza o consumidor, transforma-o em um fetiche, e, portanto, serve à causa do mesmo capitalismo que alega criticar. A descrição de Thompson da classe trabalhadora nunca negou a capacidade de as pessoas nela incluídas possuírem sua própria perspicácia e seu próprio sentido de luta. No meu primeiro trabalho sobre o consumo (MILLER, 1987), meu objetivo era precisamente argumentar que um pequeno grupo de acadêmicos não eram os únicos a sentirem-se alienados e ludibriados pelos excessos do capitalismo. A maioria das pessoas tem a impressão de que tendem a ser desumanizadas e alienadas pela forma mecanizada e serial que assumiu a produção de massa moderna. Por isso, o consumo moderno não deveria ser meramente desconsiderado como o ponto final de um processo usado para caracterizar o capitalismo como um todo. Pelo contrário, eu afirmava que o consumo era o próprio instrumento usado pelas pessoas para experimentar e criar a identidade que julgam ter perdido como operários do capitalismo, usando a massa de bens para agir contra a homogeneização e a massificação da produção capitalista. Longe de expressar o capitalismo, o consumo é mais comumente usado pelas pessoas para negá-lo. Criticá-lo simplesmente como uma criatura do capitalismo é, portanto, ignorar a prática efetiva dos consumidores. Mas os moralistas que precisam usar o consumo para criticar o capitalismo não são capazes de entender que, para as pessoas comuns, o consumo é, na verdade, a maneira pela qual elas combatem, no dia-a-dia, seu sentimento de alienação. A concepção de materialismo sustentada por Karl Marx, por exemplo, não poderia ser mais distinta da empregada por boa parte da crítica moderna ao consumo. Como Stallybrass (1998) demonstrou recentemente, Marx viu que o problema do proletariado era que seus integrantes haviam sido separados das pessoas porque haviam sido separados das coisas. O inimigo de Marx era a pobreza e a falta de posses. Ele reconheceu o papel vital da cultura material no desenvolvimento das relações sociais e culturais. O conceito contemporâneo de materialismo era totalmente alheio ao próprio Marx, já que até um conhecimento ANTROPOLÍTICA

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superficial de sua vida sugere que ele estava muito longe de ser um tipo de asceta (WHEEM, 1999). Pelo contrário, o marxismo ocidental dos anos 1970 adotou uma versão de asceticismo que tinha por pressuposto a idéia de que cultura material contemporânea – por ter sido criada pelo capitalismo – é maculada e irá conspurcar aqueles que vivem com e através dela. Esse asceticismo se revelou a causa de seu fracasso. Permitiu que os políticos de direita associassem o socialismo com a pobreza. A esquerda ascética tornou-se extremamente impopular num mundo em que o verdadeiro proletariado ainda se considerava engajado em uma luta por um padrão básico de vida. Isso abriu o caminho para a vitória dos governos de direita de Reagan, Thatcher e suas proles. Mais recentemente, uma reação a esse asceticismo apareceu sob a forma de um ramo dos estudos culturais que parecia celebrar o consumerismo moderno como o extremo oposto – uma forma heróica de resistência ou apropriação que era inevitavelmente benéfica. A profundidade de Thompson e Williams não impediu o movimento através do qual a cultura de massa se tornou cultura popular; e, pelo simples fato de ser praticada por pessoas que trabalhavam, de algum modo esta passou a ser vista como autêntica e nobre. Materialismo, no sentido empregado por acadêmicos como Thompson, é precisamente o que devemos abraçar. É um compromisso com a unidade entre pensamento e experiência, com nossa existência concreta (THOMPSON, 1978, p. 210). O problema em relação aos críticos do consumo não está no fato de eles serem materialistas demais – o que vêem como a condição nefasta do mundo. Aos meus olhos, o problema central das pesquisas sobre o consumo é que a maioria dos pesquisadores simplesmente não é materialista o bastante. Eles mostram ter pouca compreensão do tipo de materialismo mais profundo que investigações acadêmicas genuinamente críticas tentaram sustentar no século passado, exemplificadas por pesquisadores tais como E. P. Thompson. Eles estão insuficientemente mergulhados na materialidade da experiência comum e conduzem trabalhos de campo insuficientes sobre relações sociais e cultura material como práxis humanas. Muito do que está sendo desenvolvido pela crítica contemporânea ao consumo repete, portanto, tudo o que saiu errado no desenvolvimento da crítica ocidental marxista ao capitalismo, fundada na Europa há 20 anos, correndo exatamente o mesmo risco de que o verdadeiro resultado sobre as posições morais se perca sob o desejo devastador por disposições morais.

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A erradicação da pobreza depende da industrialização e da produção de massa. Uma infinidade de pequenos ofícios é ótima como hobbies pessoais, mas como base econômica é simplesmente uma receita para aumentar a pobreza. William Morris produziu trabalhos artesanais maravilhosos, mas não conheço muitas pessoas que poderiam arcar com as despesas de comprá-los. Minha própria postura deriva das tradições da social-democracia européia. Esta tradição almeja por impostos mais altos para financiar um aumento no bem-estar e uma redistribuição de renda, assim como por um Estado e órgãos internacionais mais fortes para refrear os efeitos imorais dos competitivos mercados de curto prazo, tais como, por exemplo, os fundos de pensão controlarem as empresas para prover benefícios de longo prazo aos pensionistas, e não para drenar dinheiro dos negócios para o mercado de ações (CLARK, 2000). Mas essa tradição social-democrata estabeleceu sua complementaridade em relação às economias de mercado e à industrialização após assistir aos efeitos destrutivos da rejeição simplista dos anos 1970.4 O programa social-democrata lutou por um aumento no nível de riqueza baseado tanto na redistribuição quanto na produção, reconhecendo que mesmo em sociedades afluentes a maioria das pessoas tem a impressão de que suas necessidades não foram atendidas (SEGAL, 1988). Esse programa viu a industrialização como dotada de um potencial para diminuir a jornada de trabalho. O problema tem sido o declínio desses avanços em contraposição à crescente influência do modelo norte-americano que se volta para os mercados de ações e metas financeiras de curto prazo,5 e que foi associada às pressões cada vez maiores sobre o trabalho, descritas por Cross (1993) e Schor (1992). Mas este é um conjunto específico de associações; não é algo intrínseco ao capitalismo, é a combinação particular do capitalismo com o liberalismo característica de regimes neoliberais. A alternativa social-democrata sugere que não há nada intrínseco a sociedades de consumo que deveria levar a desigualdades ou a maiores pressões sobre o trabalho; o que se exige é uma política que permaneça firme em considerar o bem-estar humano como sua meta.

U MA

CRÍTICA À CRÍTICA DA AMERICANIZAÇÃO

Imaginemos que estamos realizando um estudo do consumo contemporâneo entre a classe média da Tailândia (poderia ser igualmente na Nigéria ou no Sri Lanka). Documentamos o envolvimento dessa classe em uma ampla gama de produtos de consumo modernos. Observamos ANTROPOLÍTICA

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seus filhos assistindo a Pokemon, vemos o chefe de família conseguir finalmente comprar aquela Mercedes em que ele estava de olho havia algum tempo. Presenciamos uma festa muito bem regada a garrafas de uísque. Após acumular nossas evidências, escrevemos um artigo acadêmico usando isso como um estudo de caso sobre a americanização. Displicentemente ignoramos o fato de que nem o Pokemon, nem o uísque, nem a Mercedes (não mais que a maioria da cultura de consumo moderna) são oriundos dos Estados Unidos. A cultura de consumo contemporânea é de fato produzida por todo o mundo. No entanto, enfocamos os seguintes aspectos. Primeiro, a perda do que consideramos uma cultura autêntica, que deduzimos ser aquela que caracterizava historicamente as pessoas dessa região específica. Somos da opinião de que esta cultura autêntica foi substituída pelo que consideramos como uma cultura inautêntica que não pode ser um verdadeiro meio de expressão para as pessoas da região como a cultura material substituída era capaz de sê-lo. Em segundo lugar, enfocamos as evidências de mercantilização e do que vemos como o surgimento de materialismo, hedonismo e individualismo, todos por nós associados com a mesma substituição da cultura material autêntica pela inautêntica. Em terceiro lugar, enfocamos as evidências de globalização e de incorporação dessas pessoas no capitalismo de mercado global. Em quarto lugar, chamamos a atenção para o desenvolvimento de distinções de classe e de status, e para outras diferenças no interior dessa sociedade tal como expressas pelos padrões de consumo. Finalmente, concluímos que a combinação de todos estes fatores comprova a contínua expansão da americanização, acreditando que contribuímos para a crítica a esse processo. Seria possível que tais textos aparentemente bem-intencionados e moralmente corretos fossem, em um outro âmbito, formas altamente interesseiras, condescendentes, ou mesmo racistas de uma produção acadêmica que projeta principalmente os interesses dos acadêmicos norteamericanos de classe média? Presumo que os autores de materiais como esses acreditam piamente que tais artigos são uma expressão de sua inquietação genuína com o bem-estar das outras pessoas e com o dano que eles crêem ser infligido aos outros por poderosas forças que associam com sua própria sociedade. Assim, não desejo impugnar suas motivações de modo algum. Pretendo simplesmente sugerir que eles podem interpretar mal as implicações de sua própria produção acadêmica. Além disso, o que tais artigos acabam concretizando é a predominância contínua de uma postura norte-americana específica sobre o tema do próprio consumo – postura que critiquei antes –, mas, nesse caso, exportaANTROPOLÍTICA

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da para o resto do mundo. Em certo sentido, isso pode significar uma exploração do mundo em benefício da postura moral de um grupo. Meu argumento baseia-se na questão de até que ponto a crítica à americanização faz as seguintes suposições. Primeiro, que a única população a ter o direito de reivindicar uma relação autêntica com a moderna cultura de consumo são os cidadãos norte-americanos. Em segundo lugar, que as pessoas negras (com a possível exceção dos negros de classe média “made in USA”) não são capazes de usar tais coisas para expressar sua própria autenticidade. Em terceiro lugar, que o único lugar a ter produzido e a reivindicar o crédito pela construção dessa cultura de mercado são os Estados Unidos. Em quarto lugar, que apenas os Estados Unidos e sua forma própria de capitalismo estão aptos a reivindicar a “culpa” pela criação de diferenças sociais e de classe onde quer que elas possam ser encontradas. Em quinto lugar, que tal riqueza é em si e por si mesma um atributo inautêntico para pessoas dos países em desenvolvimento que, portanto, têm menos direito a ela que os “naturalmente” ricos do Primeiro Mundo. Com efeito, negros ricos nos países em desenvolvimento são uma anomalia – aparecem na academia como uma aberração horrenda em meio à pureza da alteridade mais autêntica. Em sexto lugar, que todas as relações do resto do mundo com a cultura de mercado podem ser caracterizadas como uma relação de “consentimento” – que é, então, sintomática dos “povoamentos” coloniais ou pós-coloniais – ou de “resistência” – ocasião em que as outras pessoas são estimadas por terem respondido “apropriadamente”. Por último, todas as outras sociedades são estimadas por serem “naturalmente” boas, de modo que, se duas tribos da África tentam cometer genocídio ou se um governo coreano oprime seu povo, não se trata de uma expressão da complexa história dessa região, mas tem de ser o efeito colateral ou do colonialismo (hoje, de modo mais usual, póscolonialismo), ou do capitalismo, ou da influência norte-americana. Sob essa atitude condescendente, apenas os Estados Unidos e a Europa ocidental podem ser autenticamente maus. Wolf (1982) escreveu sobre os povos sem história, e era um antropólogo profundamente apaixonado, preocupado com o bem-estar das pessoas pelo mundo afora, assim como com os efeitos do colonialismo e da dependência. Ainda, é curiosamente a atribuição mecânica da culpa/ crédito ao Ocidente (não obstante o emprego algumas vezes contraditório do termo “pós-colonial”) pelo que quer que continue a acontecer, e onde quer que continue a acontecer, que garante que, se depender de nós, esses povos permanecerão sem história. O paradoxo da crítica à ANTROPOLÍTICA

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americanização é que, em essência, ela é em si mesma uma forma de americanização. O paradoxo é que, ao reivindicar toda a responsabilidade pela cultura moderna, os norte-americanos podem, com efeito, levar todos os créditos. Seu ponto de partida é que toda cultura de consumo é, de algum modo, profundamente americana. Já observei que nenhum dos bens em meu exemplo declaradamente ficcional era oriundo dos Estados Unidos. Tive conhecimento de tal absurdidade quando fiz a resenha do livro Re-Made in Japan (TOBIN, 1992). Tratava-se de uma série de estudos sobre a cultura de consumo no Japão. Fica claro que, não obstante a obviamente enorme contribuição dos japoneses para a produção contemporânea de bens de consumo, os japoneses deram um jeito de se convencerem de que a cultura de consumo é, na verdade, algo que veio dos Estados Unidos e, por isso, constituía uma ameaça à autenticidade nipônica. Potencialmente, essa negação da contribuição do resto do mundo para a produção da cultura moderna é uma circunstância desastrosa, já que, na medida em que as pessoas de cada região do mundo se tornam usuárias da cultura de mercado, elas passam a ter a impressão de que, de alguma forma, se tornaram menos autênticas, de que essa cultura não lhes pertence realmente por mais que elas a possuam. Lembro-me de perceber um efeito patológico disso quando falava com um trinidadiano que, durante o surto petrolífero, havia comprado 25 calças jeans. Por mais calças que ele comprasse, ele jamais conseguia ter posse delas, já que o jeans permaneceria sempre norte-americano, e ele não o era. O que está sendo exportado é o sentimento de alienação. Quando estudava em Trinidad, tomei como ponto de partida os sentimentos expressos no romance The Mimic Men [Os homens imitadores] de V.S. Naipaul (1967). Naipaul parecia sugerir que, sem uma profunda história própria, essa mistura de pessoas deslocadas não tinha qualquer esperança de um dia ser algo mais que a imitação da cultura de mercado e das aspirações desenvolvidas em outro lugar. É a implacável superficialidade dessa emulação constante que é ridicularizada em sua obra. Não surpreende que, mais tarde, Naipaul se encontre quase inexoravelmente atraído pela região do santuário de Stonehenge – o manancial da única cultura que precisamente ele considerava autêntica, a britânica. Em um livro inspirador, The Enigma of Arrival [O enigma do nascimento] (1987), ele começa a entrar em acordo com a percepção de que, na verdade, tinha simplesmente se recusado a aprovar a autenticidade da mudança e a fluidez da cultura, manifesta até nos ar-

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redores de Stonehenge. Só então ele começou a pensar na própria Trinidad como ao menos potencialmente autêntica. Grande parte de meu trabalho de campo em Trinidad foi uma tentativa de demonstrar que o consumo pode ser um processo de construção de uma cultura inalienável e autêntica sob uma perspectiva regional e não apenas individual. Escrevi deliberadamente sobre os exemplos mais maculados e menos plausíveis da cultura local: uma telenovela produzida nos Estados Unidos, Coca-cola, a celebração do Natal, as operações de firmas capitalistas e, mais recentemente, a Internet (MILLER, 1994, 1997; MILLER, SLATER, 2000). Em cada caso, destaquei o que deveria ser chamado de cultura a posteriori em vez de a priori. Ou seja, temos de reconhecer que a cultura pode ser o produto de uma localização ulterior de formas globais, em vez de apenas o que tem profundas tradições históricas locais. Argumentava que não só a Coca-cola tem de ser entendida em Trinidad como “um líquido doce e preto” que vem da própria Trinidad,6 mas que o próprio capitalismo, como um sistema de produção e de distribuição, é ativamente consumido e localizado da mesma forma que os bens por ele produzidos. Até o último exemplo de evidente globalização – a Internet – transforma-se em um instrumento poderoso para o estabelecimento das qualidades específicas de práticas culturais altamente provincianas e nacionais, assim como para objetificar uma forma de nacionalismo estridente. Precisamente por isso, tentei enfocar as exportações trinidadianas não apenas de música e estilo, mas de administradores de empresas e de web designers. Minha conclusão é que a crítica à americanização tornou-se, na verdade, um dos exemplos mais perniciosos de americanização. Suspeito que povos por todo o mundo sejam completamente oprimidos por uma crítica à americanização que lhes diz constantemente que a cultura por eles cada vez mais habitada jamais lhes pertencerá, e nega qualquer papel que possam ter desempenhado em sua produção. Além disso, chegamos a um estágio absurdo em que a única atividade que concede autenticidade à maior parte do mundo é a “resistência”.

C ONCLUSÃO :

A MORALIDADE DA POBREZA CONTRA

A POBREZA DA MORALIDADE

Em minha experiência de campo, seja em aldeias de camponeses na Índia ou em abrigos governamentais de Londres, nada me sugere que haja benefícios sociais advindos da pobreza. Não posso aceitar que a luta cotidiana da maioria das pessoas desse mundo para aumentar suas ANTROPOLÍTICA

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rendas seja ludibriada. Meu problema é, antes, definir por que o ramo de investigação acadêmica do qual me ocupo parece partir da premissa de que bens são prejudiciais a seus donos. Só posso explicar isso pela seguinte lógica. Primeiro, que muitos desses acadêmicos pertencem ao minúsculo grupo que realmente tem a impressão de possuir o suficiente. Em segundo lugar, que muitos deles vêm de uma tradição histórica em que a produção empresarial de riquezas se desenvolveu em e através de uma ideologia protestante de asceticismo. Que Weber continue sendo o melhor fundamento para analisar a ideologia dominante desses acadêmicos, Horowitz o confirma historicamente e isso permanece evidente hoje em dia. Além disso, ainda há raízes mais antigas no medo do consumo como uma atividade intrinsecamente destrutiva, o lugar em que os objetos são exauridos. Em terceiro lugar, parece justo acrescentar que o medo do materialismo é compartilhado pela maior parte das pessoas mundo afora, mesmo durante suas procuras por posses. O que tem sido ignorado são as medidas que a maioria das pessoas toma para agir contra o potencial anti-social de sua cultura material.7 Contrariamente, eu argumentaria que o ponto de partida apropriado ao estudo do consumo é precisamente esta e inúmeras outras contradições que parecem fundamentais tanto para o consumo quanto para as relações sociais modernas. O que a riqueza traz consigo não é apenas um efeito bom ou ruim, mas o aparecimento claro de contradições históricas, por exemplo, a incompatibilidade entre um sentimento de liberdade e o desejo por reciprocidade social, ou a substituição dos interesses do consumidor por uma multidão de consumidores “virtuais” tais como auditores, consultores, economistas e grupos litigiosos que reivindicam ser os representantes dos consumidores mas usurpam seus interesses. Aos meus olhos, essas contradições estão muito próximas das verdadeiras lutas dos consumidores contemporâneos.8 Neste artigo, não abordei em qualquer detalhe as críticas ambientalistas, basicamente porque as reconheço como uma preocupação oportuna pelo bem-estar de nossos descendentes e por nossa própria responsabilidade em relação ao ambiente em que vivemos. Mas até essa crítica é enfraquecida quando fica claro que ela se torna a linha de frente de um repúdio ascético da necessidade de bens. A essa altura, pode se tornar um inimigo em vez de um aliado na luta contra a desigualdade e a pobreza, como quando a necessidade de mostrar de que modo os resultados de regulamentações estruturais na transferência de provisões para o bem-estar dos pobres se perde em uma maré de preocupações verdes sobre a Organização Mundial do Comércio, ou quando os defensores ANTROPOLÍTICA

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de florestas fecham os olhos para as necessidades dos habitantes das florestas empobrecidos. Não há, no entanto, razões para que o ambientalismo simplesmente siga a antiga suspeita diante do consumo, visto como o processo pelo qual exaurimos os recursos, e que, portanto, o rotula como um mal intrínseco. Uma verdadeira medida de sustentabilidade que acolha a capacidade da ciência de encontrar métodos para aumentar a riqueza sem prejudicar o planeta é certamente compatível. Similarmente, o desejo de dar crédito ao modo como os consumidores consomem e à autenticidade de alguns dos seus desejos por bens não necessariamente diminui a crítica acadêmica à maneira como as empresas tentam vender bens e serviços, ou exploraram trabalhadores ao fazê-lo. Não vejo nada neste artigo que, por exemplo, contradiga a crítica recentemente lançada por Klein (2001). Finalmente, espero que realmente não haja nada neste artigo que possa sugerir que eu tenha qualquer desejo de reduzir a centralidade da moralidade para a análise acadêmica do consumo. Meu próprio ponto de partida para tornar-me um profissional foi o argumento de Habermas (1972) contra a ilusão de tal neutralidade moral na academia. O que ataquei foi a pobreza dessa moralidade, que, em seu desejo de atacar o materialismo, afastou-se aos poucos de uma consideração das experiências de pobreza, do combate à desigualdade, do grito por justiça e da necessidade de se aumentar o padrão de vida. Em suma, do reconhecimento de que, entre outras coisas, a pobreza é constituída por uma carência de recursos materiais. Isso pode ser moderado pelas preocupações ambientalistas, em que elas permaneçam orientadas para o bemestar tanto da população quanto do planeta. O que aprendemos com o estudo acadêmico do consumo não é que a cultura material seja boa ou ruim para as pessoas. Antes, aprendemos que as pessoas têm de tomar parte em uma luta constante para criar relações com coisas e com outras pessoas, e que um empático levantamento de dados sobre essas lutas tem muito a oferecer. Por outro lado, uma literatura que permite que as ansiedades dos ricos obscureçam o sofrimento dos pobres e que parece presumir constantemente que os bens são intrinsecamente maus para as pessoas simplesmente não é a minha idéia de uma abordagem moral do tema do consumo. É, antes, um indício de que uma disciplina acadêmica perdeu o contato com a razão de ser de seus estudos.

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ABSTRACT This article contends that the study of consumption is often subsumed within an ideological concern to castigate society for its materialism at the expense of an alternative morality that emerges from an empathetic concern with poverty and the desire for greater access to material resources. Examples are given of the benefits that accrue to populations from an increased quantity of goods in certain circumstances. An anti-materialism ideology is favoured by associating consumption with production rather than studying consumers themselves and their struggles to discriminate between the positive and negative consequences of commodities. The Americanization thesis also tends to ignore the contribution of much of the rest of the word to the production of consumer culture and contemporary capitalism, and to deny the authenticity of regional consumer culture. Parallels are drawn with E. P. Thompson’s essay The Poverty of Theory and its critique of similarly disengaged ideological critiques that led academics away from the study of experience. Keywords: Americanization; consumer culture; materialism; morality; poverty.

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N OTAS 1

Sobre o vocábulo “consumerismo”, ver nota da tradutora ao texto de Franck Cochoy supra p. XXX.

2

Acknowledging Consumption.

3

Ver HOROWITZ (1985).

4

Cf. NOVE, 1993.

5

Cf. HENWOOD (1997) e HUTTON (1996).

6

Ver também WATSON (1997).

7

Ver GELL (1986) e WILK (1989), sobre o papel da casa a respeito disso.

8

Ver MILLER (2001).

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C O L I N

O

C A M P B E L L*

CONSUMIDOR ARTESÃO : 1

C ULTURA ,

ARTESANIA E CONSUMO

EM UMA SOCIEDADE PÓS - MODERNA

*

Professor de Sociologia da University of York, na Inglaterra. Autor do livro A ética romântica e o espírito do consumismo moderno (Rocco, 2001)

Este artigo propõe que os cientistas sociais deveriam reconhecer explicitamente a existência de consumidores que tomam parte no “consumo artesanal” e, portanto, de mais uma imagem do consumidor a ser posta ao lado das imagens do “tolo”, do “herói racional” e do “consumidor pós-moderno em busca de uma identidade”. O termo “craft” [artesanal] é usado para fazer referência à atividade de consumo em que o “produto” em questão é, em essência, percebido como sendo “idealizado e fabricado pela mesma pessoa”. Trata-se de uma forma de consumo para a qual o consumidor empresta sua habilidade, conhecimento, discernimento e paixão ao ser motivado por um desejo de se expressar. Tal consumo artesanal genuíno distingue-se, pois, de práticas estreitamente associadas, tais como a “customização” e a “personalização”, e é identificado pelo fato de ser usualmente encontrado em áreas específicas de consumo tais como decoração de interiores, jardinagem, culinária e na escolha do vestuário. Enfim, após notar que consumidores artesãos tendem a ser pessoas dotadas de capital tanto monetário quanto cultural, tomase a sugestão de Kopytoff, de que a mercantilização progressiva poderia induzir a uma “reação desmercantilizadora”, como ponto de partida para algumas especulações sobre as razões do recente crescimento do consumo artesanal. Palavras-chave: artesania; consumo; customização; personalização; desmercantilização; criatividade; expressão da individualidade.

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I NTRODUÇÃO Por muito tempo, duas imagens do consumidor prevaleceram na literatura das ciências sociais sobre o consumo. Uma, central na teoria econômica, é a do consumidor como um ator ativo, que calcula e raciocina, alguém que cuidadosamente aloca recursos escassos para a compra de bens e serviços de modo a maximizar a vantagem obtida. A outra, encontrada com maior freqüência nos textos de críticos da “sociedade de massa”, é a do consumidor passivo, manipulado e explorado, o súdito das forças do mercado; alguém que, por conseguinte, é totalmente “constrangido” a consumir em conformidade com tais forças. Don Slater referiu-se a essas duas imagens como “o herói” e “o tolo” (SLATER, 1997a, p. 33). No entanto, no decorrer das últimas décadas, uma terceira imagem passou a ocupar uma posição importante, em grande parte como conseqüência do impacto da filosofia pósmoderna sobre o pensamento social. Essa última não representa o consumidor nem como um ator racional nem como um tolo indefeso, mas como um manipulador dos significados simbólicos vinculados aos produtos, dotado de autoconsciência. Alguém que seleciona os bens com a intenção específica de usá-los para criar ou manter uma dada impressão, identidade ou estilo de vida (FEATHERSTONE, 1991). Por mais preponderantes que essas três imagens sejam, elas não esgotam as formas de se representar o consumidor nas ciências sociais contemporâneas, nem parecem corresponder – em separado ou em conjunto – de um modo particularmente rigoroso à descrição do comportamento do consumidor revelada pelas pesquisas.2 Pois tem sido cada vez maior o número de evidências a sugerir que uma quarta imagem pode ser um guia melhor para a compreensão da prática de consumo na sociedade contemporânea, uma imagem que talvez pudesse ser chamada de “o consumidor artesão”. Poder-se-ia dizer que esse modelo se aproxima mais do herói que do tolo de Slater, já que rejeita qualquer sugestão de que o consumidor contemporâneo seja simplesmente um indefeso fantoche de forças exteriores. Por outro lado, também não confere grande importância à conduta racional e auto-interessada, nem presume, como ocorre com o modelo pós-moderno, que o consumidor tenha uma arrebatadora preocupação com sua imagem, estilo de vida ou identidade. Pelo contrário, a hipótese aqui é a de que indivíduos consomem principalmente por um desejo de tomar parte em atos criativos de expressão de sua individualidade. Assim, embora esse modelo contenha a suposição de que os consumidores respondem ativamente a mercadorias e serviços, ANTROPOLÍTICA

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empregando-os conscientemente como um meio de alcançar seus próprios fins, não há a hipótese de que eles estejam tentando criar ou mesmo manter necessariamente um senso de identidade.3 Pelo contrário, sustenta-se que esses consumidores já possuem um senso de identidade claro e estável, e, ainda, que é isso que ocasiona seu modo de consumo distinto.

O

PENSAMENTO SOCIAL E O CONCEITO

DE CONSUMO ARTESANAL

A visão tradicional da relação do artesanal com a cultura – ou seja, a do século XIX e do início do século XX – provavelmente encontra sua melhor expressão nos textos de críticos da sociedade como Karl Marx e Thorstein Veblen. Para esses pensadores, a forma de trabalho empreendida pelos artesãos era a mais pura de todas as atividades humanas. Era vista como enobrecedora, humanizadora e, portanto, como o meio ideal pelo qual indivíduos expressariam sua humanidade. Segue-se a isso que a substituição da produção artesanal pela produção mecanizada e organizada em fábricas, um processo que constituiu a essência da revolução industrial, era vista por esses mesmos pensadores como um processo necessariamente desumanizador, que conduziu, em terminologia marxista, ao estado de alienação. Em decorrência da ampla adoção dessa visão de mundo, a atividade artesanal se tornou o próprio símbolo da era pré-moderna, com a conseqüência de que defender as virtudes desse modo de produção era equivalente a fazer oposição à própria modernidade. Daí a tendência de se rotular os atuais defensores do artesania de românticos, apreensivos com o mundo moderno, seja almejando um retorno a uma era pré-industrial mais antiga, seja nutrindo sonhos irrealistas de utopias em um futuro pós-industrial. Ora, está claro que essa maneira particular de ver a atividade artesanal ainda é corrente na sociedade atual, de modo que a hipótese de uma dicotomia básica entre as produções artesanal e mecanizada, ou de massa, ainda sustenta boa parte do pensamento contemporâneo. O artista-artesão continua sendo contraposto a uma divisão do trabalho que envolve a separação dos processos de concepção e de manufatura. Uma dicotomia que traz consigo o contraste tácito, se não explícito, entre o trabalho inalienável, humano e criativo de um lado, e o labor puramente mecânico, insatisfatório e alienante de outro. Ora, os escritores que primeiro formularam essa visão essencialmente maniqueísta da natureza do trabalho desconsideraram completamente ANTROPOLÍTICA

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a esfera do consumo. As sociedades que eles estavam preocupados em compreender eram, pelo que podiam ver, manifestadamente dominadas pela atividade de produção, ao passo que o consumo – em sociedades cuja maior parte da população era malnutrida, além de parcamente vestida e alojada – não parecia ser um tema que justificasse muita investigação. No entanto, quando, nos anos seguintes à Segunda Guerra Mundial, os cientistas sociais de fato começaram a dar mais atenção à arena do consumo, havia uma tendência de transferir essa romântica visão de mundo predominantemente antimoderna e aplicá-la no outro lado da equação econômica. A hipótese tendia a ser a de que, se a produção mecanizada e de larga escala, estabelecida em fábricas, era uma experiência essencialmente alienante para os envolvidos, então parecia seguir-se a isso que o consumo de mercadorias produzidas dessa forma tinha de ser similarmente alienante. Ou, se a atividade de consumo não fosse em si mesma considerada como algo que contribuísse para a alienação da produção, de qualquer modo, também não serviria para dissipá-la ou contra-atacá-la. Portanto, nas sociedades modernas, o consumo, geralmente rotulado de “consumo de massa”, passou a ser visto, ao menos por intelectuais e cientistas sociais de esquerda, como uma “coisa ruim”. À mesma época, os consumidores eram geralmente descritos como pessoas à mercê dos anunciantes e publicitários que, ao explorar a mídia de massa, eram capazes de manipulá-la em favor de seus próprios fins. Assim, os consumidores eram, em grande parte, descritos como tolos que caem no conto-do-vigário ao comprarem uma profusão de produtos padronizados, desprovidos de inspiração estética, dos quais, na maioria das vezes, não tinham nenhuma necessidade efetiva, e que raramente eram capazes de trazer qualquer satisfação real ou duradoura (SLATER, 1997, p. 63). No entanto, as últimas décadas testemunharam o desenvolvimento gradual de uma interpretação um tanto diferente do papel do consumo nas sociedades modernas de capitalismo tardio, interpretação em que essa associação do consumo com a repressão de modos autênticos de expressão da individualidade é totalmente invertida.

A

RECUSA AO MODELO DO CONSUMIDOR COMO UM TOLO

A primeira mudança de opinião a significar um passo nessa direção surgiu com o desenvolvimento de um programa de trabalho sobre subculturas jovens, cuja maior parte foi empreendida nos anos 1960 e 1970. Esse trabalho visava a ressaltar até que ponto os jovens membros desses grupos usavam os produtos do mercado de massa não de um ANTROPOLÍTICA

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modo simples, sem uma postura crítica, mas, pelo contrário, empregavam-nos para expressar sua rebeldia ou resistência à “ideologia dominante” (HALL, JEFFERSON, 1976). Em seguida, na segunda metade da década de 1980, à medida que a sociologia do consumo começava a despontar como um campo de estudo distinto, surgiu a sugestão de que os consumidores estavam fazendo mais que simplesmente resistir às pressões dos anunciantes e publicitários. Pois, como demonstrou Daniel Miller, em Material Culture and Mass Consumption (1987), a atividade de consumo contemporânea poderia ser considerada como detentora de um potencial desalienante. Ele sustentava que o consumo deveria ser visto como um processo em que um objeto genérico, abstrato e alheio – uma mercadoria – seria transformado em algo que era justamente o seu oposto. Ele escreveu: “como atividade, o consumo pode ser definido como aquela que transfere o objeto de uma condição alienável, ou seja, a de ser um símbolo de estranhamento e valor monetário, para a de ser um artefato investido de conotações particulares e inseparáveis” (1987, p. 190). Como Miller sugere, o que de fato transforma o objeto não é apenas o processo de tomar posse dele, mas sua incorporação em um arranjo totalmente estilizado, tal como um dom ritual ou memorabilia. A tal processo, ele se refere como o que envolve a recontextualização da mercadoria de tal modo que os bens são “transmutados” em uma “cultura potencialmente inalienável” (1987, p. 215).4 O foco de Miller era o consumo como “prática cultural”, com a conseqüente ênfase na maneira como o significado de um produto poderia ser transformado pelo contexto e pela maneira de seu uso. Portanto, atividades como colecionar, presentear ou estilizar poderiam ser vistas como ações que, com efeito, “negam” o status mercantil do produto (1987, p. 192). Ora, embora Miller não se refira a essa forma de consumo como artesania (ele de fato se refere a ela como “atividade”), muito menos como “consumo artesanal”, este termo poderia parecer apropriado para designar a atividade de consumo tal como ele a considera. Portanto, este seu perceptivo insight será tomado como ponto de partida para o argumento a ser desenvolvido aqui, de que grande parte do consumo empreendido por indivíduos nas sociedades ocidentais contemporâneas deveria ser concebida como uma atividade artesanal, ou seja, como uma atividade em que indivíduos não apenas exercem o controle sobre o processo de consumo, mas também trazem habilidade, conhecimento, discernimento, amor e paixão à ação de consumir, tal e qual, como sempre se supôs, os artesãos tradicionais abordavam sua atividade.

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O

QUE É CONSUMO ARTESANAL ?

O verbo “to craft” significa “fazer ou modelar com habilidade, especialmente com as mãos” (HANKS, 1979), ao passo que o tipo de atividade que se costuma considerar correspondente ao rótulo “artesanal” incluiria a tecelagem, a impressão xilográfica manual, trabalhos bordados, ourivesaria, joalheria, encadernação, confecção de móveis e similares. Tanya Harrod (1995) define “craft” como “feito e concebido pela mesma pessoa”, uma definição que parece convir às atividades listadas acima, embora a autora observe que esta definição também se aplica às belas artes, como a pintura ou a escultura, de modo que a fronteira entre estas duas esferas é difícil de identificar. O aspecto crucial dessa definição, no entanto, é a ênfase dada ao fato de o produtor artesanal ser alguém que exerce pessoalmente o controle sobre todo o processo envolvido na manufatura do bem em questão. Portanto, o trabalhador artesanal é alguém que escolhe o projeto do produto, seleciona o material necessário e, em geral, confecciona pessoalmente o objeto em questão (ou ao menos supervisiona diretamente sua confecção). Daí ser possível dizer que o produtor artesanal é aquele que investe sua personalidade ou individualidade no objeto produzido. E é, decerto, essa a razão por que tal forma de atividade de trabalho tem sido tradicionalmente considerada como expressiva dos aspectos mais humanos, criativos e autênticos da natureza humana. Segue-se a isso que o termo “consumo artesanal” é usado similarmente para fazer referência a atividades em que os indivíduos ao mesmo tempo concebem e fazem os produtos que eles próprios consomem. No entanto, é importante ressaltar que o termo “produto” está sendo usado aqui – conforme o uso que Daniel Miller faz da expressão “arranjo estilizado”, citada acima – para fazer referência a uma criação que pode consistir de diversos itens que, em si mesmos, são mercadorias produzidas em massa e vendidas a varejo. Isto é, o consumidor artesanal é tipicamente uma pessoa que adquire um certo número de produtos fabricados em massa e os emprega como “matérias-primas” para a criação de um novo “produto”, que é, em geral, destinado ao consumo próprio. Assim, se fizermos o paralelo com a produção artesanal, poderíamos dizer que o consumidor artesão é alguém que transforma “mercadorias” em objetos personalizados, ou, poder-se-ia dizer, “humanizados”. E é pelo fato de esse tipo de consumo ser usualmente caracterizado por um nítido elemento de habilidade e maestria, ao mesmo tempo em que dá margem à criatividade e à expressão da individualidade, que se justifica descrevêlo como “consumo artesanal”. ANTROPOLÍTICA

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Ora, o termo “craft” é, de fato, uma versão abreviada da palavra “handicraft” [arte manual], vocábulo que imediatamente chama a atenção para o contraste entre o trabalhador tradicional, que produz objetos “manualmente”, e o moderno trabalhador industrial, que os produz com o auxílio de uma máquina. E, decerto, é justamente a prevalência e supremacia da máquina na sociedade contemporânea a principal razão pela qual o termo “craft” pareceria de tal modo inapropriado para qualificar qualquer aspecto da vida moderna. Porém, seria equivocado tomar atividade “manual” equivalente a uma ausência de máquinas, pois artesanias tradicionais, tais como a olaria e a tecelagem, implicam claramente o uso de “máquinas” (isto é, a roda do oleiro e o tear). Portanto, não é a ausência de máquinas que distingue a arte manual das formas mais modernas de manufatura, mas, pelo contrário, o fato de, na primeira, as máquinas serem movidas manualmente (ou, de modo mais acurado, “pelo pé”) e – traço de maior importância – estarem diretamente sob o controle de quem as opera. Com efeito, este último ponto é exatamente o mais crucial, já que é o sistema industrial, com as formas de disciplina e controle que lhe são associadas (como a linha de montagem), que estabelece o verdadeiro contraste com a produção manual. Portanto, o contraste não ocorre entre a produção manual e a mecanizada, mas, antes, entre um sistema de produção em que o trabalhador assume o controle da máquina e outro em que a máquina assume o controle do trabalhador. Sob essa perspectiva, é possível ver em que medida um dos aspectos intrigantes da moderna sociedade de consumo é a maneira como máquinas têm sido reapropriadas à tradição artesanal, auxiliando e incentivando consumidores artesãos, em vez de privá-los de sua tradicional autonomia. Assim, a ferramenta elétrica se tornou um auxílio crucial para todos os entusiastas do “Faça você mesmo”, a batedeira elétrica para os chefs amadores e os cortadores elétricos de sebe e de grama para os entusiasmados jardineiros. O que é significativo em todos estes exemplos é o fato de o humano controlar a máquina, e não a máquina controlar o humano. Embora isso seja um traço assaz óbvio do processo pelo qual as tarefas domésticas têm sido cada vez mais “mecanizadas”, há uma tendência de se negligenciar sua importância potencial para o desenvolvimento e a expressão da individualidade, em prol de uma ênfase sobre seu papel em reduzir “o fardo” da “labuta” doméstica.

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A PROPRIAR ,

CUSTOMIZAR E PERSONALIZAR

Falar do consumo artesanal não é, em primeiro lugar, se referir a estes processos através dos quais indivíduos primeiro selecionam e depois compram produtos e serviços. Alguém poderia, talvez, se referir àquelas pessoas que dedicam uma porção de tempo, esforço e inteligência para descobrir “a melhor compra” ou garantir que estão “fazendo valer” o seu dinheiro como consumidores artificiosos [crafty], mas não são essas as atividades discutidas aqui. Antes, o interesse é por aquilo que os indivíduos de fato fazem com os produtos comprados uma vez que os levam para casa. Ora, isso só começou a ser um objeto de investigação sociológica séria nos anos recentes. No entanto, foi demonstrado que os consumidores freqüentemente tomam parte no que se chama de “rituais de posse” (MCCRACKEN, 1990, 85 et seq.), isto é, atividades que desempenham a importante função de habilitar os consumidores para adquirir o “título de propriedade” dos bens em questão. Uma cordial recepção caseira pode ser precisamente considerada um ritual de posse, assim como a prática comum de se experimentar as roupas novas que acabaram de ser trazidas das lojas (muito embora essa não seja a ocasião em que o consumidor pretenda usá-las). Estes rituais ajudam no processo de superar a natureza inerentemente alheia dos produtos fabricados em massa e de assimilá-los no mundo de sentido que pertence ao consumidor. Esta função é então reforçada pelo que se tem chamado de “rituais de tratamento”, que abrangeriam atividades como lavar e limpar o carro, polir móveis e, naturalmente, lavar e passar as roupas. Todas estas atividades cumprem a mesma e importante função de ajudar os consumidores a apropriar mercadorias padronizadas ou produzidas em massa a seu próprio mundo de sentido individual.5 No entanto, não se pode dizer que todas as atividades em que os indivíduos tomam parte após a aquisição de um bem se enquadram na categoria das que revelam o consumo artesanal. Na verdade, há que fazer distinções importantes entre atividades como “customizar” e “personalizar” produtos e o verdadeiro consumo artesanal.

C USTOMIZAÇÃO Um meio convencional pelo qual se poderia dizer que consumidores conquistam o “efeito de apropriação” é o processo de “customizar” produtos padronizados. Aqui, produtos fabricados em massa são “marcados”, seja pelo varejista ou pelo consumidor, de modo a indicar que são propriedade particular de um indivíduo específico. Por exemplo, grafar ANTROPOLÍTICA

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o nome ou as iniciais do freguês em produtos como um relógio, uma caneta ou pasta é uma prática que há muito tem seu lugar estabelecido no rol de serviços oferecidos por varejistas. Sob uma perspectiva puramente instrumental, esta prática poderia ser considerada como equivalente a um mero artifício para garantir que os objetos em questão permaneçam em posse de seus donos, como no caso das etiquetas com nomes afixadas nas roupas das crianças quando entram na escola. No entanto, também está claro que, na grande maioria dos casos, o acréscimo do nome ou das iniciais do dono ao produto é, por si só, um importante ritual de posse e, portanto, uma indicação direta de que ocorreu alguma “apropriação” subjetiva do item em questão. Naturalmente, em alguns casos, como, por exemplo, na versão da etiqueta de identificação especialmente arrogante e auto-afirmativa que é a placa de carro particularizada, o ritual de posse envolvido também pode ser visto como dotado de uma vantagem adicional (do ponto de vista do consumidor): a de permitir que se tome parte no consumo conspícuo. No entanto, está claro que estes exemplos não podem ser tomados como verdadeiros casos de consumo artesanal, simplesmente porque não foi feita nenhuma modificação significativa na natureza do que continua sendo um produto padronizado. Antes, seria mais apropriado considerar tais atividades como meros resultados da “customização” de mercadorias.

P ERSONALIZAÇÃO Atividades mais próximas do que se poderia considerar casos de consumo artesanal seriam aquelas em que consumidores “ajustam” os produtos no intuito de adaptá-los para atender suas necessidades. Subir a bainha de um vestido ou apertar o cós de uma calça são exemplos de modificações em itens de vestuário “confeccionados” que pareceriam justificar esta designação. Entretanto, trata-se de um tipo de serviço oferecido com uma freqüência cada vez maior pelos próprios varejistas, de modo que é importante estabelecer a distinção entre tal atividade quando empreendida pelo varejista e o que, por contraste, poderia ser qualificado como uma legítima alteração do próprio usuário. No entanto, aqui também ainda não é o caso de os consumidores tomarem parte em atividades que resultam em uma modificação significativa na concepção original do produto, embora possam ter de exercitar alguma parcela de habilidade. Nesse sentido, a “personalização” efetuada pelo próprio usuário ainda não é necessariamente o mesmo que o tipo de ação criativa implicada no termo consumidor artesão, como definido acima. O aspecto mais crucial de qualquer atividade de consumo ANTROPOLÍTICA

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que mereça ser rotulada de “artesanal” é o elemento de modificação na concepção do produto e, mesmo assim, somente quando empreendida pelos próprios consumidores. É claro que, por muito tempo, se os consumidores possuíssem recursos, poderiam adquirir um “serviço personalizado”, tanto dos produtores quanto dos varejistas; isto é, um serviço em que os produtos eram especificamente concebidos e manufaturados para atender os gostos e preferências de um indivíduo. Por muito tempo, as aristocracias da maior parte dos países puderam assegurar que a maioria de seus bens estivesse incluída nessa categoria, ao passo que, hoje, até as classes medianas podem, muitas vezes, arcar com as despesas de ter certas aquisições fundamentais projetadas e fabricadas de modo personalizado, cujos principais exemplos são a casa projetada por arquitetos e os ternos sob medida. No entanto, aqui também ainda é o caso de os produtos serem feitos por outros, não pelos próprios consumidores, embora estes últimos possam expressar claramente suas preferências quanto à concepção dos produtos em questão (assim como, quanto ao material usado em sua “construção”). Portanto, se seguirmos estritamente a definição de atividade artesanal como aquela em que objetos são “feitos e concebidos pela mesma pessoa”, este tipo de personalização ainda não deve ser levado em conta. O consumo artesanal remete claramente a mais que à simples customização ou personalização de produtos, ou seja, tem de significar mais que meramente ter um produto marcado com o nome ou as iniciais de alguém, ou mesmo contratar um especialista para projetar um produto especialmente para você. Para que se justifique a descrição de uma atividade de consumo como artesanal, o consumidor tem de estar diretamente envolvido tanto na concepção quanto na produção do que será consumido.

P ERSONALIZAÇÃO

SUBVERSIVA

Há, entretanto, outro sentido em que se poderia dizer que produtos manufaturados foram “personalizados”: quando são usados de uma maneira diferente da planejada pelos fabricantes. Decerto, vários motivos distintos poderiam induzir indivíduos a usar produtos de uma forma excepcional ou imprevista e nem todas essas adaptações poderiam ser vistas como decorrentes de um desejo de expressão da individualidade ou de criatividade. Em muitos casos, podem simplesmente representar um equívoco da parte do consumidor ou uma resposta a circunstâncias excepcionais. Por outro lado, os consumidores podem simplesmente possuir mais engenhosidade e criatividade do que os fabri-

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cantes e varejistas lhes atribuem.6 Um exemplo particularmente interessante desse tipo de personalização é a adaptação ou o emprego de produtos padronizados de maneiras diferentes das planejadas pelos fabricantes de modo a servir de marcas ou “distintivos” para os membros de uma subcultura. Um exemplo óbvio desta prática seria vestir um boné com a aba “ao contrário”. É claro, dificilmente se poderia dizer que uma modificação desse tipo representa um exemplo de criatividade individual, embora sua inauguração e adoção por um grupo possam ser consideradas um exemplo de “personalização subversiva”. Outros exemplos clássicos desta prática seriam a desafiante modificação, típica de estudantes “rebeldes”, das normas de vestuário que devem ser adotadas nos uniformes. Práticas como vestir as meias emboladas no tornozelo, em vez de esticadas até o joelho, camisas para fora da calça ou da saia, em vez de para dentro, gravatas folgadas, em vez de justas em volta do pescoço etc. Tais exemplos são úteis para demonstrar que anunciantes e varejistas não são as únicas forças que influenciam a maneira como os consumidores escolhem fazer uso de bens. Não que esta tendência seja especialmente nova. Por exemplo, membros de subculturas jovens – como sugere a referência ao boné ao contrário – têm se demonstrado propensos a agir como consumidores subversivos já há algum tempo. Os chamados “teddy boys”7 dos anos 1950, por exemplo, realmente pediam aos alfaiates para ajustar seus ternos de acordo com seus próprios modelos eduardianos, ignorando o conselho profissional concernente ao que era considerado esteticamente aceitável no vestuário masculino. As roupas singulares que distinguiam grupos como os hippies, assim como as dos punks, também não foram introduzidas pelos estilistas da moda, mas pelos próprios jovens. Em cada um destes exemplos, os usuários conceberam suas roupas, algo que ainda é válido atualmente e se manifesta no conhecido fenômeno da “moda de rua”. O que talvez seja novo é a tendência de uma faixa mais larga de consumidores, que não inclui apenas os estudantes de artes ou membros de algum grupo jovem, de também começar a querer agir dessa forma. Isto é, começar a assumir um grau de controle pessoal sobre a natureza e o modelo das roupas que usam e, ainda, sobre uma ampla gama de produtos consumidos no dia-a-dia. Tal fato poderia parecer decorrente de um desejo de imprimir a própria personalidade, através da afirmação de seu gosto, no produto. Assim, as evidências sugerem que sobretudo as consumidoras querem cada vez mais personalizar suas próprias roupas, como no exemplo da mulher que se pôs a alterar a alça da bolsa Gucci que tinha acabado de adquirir – e por

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um preço bem elevado (CRAIK, 2000). Outros exemplos similares citados no mesmo artigo incluíam encurtar apenas uma manga de um vestido novinho em folha, acrescentar apliques de renda em uma saia e fazer fendas e rasgos em uma calça jeans nova. Tais “modificações” em peças de vestuário que foram cuidadosa e deliberadamente concebidas para ganhar determinada aparência revelam claramente a existência de um desejo intenso de customizar os bens de consumo.8 Ora, o que é especificamente interessante nestes exemplos é poderem ser vistos como ações que visam a recuperar a “singularidade” ou a “unicidade” que eram tradicionalmente a marca de autenticidade do objeto produzido manualmente [handicrafted]. Assim, pode-se dizer que os consumidores tomam parte nessas ações não apenas para “tornar sua” a mercadoria em questão, mas também para distingui-la de suas inúmeras gêmeas idênticas que foram fabricadas. Para a maioria das pessoas que não podem arcar com as despesas de uma alta costura original, a singularidade é, então, alcançada através do trabalho empreendido pelo consumidor, uma vez que o objeto aparentemente finalizado está em sua posse.

C ONSUMO

ARTESANAL COMO UMA ATIVIDADE

DE FORMAR CONJUNTOS

No entanto, personalizar mercadorias individuais não é típico da maior parte do consumo artesanal contemporâneo. É muito mais provável que este modo de consumo tome a forma de novos “produtos estilizados em um conjunto”, formados a partir de matérias-primas ou de mercadorias finalizadas, do que a modificação direta destas últimas, como pode ser percebido se passarmos a considerar, na sociedade contemporânea, as áreas mais evidentes e importantes da atividade de consumo em que uma dimensão artesanal existe claramente. Tais áreas podem ser identificadas no mundo do “Faça você mesmo” e das modificações e melhorias domésticas, assim como a jardinagem, a culinária e a construção e manutenção de um guarda-roupa. O que é significativo nessas formas de consumo é ser possível comprar um produto finalizado, ou de “pronta entrega”, em cada caso. Ou, alternativamente, contratar especialistas tanto para projetar quanto para supervisar a “manufatura” do produto final. No entanto, parece que um número cada vez maior de pessoas está rejeitando essas opções em prol de “fabricar artesanalmente” tais produtos para si mesmas. Quer dizer, elas estão decidindo tanto conceber quanto “fazer” o resultado final. A própria popularidade dos programas de televisão sobre comida e culinária, ou sobre reprojetar e redecorar interiores e jardins, assim como os diverANTROPOLÍTICA

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sos livros e revistas a eles associados, tudo isso sugere que existe uma grande população de consumidores que quer ser bem-sucedida em criar seus próprios produtos finais, esteticamente significativos.9 O preparo de comida é um exemplo bem característico. De um lado, trata-se, naturalmente, de uma atividade de produção tanto quanto (ou ainda, em vez de) uma atividade de consumo. No entanto, quando não empreendida como um trabalho remunerado e por aqueles que pretendem comer o produto final, tal distinção é difícil de estabelecer. É patente, porém, que cada vez mais consumidores estão predispostos não apenas a tomar parte no considerável esforço necessário para selecionar os ingredientes, mas também a empreender as etapas subseqüentes (e com freqüência complexas, como o preparo, o cozimento e a apresentação) necessárias à entrega desse conjunto de pratos culinários culturalmente prestigiosos que constituem a entidade chamada “refeição”. Comida que, mesmo sem ser destinada apenas ao consumo próprio, não costuma ter em vista a venda no mercado. E parece que não haveria grande dúvida de que é razoável chamar esta atividade de artesanal. Afinal, o produto final é feito ou moldado com habilidade e manualmente, e, mesmo se a “concepção original” for retirada de outro lugar (i. e., um livro de receitas), alguma improvisação freqüentemente ocorre. Também se trata de uma ocasião em que habilidade e conhecimento podem influenciar a escolha das “matérias-primas” (i. e., os ingredientes) e em que há grande espaço para a criatividade. Ao mesmo tempo, existe uma estratégia alternativa de consumo, fácil e prontamente acessível, que evita a via artesanal, dado que há tanto uma ampla gama de refeições prontas no mercado, quanto inúmeros restaurantes e estabelecimentos de pronta entrega. No entanto, o que é crucial notar acerca de grande parte desse “consumo artesanal” é que normalmente ele não envolve a “criação” física de um produto – mesmo se tal traço for algumas vezes menos aparente na culinária que em áreas como decoração de interiores, vestuário pessoal ou jardinagem. Antes, o que é realmente “criado” é um “conjunto”, ou uma “reunião” de produtos, cada um dos quais pode ser em si mesmo um item padronizado ou produzido em massa. Ainda, é esse tipo de “criatividade para juntar” que é tão típico do consumidor artesanal moderno, patente, por exemplo, no modo como indivíduos escolhem combinar as roupas que formam um “conjunto”, ou na maneira como eles dispõem móveis e itens decorativos para criar um determinado “estilo” em um cômodo, ou mesmo em suas casas como um todo.

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C OLECIONAR

COMO CONSUMO ARTESANAL

Por outro lado, o reconhecimento de que grande parte do consumo artesanal contemporâneo assume a forma de uma construção de conjuntos tem a utilidade de chamar a atenção para a atividade de colecionar, o que, por colocar em evidência essa atividade particular, ajuda a esclarecer certos aspectos distintivos do consumo artesanal moderno. A atividade de colecionar tem sido definida como “o processo de adquirir e possuir, de forma ativa, seletiva e apaixonada, coisas afastadas do uso comum e percebidas como parte de um conjunto de objetos ou experiências não-idênticos” (BELK, 1995, p. 67). Ora, a partir desta definição, fica claro que colecionar – com sua ênfase em uma orientação ativa e no envolvimento apaixonado – é, em si mesma, uma forma de consumo artesanal, sendo a “coleção” o resultado final, produzido “manualmente”. Também fica claro que este processo requer não apenas habilidade e conhecimento, mas é essencialmente criativo, pois os colecionadores recontextualizam ativamente produtos individuais, situando-os em uma criação maior chamada “a coleção”, atribuindo-lhes, portanto, um novo significado e valor. Este processo implica não apenas os rituais de posse e de tratamento, mas também um investimento considerável da “individualidade” do consumidor-colecionador em sua nova criação. Como tal, pode ser confrontado com a atividade criativa do entusiasta do “Faça você mesmo”, da jardinagem ou da culinária, ainda que cada produto industrializado comprado no mercado (nem todas as coleções são compostas por produtos vendáveis, bem entendido), considerado como uma entidade à parte, não sofra qualquer modificação. Aqui também, podemos notar que colecionar é outro traço das sociedades de consumo contemporâneas, amplamente difundido e de crescimento acelerado. Estes comentários também servem para chamar a atenção para mais um traço distintivo do consumo artesanal, que é o de ter uma dimensão autotélica e estética que lhe é crucial e, como tal, apresentar uma semelhança fundamental com a ação de “brincar”. Como observou Bjarne Rogan, colecionar é “muito mais que uma questão de distinção e emulação social. É também divertimento e brincadeira” (1998, p. 440).

DA

PERSONALIZAÇÃO AO CONSUMO ARTESANAL

Embora existam, à disposição de cada consumidor, inúmeros caminhos que o levariam a tomar parte em atividades do tipo artesanal, o mais comum é o caminho do desenvolvimento “natural”, a partir de rituais

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normais de tratamento e de posse. Assim, se o ato de redecorar um cômodo envolve a mudança da cor escolhida quando de sua primeira ocupação, poder-se-ia dizer que a atividade em questão se aproxima do processo de “personalização”,10 ou seja, mudar o produto de alguma maneira para atender as necessidades, gostos ou desejos particulares de um indivíduo. Já isso, por sua vez, poderia despertar um interesse mais duradouro pela decoração de interiores, que leva à aquisição de um conhecimento especializado e de habilidade, de modo que o simples ato de personalizar se transformou em um projeto com um prazo mais longo que é o “consumo artesanal”. Entretanto, um cuidado com rituais de posse e de tratamento também pode, naturalmente, ser sintoma de um hobby ou passatempo preexistente, que é, em si mesmo, construído em torno de uma mercadoria produzida em massa. Portanto, este interesse conduz diretamente à atividade de personalizar e, em seguida, ao genuíno consumo artesanal.11

C ONSUMO

ARTESANAL E A CULTURA MAIS ABRANGENTE

Ora, não se pretende sugerir que, nas sociedades ocidentais contemporâneas, a maioria dos consumidores seja composta por consumidores artesãos. Tudo o que se sustenta é que uma parcela significativa e crescente dos consumidores modernos encontra-se nesta categoria. Manifestadamente, como se notou acima, a opção não-artesanal não apenas continua a existir como também é a forma de consumo adotada por muitos. Assim, ainda é o caso de um número considerável de consumidores modernos jamais praticar jardinagem, redecoração, ou modificar fisicamente suas habitações de modo algum, ou mesmo levar muito tempo escolhendo roupas e preparando refeições. E, para muitas destas pessoas, tal consumo não-artesanal é imposto pelo empobrecimento de seu modo de vida. Assim, elas podem carecer tanto de dinheiro quanto de tempo para preparar artesanalmente [to craft] uma refeição, ao passo que, talvez, elas simplesmente não tenham um jardim ou habitem imóveis alugados. Por outro lado, também há um número de pessoas abastadas com casa própria que, apesar de possuir os recursos (inclusive o tempo) para tomar parte no consumo artesanal, escolhem não fazê-lo, e assim continuam a agir conforme o estereótipo do consumidor de produtos de massa moderno. Entretanto, a ausência de tempo ou de riqueza suficiente não é, bem entendido, o único fator a impedir muitos consumidores de adotar a opção artesanal. Como observou Bourdieu, também é necessária uma certa quantidade de “ca-

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pital cultural” para se estar em posição de re-apropriar produtos de massa a ponto de expressarem a individualidade de uma pessoa ou servirem como um meio de realização pessoal. Mais especificamente, pode-se dizer que um certo tipo de capital cultural é necessário para perceber mercadorias como “matérias-primas” passíveis de serem empregadas na construção de “entidades estéticas” compostas, assim como para saber quais princípios e valores são relevantes para o empreendimento dessas construções maiores. Com efeito, o mais provável é que consumidores artesãos sejam pessoas não só dotadas de tal capital cultural, como também mais preocupadas do que a maioria com os possíveis efeitos “alienantes” e homogeneizantes do consumo de massa. Algo que ajuda a justificar seu entusiasmo com a opção artesanal, já que elas são propensas a vê-la como a forma apropriada de resistir com êxito a tais pressões (HOLT, 1997). No entanto, isto não significa que, nas sociedades modernas, indivíduos de posições mais pobres (tanto no sentido convencional quanto no sentido cultural do termo) estejam, todos, necessariamente excluídos do consumo artesanal. Nem todas as atividades deste tipo requerem um capital ou uma despesa considerável, nem todas as subdivisões dos menos abastados carecem de tempo de lazer. Além disso, o capital cultural requerido é, com freqüência, relativamente fácil de se obter, quase sempre através dos meios de comunicação mencionados anteriormente. Enfim, é importante notar que, em referência a alguns aspectos do consumo artesanal, este capital pode inclusive ser de natureza popular em vez de elitista. Isso porque, em relação à totalidade do complexo sistema cultural das sociedades modernas, poder-se-ia dizer que a atividade artesanal existe na interseção de um conhecimento folclórico genuíno com a moda e a arte sofisticada. Quer dizer, de um lado, há um corpo de conhecimentos práticos adquiridos pessoalmente, do tipo que é freqüentemente transmitido boca a boca, hereditariamente ou de praticante a praticante. Exemplos incluiriam a receita da vovó para o pudim de Yorkshire ou para o bolo de gengibre, ou ainda os segredos do mais antigo proprietário de um sítio sobre como cultivar alhos-porós dignos de prêmio. De outro lado, encontram-se aqueles artistas e designers cuja atividade inovadora tende a estabelecer a moda ou o estilo vigente, seja para banheiros, mobília, plantas de jardim ou maneiras de servir comida. Poder-se-ia dizer que o ponto em que essas duas influências se cruzam representa o “meio-termo cultural”, geralmente ocupado pelo consumidor artesão.

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P OR

QUE PARECE HAVER UM CRESCIMENTO

NO CONSUMO ARTESANAL ?

Igor Kopytoff sugeriu que não apenas há “claramente uma ânsia pela singularização nas sociedades complexas” (1986, p. 80), mas que esse processo não deveria ser visto como uma simples oposição à mercantilização. Antes, ele sugere que ambos deveriam ser vistos como processos que existem em um tipo de relação dialética, de modo que o fortalecimento progressivo de um não serve tanto para eliminar o outro, mas antes para estimular uma reação oposta e equivalente. O argumento baseia-se no fato de ambos serem essenciais se uma “ordem social significativa e harmoniosa deve existir” (ibid.). Trata-se de uma sugestão intrigante que oferece uma explicação possível para o aumento do consumo artesanal nas sociedades em que a mercantilização segue em passo acelerado. Não somente este último processo tem sido repetidamente “contestado” – algumas vezes com um êxito considerável –, como é mais que possível que sua intensificação induza os indivíduos a buscar formas novas e mais eficazes de combater seus efeitos. Quer dizer, mais formas de “tornar as coisas preciosas”, “especiais”, “singularmente significativas” ou “sem preço”. Ao mesmo tempo, é óbvio que isso não pode ser facilmente alcançado apenas com um “virar as costas” para a sociedade comercial, ou com uma recusa em se envolver no “mundo dos bens materiais”. Antes, a estratégia mais realista é “abraçar” o mundo das mercadorias e usar seus próprios recursos culturais e pessoais para transformá-las em “singularidades”. Decerto, é possível ver como o crescimento do consumo artesanal nas sociedades ocidentais contemporâneas poderia representar tal reação à mercantilização progressiva. É possível que, à medida que cada vez mais aspectos da vida moderna se tornam sujeitos a esse imperativo econômico, cada vez mais indivíduos venham experimentar a necessidade de escapar deste processo ou, mesmo, de contra-atacá-lo. Quer dizer, eles poderiam vir a desejar que algum recanto de sua existência cotidiana fosse um lugar onde objetos e atividades possuíssem significados por serem percebidos como únicos, singulares ou mesmo sagrados. Vista dessa forma, a arena do consumo artesanal poderia tornarse extremamente valorizada por ser percebida como um oásis de expressão da individualidade e autenticidade pessoais em meio a um “deserto” de mercantilização e mercadização em incessante ampliação. Bem entendido, sugerir isso não significa negar que o crescimento do consumo artesanal seja, ao mesmo tempo, plenamente funcional para ANTROPOLÍTICA

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a expansão contínua do capitalismo de consumo, ou que – ironicamente – possa, na verdade, servir para fornecer ainda mais oportunidades à mercantilização. Como já vimos, tais atividades artesanais geram, elas mesmas, um aumento na demanda de uma ampla gama de bens e serviços de consumo, de tintas a utensílios especializados de cozinha, de livros de receitas a novas espécies de plantas. Simultaneamente, seria possível argumentar que, como todas as atividades de lazer e hobbies, tal atividade também funciona como “recreação”, já que permite que indivíduos recuperem suas faculdades e energias, de modo que sejam novamente “qualificados” para cumprir seus papéis produtivos (SLATER, 1997a, p. 2). Entretanto, seria possível que o consumo artesanal possuísse uma relação um tanto diferente com o mundo do trabalho, relação esta que também ajuda a explicar seu crescimento até a proeminência. O que também está claro é que, em grande parte, são pessoas de classe média e profissionais que têm abraçado o consumo artesanal com tanto entusiasmo, exatamente os grupos que nos anos recentes têm experimentado não apenas uma desprofissionalização, mas também a burocratização elevada, o monitoramento externo e a avaliação formal do desempenho. Como resultado, seria possível que tais pessoas estejam cada vez mais se retirando para o mundo privatizado da expressão da individualidade como uma conseqüência direta do decréscimo das oportunidades de exercer uma atividade expressiva, criativa e independente em seus papéis profissionais? Essas são justamente as pessoas cujo trabalho tinha tradicionalmente muitos dos atributos de uma “vocação”, ou seja, não era um mero “ganha-pão” mas uma atividade vista como algo que oferecia tanto um claro senso de identidade quanto satisfações pessoais intensas. No entanto, suas ocupações foram perdendo progressivamente seu caráter profissional – em grande parte como conseqüência da intervenção administrativa –, o que poderia explicar a tendência desses indivíduos de buscar na esfera privada justamente as satisfações que eles percebem não estarem mais disponíveis na esfera pública. Quanto a isso, seria possível sustentar que a desprofissionalização está fazendo à classe média exatamente o que Hoggart (1957) sustentou que a industrialização fez às classes trabalhadoras: desviar as energias humanas e criativas, antes expressas no mundo do trabalho, para o mundo do lazer. Entretanto, talvez seja possível argumentar, bem mais cinicamente, que o crescimento do consumo artesanal é apenas uma evidência de como as classes média e alta tiveram êxito em adaptar a sociedade de consumo pós-moderna para que pudessem continuar a manifestar seu tradiANTROPOLÍTICA

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cional senso de superioridade cultural. Assim, em vez de apenas lamentar “a ganância e o materialismo grosseiros” do consumismo desenfreado (algo que, a seus olhos, se tornou por demais difundido, em grande parte como conseqüência da voracidade e do hedonismo desinibidos dos socialmente inferiores); ou, alternativamente, em vez de apenas tentar escapar dos piores efeitos de uma sociedade materialista e consumista através do corte de despesas ou da adesão ao movimento de viver com simplicidade, elas cooptaram e adaptaram o consumismo de modo que pudessem manifestar seus próprios valores e tradições culturais distintivos. Em essência, isso envolve estetizar e tornar ético (se não espiritualizar) tal mundo. Desde que o consumo passou a ser visto como uma arena em que prevalecem motivos dúbios de voracidade, inveja e luta por status, tornou-se necessariamente algo execrável para pessoas com uma sólida herança cultural, ética e moral. No entanto, se o consumo pudesse ser redesenhado como uma esfera em que dominassem considerações sobre gosto, beleza, autenticidade e expressividade pessoal, seria possível assimilá-lo a essa mesma tradição. Sob tal perspectiva, a distinção entre o consumo artesanal e o consumo mercantil não chega a representar uma nova clivagem social, mas uma clivagem antiga sob uma nova forma.

C ONCLUSÃO Por muito tempo, as hipóteses derivadas das obras de ciências sociais escritas no século XIX e no início do século XX estruturaram o pensamento sobre a produção e o consumo em sociedades industriais modernas. Uma de suas contribuições mais significativas foi o modo dicotômico de conceitualizar a criação de bens e mercadorias, convencionalmente expresso através do contraste entre produção artesanal e produção não-artesanal ou industrial. Este contraste é, em geral, percebido não como uma simples divisão entre dois modos de produção distintos, mas como duas formas fundamentalmente contrastantes de os seres humanos se relacionarem com o mundo dos objetos, formas que se opõem diametralmente em relação a seus efeitos sobre os envolvidos. Assim, enquanto o trabalho artesanal é visto como humano e libertador, como aquele que permite aos indivíduos tomar parte em uma atividade autêntica, expressiva e criativa, a produção automatizada e baseada em fábricas é considerada como a que possui o efeito inverso, não apenas eliminando essa possibilidade, mas também criando uma classe de trabalhadores alienados. Este é o modelo que, por extensão, foi freqüentemente transportado para o domínio do consumo. Assim, ANTROPOLÍTICA

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enquanto o consumo de objetos artesanais é visto como um indício de discernimento são e culto ou de “bom gosto”, o consumo de bens manufaturados em massa é comumente percebido tanto como um sintoma quanto como uma contribuição adicional ao estado geral de “alienação”. O que se sugere aqui é que tal descrição deveria ser radicalmente modificada em favor do reconhecimento de que assim como há dois modos contrastantes de produção, há também dois modos distintos de consumo. Estes últimos não correspondem, no entanto, ao consumo de diferentes tipos de bens (consumo artesanal não é, neste sentido, equivalente ao consumo de bens artesanais), mas antes a formas diferentes de se relacionar com as mercadorias. Assim como a produção artesanal é mais significativa por oferecer uma oportunidade à criatividade e à expressão da individualidade humana do que pelo modo como o bem é efetivamente manufaturado, da mesma forma, o consumo artesanal é importante por apresentar uma oportunidade para a manifestação de qualidades humanas igualmente apreciadas. O consumo, tal como geralmente o trabalho ou a “atividade produtiva”, pode ser experimentado como nada mais que um “afazer”, uma mera necessidade. Por outro lado, também pode ser a parte mais significativa da vida íntima de uma pessoa, ou, para usar as palavras de C. Wright Mills, “uma exuberante expressão da individualidade [...] o desenvolvimento da natureza universal do homem” (Mills, 1951: 215). Tal modo de consumir não apenas existe na sociedade de consumo moderna, mas está, na verdade, florescendo, e pode ser visto como parte da amplamente difundida estetização da vida cotidiana e da tendência atual de os imperativos do consumo, em vez dos da produção, moldarem a cultura contemporânea. Além disso, são cada vez mais as necessidades de consumo daqueles que dispõem de renda e de um longo tempo livre que ditam a natureza do mundo mercantil e a maneira como estes produtos são anunciados pela publicidade e utilizados. E está claro que muitas dessas pessoas querem ser capazes de usar os produtos de maneiras cada vez mais criativas e expressivas; ou seja, querem ser capazes de “atingir seu potencial” e “expressar seu verdadeiro eu” através de “adereços” do consumidor. Elas desejam, com efeito, se tornar consumidores artesãos, e, se supomos que esta tendência irá continuar no futuro próximo, então existe o prospecto de uma sociedade pós-moderna em que o consumo artesanal não só é a forma dominante de consumo, mas também o principal modo de expressão da individualidade.

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ABSTRACT This article proposes that social scientists should explicitly recognise the existence of consumers who engage in “craft consumption” and hence of an additional image of the consumer to set alongside those of “the dupe”, “the rational hero” and the “post-modern identity-seeker”. The term “craft” is used to refer to consumption activity in wich the “product” concerned is essentially both “made and designed by the same person” and to which the consumer typically brings skill, knowledge, judgement and passion while being motivated by a desire for self-expression. Such genuine craft consumption is then distinguished from such closely associated practices as “personalisation” and “customisation”, and identified as typically encountered in such fields as interior decorating, gardening, cooking and the selection of clothing “outfits”. Finally, after noting that craft consumers are more likely to be people with both wealth and cultural capital, Kopytoff’s suggestion that progressive commodification might prompt a “de-commodifying reaction” is taken as a starting point for some speculations concerning the reasons for the recent rise of craft consumption. Keywords: craft; consumption; personalisation; customisation; de-commodification; creativity; self-expression.

N OTAS 1

No original, The Craft Consumer, o termo craft pode designar uma habilidade tradicional para confeccionar algo manualmente, o objeto assim produzido ou, ainda, determinada habilidade necessária ao exercício de uma profissão; é usualmente traduzido por “arte, perícia, destreza, ofício etc.”. Neste artigo, como ficará claro no decorrer do texto, está sendo utilizado para descrever um tipo de atividade de consumo paralelo a um tipo de produção, a artesanal, daí a opção pelas traduções “artesão, artesania e artesanal”. Craft possui, ainda, os sentidos de “artifício, esperteza, manha, astúcia”, mais patentes em derivados como craftiness e crafty (“artificioso, astuto”), sentidos a que os vocábulos “artesão” e seus derivados não remetem em português. Nos casos em que não foi possível conservar essas traduções, o termo craft e seus derivados vêm entre chaves no corpo do texto; quando, porém, o autor faz referência direta ao vocábulo, manteve-se o original seguido, se necessário, da tradução entre chaves [N. da T.]

2

De fato, Gabriel e Lang propõem um conjunto de imagens do consumidor bem mais complexo (ver GABRIEL, LANG, 1995). Essas três são, no entanto, as mais comumente encontradas na literatura.

3

Isso não nega que a atividade de consumo possa estar relacionada com questões de identidade. Trata-se, apenas, de rejeitar a hipótese pós-moderna prevalecente de que o ato de consumo seja motivado por um desejo de se criar uma identidade (ver CAMPBELL, 2004).

4

Danny Miller recupera, aqui, o conceito hegeliano de “contradição” ou reabsorção (MILLER, 1987, p. 12, 28); ver também a discussão de Tim Dant (1999, p. 32-34)

5

Indivíduos também tomam parte em “rituais de despojamento”, como por exemplo um “tratamento para despojar”, que abrange atividades como limpar, consertar e decorar itens que se pretende vender (MCCRACKEN, 1990, p. 83-87).

6

Certamente, divergências entre o uso anunciado e o uso efetivo dos produtos podem decorrer simplesmente das estratégias de propaganda empregadas pelos próprios fabricantes. Assim, fabricantes de computadores podem anunciar sua importância como suporte educacional no intuito de persuadir pais a comprá-los para seus filhos; estes, no entanto, usam-no para se divertir com jogos, algo que, com efeito, os fabricantes já haviam previsto (SILVERSTONE, 1994).

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Assim são chamados os membros do primeiro movimento de subcultura jovem na Inglaterra; seriam, de certa forma, equivalentes à “juventude transviada” norte-americana [N. da T].

8

O subtítulo do artigo publicado no exemplar de The Guardian de onde foram retirados esses exemplos postula: “Você o comprou, agora faça com que seja seu. A editora de moda Laura Craik explica como personalizar roupas” (CRAIK, 2000).

9

Reconhece-se que boa parte do apelo de tais programas também reside em sua função de entretenimento e que as pessoas podem assistir a eles por simples diversão, em vez de instrução. No entanto, também é importante notar que a televisão é um meio de comunicação especialmente importante para a transmissão deste tipo de capital cultural, porque boa parte do conhecimento necessário é tipicamente discursiva e, portanto, é necessário mostrar – em vez de dizer – aos aprendizes como fazer.

10

Isso poderia parecer equivalente ao que Dale Southerton designa por “improvisação pessoal” (2001, p. 165).

11

A distinção entre empreender um consumo artesanal e simplesmente tomar parte em um hobby não é muito fácil de estabelecer. Se um hobby é definido como uma atividade que se busca durante o tempo de folga para prazer e relaxamento, então isso também seria claramente verdadeiro sobre o consumo artesanal. No entanto, o termo hobby não necessariamente traz a sugestão adicional de que o indivíduo envolvido desenvolveu qualquer perícia especial ou conhecimento. O termo hobby também não implica que o indivíduo manifeste a paixão e o compromisso que, como se sugeriu aqui, caracterizam o consumidor artesão. Ver Slater (1997b) sobre consumo e hobbies; ver também Bert Moorhouse sobre como hot-rodders de elite adotam seu hobby de uma forma que justifica descrevê-los como “artesãos” (1999, p. 293).

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F

P OR

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Agradecemos ao autor a permissão de publicação deste artigo. Versões anteriores deste texto foram apresentadas no âmbito do colóquio Elusive consumption, tracking new research perspectives (Center for Consumer Science, University of Göteborg, Göteborg, Sweden, June 23-26, 2002), do seminário do CERLIS (Desjeux, D. (Dir.), CERLIS, Paris, 3 février 2003) e do Seminar on Innovating markets (Barry, A., Callon, M. and Slater, D., (Ed.), London School of Economics, London, England, Friday 28th March 2003). Agradecemos profundamente aos organizadores desses diferentes eventos por suas observações construtivas. Por fim, explicitamos que o presente texto é uma versão francesa do artigo publicado em inglês em uma obra coletiva advinda do colóquio de Göteborg (“Is the modern consumer a Buridan’s donkey? Product embalagem and consumer choice”, In Ekström, K. & Brembeck, H. (Ed.), Elusive Consumption, Berg Publisher, no prelo).

**

O título original, “L’emballage ou comment capter en chaque homme le baudet qui sommeille”, não tem sentido em português. Optamos, assim, por outro título.

R A N C K

C

O C H O Y*

UMA SOCIOLOGIA DA EMBALAGEM **

Este artigo aborda o universo do consumo através de uma sociologia da embalagem. Para demonstrar a importância de uma tal sociologia na análise dos dispositivos e recursos da captação mercantil, tomam-se exemplos simples, concretos e politicamente incorretos: o álcool, o tabaco, o café e a política. Através desses exemplos, busca-se discernir a participação da embalagem na formação de preferências e no estabelecimento das relações de mercado, assim como verificar as relações de influência mútua entre as embalagens e a política. Com isso, espera-se mostrar como os mecanismos de captação do consumidor presentes nas embalagens vão além da oposição clássica entre cálculo e rotina, investindo muitas vezes em uma combinação de ambos. Palavras-chave: embalagem; escolha do consumidor; mercantilização da política; politização do mercado.

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Como “atrair”, compreender e apreender o comportamento do consumidor? Eis uma questão que interessa a muita gente: sem dúvida, ao especialista em ciências sociais (a atração como compreensão), mas também aos profissionais do mercado (a atração como preensão), e sobretudo, no que diz respeito aos dispositivos que estes últimos empregam para apreender as disposições do cliente, e que informam o conjunto de outros atores (pesquisadores, profissionais, consumidores). Para compreender o comportamento do consumidor, sugiro, paradoxalmente, que se prefira o objeto ao sujeito, que se “observe” menos o consumidor que aquilo que o consumidor “observa”, mas também aqueles que o “observam”, de que modo fazem-no “observar”; em suma, que se estude a maneira como os artefatos mercantis atraem a atenção do consumidor. Propor que se “observe” aquilo que o consumidor “observa” pode parecer incongruente, tamanha a inutilidade aparente da proposição: o consumidor “observa” os produtos, evidentemente! Mas estamos realmente certos disso? Sem dúvida, o consumidor “observa” os produtos, mas os produtos que ele “observa” não são realmente produtos, são produtos embalados. ao propor que se “obeserve” aquilo que o consumidor “observa”, não sugiro esquecer o consumidor para passar diretamente ao produto, mas , pelo contrário, sugiro deter-se entre um e outro, demorar-se nestas embalagens que todo mundo toma pela espressão dos próprios produtos e que, depois, todo mundo joga fora sem outra forma de atenção. Aqui, gostaria de mostrar que a embalagem é, talvez, um dos dispositivos de atração mais poderosos que existe: a embalagem captura o produto (envolve-o, mascara-o, representao) e cativa, então, o consumidor (fascina-o e informa-o, atrai-o e detémno, prende-o e o libera). Meu programa consiste em subordinar, de certa forma, a sociologia do consumidor e dos produtores a uma sociologia da embalagem 1 (COCHOY, 2002a). Para demonstrar o interesse de uma tal sociologia para a investigação dos dispositivos e recursos da atração mercantil, partirei de exemplos bem simples e bem concretos. Meus exemplos serão politicamente incorretos, pois proponho estudar quatro produtos inseparáveis nos bares: o álcool, o tabaco, o café e a política. Para perceber a contribuição particular da embalagem na formação de preferências e no estabelecimento das relações de mercado, falarei do pastis2 “Ricard” e dos cigarros “Galoises”, para então chegar às discussões políticas que favorecem seu consumo (a saber, a escolha entre Chirac, Jospin ou Le Pen). Veremos como Ricard coloca o problema da escolha do consumidor e situa a importância da embalagem nessa escolha; veremos como os cigarros Galoises permitem “desembrulhar” tudo o que ANTROPOLÍTICA

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está em jogo nas inscrições das embalagens; veremos, enfim, em torno de um debate eleitoral e de uma xícara de café, como as embalagens são convocadas na política e vice-versa.3 Ao descobrir até que ponto a embalagem participa na construção das preferências do consumidor e na ativação de seus modos de ação, poderemos, eu o espero, compreender em que medida as operações de atração consistem em ultrapassar a oposição clássica entre cálculo e rotina, e até mesmo em descobrir outras dinâmicas que apostam na possível combinação de ambos.

U M R ICARD ? A

SEDE DO ASNO E SEU ENCADEAMENTO

O provérbio é conhecido: não se faz beber um asno que não tem sede. Mas o que acontece se o asno do qual se fala é o asno de Buridan? O asno de Buridan, ao contrário de seu primo proverbial, é um asno que tem sede – muita sede: trata-se de um animal tão racional quanto sequioso e que, situado a uma mesma distância entre dois recipientes idênticos, se deixa morrer de sede por não saber qual escolher (ADAM, 1985). Assim, a fábula do asno de Buridan nos ensina que, se é difícil fazer beber um asno que não tem sede, é igualmente árduo fazer beber (bem) um asno que tem sede! Ora, o problema do asno de Buridan, indeciso entre dois bens similares, não é apenas um velho exemplo filosófico, destinado a mostrar pelo absurdo a existência do livre-arbítrio. Este problema também é confrontado cotidianamente pelos profissionais do mercado, cuja profissão consiste em ajudar os consumidores a escolher entre produtos concorrentes, mas com freqüência difíceis de discernir (Coca contra Pepsi, Fuji contra Kodak, Canon contra Nikon etc.). Para compreendê-lo, vejamos um cartaz (ver figura na página a seguir) do fabricante da bebida alcoólica Ricard. O cartaz recorre de modo muito claro à intriga clássica do asno de Buridan: estamos diante de duas garrafas do mesmo tamanho, da mesma cor, situadas a uma mesma distância do eixo com o qual me defronto. Em suma, o problema colocado é de fato o do asno – o problema da hesitação entre o mesmo e o mesmo. Mas o problema também é superado por seu enunciado e sua solução imediata. À esquerda, uma questão “Um Ricard?”; à direita, uma resposta “Sim”. No entanto, a evidência da resposta (a escolha de Ricard) só é comparável à extraordinária polissemia da questão. Perguntar em duas palavras “Um Ricard?” pode, com efeito, ter nada menos que três significações diferentes:

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a) “Você gostaria de beber este Ricard que eu lhe ofereço?” Nesse caso, trata-se de escolher entre tornar-se ou não consumidor, independentemente do próprio produto; ou melhor, trata-se de fazer um asno que ainda não tem sede comprar, colocando-o, por antecipação, diante do convite para o aperitivo; que, de alguma forma, antecipa o aperitivo real por meio de um aperitivo figurado; b) A segunda significação prolonga a primeira: “Você gostaria de beber um Ricard ou um uísque... ou, é claro, um martíni, um gimtônica, ou mesmo um suco de laranja, ou qualquer outra bebida?” Nesse caso, trata-se de fazer um asno que tem sede escolher entre diversos produtos que ele percebe como distintos em função de suas preferências subjetivas. Aqui, também, a estratégia comercial consiste em “aliciar” o consumidor, relacionando sua apreciação presente com uma cena futura de consumo e, simultaneamente, ladeando um pouco essa escolha: a questão “O que você gostaria de beber?” é habilmente substituída por um “Você gostaria de um Ricard ou de outra coisa?”, não sendo, além do mais, a outra coisa nem nomeada nem mostrada; c) Enfim, a terceira significação da questão é a mais crucial: “A garrafa que está na minha frente é mesmo uma garrafa da marca Ricard, ou ANTROPOLÍTICA

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se trata de um de seus clones?”. Assim colocado, o problema do asno de Buridan é denunciado como um “engana trouxas”: já não há escolha entre a garrafa da esquerda e a da direita, pela simples razão de serem exatamente a mesma! Nessa propaganda, descobre-se que o problema espacial da hesitação do asno entre dois recipientes distintos e eqüidistantes foi astuciosamente substituído pela figuração seqüencial de uma única e mesma garrafa. Aqui, como na fábula do asno, ainda está em jogo a questão dos pontos de vista, mas tanto o sujeito da enunciação quanto o ângulo de visão não são mais os mesmos: à questão que me é dirigida sucede um problema que me coloco; ao problema da eqüidistância sucede o falso enigma da rotação. Após reflexão e uma meia-volta mais tarde, uma vez que pensei nisso e uma vez que a garrafa foi girada como convém, a adivinhação é resolvida e a boa escolha se impõe: sim, trata-se realmente de um Ricard! Eu o havia reconhecido antes mesmo que ele fosse girado; é este o pastis que eu conheço, que quero e que vou consumir. Toda essa retórica visa a lembrar com malícia a cada um aquilo que ele supostamente conhece (ou melhor, se esforça em fazê-lo, de modo que cada um crê saber aquilo que se quer que ele saiba), visa a informar que a bebida Ricard é um produto quase genérico, cujo nome vale – ou deveria valer – por “álcool anisado”, da mesma forma que o nome de marca “Bic” é utilizado para designar uma caneta esferográfica. O fabricante de álcool recorre aqui a uma estratégia particular de atração que nomearemos “encadeamento”:4 trata-se de mobilizar/construir o modo da tradição e da conivência (o encadeamento como sujeição), de relacionar a recepção da publicidade presente com um continuum entre os consumos passado e futuro (o encadeamento como sucessão/ reprodução de práticas). Implicitamente, essa publicidade visa, sem dúvida, aos possíveis substitutos de Ricard, em primeiro lugar, seu principal concorrente, o “Pastis 51”. A iconografia publicitária busca apresentar o problema do asno de Buridan – a escolha entre o mesmo e o mesmo: Ricard e Pastis 51 – ao mesmo tempo em que indica, de imediato, como resolvê-lo: Ricard faz/ deveria fazer parte de um esquema incorporado, estar inscrito nos hábitos de consumo e não poderia ser, conseqüentemente, confundido com nenhum outro produto. Mas como esse problema é resolvido, e por quem? O problema é resolvido primeiro no tempo. Os profissionais do mercado certamente sabem que a hesitação do consumidor é um momento muito raro e muito ANTROPOLÍTICA

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fugaz, que convém, conseqüentemente, administrá-lo com destreza, rapidez e delicadeza. Todo o problema dos profissionais do mercado consiste em suscitar uma hesitação para sobrepujá-la imediatamente, de modo a subordinar o exercício da escolha e então evitar, é claro, que os consumidores escolham sozinhos. Assim, conquistar um consumidor é, a princípio, fazer vacilar os apegos ao produto, inclusive àqueles a que os consumidores são fiéis, um pouco como nesses jogos infantis em que é preciso deslocar pequenas bolas de gude sobre um tabuleiro para fazê-las alcançar as cavidades que lhes são destinadas: não se pode colocar todas as bolas uma por uma; para ganhar, para alojar todas as bolas em todos os buracos, é preciso, primeiro, aceitar que se desalojem todas. Mas, aqui, o publicitário substitui rapidamente a possível hesitação do olhar entre a esquerda e a direita por um deslizamento narrativo conforme o sentido da leitura (“– UM RICARD? – SIM”) e pela rotação de uma mesma garrafa. Ao fazê-lo, ele consegue de uma só vez recriar a cena da escolha e beneficiar-se inteiramente dela, impor a evidência de sua solução. O problema é, em seguida, resolvido no espaço. A solução proposta não é apenas a resposta à adivinhação, mas o próprio instrumento dessa resposta: a solução é dada por intermédio da embalagem, da etiqueta, o único elemento que permite ir “além” das aparências e estabelecer uma diferença entre dois produtos similares. Com efeito, como o consumidor poderia escolher por si só entre bebidas visualmente indiscerníveis e que ele não pode provar no momento da compra? Assim, da água do asno ao pastis do consumidor de aperitivos, descobre-se que a embalagem é de uma só vez a condição e a solução da escolha: ela intervém no posicionamento do problema e em sua resolução. Esse ponto é importante, pois nos mostra em que medida o mimetismo é o complemento indispensável da diferenciação: para diferenciar os produtos, é melhor apresentá-los a princípio como semelhantes sob toda uma série de relações (POINTET, 1997). Ora, o uso combinado do mimetismo e da diferenciação nos ensina que o cálculo econômico do consumidor, longe de ser pura fantasia de economista, é, pelo contrário, cuidadosamente arranjado pelos atores da oferta. Com efeito, estes últimos se empenham energicamente para tornar possíveis cálculos “de mais a mais, todas as coisas são iguais”, dotando seus produtos de todos os atributos de seus concorrentes (odor, cor, composição...) para melhor ressaltar “a” diferença que eles intentam privilegiar: um nome de marca, no caso do pastis, características técnicas, no caso de um automóvel, etc. ANTROPOLÍTICA

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U M G AULOISE ? D O

APEGO AO INTERESSE

Sem dúvida, o exemplo que utilizei até aqui é elementar; a embalagem aciona muito mais que o mimetismo pela aparência e a diferenciação pela marca; ela mobiliza muitos outros modos de percepção, além da dinâmica clássica dos encadeamentos. Para avançar em nossa investigação da economia da embalagem, proponho, então, mudar de produto, dar uma baforada após ter bebido um trago, em suma, passar do Ricard a seu companheiro indispensável: o maço de Gauloises.5

C OMO

A CRÍTICA DISSIPA A CORTINA DE FUMAÇA

DAS ESTRATÉGIAS DE APEGO COMERCIAL

O que pensar e o que dizer de um maço de Gauloises? Qual é a contribuição de tal artefato à cognição do consumidor? Para um conhecedor, Gauloises é um codinome, que mascara o nome da sociedade que fabrica e distribui os cigarros: a SEITA antigamente, ALTADIS hoje em dia (um nome que se encontra certamente sobre a embalagem, mas em ANTROPOLÍTICA

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letras miúdas). Esta defasagem entre o nome de marca e o do fabricante me incita à suspeição. De um lado, interrogo-me sobre o sentido da própria palavra galoises, que estabelece uma ligação duvidosa entre os cigarros e a maneira ancestral de designar os franceses (uma impressão de identificação nacional que é confirmada pela inscrição das palavras “liberdade, sempre”, que retoma, sobre um dos lados do maço, um dos três termos da divisa nacional: “liberdade, igualdade, fraternidade”). De outro lado, a minha desconfiança aumenta na medida em que minha primeira impressão se encontra confirmada pelo emprego de um símbolo, o “capacete” gaulês, e muitas outras conotações. O gaulês e seu capacete lembram-me, inevitavelmente, o herói de história em quadrinhos Asterix, cuja imagem se assemelha espantosamente à logomarca de meu maço de cigarros, inclusive cores e grafismos! Encorajado por tal excesso de significações simbólicas, prossigo nesse sentido, interessando-me, desta vez, pelo jogo sobre o gênero: enquanto o capacete representa um guerreiro másculo e viril, que é para o fumante francês manifestadamente o mesmo que o caubói da Marlboro é para seu homólogo americano, o feminino das cigarettes “gaulesas”6 introduz, sem qualquer dúvida, uma significação erótica, ainda mais evidente aqui na medida em que é preciso abrir o maço para tocar o produto – despir as “blondes” [louras] para tocá-las/senti-las melhor. Meu guerreiro másculo deve sentir um desejo ainda mais forte, já que as Gauloises são consideradas “légères” – um perfeito adjetivo ambivalente.7 Melhor: uma mulher frívola não é uma allumeuse [mulher provocante, sedutora], como a allumette [o fósforo], o complemento indispensável do cigarro? Mas é claro! Já faz bastante tempo que os fabricantes de cigarros e de fósforos – que, aliás, são freqüentemente os mesmos – especulam com as palavras e as imagens, forçam a analogia entre a allumette e a allumeuse, tiram proveito do simbolismo sexual como o demonstram estas três caixas de fósforo antigas:

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Em suma, assim que tomamos as embalagens por seu lado simbólico não podemos mais parar, encontramo-nos presos na excitante vertigem do desvelamento crítico, passamos da imagem ao símbolo, da conotação à manipulação, reencontramos os ensinamentos de todos aqueles que nos instruíram, de Ernest Dictcher (1960) a Naomi Klein (2001), passando por Sidney Levy (1959), Herbert Marcuse (1964) ou Jean Baudrillard (1970), de que os produtos são comprados não pelo que são, mas pelo que significam; logo somos persuadidos de que os atores do mercado nos influenciam, de que os simulacros nos alienam, de que a cortina de fumaça publicitária nos nega todo discernimento, nos faz tomar as logomarcas pelos produtos, a ponto de nos convencer de que um veneno mortal é um vetor de fantasias e prazer! Evidentemente, a atração exercida pela embalagem emprega uma dupla estratégia de apego: apego coletivo, em termos de identificação nacional; apego individual, em termos de relação erótica.8

C OMO

A CRÍTICA CORRE A CORTINA SOBRE

A PERCEPÇÃO DAS INFORMAÇÕES COMERCIAIS

No entanto, se, por certo, é preciso desconfiar das miragens publicitárias, não seria também preciso se abster de ceder um pouco rápido demais aos alarmes da crítica? Uma cortina de fumaça poderia bem esconder outra. Desde que se tomam as embalagens por seu lado simbólico, tudo é esclarecido, dizíamos. Mas, por nos esclarecer tanto, a crítica nos cega; por nos mostrar tanto o lado simbólico das coisas, ela acaba por ocultar o outro lado. Qual é o outro lado? Este se refere a tudo aquilo que a crítica não vê, todas as outras menções feitas na embalagem que ela esquece de registrar, de tanto se concentrar na dimensão simbólica e manipuladora dos produtos. Para levar em conta essa outra face das embalagens basta, portanto, proceder por simples subtração, adotar a regra de método que consiste em inventariar sistematicamente tudo aquilo que a crítica não inventaria. Ao fim de tal operação, obtém-se, sem esforço, a dupla lista do que a crítica considera e do que ela negligencia:

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Ao fim de tal inventário, descobre-se um surpreendente paradoxo: há aproximadamente duas vezes mais coisas na coluna daquilo que a crítica não vê ou se recusa a ver que na coluna daquilo que ela vê e quer, exclusivamente, nos fazer ver! Se considerarmos agora não apenas os números – 13 contra 6 – mas também a natureza desses elementos, descobre-se uma oposição igualmente impressionante. À dimensão simbólica, que supostamente nos afasta da materialidade dos produtos, opõe-se a dimensão informativa, que, pelo contrário, designa, com algumas poucas exceções, os atributos substanciais do mesmo: a menção “20 cigarros filtro” nos indica muito precisamente o que o maço contém; as rubricas “Tabaco”, “Papel de cigarros”, “Agentes de sabor e de textura”, “Nicotina” e “Alcatrão” nos detalham de modo exaustivo a composição dos cigarros; as advertências “Prejudica gravemente a saúde” e “Fumar provoca câncer” nos assinalam seus efeitos a longo prazo as inscrições “Altadis”, “Fabricado na França”; e “Venda na França” nos especificam seu nome, origem e destinação. Conseqüentemente, as certezas que eu expressava acima vacilam, tudo se inverte: ao levar em conta o conteúdo dos maços – a caixa contém cigarros e somente cigarros –, percebo que os adjetivos “blondes” e “légères” remetem talvez mais a um tipo de tabaco que a uma cor de ANTROPOLÍTICA

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cabelo, eles designam mais um modo de fabricação que costumes levianos. Finalmente, chego a me perguntar se a crítica não é mais fumante que meus cigarros, se não me enganei de coluna, ou se, pelo menos, não deveria ter feito certas informações figurar duas vezes, à esquerda do lado dos símbolos, à direita do lado das informações. Se, há pouco, me referia a imagens polissêmicas que apostam na possível manipulação do consumidor via suas pulsões inconscientes, estou, de agora em diante, em presença de referências muito factuais e monossêmicas desse mesmo produto, que, pelo contrário, apostam na informação do consumidor e em suas capacidades de cálculo: graças ao que leio, sei o que compro, em que quantidade, com quais efeitos; estou equipado para exercer minha racionalidade, minhas preferências, e para fazer uma escolha entre os produtos concorrentes. O dispositivo de sedução transforma-se em dispositivo de cálculo, a atração-apego tem como concorrente uma atração que especula com o interesse (no caso específico, trata-se de um interesse negativo, que visa a afastar o consumidor do produto). A embalagem dos maços de cigarros mescla, portanto, três modos de atração: combina encadeamento, apego e interesse; oscila entre o objeto e a marca, o gosto e as referências simbólicas, a composição do produto e temas de saúde pública.9 Este último tema é particularmente interessante, na medida em que parece concentrar questões políticas no próprio produto. Daí a questão: onde se situa atualmente a fronteira entre o mercado e a política? Se a política invade o espaço do mercado, o próprio mercado não ganharia a esfera política? Qual seria o papel da embalagem em tal confusão de fronteiras? Com que conseqüências? No meu bar, os efeitos do álcool e do tabaco se conjugam para esquentar os espíritos, a discussão sobre os méritos e os supostos perigos dos produtos toma outro rumo, em direção a um debate político em que o problema da escolha de um presidente para a França acaba por substituir o do pastis ou dos cigarros, em última análise, bem mais inofensivos.

UM

PRESIDENTE ?

EM

DIREÇÃO AO ENGAJAMENTO DO

CONSUMIDOR - CIDADÃO

Mercantilização da política Até aqui, insisti bastante sobre o papel da embalagem, sobre a maneira pela qual esse invólucro aparentemente inofensivo consegue de fato ANTROPOLÍTICA

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transformar muito profundamente tanto a cognição do consumidor quanto as estratégias da oferta. Mas o modo de ação particular da embalagem também não demarcaria seu limite? Extremamente poderosa em relação a tudo o que ela pode cobrir, a embalagem não perderia todo o seu poder diante daquilo que lhe resiste – tudo o que se recusa a ser colocado em uma caixa? A embalagem demarcaria, então, a fronteira entre o mercado e o não mercado, ela traçaria o limite entre o espaço da troca comercial e outras esferas mais humanas, mais sagradas, mais culturais, que a antropologia econômica tem prazer em identificar e em estudar (TROMPETTE; BOISSIN, 2000; ROUSTAN, 2002). Para responder a estas questões, para testar os limites da economia da embalagem e a resistência do mundo à sua extensão, tomarei o exemplo da política, visto que no meu bar é este o tema que vem naturalmente após o uso do álcool e do tabaco.

Partamos da capa de uma célebre publicação consumerista10 que saiu dias antes da eleição presidencial. Evidentemente, basta essa capa para fazer ir pelos ares minha hipótese de que a política não seria absorvida pelo mercado e suas embalagens. Nela, vêem-se duas figurinhas, uma com os traços do antigo presidente Jacques Chirac, a outra com a cara ANTROPOLÍTICA

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do ex-primeiro-ministro Lionel Jospin. Ora, estas figurinhas estão devidamente embaladas, como qualquer boneca Barbie; além do mais, as caixas seguem estritamente as normas da embalagem, não lhes falta nada: nem as cores e os logotipos de suas respectivas marcas – desculpem-me, de seus partidos! –, nem o rótulo de embalagem ecológica, nem o código de barra, nem um certificado de conformidade com as normas européias, nem mesmo um pictograma indicando que esses brinquedos não convêm a menores de 18 anos! Graças à embalagem, cada boneco é vestido de acordo com um slogan, “Inaction man” para Chirac, “Moralisator” para Jospin, e cada um traz uma menção “flash”, destinada a sublinhar suas respectivas vantagens: as fotos comprovam, Chirac-Inaction-man é “garantido: 3.000 apertos de mão por hora!”; Jospin-Moralisator é a “Novidade 2002: sorriso incluído!”. O jornal apresenta, portanto, a perfeita cena política do asno de Buridan, reforçada pelo nome da publicação, Quem escolher, e confirmada pelo próprio título do teste comparativo: “Presidencial. Programas defeituosos, vícios ocultos, ausência de garantia: uma partida realmente empatada!”. Mas, de repente, detenho-me em um pequeno detalhe e franzo a testa. Eu quase confundi um “em” com um “e”, embaralhei a cópia e o original,11 tomei um Quem escolher paródico pelo muito sério [O] Que escolher! Por uma pequena consoante, o sacrilégio estava quase consumado: uma das duas maiores publicações francesas sobre consumo havia ousado embalar a política – no sentido literal e no figurado!12 –, o jornal tinha ousado submeter os candidatos ao banco de testes, como objetos vulgares de consumo corrente (MALLARD, 2000). Finalmente, a faixa superior da publicação caricata me tranqüiliza: “Mais um plágio vulgar assinado por Jalons”. Estou diante de um pastiche, de uma falsificação cheia de ironia, cujo humor e impertinência reforçam finalmente a autonomia do político: se nós sorrimos, é porque a situação nos parece incongruente, porque consideramos que políticos não são escolhidos como brinquedos, que as pessoas (“Quem”) não poderiam receber o tratamento reservado aos objetos (“Que”); em suma, que política e mercado são dois universos radicalmente distintos. Todavia, antes de chegar a uma conclusão definitiva sobre a singularidade radical e tranqüilizante da política e do mercado, tenho de verificar se o verdadeiro jornal [O] Que escolher não teria cometido o mesmo crime, se um dos principais órgãos de imprensa do consumerismo nacional não teria cedido à tentação de confundir o voto e a compra, de passar os candidatos pelo crivo, como se testam os aparelhos eletrodomésticos. E aí, surpresa! Eu me deparo com o asno de Buridan número ANTROPOLÍTICA

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dois, descubro que o jornal [O] Que escolher fez – mais discretamente, porém também mais seriamente – aquilo que seu clone Quem escolher só ousava fazer com alarde e humor:

Dito isso, o verdadeiro jornal [O] Que escolher não dramatiza seu banco de testes. Ele adota um procedimento mais prudente pelo menos sobre quatro pontos: primeiro, a caixa de bonecas é substituída pela caixa eleitoral (a urna); em seguida, o teste proposto na capa é bem mais prudente: o duelo entre Chirac e Jospin é estendido aos 17 candidatos (então)13 no páreo; além disso, o jornal se contenta em examinar os candidatos apenas nas questões que lhe interessam, nas quais se julga competente. Essa restrição é perceptível nas menções inscritas nas cédulas eleitorais – “chèques payants” [“cheques tarifados”], “OGM” [“transgênicos”] – e confirmada pelo exame das páginas interiores: [O] Que escolher procede, de fato, a um teste comparativo, mas apenas nas questões susceptíveis de interessar os consumidores e seus representantes (alimentação, dinheiro, consumo, ambiente, justiça, saúde, serviços públicos). Enfim, os políticos não são “testados” sem consentimento, mas segundo as respostas que eles mesmos forneceram a um questionário enviado pela redação do jornal ([O] Que escolher concede, assim, para esta categoria particular de produto, a possibilidade de um ANTROPOLÍTICA

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autoteste!). Portanto, e a priori, o procedimento de [O] Que escolher se quer muito discreto, benevolente, depreciativo e limitado, como se os políticos não pudessem ser impunemente tomados como produtos ordinários, como se a avaliação consumerista dos candidatos impusesse considerações particulares, ou ainda como se o mercado e a política não estivessem completamente imiscuídos um no outro. Em suma, um exame minucioso da prática de [O] Que escolher mostraria que a mercantilização da política não vai tão longe quanto a capa da mesma publicação inclinava-se a julgá-la.14

No entanto, duas questões importantes subsistem. A primeira é a que o jornal [O] Que escolher levanta ao interpelar os candidatos sobre temas de consumo que eles negligenciam. Essa questão assinala, por antífrase, a embalagem implícita, operada por todo discurso político-mediático. Com efeito, do mesmo modo que cada embalagem propõe ao consumidor uma série limitada de critérios de avaliação que exclui outras dimensões possíveis, o discurso político seleciona arbitrariamente as dimensões do debate e, às vezes, deixa na sombra questões igualmente cruciais. Por exemplo, se a eleição presidencial de 2002 chamou amplamente a atenção dos eleitores para as questões de segurança, ela ocultou completamente os temas de consumo, ANTROPOLÍTICA

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assim como a construção européia e a política exterior. A intrusão inesperada de [O] Que escolher nos faz assim descobrir, de um lado, a expansão considerável da economia da embalagem, que assume com freqüência formas imateriais, e, de outro lado, a importância do jogo que preside, acima das escolhas econômicas ou políticas, a seleção dos critérios segundo os quais nós formamos nossas preferências e nossas escolhas. Enfim, a segunda questão é a levantada, até a caricatura, pelo confronto paródico entre Chirac-Inaction-man e Jospin-Moralisator. Essa dramatização da escolha não faz nada além de retomar a antecipação das sondagens e dos comentários, que projetavam, todos, um duelo entre estes dois candidatos no segundo turno da eleição, ao mesmo tempo que nos apresentavam tal duelo como uma escolha entre o mesmo e o mesmo. Assim, percebe-se que acima do enquadramento dos critérios de escolha operado pelas embalagens intervém um enquadramento ainda menos perceptível, que consiste em arranjar as cenas de escolha, as alternativas; em privilegiar certos produtos entre outros possíveis. Mas a história da eleição presidencial também nos ensina que as operações de enquadramento excessivo podem produzir transbordamentos (CALLON, 1998b), ela nos mostra que os consumidores-eleitores podem-se mostrar recalcitrantes (LATOUR, 1997), com risco de reações adversas: convencidos de que o primeiro turno estava decidido, persuadidos pela retórica buridanesca e suicida das mídias – mas também dos próprios candidatos! – de que o segundo turno oporia dois candidatos similares, os eleitores aproveitaram para fazer valer pequenas diferenças... pequenas diferenças cuja acumulação acabou produzindo um resultado ridículo para o presidente deposto, a eliminação de seu primeiro-ministro e a promoção surpresa do abominável Le Pen. O olhar deslocado do consumerismo e os caprichos trágicos dos eleitores nos fazem, assim, descobrir toda a importância da embalagem clandestina das escolhas políticas: a democracia põe em jogo não apenas a contagem dos votos a favor de uma determinada oferta política, mas também a construção das preferências e possíveis escolhas. Mas o que vale para a política decerto também vale para o mercado. A atração do público e o arranjo de suas escolhas, sejam elas políticas ou mercantis, são um assunto político por, pelo menos, duas razões: de um lado, a importância do enquadramento das cenas e dos critérios de escolha estabelece uma relação conflituosa entre representantes da oferta e da demanda, e esta relação conflituosa merece ser reconhecida e analisada; de outro lado, o possível uso das embalagens, como um espaço para o debate público, as torna acessíveis a inúmeras formas de expresANTROPOLÍTICA

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são, inclusive as políticas. Estas duas razões fazem, então, da embalagem um vetor privilegiado de politização do mercado.

P OLITIZAÇÃO

DO MERCADO

Falar de politização do mercado pode surpreender, na medida em que o mercado e a política nos parecem a priori estranhos um ao outro. Sabe-se, desde Adam Smith, que o mercado se constrói como uma alternativa à política, como um meio de obter a ordem social fazendo a economia da autoridade pública, graças à combinação virtuosa dos interesses privados e à orientação de cada um em direção às coisas (HIRSCHMAN, 1980). Sabe-se, desde Polanyi, que o mercado smithiano foi instituído e depois regulado politicamente: a utopia liberal só pôde se inscrever nos fatos a partir do momento em que ela se tornou um verdadeiro projeto político sustentado pelas autoridades públicas; em seguida, a economia de mercado só pôde se manter com o suporte de instituições públicas destinadas a controlar e garantir seu funcionamento (POLANYI, 1983). Ora, no rastro ou à margem dessas duas evoluções, uma nova constatação emerge: paulatinamente, os atores do mundo econômico inscrevem as questões políticas no próprio mercado. Mas como se opera a politização do mercado? A inscrição de advertências obrigatórias sobre os cigarros nos deu as indicações necessárias, na medida em que essas advertências efetuam uma transferência das questões públicas para o próprio corpo dos produtos. Porém, este primeiro tipo de transferência permanece parcial, pois as questões públicas são mais “sobrepostas ao produto” do que “confundidas” com sua materialidade. Decerto, com as advertências obrigatórias, o Direito se faz mais presente na troca, ele deixa a esfera abstrata da pura regulação para reencontrar o próprio produto. Mas se o Direito não está mais “em torno” do mercado, ele permanece “em torno” do produto, à maneira de uma faixa claramente discernível, como as advertências do tipo “De acordo com a lei no 9.132 é prejudicial à saúde”. Para compreender como se opera a inscrição definitiva da política no mercado, é melhor, paradoxalmente, mudar de produto, nos voltarmos para mercadorias, a priori, menos carregadas de questões políticas que os cigarros ou o álcool. Tomemos, então, seu companheiro de estrada, o café: para quem bebeu, fumou e falou demais, o que seria de fato melhor para voltar a si e ver de forma mais clara que uma pequena xícara de café? O único problema é que, como sempre, antes de beber, é preciso escolher a bebida, e eis que o asno em nós adormecido reaparece, eis ANTROPOLÍTICA

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que a escolha dos pacotes precede e condiciona mais uma vez o ato de beber:

Estamos diante de dois pacotes como sempre estranhamente similares. Dos dois lados, temos o mesmo tipo de café (“100% arábica”, duplicado pelo mesmo “código-cor”, o mesmo matiz castanho-escuro destinado a essa variedade), as mesmas sonoridades exótico-latinas (“Gringo”, “Kalinda”) e as proveniências distantes (“América Latina e África”, “Haiti”). Porém, como sempre, o mimetismo está aí para tornar bem mais salientes os signos de diferenciação. Enquanto um pacote aposta tudo na imagem e recorre à sedução (apego), o outro utiliza mais o verbo e recorre à reflexão (interesse). O café da esquerda põe o foco nos grãos de café gigantescos, tendo uma geografia exótica como pano de fundo... grãos de café que remetem astuciosamente ao próprio nome da marca, da qual eles são o logotipo (o grão de café desenha o círculo da letra “Q” em “JACQUES VABRE”). O pacote da direita, pelo contrário, se contenta com expressões impressas (de uma forma que sugere uma tipografia artesanal) que visam a qualificar de uma só vez o café (“Fino e aromático”) e seu modo de produção: “torrefação tradicional artesanal”. Aqui, o produto e sua produção são indissociáveis, como tentam dar a entender tanto o único elemento gráfico aqui presente – o ANTROPOLÍTICA

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desenho de um camponês bigodudo com uma saca de café nas costas – quanto a inscrição de um slogan binário “um grande café, uma grande causa”.15 Estabelecer um paralelo entre um “café” e uma “causa” é propor que se estabeleça uma relação entre um prazer pessoal (e material) e uma questão coletiva (e moral). A chave dessa relação é dada no verso do pacote, em que lemos a seguinte explicação: O que é a garantia Max Havelaar? A certeza de beber um café de alta qualidade, que recebeu todos os cuidados desde o cultivo até a torrefação. A certeza de permitir que os pequenos produtores de café vivam dignamente de seu trabalho. De fato, o café que você irá consumir foi comprado diretamente de pequenos produtores a preços superiores às cotações mundiais, após um financiamento parcial de suas colheitas. Ao comprar esse café: • Você permite a manutenção de um alto nível de qualidade do café. • Você contribui para trocas comerciais mais eqüitativas entre o Norte e o Sul. • Você favorece a melhoria das condições de vida das famílias de pequenos produtores do Sul.

Max Havelaar é, além do mais, apresentada não como uma marca, mas como uma associação16 que “controla o respeito a essas condições”. Até este momento, tínhamos descoberto a ação da marca ou do Estado, do mercado ou da política. Agora, eis-nos diante de uma outra lógica, que se fundamenta em um mecanismo e em uma instituição. O mecanismo propõe uma combinação particular de mercado e política, de exigências ao mesmo tempo materiais (“um café de alta qualidade”, “a manutenção de um alto nível de qualidade do café”) e sociais (“permitir que os pequenos produtores de café vivam dignamente de seu trabalho”, “contribui[r] para trocas comerciais mais eqüitativas entre o Norte e o Sul”, “favorece[r] a melhoria das condições de vida das famílias de pequenos produtores do Sul”). Trata-se, aqui, de relacionar as escolhas com uma preferência nova, a preferência pelo “comércio eqüitativo”, que designa o conteúdo ético e político dos produtos. A instituição é a associação “Max Havelaar”, que milita a favor da defesa de um ANTROPOLÍTICA

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comércio internacional mais justo e que vem trazer sua “garantia”, assegurar as condições da troca, instaurar uma certificação de “terceira parte” (MINVIELLE, 2001). Para legitimar a politização dos produtos, para relacionar as preferências dos consumidores com o futuro dos produtores, Max Havelaar navega, portanto, entre duas lógicas: a das marcas, sempre suspeitas de agir e falar na qualidade de “juiz e uma das partes”, e a da regulamentação ou dos rótulos oficiais, estabelecidos sobre bases bem mais largas e transparentes. Para além de uma atração fundada no emprego de mecanismos de encadeamento ou de apego (Altadis, Jacques Vabre), descobrimos aqui uma atração que tenta ativar o modo do engajamento, da expressão de valores cidadãos, sociais e humanitários. Quanto ao quarto modo de ação/atração – o interesse (interesse negativo com as advertências sanitárias nos maços de cigarros; interesse positivo com o apelo à razão em Max Havelaar) –, ele aparece aqui como uma estratégia intermediária; o apelo à razão, à reflexão, à argumentação aparece aqui como um meio de romper um eventual apego prévio para dar acesso ao engajamento a favor do/através do produto portador de valores políticos. Assim, o pacote de Max Havelaar nos faz compreender a importância potencial dessa politização “mercantil” dos produtos, atualmente conduzida por um número considerável de atores e instituições: as ações de boicote destinadas a recompensar as empresas virtuosas (FRIEDMAN, 1999), a “clean clothes campaing”17 (MICHÈLE LALANNE, 2003), os códigos voluntários de conduta (DAUGAREILH, 2002), o referencial SA 800 de certificação social (COCHOY, 2003), os fundos de investimento éticos (GIAMPORCARO, 2002), os promotores da responsabilidade social da empresa (SALMON, 1999). Esses procedimentos possuem quatro pontos em comum. Primeiro, todos se engajam em uma ação de politização voluntária e substancial dos produtos, que não poderia ser confundida nem com a antiga forma de inscrever a política no mercado, a partir do exterior e pela força, nem com velhas estratégias como o “cause-related marketing”, que propõe, por exemplo, dar uma esmola a uma obra de caridade para cada Big Mac vendido (VARADARAJAN; MENON, 1988). Com a politização dos produtos, não se trata nem de fazer política por trás das coisas nem de fazer marketing por trás das causas, mas de vender o conteúdo político dos produtos. O segundo ponto deriva do primeiro e liga estreitamente a politização dos produtos à progressão de uma economia da (ou das) qualidade(s) (KARPIK, 1989; CALLON; MÉADEL; ANTROPOLÍTICA

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RABEHARISOA, 2000): a apreciação das qualidades substanciais ou utilitárias dos bens e serviços é aqui completada pela consideração de suas qualidades éticas e sociais. O terceiro ponto em comum das ações de politização do mercado consiste em inverter o fetichismo das mercadorias: enquanto Marx denunciava que os bens mercantis, como tantos ídolos, mascaram o escândalo das relações de produção de que, no entanto, eram o produto, a venda de produtos se apóia na própria ruptura do fetiche, e a relação de produção se encontra, por sua vez, fetichizada e serve de argumento comercial (COCHOY, 2002b). O quarto ponto em comum desse conjunto de procedimentos consiste, conseqüentemente, em fazer do mercado o único meio que permite lutar contra seus próprios abusos e substituir a crítica política da globalização: na ausência de instituições jurídicas internacionais eficazes, apenas a promoção de uma concorrência fundada nas preferências éticas e políticas parece suscetível de sustentar e preservar os valores humanos e cidadãos.

O

QUE AS EMBALAGENS NOS OBRIGAM A FAZER

E COMO ELAS O FAZEM

Definitivamente, de garrafas a maços de cigarros, de bonecos políticos ao pacote de café eqüitativo, percebemos a que ponto a intermediação do atraidor-embalagem instrumenta e transforma nossas escolhas: as embalagens nos ensinam a perceber os produtos de outra forma, elas nos enganam e nos informam, nos arrastam para a sedução dos símbolos, mas também nos revelam as propriedades escondidas dos produtos, nos prendem aos prazeres egoístas e materiais do consumo, mas também nos revelam a face política e cidadã das coisas. A atração da embalagem, no final das contas, mescla quatro dimensões: uma dimensão sociológica, que se fundamenta na ativação dos habitus, das trajetórias individuais e de seu encadeamento; uma dimensão afetiva, que aposta na sedução, no afeto e no apego; uma dimensão lógica, que recorre às capacidades de reflexão, de cálculo e de interesse; e uma dimensão axiológica, que se orienta em direção aos valores, o senso coletivo, o engajamento do consumidor.18 Estas quatro dimensões, que descobrimos em ordem dispersa no decorrer de nossa investigação da economia da embalagem, podem de fato ser reagrupadas e ordenadas segundo duas dimensões. A primeira dimensão opõe o tempo longo da reflexão consciente ao tempo curto da resposta imediata ou impulsiva. A segunda dimensão opõe comportamentos voltados para si a comportamentos orientados para o exterior (para as coisas e/ou para os outros). Ao cruANTROPOLÍTICA

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zar estas duas dimensões, conseguimos situar em um mesmo espaço cognitivo e estratégico as quatro lógicas de atração:

Encontramos, então, distribuídos sobre a superfície das embalagens, esses diferentes modos de ação que julgávamos reservados às pessoas: o cálculo dos economistas e a rotina dos sociólogos, mas também o afeto e a política caros aos atores de campo.19 Cada uma das dimensões distribuídas sobre a embalagem tenta ativar um motor particular da ação, retirar o consumidor da rotina para fazê-lo passar ao cálculo (interesse/informação), pôr fim ao cálculo para provocar um engajamento cidadão (engajamento/convicção), transformar uma compra refletida em compra familiar (encadeamento/fidelização), romper um hábito em troca de um novo prazer (apego/sedução) etc. Às vezes, um desses modos domina (Ricard); outras vezes, eles estão (quase) todos presentes e disputam a atenção do consumidor (o caso dos cigarros). Às vezes, eles são articulados ou combinados; outras, um serve de passarela para favorecer o deslocamento entre dois outros (Cf. o apelo ao interesse para romper o encadeamento às grandes marcas de café e, em seguida, baANTROPOLÍTICA

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lançar em direção ao engajamento militante do café eqüitativo). Desde então, onde se formam nossas preferências? Em cada um de nós ou na superfície das embalagens? Onde devemos procurar o modelo do consumidor? No consumidor ou nos objetos que lhe são oferecidos? Para responder a essas questões delicadas já não é preciso, como há pouco, permanecer nos bares reservados aos adultos para proteger as crianças, mas antes ouvir as crianças quando se preocupam com a saúde dos adultos, quando se inquietam com a tendência deles para falar demais, beber demais, fumar demais. Bruno Latour (2000) citava, assim, uma história em quadrinhos comovente, em que se vê um pai dizer à sua filha pequena que ele fuma, e a menina responde a seu pai que ela pensava que era ele que era fumado por seu cigarro. E Bruno Latour rejeita a alternativa entre o ativo e o passivo ao propor a seguinte solução: nós nem fumamos os cigarros nem somos por eles fumados – simplesmente, os cigarros nos “fazem fumar”. O que vale para os cigarros vale mais ainda para as embalagens que condicionam a escolha: nós nem escolhemos entre dois pacotes nem somos por eles escolhidos, simplesmente, as embalagens – e por trás delas os diferentes motores da atração – nos fazem escolher. Para Bruno Latour, a contribuição particular dos objetos na ação reside precisamente nesse “fazer fazer”, nessa capacidade que as coisas têm de levar as pessoas para além de si mesmas, sem, para tanto, lhes negar a iniciativa e o controle de suas ações. Considerando-se essa atração da embalagem que nos faz escolher, compreendemos a que ponto os modelos de atores são distribuídos e mudam na ação. Compreendemos também por que o consumidor escapa à identidade do asno de Buridan: graças aos estratagemas de atração concentrados no corpo das embalagens, sua hesitação só dura uma fração de segundo, o tempo de a oferta suspender sua lógica de ação, lhe propor outras referências à guisa de preferências, para, em seguida, ajudá-lo a fazer sua escolha, a escolher como (lhe) convém.

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ABSTRACT This article approaches the world of consumption through the sociology of packaging. In order to show the importance of such sociology in analyzing the consumer capturing devices and resources, simple, concretes and politically incorrect example are taken: alcohol, tobacco, coffee and politics. By these examples, the author intends to discern the package’s role in the establishement of market relationship and preferences formation, as well as examine the relations of mutual influence between packaging and politcs. As a result, the author hopes to show how the packaging mechanisms for consumer capturing are beyond the classical contrast between calculation and routine, often investing in a conbination of both. Keywords: packaging; consumer’s choice; commoditization of politcs; politization of markets.

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N OTAS 1

O vocábulo, em língua francesa, tem sua acepção restrita a técnicas de embalagem que cuidam da apresentação em uma perspectiva publicitária. [N. da T.]

2

Bebida alcoólica à base de anis. [N. da T.]

3

Os produtos escolhidos têm como marcas Ricard, Seita-Altadis, Jacques-Vabre/Max Havelaar. É divertido notar – mesmo que isso seja involuntário! – que cada um desses produtos possui uma ligação com a vida particular de um político (de direita): Charles Pasqua com o Ricard, Jacques Chirac com a Seita (via os cigarros Gitanes), Jean-Pierre Raffarin com Jacques Vabre. Agradeço a Isabelle Bazet por ter chamado minha atenção para a existência dessa outra ligação entre os produtos que me interessam e o universo político.

4

Um uso próximo desta mesma noção é encontrado em Jean-Claude Kaufman (1997, p. 201).

5

Esta ilustração representa um maço de cigarros comercializado em 2001, que está, portanto, em acordo com as normas em vigor nessa época. A aparência das embalagens dos cigarros Gauloises foi recentemente modificada para responder às exigências da nova diretriz européia que entrou em vigor em setembro de 2003.

6

Cigarette é uma palavra feminina em francês. [N. da T.]

7

O adjetivo léger, -ère tem ampla gama de sentidos; ao qualificar os cigarros, indica baixos teores (como light nos maços brasileiros), mas, ao qualificar pessoas, significa leviana, frívola, delicada, fraca. [N. da T.]

8

Utilizamos a noção de apego [attachement] em um sentido bem mais restrito do que os pesquisadores do CSI (CALLON; MÉADEL; RABEHARISOA, 2000; LATOUR, 2000). Enquanto estes não explicitam, ou explicitam pouco, a definição que dão à noção, que, para eles, parece poder designar todo tipo de laço, todas as relações que ligam [rattachent] uma pessoa a coisas, preferimos restringir o apego [attachement] à sua dimensão afetiva, conservando o sentido amigável, familiar ou amoroso de expressões populares como “ter laços” [“avoir des attaches”] “ser apegado” [“être attaché”] ou “ter uma ligação” [“avoir une liaison”] (nessa última expressão, a ligação designa de uma só vez o laço e o conteúdo afetivo desse laço). Veremos, na conclusão, quais são as razões (e talvez as vantagens) desta restrição.

9

Sem excluir outros modos de qualificação não encontrados aqui, mas que descobriremos mais tarde, tais como os certificados de qualidade e os códigos voluntários de conduta.

10

Embora ainda não dicionarizados em língua portuguesa, os vocábulos “consumerismo” e “consumerista” vêm sendo amplamente empregados. A Cartilha do Consumidor (OAB/RJ) registra ambos (o Código de Defesa do Consumidor é, inclusive, aí chamado de lei consumerista) e o primeiro consta do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, da Academia Brasileira de Letras (3. ed., de 1999). [N. da T.]

11

A confusão não tem nada de retórica: tendo visto o cartaz na vitrine de uma tabacaria, fui comprá-lo imediatamente, perguntando pelo número de “Que choisir” [“O que escolher”] sobre a eleição presidencial, muito decepcionado por não encontrá-lo e, em seguida, muito contente em descobrir, com a ajuda do vendedor, dois jornais onde eu só procurava um!

12

O sentido figurado da expressão francesa mettre en boîte (encaixotar) é “caçoar, zombar”. [N. da T.]

13

Alguns dias depois, Charles Pasqua foi “retirado de venda” por motivo de número insuficiente de assinaturas de eleitos, para retomar a expressão satírica de Quem escolher, mais bem informado que seu modelo!

14

Notemos, todavia, o pequeno problema colocado pela proximidade entre os “candidatos” e as “coifas de cozinha”, as “escovas de dentes elétricas” e as “ampolas de longa duração”: há aí uma espécie de zeugma incômodo, como uma contaminação que restabelece de um lado a mercantilização que se nega de outro.

15

Deixaremos de lado a questão dos preços. Jacques Vabre: 2,10 euros; Max Havelaar: 2,68 (27% mais caro, porém custo pequeno) (Preço Monoprix Toulouse em 06/06/2002).

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No original, association loi de 1901, lei francesa que regula as associações sem fins lucrativos.

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Não há uma tradução para o termo; a expressão refere-se a roupas que são feitas em tecidos politicamente corretos (que não implicam morte, tortura, extinção de espécies animais, por exemplo). [N. da T.]

18

Por trás desse quádruplo modo de captação, encontra-se cada uma das modalidades de atividade social identificadas por Max Weber: comportamento afetivo, no caso do apego; comportamento tradicional, no caso do encadeamento; comportamento racional relativo a fins, no caso do interesse; comportamento racional relativo a valores, no caso do engajamento. É reconfortante constatar a que ponto a observação dos atores e dos dispositivos ordinários nos leva a reconhecer a pertinência do conjunto desses modos de ação que diversos sucessores de Weber se obstinam em apresentar, durante várias décadas, como excludentes entre si.

19

Nossa dívida para com os pesquisadores do Centre de Sociologie de l’ Innovation é sem dúvida imensa, na medida em que são esses pesquisadores que por cerca de 20 anos têm problematizado sucessivamente as dinâmicas de interesse (CALLON, 1986), de apego (CALLON; MÉADEL; RABEHARISOA, 2000; LATOUR, 2000) e mesmo de engajamento das pessoas (CALLON, 1999), ainda que, pelo que sabemos, eles não tenham explicitado nem as razões que para eles fundam a passagem de uma terminologia a outra, nem o parentesco ou as relações que esses diferentes termos poderiam manter. Precisamente: a idéia de captação não pretende acrescentar nada, ela não visa a abarrotar o léxico com um conceito suplementar, senão sob a forma de um significante que permite reunir os significados disponíveis, senão como meio de refletir nos fundamentos e na possível articulação de diferentes modos de encaixe econômico das pessoas. Precisemos, enfim, que não pretendemos de modo algum fixar a lista dos registros cognitivos possíveis; mais importante que estabelecer sua descrição é perceber a circulação de motivações e de comportamentos que eles são susceptíveis de engendrar.

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ARTIGOS

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R A N Ç O I S

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A R É*

ANTROPOLOGIA E A S POLÍTICAS

DE DESENVOLVIMENTO : ALGUMA S ORIENTAÇÕES **

O artigo apresenta algumas reflexões sobre as possíveis contribuições da antropologia para a observação e a análise das políticas ditas de desenvolvimento e, mais geralmente, da ação econômica pública. Palavras-chave: antropologia; políticas de desenvolvimento; diversidade cultural; intervenção social.

*

Directeur de Recherche à l’Institut de Recherche pour le Développement (France).

**

Este texto retoma as grandes linhas de uma exposição no seminário da UMR, “Regards”, em fevereiro de 1995. Foi preliminarmente publicado em Terrain, 28, mars 1997, p. 139-152. Para esta edição, foi traduzido por Regina Vasconcellos.

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P OR

QUE A ANTROPOLOGIA ?

Antecipando o que virá a seguir, gostaria primeiramente de responder rapidamente a uma pergunta que certamente será feita: por que a antropologia teria de tratar desses assuntos? Existem várias respostas admissíveis, sendo que a primeira delas também pode assumir a forma interrogativa: “E por que a antropologia não o faria?”. A vocação da antropologia é o estudo de formas de organização específicas e de esquemas conceituais “determinados, mas que nunca são os únicos possíveis” (SAHLINS, 1980), aos quais estas formas de organização estão associadas. Seu campo não é, conseqüentemente, definido por objetos empíricos (ver, por exemplo, AHMED, SHORE, 1995; SAHLINS, 1980). Deste ponto de vista, a ação pública, por mais universal que possa parecer (e onde não haveria uma ação pública?), constitui um campo de estudo exemplar não apenas em si (no mínimo em razão das histórias e das “tradições” nacionais ligadas ao Estado), mas igualmente em razão dos agentes não menos específicos constituídos pelas situações de encontro entre instituições públicas e sociedades.1 Como observei em 1987, não somente é “possível” tratar da ação pública, da economia do desenvolvimento e do “desenvolvimento induzido” de maneira antropológica, como seria difícil fazê-lo de outra forma. Vêm acrescentar-se a esta primeira razão – e ela, de certo modo, faz parte do bom senso – outras razões mais pragmáticas. Para mim, a primeira delas se deve ao fato de que a antropologia – no aspecto da etnografia e da reconstituição da ação social através das categorias dos atores – tem uma capacidade descritiva que pode perfeitamente se aplicar ao objeto “políticas de desenvolvimento”. A segunda, logicamente ligada à primeira, é a de que na prática todos concordam em que não se conhece bem, de um ponto de vista estrutural e comparativo, o que acontece na instauração e na aplicação do incentivo público. Gostaria de citar aqui duas testemunhas importantes a fim de fundamentar esta constatação passível de suscitar muitos comentários. O interesse destes dois testemunhos reside no fato de que eles se comunicam, embora estejam separados por 30 anos de intervalo. Albert Hirschman, um dos inventores da economia do desenvolvimento, publicou nos anos 1960 um livro célebre, Development Projects Observed, cujo tema principal era a ausência de transparência nos sistemas de ação econômica que operam a mediação entre a reflexão macroeconômica, de um lado, e a realização de políticas ou de projetos, de outro. Cerca de 30 anos depois, um conselheiro sênior do Banco Mundial em social policy, Michael Cernea (1991), escreveu, no prefácio de um livro muito conhecido, ANTROPOLÍTICA

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publicado pelo próprio Banco Mundial, que “nenhuma teoria do desenvolvimento induzido [...] foi algum dia formulada apesar da multiplicação de toda sorte de intervenções públicas”. O que é possível apreender dos resultados das políticas de desenvolvimento procede evidentemente tanto desses processos de ação como das premissas intelectuais destas políticas. Entre as decisões ou orientações macroeconômicas e a instalação de políticas e projetos de incentivo existe todo um conjunto de mediações institucionais e humanas, e não há razão para que elas não tenham igualmente uma relação com o que se pode perceber em suas conseqüências. Apresentei diferentes exemplos deste fato em um pequeno texto intitulado “O incentivo ao desenvolvimento é bem humano” (CERNEA, 1991): o funcionamento das hierarquias burocráticas, o confronto de diferentes ethos nas políticas e projetos de incentivo, a definição e propagação do que devemos denominar – na falta de melhor – “modos” econômicos, o nível e as modalidades de remuneração dos especialistas e consultores, a competência lingüística dos funcionários do desenvolvimento, as modalidades de coerência entre as formas organizacionais de intervenção e os atores sociais locais etc. Em resumo, pode-se pensar que os fins dependem dos meios tanto no desenvolvimento como em outros campos. Nas palavras de Paul Veyne (1971), “se a teoria tem as mãos puras, não é por isso que ela deixa de ter mãos”. Decorre daí necessariamente a idéia de que é possível e útil contribuir para a discussão sobre a avaliação de projetos e políticas. Este aspecto finalizado do procedimento será retomado a seguir. O tema é necessariamente amplo visto que as políticas públicas de desenvolvimento constituem uma dimensão universal do pensamento econômico. Ele será ilustrado por diferentes exemplos concretos, extraídos de estudos precedentes.

O

PROBLEMA DA CONSTRUÇÃO DO OBJETO

A necessidade de construir o objeto de estudo se faz sentir logo que se evocam as expressões “política pública”, “política de desenvolvimento”, “projeto de desenvolvimento”. A realidade representada por uma expressão não salta aos olhos, a despeito do que pensam os sociólogos! Existe certamente uma definição que pode ser chamada de canônica: uma política de desenvolvimento seria uma extensão da política pública fora de seu campo de intervenção de origem, para citar a expressão do sociólogo J. P. Chauveau. Mas nem mesmo esta definição está destiANTROPOLÍTICA

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tuída de ambigüidade. Historicamente, a ação do Estado francês do século XIX em relação ao que denominamos campesinato – ou seja, a população dos “campos” franceses – se assemelha bastante às políticas de desenvolvimento. No início, as idéias de modernização e progresso, ou ainda de elevação do que se convencionou chamar de “nível de vida”, se situam no interior mesmo das nações. Ainda historicamente, é certo que a extensão de que fala Chauveau se manifesta com a expansão européia, mas há um retorno a um diálogo euro-europeu no quadro, por exemplo, de instituições como o FED (Fundo Europeu de Desenvolvimento), que intervém tanto na Europa como externamente – é a própria Europa que se desenvolve. Pode-se, pois, ter sérias dúvidas de que noções como “ação pública” ou “política de desenvolvimento” possam ser definidas, ainda que de maneira canônica, em termos puramente geopolíticos, mesmo porque uma definição incontestável de países em desenvolvimento não é fácil de formular. Permanecendo no domínio das definições de escola, uma política de desenvolvimento pode conter múltiplos aspectos. Analisei os aspectos denominados setoriais, como os problemas de incentivo para a criação de PME [Pequenas e Médias Empresas] mas não estudei verdadeiramente as políticas macroeconômicas que, stricto sensu, podem parecer verdadeiras políticas de desenvolvimento; o desenvolvimento econômico é uma noção estrutural e, portanto, macroeconômica.2 Durante muito tempo, porém, o Banco Mundial, que é um organismo com funções notoriamente macroeconômicas, fez uma distinção entre os projetos de desenvolvimento (que são “setoriais”, ou seja, que fazem parte de setores de atividade como a agricultura, a indústria etc.) e os programas (considerados “nacionais”). O objetivo do jogo era, de certa maneira, fazer com que financiamentos de projetos e de programas se cruzassem sem que houvesse grave colisão (ver, por exemplo, BRÉTAUDEAU, 1987). Embora esta taxonomia de base tenha sido posta em questão, ela pode ser encontrada implicitamente nas posteriores formas de organização do Banco. O mundo do desenvolvimento, o mundo das instituições de desenvolvimento tal como ele se expressa nos diferentes conceitos, nem sempre é traduzível de uma para outra dessas grandes línguas veiculares que são o francês e o inglês. A Caisse française de développement, por exemplo, tinha até recentemente linhas orçamentárias intituladas “incentivos extraprojeto”, uma noção dificilmente traduzível em anglo-americano, dado que procede da história bastante específica da “cooperação” entre a França e suas antigas colônias da África. Assim também a noção de ANTROPOLÍTICA

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“países do Sul”, que faz sentido para o mundo do desenvolvimento francês, é bastante idiomática. Essas especificidades, características de objetos culturais, são perceptíveis não somente na confrontação entre línguas e sistemas semânticos, mas também na arquitetura mesma das significações em uma dada língua. É o que acontece com noções como as de “políticas”, “público” e “Estado”, cujo estudo antropológico faz indissoluvelmente parte de uma espécie de filologia histórica (BENVENISTE, 1969). O que dizer da própria definição em economia do conceito de desenvolvimento? Fui levado a seguir de perto (BARÉ, 1987) a discussão conscienciosa realizada por Patrick Guillaumont a esse respeito em Economie du développement (1985), a partir de referências múltiplas. Pude concluir que o desenvolvimento, enquanto fenômeno, pode ser definido como “uma espécie de brinde Bonux3 que se pode encontrar por acaso em um pacote de crescimento econômico” (BARÉ, 1987). De fato, as noções “crescimento” e “desenvolvimento” formam juntas um tipo de táxon terminológico tão indissociável quanto “ateísmo” e “crença”. Isso não quer dizer que o aumento da renda per capita, a assistência médica, a escolarização, tudo o que a posteriori se considera como “indicadores” do desenvolvimento seja ficção. Significa, de fato, que o desenvolvimento não é uma realidade que existe independentemente dos procedimentos lingüísticos que servem para apreendê-la, e sim que se trata, ao contrário, de uma categoria lingüística que depende de procedimentos de definição. Estes, ao menos em ciências sociais, não são mais do que meios de relacionar, graças ao “uso culto” dos gramáticos, palavras com outras palavras (as da definição), e mesmo lexemas (ou categorias mínimas de sentido dificilmente traduzíveis) com outros lexemas. G. Lenclud (1995), que o demonstrou de modo admirável a propósito dos conceitos em antropologia, começando acertadamente pela dificuldade de “definir uma definição”, cita a apóstrofe do epistemólogo W. Quine: “Definição, define a ti mesma.” As próprias noções de desenvolvimento, de ação pública etc. veiculam bem as ambigüidades semânticas. De fato, alguns economistas duvidam que uma “economia do desenvolvimento” exista enquanto corpus autônomo da economia política exclusivamente; o próprio Hirschman escreveu um artigo intitulado “The rise and decline of development economics” (reproduzido em 1984), título que supõe a emergência e o desaparecimento de “paradigmas” no sentido de Kühn, ou seja, de sistemas de sentidos específicos. ANTROPOLÍTICA

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Já é possível deter-se aqui neste ponto bastante banal das indecisões do sentido. Os sistemas conceituais que servem de base para as políticas de desenvolvimento parecem ser constituídos muito mais pelo que se designa como categorias locais em antropologia, isto é, por maneiras específicas de denominar as coisas, do que por noções teóricas que presumidamente subsumem os contextos e as experiências particulares. Considere-se a noção econômica de intensidade no trabalho, à qual me dediquei em estudos anteriores. Trata-se de uma noção definida por uma taxa, a taxa de intensidade capitalística, que é a relação entre o capital fixo (ou seja, para resumir, as máquinas e as infra-estruturas) e o número de empregos. Quanto mais baixa a taxa, mais as empresas são consideradas como labor intensive. Não há dúvida de que se pode compreender intuitivamente que uma oficina tunisiana de conserto de pneus que emprega dez pessoas em seus dez metros quadrados é uma empresa intensa em trabalho; e que uma empresa de software onde apenas três programadores encarregados da criação trabalham em máquinas extremamente caras é uma empresa intensa em capital. O problema concerne ao que acontece exatamente entre os dois extremos, na fronteira entre intensidade em trabalho e intensidade em capital. A partir de que momento se passa de um ao outro? A resposta clássica é a seguinte: convém basear-se em uma taxa de intensidade capitalística média em um dado número de empresas e observar, em seguida, as que se encontram de um lado e de outro da média.4 Mas esta média é um critério arbitrário: o que acontece exatamente no limite da média pode ser considerado como intenso em capital ou como intenso em trabalho segundo o ponto de vista. Trata-se de uma operação intelectual análoga à que consiste em delimitar o que é azul em relação ao que é verde, ou em definir numa dada língua as espécies e as subespécies do taro.5 Em taitiano, por exemplo, distingue-se um taro branco de um taro preto ou de um taro vermelho; se o taro branco é branco, vão dizer que afinal ele é branco porque, para a maioria das pessoas, não é preto ou vermelho.6 Em outros termos, uma noção como a de intensidade em trabalho procede mais de um saber popular, de um saber taxonômico que de uma ciência propriamente dita. Acredito que seja este o caso de muitos conceitos que organizam o mundo do desenvolvimento e da ação pública. Dentro dos limites dos problemas de definição, pode-se mencionar o ramo da antropologia denominado antropologia cognitiva, a propósito da qual tenho dúvidas de que constitua um corpus de proposições autônomo. Cabe assinalar que não sou o único a pensar assim (BOYER, ANTROPOLÍTICA

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1991). Com efeito, é difícil imaginar o que poderia ser uma antropologia não cognitiva! De qualquer forma, penso que se é levado a admitir esta constatação quando do exercício de inversão de perspectiva, que consiste em questionar a que se assemelham as categorias da economia do desenvolvimento se traduzidas em uma língua que não seja capaz de comunicá-las. Assim, como traduzir certos conceitos de base da economia política, tais como “salário”, “renda”, “comércio externo”, em uma língua como o taitiano (BARÉ, 1992)? A resposta é que se, por um lado, esta operação é sempre possível tecnicamente falando (MOUNIN, 1963), é, todavia, preciso um ato de autoridade, que é aquele, inconsciente, do “uso”, para efetuar uma passagem para a linguagem corrente (“quando alguém disser prestação assimétrica do mês fechando um ciclo de troca, você deve compreender que isto significa ‘salário’ em francês”). Enfim, esta definição interlingüística, que é o outro nome da tradução, acarreta necessariamente mal-entendidos semânticos. Esse primeiro “desenvolvimento” leva a duas constatações: de um lado, as populações ou as pessoas, sem as quais as instituições públicas, a ação pública e as políticas de desenvolvimento não são pensáveis, compartilham maneiras de dizer e, pois, de pensar, especializadas e dificilmente definíveis; de outro lado, estas maneiras de dizer e de pensar são dificilmente traduzíveis. Pode-se dizer que este é um “campo” bem familiar aos antropólogos. Tudo isso pode parecer um pouco provocador, mas afirmo não ser esta a minha intenção. Não só tenho amigos que são economistas e aprendi muitas coisas interessantes trabalhando numa unidade de pesquisa predominantemente econômica, como não tenho qualquer projeto de agressão pérfida em relação à economia política. Constatar que a economia do desenvolvimento e o que constitui o seu braço armado – as políticas de desenvolvimento – têm sua origem mais nos saberes populares do que na ciência, não constitui, em absoluto, uma crítica elaborada por um antropólogo. Estou apenas expressando, em outras palavras, o que afirmam inteligências de larga audiência como Thomas Kühn que, numa recente entrevista para o jornal Le Monde, ao falar não das ciências sociais, mas das ciências experimentais, lembrou que, por um lado, a linguagem constitui a condição de possibilidade da ciência e que, por outro, “nem sempre existe uma lingua franca no interior da qual se possa comparar duas teorias dadas”.7 Afinal, é exatamente o que afirmo aqui ao dizer que o mundo do desenvolvimento é um universo conceitual ou “categorial” muito específico, o que traz conseqüências para as polí-

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ticas de desenvolvimento, quando consideradas como sistemas de ação humanos. Embora a sociologia (e não a antropologia, até recentemente)8 tenha consagrado uma literatura considerável às “organizações”, existem dificuldades de definição do mesmo tipo quando as políticas de desenvolvimento são vistas como sistemas de ação. Deve-se lembrar que, estritamente falando, ninguém jamais viu uma política de desenvolvimento ou então a “ação pública”. Uma política de desenvolvimento se define pelo que dizem as pessoas que a fazem: trata-se, portanto, de um conjunto de interações complexas entre lugares de reflexão ou de decisão macroeconômica, burocracias e administrações, grupos ou atores sociais. Seria possível descrever este conjunto em termos etnográficos, ou seja, recorrendo à conceitualização dos próprios atores e às palavras que utilizam na linguagem oral (sem deixar de utilizar igualmente a documentação disponível)? A resposta é: “Depende.” Há aqui uma constatação surpreendente, visto que este conjunto é considerado como um objeto concreto e maciço; ele apresenta, contudo, muitos problemas de descrição. Assinale-se que podem surgir problemas semelhantes no caso de objetos antropológicos, aparentemente dos mais clássicos, como a “linhagem”, que não é constituída por um conjunto de pessoas, e sim por um conjunto de relações entre pessoas, vivas e mortas. Se for o caso de um projeto setorial – que pode ser exemplificado através dos projetos de incentivo às pequenas empresas como aqueles em que trabalhei na Tunísia e no Pacífico Sul –, será possível, efetivamente, identificar a maior parte dos atores. Isso porque, no que diz respeito, por exemplo, aos empréstimos de incentivo, há uma determinada clientela passível de ser delimitada, através de dossiês de demanda de acessos, dossiês bancários etc. Entretanto, essas pessoas não dizem nem percebem a mesma coisa; há uma heterogeneidade considerável, que um trabalho de observação pode reduzir. Contudo, no final das contas, restam sempre resíduos heterogêneos que dizem respeito aos pontos mais centrais. Assim, para os próprios responsáveis administrativos, no caso de uma linha orçamentária de incentivo à criação de PME, a maior taxa de intensidade de capital aceita variava de 1 a 1,5. Entre os empresários, o conhecimento das taxas de juros praticadas e a circulação da informação quanto às condições de acesso eram extremamente variáveis. Conseqüentemente, as condições mesmas de criação de suas empresas também variavam muito, embora se tratasse de um quadro administrativo que supostamente deveria ser o mesmo para todos. ANTROPOLÍTICA

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Se, no sentido estrito, não quisermos nos contentar com a definição puramente orçamentária (e tautológica) de um projeto – ou seja, a concessão de créditos –, tal instrumento não comporta um início, um meio e um fim nem possui uma coerência bem delimitada. Ele é um conjunto de interações entre atores com objetivos e competências heterogêneas. O que a antropologia pode fazer, através da abordagem direta, é descrever estas interações bem como a sua relação com o que é possível apreender dos resultados. Mas a própria apreensão dos resultados também não constitui uma tarefa fácil por razões que se devem, grosso modo, às dificuldades mesmas da análise causal em história. De um lado, porque um projeto se inscreve em uma conjuntura macroeconômica geral que pode variar (e com ela as taxas de câmbio); de outro, porque o dinheiro é “fungível”. Em outras palavras, nada se parece mais com uma bicicleta comprada por um assalariado tunisiano de uma PME, criada por uma linha de crédito do Banco Mundial, do que uma bicicleta comprada pelo mesmo operário graças às economias de seu irmão que vive na França. Na verdade, a “simples” descrição de um projeto setorial é um objeto de pesquisa em si. Caso se tome o exemplo da reforma fundiária empreendida na ilha da Reunião9 (que estou atualmente estudando), a heterogeneidade dos pontos de vista e dos atores é considerável. De um lado, há a Safer Réunion, o Crédit agricole, as estruturas de enquadramento rural que, na medida do possível, se encontram ligadas por definições programáticas funcionais; e de outro, para os pequenos plantadores créoles, este conjunto é o “band’bougre gouvernment” (literalmente, “todos esses sujeitos da administração”). A multiplicidade das definições funcionais (enquadramento, promoção, gestão etc.) desaparece no contexto de outras percepções ligadas a outras significações. O diálogo se constitui freqüentemente de mal-entendidos fundamentais como, por exemplo, os que surgem em torno da concepção créole da liberdade. Para os beneficiários da reforma, isto é, para os novos proprietários que são submetidos a um controle do enquadramento rural durante dez anos, este controle traz uma espécie de decepção em relação à liberdade que acreditavam ter obtido. Como eles dizem: “tem sempre alguém mandando na gente”. Essa retórica da liberdade pode ir longe; assim, alguém me disse: “Se existisse liberdade, eu não seria proprietário” [Sy avait la liberté mi serais pas propriétaire]. No que concerne ao dispositivo administrativo, um dos objetivos centrais da reforma é tornar a “pequena agricultura” da ilha mais produtiva. É neste aspecto que se trata de um projeto ou de uma política de ANTROPOLÍTICA

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desenvolvimento, embora os pequenos plantadores não sejam propriamente agricultores no sentido das políticas setoriais. São pessoas que fazem agricultura, de certo modo como M. Jourdain10 fazia prosa. Aliás, uma terra agrícola ou uma exploração é, indissoluvelmente, um “trabalho” em créole. Para ver a confusão que noções como “setor agrícola” ou “desenvolvimento rural” podem suscitar quando aplicadas a este mundo, gostaria de citar o diálogo entre um beneficiário e um de seus amigos, que lhe dava como exemplo as manifestações camponesas diante das prefeituras11 da metrópole, em cujos pátios, dizia ele, se costuma despejar alcachofras. Comentário que provocou no outro o seguinte questionamento: “Mas e as prefeituras, o que elas fazem depois com as alcachofras?”. A reforma fundiária da Reunião não faz, portanto, parte de uma descrição realizada de um ponto de vista neutro por um observador situado fora do contexto. Trata-se de um conjunto de interações entre atores de culturas diferentes, se compreendermos aqui o que se pode chamar de cultura ou de culturas do desenvolvimento. Gostaria de insistir no fato de que minhas observações não estão, de modo algum, vinculadas à crítica que geralmente se faz com relação às políticas de desenvolvimento: a de que elas não levam em conta as especificidades locais e as culturas. Se me abstenho de formular esta crítica, não é porque ela me parece falsa, e sim porque, embora ela reflita atualmente uma posição que predomina nos organismos públicos anglo-saxões, se trata, a meu ver, de uma questão mal colocada. As políticas de desenvolvimento são por essência universalistas, já que se destinam a zonas da atividade social cuja existência pode ser universalmente estimada. É justamente por esta razão que os camponeses créoles da Reunião podem falar com um quadro administrativo que, paradoxalmente, tem objetivos inteiramente diversos. Mas as duas partes falam a respeito de um mesmo problema, que pode ser definido como “reivindicação à propriedade [da terra]”. O que é cultural nas culturas do desenvolvimento é, entre outras dimensões, a invenção mesma da universalidade. É o que assinala Anarthya Sen (1988), quando lembra que, apesar da variabilidade das culturas, existe um caráter objetivamente preferível e preferido de certas situações, como, por exemplo, o aumento da expectativa de vida e da renda, a segurança física, a segurança alimentar. Quando falo destas interações, estou falando daquilo por que é preciso passar para chegar a designar ou tratar, de um ponto de vista praxiológico, esta zona virtual do universal.

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Gostaria então de assinalar que problemas de descrição análogos se apresentam por vezes aos dirigentes econômicos. Cabe lembrar notadamente o primeiro relatório da comissão parlamentar de inquérito sobre o Crédit Lyonnais, consecutiva às consideráveis perdas descobertas no balanço do primeiro banco francês do setor público concorrencial, e presidida pelo próprio presidente da Assembléia Nacional. Este relatório pode ser citado, já que foi publicado pela Assembléia Nacional em 1994. A questão central é em suma: “O que aconteceu no Crédit Lyonnais?” Encontramos também neste relatório, impregnado, aliás, de uma espécie de sociologia selvagem (as “oligarquias” do Crédit lyonnais), a busca da qualificação de um evento econômico de grande importância através dos depoimentos de múltiplos atores cuja sinceridade, a despeito de seus pontos de vista diferirem completamente, não deve ser posta em dúvida. Em razão da qualidade intelectual das pessoas em causa – dirigentes do Banque de France, diretores do Tesouro, membros da comissão bancária, ministro das Finanças etc. –, pode-se constatar que as lacunas na descrição de um processo econômico-administrativo não estão diretamente ligadas à competência intelectual dos atores. Além disso, a despeito dos milhares de documentos consultados, a comissão de inquérito não dispensou o procedimento da audiência (tomo II), muito mais ilustrativo, por alusões sucessivas, que as densas análises do relatório propriamente dito (tomo I). Trata-se de uma leitura fascinante, que aconselho àqueles que tiverem coragem para nela mergulhar (SÉGUIN, 1994).

P OLÍTICAS ,

CONCEPÇÕES E EVENTOS MACROECONÔMICOS

No que diz respeito às políticas macroeconômicas (sempre incluindo o ponto de vista dos atores), vê-se que sua descrição se torna extraordinariamente complexa e quase impossível por abordagem direta. Por outro lado, com base apenas na abordagem direta dos responsáveis pelas políticas de desenvolvimento em diferentes níveis – deixando por enquanto de lado as dificuldades da abordagem e da pesquisa de campo –, esta descrição é perfeitamente possível e assume os aspectos de uma análise retrospectiva que faz parte, como já assinalei, de uma espécie de antropologia cognitiva. Ela fornece uma visão ampla da maneira como a causalidade macroeconômica é percebida e das razões pelas quais se esboçam itinerários causais diferentes.

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Surge freqüentemente, neste caso, o problema do raciocínio causal em economia, em razão da multiplicidade das variáveis. Mas existe igualmente a possibilidade de encontrar aí o que eu chamaria de “pontos cegos” da economia, percebidos como tais pelos próprios economistas, que demandam – ao que me parece – um olhar antropológico. Tomo um exemplo clássico franco-alemão que empresto de Alain Jessua (1982). Na França, as fases de crescimento são proporcionais a um déficit da balança comercial, ao passo que na Alemanha, a um excedente. Isso ocorre porque a França deve importar mais equipamentos para responder ao aumento da demanda interna, enquanto a Alemanha dispõe de uma indústria de equipamentos proporcionalmente mais importante. Qual a razão? Ninguém sabe (ver também KOLM, 1987). Cabe perguntar se não existiriam na Alemanha modalidades específicas de socialização e de formação que se projetariam na população ativa e, conseqüentemente, nos grandes componentes da atividade econômica. Na minha opinião, a resposta é afirmativa. É ainda possível a referência aos debates comparativos sobre o famoso controle das despesas com a saúde que, na Alemanha, é orientado pela ideologia “racional” da co-gestão, que também orienta a ação sindical. Um outro exemplo, agora concernente à Ásia continental e insular e ao extraordinário savoir-faire histórico ligado ao arroz, notadamente na China e na Tailândia. Apenas o ponto de vista evocado anteriormente permite compreender as modalidades de difusão e de integração das variedades de alto rendimento que tiveram um papel determinante na emergência de capacidades exportadoras. Tem-se aqui uma dessas acumulações históricas, de que fala Claude Lévi-Strauss em Raça e história. Pesquisas sobre as denominadas mediações necessárias da atividade econômica – como a formação, a socialização em vista da atividade profissional – e, portanto, da dimensão macroeconômica das coisas, fazem diretamente parte, nesse sentido, da descrição antropológica. Assim, os responsáveis pelo Bundesbank – que são pessoas com influência diretamente macroeconômica – foram recentemente qualificados pelo antigo primeiro-ministro francês Raymond Barre de “paroquianos”, em virtude de sua reticência em baixar as taxas básicas de juros. Trata-se aqui, igualmente, de uma alusão aos estilos observáveis entre os responsáveis por esta poderosa instituição, caracterizados pelas virtudes recomendadas pelo protestantismo alemão, ou seja, por modelos de comportamento específicos. Quando se fala de políticas de desenvolvimento e, portanto, de instituições de desenvolvimento, evocam-se, conseqüentemente, de certo modo, ANTROPOLÍTICA

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obras culturais, exatamente no sentido que lhes dá Roger Bastide em sua Antropologia aplicada. É este o primeiro ponto que gostaria de assinalar aqui: uma descrição antropológica de políticas de desenvolvimento baseia-se no que contam os atores que gravitam em torno da ação pública e que estão ligados no interior do que Victor Turner chamava de campo político. Trata-se de uma antropologia de modelos heterogêneos, para retomar a expressão de Olivier de Sardan que, todavia, mereceria ser especificada – se a heterogeneidade fosse radical, toda ação pública seria conseqüentemente impensável; a qualidade essencial desta expressão é o fato de ser imagística...

A ÇÃO

PÚBLICA E PERSPECTIVA DIACRÔNICA

Gostaria agora de chamar a atenção para o fato de que tentar descrever políticas ou projetos de desenvolvimento significa necessariamente ter de descrever fenômenos diacrônicos. Mais exatamente, estes sistemas de atores se inscrevem em uma temporalidade que lhes é constitutiva. Fala-se da “estrutura de uma história” tanto quanto da “história de uma estrutura”, exatamente no sentido em que Sahlins (1981) empregava estas palavras no caso do Pacífico insular. Essa temporalidade fica bem clara na maneira como diferentes organismos definem a avaliação de um projeto. Para o pensamento desenvolvimentista, há sempre um início, um meio e um fim, a despeito da dificuldade em defini-los. Tem-se então a noção de termos de referência, que define o que é possível estruturar de um projeto nos termos da missão atribuída a seu chefe ou a especialistas, e que constitui, portanto, uma projeção no futuro. É igualmente encontrada a noção de pre appraisal, que pode ser traduzida como avaliação ex ante, depois a instalação e, enfim, a avaliação ex post. Existe sempre um antes e um depois nas políticas e projetos de desenvolvimento, mesmo quando também há recorrências. A propósito dessa noção de termos de referência, gostaria de mencionar o que conta o economista do Banco Mundial Robert Klitgard, encarregado, em 1987, de um projeto de reabilitação econômica na Guiné equatorial, em um livro intitulado Tropical Gangsters, que constitui, a meu ver, um notável testemunho. Os termos de referência que Klitgard descobre por ocasião da sua chegada consistem principalmente na fórmula “ligar um empréstimo flexível (soft loan) e imediato à estratégia de desenvolvimento de médio prazo da nação”. Mas, como não havia estratégia de desenvolvimento a ser consultada, caberia a Klitgard consANTROPOLÍTICA

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truí-la. Isso me parece bem ilustrativo do que é uma política de desenvolvimento, isto é, a projeção de instrumentos semânticos particulares sobre um real que não seria “reconhecível” de outra forma. Este fato me levou irresistivelmente a pensar na história dos irmãos Marx, em que um dos irmãos diz ao outro: “– Escuta, tem um tesouro na casa ao lado. – Como, pergunta o outro, se não tem nenhuma casa ao lado?”. E o primeiro responde: “– Ora, isso não tem importância, a gente vai construir uma!”. As políticas e projetos de desenvolvimento possuem uma temporalidade fundadora, se posso me expressar assim, a que se urde no momento mesmo em que eles são definidos. Mas esta temporalidade tem outros aspectos: elementos macroeconômicos e monetários como a variação das taxas financeiras ou das taxas de câmbio; o fato de que os quadros dirigentes podem mudar; o fato de que os interlocutores do projeto podem mudar – por exemplo, quando se passa de uma associação de trabalhadores rurais a outra, de uma região a outra, de um serviço do Estado recipiendário a um outro. Mas existem temporalidades que englobam ainda mais, e que estão ligadas ao fato de que a reflexão e a decisão macroeconômica que definem um projeto ou uma política também procedem de uma história.12 Assim – e que esta banalidade seja desculpada –, uma política de privatização procede de uma história específica do setor público. Para privatizar, é preciso que haja alguma coisa pública para ser privatizada. As pessoas que conduzem as políticas econômicas estão, pois, constantemente fazendo a história sem que verdadeiramente o saibam e formulem explicitamente. Trata-se de uma espécie de história “selvagem”, e esta dimensão é uma dimensão intrínseca e comum às políticas de desenvolvimento. Este aspecto diacrônico me parece particularmente presente na definição das famosas políticas de ajuste estrutural, tão caras ao coração de alguns de nossos colegas economistas ou, para ser mais exato, que constituem o objeto de toda a sua atenção. O que se pode chamar de a “religião do ajuste estrutural” emerge em uma conjuntura particular, a crise da dívida dos anos 1980. A partir daí, seguese uma espécie de processo de invenção macroeconômica. Parece-me muito difícil descrever o ajuste estrutural sem evocar este processo. Ora, ele pertence mais à bricolagem – a bricolagem intelectual no sentido do Pensamento selvagem de Lévi-Strauss – que à experimentação, pela simples razão de que não é possível experimentar, propriamente falando, em macroeconomia. Acredita-se, talvez, que se está fazendo teoria, mas ela está sendo feita com “o que se dispõe”, em função do ANTROPOLÍTICA

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neoliberalismo dominante nas instâncias internacionais dos anos 1980, sem o conhecimento preciso dos efeitos gerais. O que se diz em substância é o seguinte: há uma crise fenomenal da dívida que vai acabar atingindo todo o sistema mundial, então vamos tentar descobrir como fazer economia de dinheiro público (são as políticas de privatização e de deflação), como dissimular ou mascarar o montante real da dívida (são as caixas de amortização ou as estruturas ditas de cantonnement,13 como também as moratórias). De onde vem, no entanto, o elemento propriamente desencadeador, a crise dos pagamentos das dívidas internacionais? Também ele provém de um processo diacrônico, ligado ao fato de que tomadores e emprestadores se enganam ou fingem que se enganam (entre dezenas de exemplos, o “diálogo” entre bancos americanos e bancos brasileiros no início dos anos 1980). Por conseguinte, também aqui, o elemento desencadeador tem origem em uma conjuntura que não faz parte, estritamente falando, da análise macroeconômica, mas de fatores como a falta de seriedade, a avidez, a dissimulação, a negligência, a arrogância, a ambição, a imprevidência etc., que informam sistemas de ação teoricamente neutros. Ele procede, em suma, do ethos e do habitus, coisas em princípio familiares aos antropólogos. Retornando à questão dos projetos “setoriais” (como o incentivo às pequenas empresas, o desenvolvimento rural etc.), observa-se constantemente um processo em desenvolvimento; não estamos diante de uma ação sincrônica, como os termos “políticas” ou “projetos” fariam crer. Gostaria de dar um outro exemplo a respeito da reforma fundiária nos D.O.M.14 franceses. Em razão do tempo decorrido desde os anos 1960, data em que a ação teve início, houve uma renovação do quadro encarregado de realizá-la. Duas gerações estão em presença. A geração atual considera que, em certos aspectos, está fazendo a mesma coisa que a anterior porque trabalha em um quadro administrativo estruturalmente semelhante; no entanto, tudo mudou. As duas primeiras gerações do enquadramento se dedicam a todo tipo de avaliações recíprocas. A primeira admite que os mais jovens sejam considerados conselheiros de agricultura, mas julga que são incapazes de fazer crescer um único pé de tomate; já na opinião dos mais jovens, os primeiros são verdadeiros homens de ação, mas não conhecem coisa alguma a respeito de gestão de empresa. Deve-se também levar em conta a evolução das formas institucionais. Nos anos 1960, o Crédit Agricole ainda não estava privatizado, o que já tinha se concretizado nos anos 1990, e atualmente a orientação da Agricultura já não alcança os mesmos reflexos ou a mesma filosofia a propósito do reembolso fundiário. Nos anos 1960, o que era chamado de “crédito de custeio”, ou seja, a quantia necessária ANTROPOLÍTICA

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para a implantação do processo produtivo e a primeira colheita, era gerido diretamente pelos agentes do enquadramento agrícola que estavam muito próximos do pequeno agricultor, o que já não acontece hoje. Este empréstimo comportava uma parte não penhorada no preço da propriedade agrária – isso não existe mais. Nos anos 1960 havia taxas de lucro reais nulas ou negativas – estas taxas são hoje amplamente positivas... No que concerne aos beneficiários, observa-se também um efeito geracional. A primeira geração de beneficiários tem agora filhos, e o problema da transmissão das terras devolutas se apresenta. Vê-se então se desenrolar, no interior do próprio quadro administrativo, processos característicos das transmissões no seio das famílias créoles: as novas linhagens locais dão início à construção “informal”, em terras de vocação agrícola, de casas “provisório-definitivas”, que têm como função essencial marcar a qualidade de residente, sobretudo para os filhos que permanecerão “junto aos seus velhos pais”. Este movimento é ainda mais notável porque se inscreve em um período de forte crescimento demográfico e, portanto, de escassez do espaço habitável. A administração da agricultura vê esse movimento como “mitage”,15 e também aqui todo o mundo tem mais ou menos “razão”, no sentido em que estamos na confluência de duas lógicas, sobre as quais é difícil saber se são antagônicas ou complementares. Assim, a reforma, de vocação universalista, tende paradoxalmente a recriar espaços sociais particulares. Em longo prazo, as políticas e projetos de desenvolvimento em geral se assemelham muito pouco ao seu ponto de partida, embora continuem inelutavelmente a participar dele. Resumamos esse segundo ponto concernente à dimensão histórica ou diacrônica das políticas de desenvolvimento. Pensei poder afirmar mais acima que elas reuniam atores heterogêneos em torno de formas institucionais específicas. As observações precedentes parecem demonstrar que estes atores surgem – ou desaparecem – num lugar central, numa cena; a sociologia do desenvolvimento fala de uma “arena” para designar este lugar central de confrontação (Long, Olivier de Sardan). Tudo isso só pode ser percebido na medida em que as pessoas, ou os documentos, o mencionem – mas trata-se essencialmente de pessoas, de atores que, a partir de um início hipotético, narram suas relações cambiantes: grosso modo, trata-se de um romance. Tecnicamente falando (no sentido da técnica literária), as políticas e projetos de desenvolvimento são romances ou capítulos de romances, com a diferença de que esses romances são tão realistas quanto possível e contam a história ANTROPOLÍTICA

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sempre renovada da ação pública. Esta observação não me parece menos científica que a definição que Paul Veyne deu da história, e que se encontra na primeira página de Comment on écrit l’histoire: a história é um romance verdadeiro. Uma resposta que, acrescenta ele, dá a falsa impressão de ser insignificante. Quando a antropologia reconstrói histórias a partir da memória coletiva, de uma memória coletiva essencialmente oral, dá-se a isso o nome de etno-história.

A

QUESTÃO DA AVALIAÇÃO

Para terminar, gostaria de abordar a questão da avaliação no sentido técnico, ou seja, do diagnóstico sobre a adequação entre objetivos e resultados. Trata-se certamente de um campo a que o procedimento antropológico pode trazer muitas contribuições, se considerarmos que há ao menos alguma coerência nas observações que precedem. Convém, todavia, nuançar esta observação. Com efeito, ouvem-se freqüentemente comentários aproximativos sobre os serviços especializados, por exemplo, sobre o Departamento de Avaliações do Banco Mundial. Afirmam alguns que se trata de coisas sem importância, ou então que essas avaliações não são feitas. E caso o sejam, seria de maneira enviesada e/ou inadequada. De acordo com a minha experiência, pode se tratar de um trabalho sério que mobiliza freqüentemente a contribuição de motivações antropológicas no sentido amplo do termo. Não acredito de modo algum que a antropologia chegue ao campo da avaliação como se os antropólogos estivessem em terra de missão; além disso, uma proposição antropológica não é sempre e necessariamente pertinente nas questões que concernem à ação econômica (BARÉ, 1995b). Parece-me simetricamente bastante evidente o fato de que reina no interior desses serviços um silêncio ensurdecedor sobre a natureza dos próprios processos de ação, tais como foram evocados há pouco. Cito uma obra de referência relativamente recente, cuja reflexão pode ser considerada como particularmente inovadora: “Um estudo etnológico em profundidade da cultura das agências de desenvolvimento permitiria determinar os lugares recorrentes do aparecimento dos problemas” (CERNEA, 1991, p. 460). É o mesmo que dizer que até recentemente tudo permanecia, mesmo para os planejadores com idéias inovadoras, em estado de programa, ou de simples desejo, e isso quando essas novas abordagens não eram simplesmente ignoradas, o que é mais freqüente. ANTROPOLÍTICA

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Deve-se também observar que um recente relatório do Banco Mundial16 provocou uma sensação considerável, sendo que o essencial de suas motivações serviu de argumentação para a atual reforma de estrutura. Ele simplesmente relaciona a importância crescente dos projetos e dos empréstimos “problemáticos” e a “cultura” do Banco. No caso, uma “propensão” (trend) a consagrar muito mais esforços na preparação dos dossiês de empréstimo do que na asseguração do seu controle permanente.17 O antropólogo tem certamente vocação para realizar pesquisas neste campo, mas em condições diferentes. Ele precisa, entre outros fatores, reencontrar o equivalente do objeto do procedimento antropológico em campos que não são centrais à sua “tradição”. E também nutrir seu procedimento com a ajuda dos recursos descritivos da posição etnográfica, de que o estudo de Klitgard (1991) fornece, sem saber ou sem explicitar, excelentes esboços. Em suma, valorizar o estudo, em lugar de tratar da intervenção como uma atividade de segunda classe ou de fracos resultados. Enfim, e principalmente, uma condição necessária para a abordagem antropológica nestes domínios é a aprendizagem dos jargões e das técnicas de incentivo econômico, com os quais os antropólogos têm pouca familiaridade. A própria noção de avaliação está sujeita a diferentes dificuldades de definição e, portanto, de interpretação, às quais se aplicam as observações precedentes. Quanto a isso, basta consultar o que escreveram de um lado os politólogos (por exemplo, MENY, THOENIG, 1989), de outro, os econometristas (CHERVEL, LE GALL, 1989). Em ciências sociais, e particularmente no que se convencionou chamar de “antropologia do desenvolvimento”, discussões consideráveis e apaixonadas cercaram a voga crescente de “métodos rápidos de avaliação”. Ao mesmo tempo, discussões, cujo ponto de partida é a preocupação com a economia ou a melhor eficácia da avaliação, levaram à formação de escolas. Lembro o boletim número 8 de uma associação de antropologia do desenvolvimento, a APAD, onde se pode verificar o surgimento de noções como a de “avaliação participativa”, evocando, se compreendi bem, o fato de fazer com que se encontrem, segundo diferentes modalidades, o quadro administrativo e os clientes de um projeto para falar sobre o que aconteceu; ou ainda o fato de pedir a opinião das populações referidas, embora esta seja uma prática pouco freqüente. Estes procedimentos são certamente louváveis, mas observarei simplesmente que após todas as reuniões possíveis e imagináveis é preciso que no final “alguém”, um sujeito, ainda que seja coletivo, diga o que aconANTROPOLÍTICA

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teceu, e que um texto, no sentido amplo, seja escrito. Assim, estes novos procedimentos apenas remetem para estágios intermediários da observação, a preocupação central da avaliação de um projeto, isto é, a de produzir uma imagem racional e argumentada “do que aconteceu”. Acredito, de qualquer forma, que a abordagem através da memória oral, mencionada aqui por diversas vezes, constitui um complemento precioso em relação aos procedimentos clássicos da avaliação administrativa, com a condição de que um trabalho de pesquisa historiográfica relativo aos documentos acompanhe esta pesquisa oral. Parece-me que assim deve ser por diversas razões. Em primeiro lugar, porque a pesquisa oral dirigida a pontos concretos e localizados é, com evidência, ao contrário do que possa parecer, perfeitamente adaptada à dimensão diacrônica das políticas e dos projetos de desenvolvimento. Isso acontece porque, com freqüência, atores importantes não se encontram mais presentes, e ainda porque, de maneira mais geral, a participação em um projeto consiste em uma mistura complexa de atos empíricos e de reflexões que não deixam traços nos documentos. Em seguida, porque, se a busca de informações orais for bem conduzida, ela será infinitamente mais viva e, de certa maneira, infinitamente mais precisa e mais pertinente do que o revelado por volumes de estatística econômica (sem os quais, afirmo mais uma vez, não se pode passar). Se as políticas e os projetos são também sistemas de ação social, não são nem as estatísticas nem mesmo os organogramas que vão falar sobre isso. Aprendi muito mais sobre projetos de incentivo ao ouvir pessoas dizendo que não estavam de acordo com uma taxa de intensidade em trabalho, ou então empresários falando sobre a sua vontade de estar em situação de monopólio de importação, do que pesquisando documentos administrativos.

O “ CAMPO ”:

BREVES OBSERVAÇÕES

Surgem objeções no sentido de que a abordagem com a finalidade de entrevistar responsáveis administrativos, algumas vezes de alto nível, não é uma tarefa fácil. E, sobretudo, de que as instâncias político-administrativas são mundos fechados e proibidos. Isto é verdade, mas é preciso lembrar que retraçar a genealogia de um camponês malgaxe também não é nada fácil. Tanto no caso dos responsáveis administrativos como no dos camponeses malgaxes, é preciso que se desenhe uma espécie de zona de comunicação comum que permita ao interlocutor se reconhecer no entrevistador. Nos dois casos, trata-se, pois, de uma questão de aproximação, de capacidade para criar uma certa confiança, e ANTROPOLÍTICA

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não de um problema de metodologia. Não se deve exagerar a parte de “segredo” consubstancial à ação pública. Com freqüência, quando responsáveis administrativos não falam sobre este ou aquele ponto é simplesmente porque não foram perguntados a respeito. Por outro lado, nem o antropólogo nem, em certos aspectos, o historiador, estão à procura de notícias jornalísticas sensacionais, e sim em busca de coisas cotidianas e aparentemente banais. De fato, de modo bastante surpreendente, tenho encontrado com freqüência pessoas interessadas nas minhas perguntas e mesmo satisfeitas de poderem falar com um interlocutor externo, o mais tolerante possível, sobre um trabalho, afinal, bastante ingrato, já que o incentivo público ao desenvolvimento é uma espécie de tarefa de Penélope, sempre recomeçada.

ABSTRACT This article highlights the possible contributions of the anthropological analysis to the understanding and evaluation of the so called developmental policies and, in a broader perspective, of the state economic practices. Keywords: anthropology; developmental policies; cultural diversity; social intervention.

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N OTAS 1

Esta questão foi recentemente focalizada por J. P. Olivier de Sardan (1995).

2

O termo macroeconomia é entendido a minima seja como “a explicação das interações entre os agregados da contabilidade nacional” (JESSUA, 1982), seja como dimensão do real relativa a essas interações.

3

Alusão a uma antiga e famosa publicidade de uma marca de sabão em pó que oferecia brindes-surpresa em suas embalagens. [N. da T.].

4

Como me foi observado, este exercício estatístico deveria em princípio ser operado por tipos de empresas, porque é absurdo comparar taxas de intensidade em trabalho em atividades que requerem equipamentos diferentes. Entretanto, observei pessoalmente esta aberração lógica praticada, apesar de tudo, no quadro de formulação de um diagnóstico geral sobre o emprego em um dado país.

5

Planta comestível da família das aráceas nativa de regiões tropicais das Américas. [N. da T.].

6

Que me permitam lembrar aqui, com emoção, de uma senhora idosa da costa sul de Huahine, nas ilhas Sousle-Vent do Taiti, grande conhecedora da cultura dos tubérculos, a quem quase fiz perder a paciência quanto a essa questão.

7

“A verdade científica não precisa ser única.” Le Monde, 06 de fevereiro de 1995.

8

Cito, no que diz respeito à Inglaterra, as reflexões e os trabalhos realizados na British Association for Anthropology in Policy and Practice. Ver, por exemplo, Wright (1994).

9

Ilha do oceano Índico a leste de Madagascar, antiga colônia francesa, hoje departamento ultramar. [N. da T.].

10

Personagem principal do Bourgeois gentilhomme de Molière. [N. da T.].

11

Sede da administração de departamento ou de região na França. [N. da T.].

12

Alguns desses desenvolvimentos foram evocados em uma mesa-redonda da APAD, “Política econômica? Vocês disseram política econômica?”, em Montpellier, em 1992.

13

De limitação dos direitos do credor. [N. da T.].

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121 14

Departamentos ultramar, antigas colônias francesas. [N. da T.].

15

Em geografia, multiplicação de residências dispersas em um espaço rural. [N. da T.].

16

Effective Implementation: Key to Development Impact. Report of the World Bank’s Portfolio Management Task Force 1992.

17

Esta fascinante conjuntura será comentada in “L’évaluation et la Banque mondiale. Eléments d’une chronique”, [A avaliação e o Banco Mundial. Elementos de uma crônica]. Aguardando publicação.

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A

N A

P

A U L A

A RQUIVO P ÚBLICO :

*

Bacharel e licenciada em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense. Doutora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social – USP.

**

Este artigo foi classificado em 3º lugar no 1º Concurso de Monografias sobre Informação e Documentação Jurídica do Rio de Janeiro, tendo como tema “Informação Jurídica – O que se pensa é o que se faz? ”, promovido pelo Centro de Estudos Jurídicos da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro, em 1997. Trata-se de uma versão resumida acerca da etnografia realizada sobre as práticas arquivísticas em Arquivos Públicos do Rio de Janeiro, possibilitada por bolsa de Aperfeiçoamento do CNPq, no período de março de 1993 a fevereiro de 1995, no Projeto Religião, Direito e Sociedade em uma Perspectiva Comparada, sob a orientação do professor doutor Roberto Kant de Lima.

M

E N D E S

D E

M

I R A N D A*

UM SEGREDO BEM GUARDADO ? **

Este artigo apresenta os resultados da análise das informações obtidas em etnografia acerca das práticas em Arquivos Públicos do Rio de Janeiro. Seus objetivos são observar como se desenvolvem os processos de produção, guarda e circulação de documentos, visando compreender e explicitar a lógica que os rege. Como hipótese considerei que esses procedimentos estão relacionados a uma tradição mediterrânea, que se caracteriza pela coexistência de dois códigos opostos, mas complementares, em que um sistema público de burocracia convive com um sistema privado baseado em relações pessoais de amizade e parentesco. Essa convivência de códigos paralelos, ambos socialmente legítimos, altera a função do arquivo, transformando-o no local da cristalização do segredo. Palavras-chave: arquivo público; segredo; informação; burocracia; relações pessoais.

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O presente artigo apresenta os resultados de uma etnografia realizada no período de 1993-1995, sob orientação do professor Roberto Kant de Lima e financiada com uma bolsa de Aperfeiçoamento pelo CNPq, acerca das práticas arquivísticas em Arquivos Públicos do Rio de Janeiro, cujos objetivos eram observar como se desenvolviam os processos de produção, guarda e circulação de documentos, e explicitar a lógica que regia estes procedimentos. Como hipótese, considerei o Arquivo Público como uma instituição em que esses processos se dariam sob a influência de uma tradição ibérica/ mediterrânea,1 cuja característica é a existência de dois códigos2 opostos, mas complementares, onde um sistema público de organização burocrática convive com um sistema privado baseado nas relações pessoais de amizade e parentesco, e o “sistema de produção de verdades”3 possui características inquisitoriais e interpretativas. O Arquivo, por ser considerado uma instituição pública, deveria garantir plenamente o direito de acesso ao seu acervo. No entanto, pude constatar que este acesso era limitado e modificado por critérios implícitos às práticas de funcionamento da instituição, que alteravam o caráter impessoal das regras públicas, introduzindo elementos personalistas e particularizantes ao seu funcionamento. Conseqüentemente, a convivência desses códigos paralelos, ambos socialmente legítimos, modificava o papel do Arquivo,4 transformando-o no local da cristalização do segredo, e não da divulgação da informação. Esta pesquisa foi realizada seguindo uma tradição de trabalho antropológico fundamentada na possibilidade de interpretações da realidade, buscando não apenas a observação comportamental do grupo estudado, mas principalmente a percepção da perspectiva que ele tem acerca de sua própria realidade. Nesse sentido, a análise não se restringiu à compreensão da representação que os agentes têm do mundo social, mas também, de modo mais preciso, a contribuição que eles dão para a construção da visão desse mundo e, assim, para a própria construção desse mundo, por meio do trabalho de representação (em todos os sentidos do termo) que continuamente realizam para imporem a sua visão do mundo ou a visão da sua própria posição nesse mundo, a visão da sua identidade social (BOURDIEU, 1989, p. 139).

As questões abordadas neste trabalho surgiram a partir dos depoimentos de funcionários e usuários entrevistados, bem como da análise da ANTROPOLÍTICA

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bibliografia relativa à questão do acesso à informação, enriquecida com a participação em diversos seminários e congressos das áreas de Arquivologia, Biblioteconomia e Museologia.

O A RQUIVO

COMO UM DEPÓSITO DOCUMENTAL

Tradicionalmente, os Arquivos Públicos foram criados com a função de guardar documentos. Somente na década de 1990 foi implantada uma política de gestão da informação com as funções de gerir e proteger a documentação pública e/ou privada, já que estas podem servir como instrumentos de apoio à administração, à cultura e ao desenvolvimento científico, bem como elementos de prova no âmbito judicial. O que se observa, no entanto, é a representação do Arquivo apenas como um depósito documental, não havendo a preocupação com a elaboração de estratégias de divulgação de informações. Alguns acervos, por exemplo, se encontram em caixas, que nunca foram abertas desde seu recolhimento, das quais não se sabe qual é o conteúdo, conforme pude verificar em pesquisa realizada no Arquivo Municipal do Rio de Janeiro e no Arquivo Nacional. Outro exemplo, citado por Antonia Heredia, refere-se aos arquivos em Sevilha: Temos salvo e recuperado, através de sua organização e descrição centenas de arquivos das municipalidades da Província de Sevilha. Muitos deles, por não contarem com arquivista, têm permanecido zelosamente guardados, inclusive fechados a chave (1992, p. 114).

Os fatos acima citados têm um ponto em comum – a dificuldade de acesso –, mas apresentam uma sutil diferença. No primeiro caso, não há nenhum tipo de organização, os documentos, depois de recolhidos das instituições que os produziram, foram encaixotados, e nunca mais foram vistos ou utilizados, caracterizando o que se costuma chamar de um “depósito documental”, como se tivessem sido lançados a um porão onde são guardadas as “velharias” que já não nos servem mais. Entretanto, no segundo caso, há referência a um trabalho de organização, de modo que a documentação recebeu um tratamento arquivístico que não ofereceu muita utilidade, pois o que se criou foi um depósito arrumado, onde o público continuou sem a possibilidade de acesso à informação. Conclui-se, então, que o tipo de organização do Arquivo, e até a não organização do mesmo, serve para demonstrar quais são as suas reais prioridades. Assim, a maneira pela qual se organiza, ou não, o Arquivo ANTROPOLÍTICA

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definirá a real função da instituição, que pode ser apenas da guarda de documentos ou de uma política de gestão de documentos voltada para o atendimento público.5 A rigor, um Arquivo Público deveria garantir o acesso rápido e racionalizado à informação, preocupando-se com o atendimento ao cidadão. Para a consecução desse objetivo seria necessária uma organização que considerasse importante não só o documento, mas também os usuários. Para Marilena Leite Paes (1991), a organização de arquivos pressupõe o desenvolvimento de várias etapas de trabalho, que vão do levantamento e análise de dados ao planejamento, implementação e acompanhamento da catalogação dos acervos. Uma crítica que os arquivistas fazem a esta proposta é a de que o elemento de “seleção” deveria fazer parte da organização de um acervo como um critério básico e explícito. De acordo com T. Schellenberg, “o maior problema do arquivista atual consiste em selecionar a massa de documentos oficiais criados por instituições públicas ou privadas de todos os gêneros, principalmente no caso dos acervos que se destinam à preservação ‘permanente’”6 (1974, p. 18). A importância da realização de uma seleção com critérios claros pode ser expressa pelo fato de que os arquivos, à medida que aumentam seu volume, vão-se tornando mais complexos, o que dificulta ainda mais a recuperação da informação. Porém, não se pode esquecer que, ao organizar um acervo, o arquivista sempre faz alguma seleção, mesmo que não deixe claro quais foram os seus critérios. E é importante destacar que este esquecimento pode ser ou não proposital, como diz José Mattoso, “para os arquivistas, o que já não serve para administração também pode ser destruído ou arrumado sem se classificar. Os critérios de seleção variam, portanto, conforme o passado que se quer construir” (1988, p. 95). A dificuldade de se estabelecer critérios claros de seleção é tão grande, que, muitas vezes, torna-se mais fácil optar pela preservação de tudo. Este fato pode ser claramente percebido na ambigüidade de posições assumidas por José Mattoso com relação aos arquivos portugueses, quando ele apresenta como o maior problema da arquivística moderna a seleção dos documentos de administração pública ou privada. Apesar de sua aparente adesão ao moderno discurso arquivístico, quando se trata de definir as funções de um arquivo, ele afirma que os arquivos devem garantir, em primeiro lugar, uma preservação sistemática, não seletiva, de memória documental coletiva e, em segunANTROPOLÍTICA

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127 do lugar, uma classificação completa dessa memória, de modo que todos os seus elementos se possam usar, comparar entre si e comparar com o todo (1988, p. 87).

Assim, essa dualidade de posições com relação ao “processo de tratamento documental” adotado pelo Arquivo pode influenciar o seu uso para fins de consulta ou pesquisa. Segundo Daise A. Oliveira (1991), o processo de tratamento documental se divide em produção do documento, transferência para o arquivo, organização (classificação e ordenação), descrição (inventário e catálogo), seleção e recuperação. Porém, conforme relato dos informantes, o que se faz na prática é apenas a catalogação, esquecendo-se da classificação. Ora, a classificação é o momento em que se explicitam os critérios que regem a organização. E, conforme pude observar, quando se diz que a classificação foi “pulada”, não significa necessariamente que não foi feita, pois todo processo de catalogação é classificatório, mas sim que não foram explicitados os seus critérios. A falta de registro dos critérios utilizados torna o trabalho de classificação algo pessoal, subjetivo, e até misterioso, de modo que somente os funcionários que participaram desse momento podem compreender qual a lógica que geriu os procedimentos da organização do acervo. Por isso, nem sempre é possível recuperar todas as informações. Para melhor esclarecer este aspecto, podemos comparar um Arquivo Público a uma biblioteca particular organizada pelo seu proprietário, onde muitas vezes somente ele é capaz de encontrar um livro, pois sabe quais critérios utilizou para ordená-la. Um outro problema enfrentado pelos arquivistas diz respeito à “validade” dos critérios, que sempre se referem ao tempo presente. Desse modo, o que é válido hoje pode não o ser no futuro, o que provocará dificuldades a um futuro usuário. A tentativa de prever o que o “historiador do futuro” (MELD, 1990, p. 46) pesquisaria desembocou numa “tentativa alucinada” de acumular tudo, de modo a conservar totalmente a história, a fim de que se pudesse reconstituir o passado, como se isso fosse possível. É importante enfatizar que esse esforço de reconstituição do passado é inócuo, pois o passado pode apenas ser repensado, mas jamais revivido, visto que a experiência de releitura é apenas um exemplo, entre muitos, da dificuldade, senão da impossibilidade, de reviver o passado tal e qual, ANTROPOLÍTICA

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128 impossibilidade que todo sujeito que lembra tem em comum com o historiador. Para este também se coloca a meta ideal de refazer, no discurso presente, acontecimentos pretéritos, o que, a rigor, exigiria que se tirassem dos túmulos todos os que agiram ou testemunharam os fatos a serem evocados. Posto o limite fatal que o tempo impõe ao historiador, não lhe resta senão reconstituir, no que lhe for possível, a fisionomia dos acontecimentos (BOSI, 1987, p. 21).

Para Le Goff (1992), essa “obsessão” pelo passado é resultado das ambigüidades da modernidade, que, ao mesmo tempo que recusa o antigo, volta-se para o passado, o que pode ser demonstrado pela proliferação de “instituições-memória” e pelo sucesso das modas “retrô”. A preocupação exagerada em preservar o passado através da preservação de suas várias formas de registros documentais levanta outras questões: qual é a verdadeira função do Arquivo? De que modo o tipo de organização influencia esta função? Como os funcionários conciliam suas tradições com as novas demandas trazidas pela modernidade?

O A RQUIVO :

GUARDIÃO OU DIVULGADOR DA INFORMAÇÃO ?

Tradicionalmente, segundo os informantes, a função dos arquivos é recolher, conservar e classificar qualquer documento produzido pelo funcionamento de um serviço, seja ele público ou privado. Atualmente, os arquivistas atribuem-se mais uma função: a de divulgar as informações, agindo como os “guardiães e comunicadores da informação” (BLAIS, ENNS, 1989-1990, p. 56). O papel do “comunicador” representa uma transformação da imagem do arquivista, que não se limita apenas a tomar conta do “precioso acervo” que lhe é confiado, mas que se aplica em colocá-lo à disposição da “formação política e histórica do público”, como disse um funcionário de Arquivo. Porém, a realidade dos Arquivos Públicos não é ainda exatamente como a descrita acima. Na verdade, os Arquivos são vistos pelos usuários tal como Eckhardt Franz os descreve,7 “como locais onde reina um silêncio monacal, freqüentado por velhos eruditos que, sob o olhar atento de arquivistas poeirentos, folheiam as páginas amareladas de velhos manuscritos e de vez em quando são perturbados por jovens” (1985, p. 28). Segundo um entrevistado, que trabalha na seção de atendimento ao público, as atribuições dos Arquivos Públicos no Brasil são limitadas ANTROPOLÍTICA

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apenas à pesquisa comprobatória dos direitos do cidadão. A função do arquivo se restringe à rotina da “burocracia de balcão”,8 não se modificando no serviço prestado aos pesquisadores, que são merecedores de um tratamento diferenciado. O ritual da “burocracia de balcão” do arquivo segue os mesmos passos do ritual observado nos Cartórios: precariedade de informações, excesso de papel, desorganização, dificuldade para obter dados. Cláudia Heynemann, ao analisar a relação entre os técnicos e o público, destacou que fornecer a informação correta, às vezes tão difícil na busca direta, é, sem dúvida, bom como marcar um gol. No entanto, [...] existe por um lado uma irritação e desconfiança prévia do funcionário público. Há também uma suspeita quanto ao acesso aos documentos, combinada com seu périplo por outros lugares. No caso de uma pesquisa não atingir os resultados, resta sempre a dúvida ao usuário se não houve sonegação da informação (1989-1990, p. 76).

Essa rotina burocrática também pode ser observada quando se analisa o modo como José Mattoso define o papel dos arquivistas, que seriam os mediadores, os intermediários9 capacitados para facilitar o funcionamento da máquina burocrática, “os arquivistas são, portanto, aqueles que aceitaram a enorme e importantíssima tarefa de domesticar essa hidra de sete cabeças que os resíduos materiais da burocracia moderna incessantemente alimentam” (1988, p. 77). A observação do funcionamento do Arquivo permite supor que a uma aparente desorganização se sobrepõe algum tipo de lógica, à qual só os funcionários têm acesso, o que os torna absolutamente indispensáveis. O estabelecimento de uma relação de intimidade entre o funcionário e o usuário, em geral pesquisadores, devido à sua regularidade no uso do Arquivo, é uma garantia de que a informação pretendida será obtida, o que reforça a idéia do mediador. Desse modo, os Arquivos Públicos enfrentam um grande desafio: como “repositórios do governo” deveriam assegurar “transparência” e “acessibilidade” aos seus usuários, deveriam garantir e estimular a igualdade no acesso às instalações e serviços, qualquer que fosse o seu público. Entretanto, isto nem sempre acontece, pois o tratamento é diferenciado entre os “pesquisadores” e o “público comum”. Como pude observar na qualidade de “usuária” dos arquivos, os “pesquisadores” recebem uma atenção distinta por parte dos arquivistas, pois são vistos como clientes.10 ANTROPOLÍTICA

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P RESERVAÇÃO

VERSUS DIVULGAÇÃO

De maneira geral, os arquivistas concordam com a afirmação de Schellenberg, segundo a qual “a finalidade de todo o trabalho de arquivo é preservar os documentos de valor e torná-los acessíveis à consulta [...]. Para tal utilização recolhe os documentos, armazena-os e restauraos de forma a que sejam preservados e usados” (1974, p. 309). Na prática, de acordo com os entrevistados, não existia uma tradição de preservação dos acervos dos Arquivos Públicos brasileiros, o que pode ser verificado pelas condições inadequadas de armazenamento, tais como a falta de segurança do prédio, a superpopulação do acervo, a falta de espaço. A não-preservação do material fez com que o trabalho dos restauradores fosse tradicionalmente mais valorizado, visto que, ao final de seu trabalho, a informação, muitas vezes aparentemente perdida, surge como uma “nova obra”. Atualmente esta postura tem sido contestada. Apesar do reconhecimento da importância da restauração em casos de extrema deterioração, considera-se que esse processo retira a identidade da obra no seu valor histórico, além de ser um trabalho muito demorado e caro. Porém, para evitar a restauração, é obviamente necessária a preservação do acervo, o que nem sempre acontece. Uma grande dificuldade para a preservação – e que freqüentemente acontece – é a “falta” de critérios claros de seleção. Conforme pude observar, não existe no Brasil uma metodologia de seleção na aquisição e descarte de documentos. Assim, a “política de aquisição segue a tradição, o bom senso e certas orientações”. Com relação a estas “orientações”, os informantes disseram que algumas instituições estabelecem certas regras básicas de acordo com as suas necessidades mais urgentes. Entretanto, é bom ressaltar que nem sempre essas necessidades constituem bons critérios de seleção, pois, como foi dito num debate sobre a situação dos Arquivos Públicos: “pode-se estar jogando fora, e até queimando, somente porque está velho, parte significativa da história do país”. A dificuldade de se estabelecer critérios de seleção reside no fato de não ser fácil criar regras gerais que a reduzam a uma operação mecânica, pois todo processo de avaliação e classificação é limitado pelo seu aspecto subjetivo. Schellenberg salientou que “as dificuldades na avaliação de documentos são tão grandes que não admira que alguns arquivistas, em dado momento, tendessem a fechar os olhos e nada fazer” (1974, p. 152). Existem, porém, alguns parâmetros que podem auxiliar ANTROPOLÍTICA

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esse processo, destacando-se, dentre eles, o valor de testemunho ou prova do documento, e sua participação em um conjunto. A observação de Schellenberg resume o que se tem feito no Brasil com relação à aquisição e descarte de documentos. Como afirmou um funcionário de Arquivo: “nada tem sido feito com relação aos documentos produzidos pela administração pública, há muitos anos que nada é recolhido aos arquivos, o que representa um grave perigo para o futuro, o de não se ter material para contar a história contemporânea do país”. A falta de uma política de recolhimento de documentos das repartições públicas tem graves conseqüências tanto para uma perspectiva histórica, quanto para o aspecto burocrático, pois a ausência de controle faz com que documentos considerados permanentes, que já deveriam ter sido transferidos para os Arquivos, continuem misturados a documentos de menor importância, passíveis de serem eliminados. As conseqüências desses procedimentos põem em risco o papel dos acervos, comprometem o caráter de conjunto da documentação, pois a consistência da informação de valor histórico reside não no dado individual, mas na força do conjunto de elementos que a integram, daí a necessidade do recolhimento constante dos documentos.

A

REGULAMENTAÇÃO DO ACESSO À INFORMAÇÃO

NUMA PERSPECTIVA COMPARADA

(B RASIL /F RANÇA /E STADOS

U NIDOS /P ORTUGAL ) Neste segmento, pretendo apontar alguns aspectos que favoreçam uma discussão acerca da regulamentação do acesso à informação, utilizando uma perspectiva comparada entre Brasil/França/Estados Unidos/Portugal. A escolha destes países não se deu ao acaso: os Estados Unidos e a França foram escolhidos porque são considerados pelos arquivistas “modelos de modernidade”, possuidores de uma “legislação avançada e eficiente”. Já a escolha de Portugal se deu pelo fato de o nosso sistema burocrático ter sido organizado segundo os moldes da organização portuguesa durante o domínio colonial, o que de certo modo justifica a hipótese da existência de uma tradição ibérica/mediterrânea que influenciaria, inconscientemente, as práticas de produção e circulação da informação. Historicamente, o século XVIII é considerado o momento do nascimento dos direitos civis, entendidos como os direitos relativos à liberdade individual, dentre os quais se destacam a liberdade de ir e vir, a ANTROPOLÍTICA

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liberdade de imprensa, de pensamento e fé, o direito à propriedade e o direito à justiça. Nesse contexto, a França foi o primeiro país que legislou especificamente sobre o direito de acesso à informação, e que o estabeleceu com a criação do primeiro Arquivo Nacional em 1790. Entretanto, desde 1766, o direito dos cidadãos à informação já era assegurado constitucionalmente, na Suécia. Na prática, o acesso aos documentos sempre constituiu um privilégio dos que desfrutavam o poder. No século XIX, países como França, Bélgica, Inglaterra e Itália, apesar de admitirem o livre acesso aos Arquivos, ainda impunham muitas restrições e fixavam prazos bastante longos para a consulta aos documentos. Durante o século XX, os direitos sociais se desenvolveram visando garantir, teoricamente, o mínimo de bem-estar econômico e uma participação mais efetiva às instituições sociais, de modo que a construção da idéia de cidadania era entendida como um “status concedido àqueles que são membros integrais de uma comunidade. Todos aqueles que possuem o status são iguais com respeito aos direitos e obrigações” (MARSHALL, 1967, p. 76). Após a Segunda Guerra, ocorreu uma “revolução documental” (COSTA, FRAIZ, 1989) no que diz respeito ao processamento da documentação produzida, ao acesso e à disseminação da informação. Nesse período, surgiram os conceitos de “gestão de documentos” e “organização sistêmica dos Arquivos” que os arquivistas julgam ter contribuído muito para viabilizar o acesso às informações. Na França, a legislação que rege o acesso aos documentos é relativamente recente (1978-1979), e estabelece um compromisso entre os interesses privados dos cidadãos e o direito à informação. Em geral, os documentos administrativos são liberados desde a sua produção. Para outros documentos, o prazo legal de abertura à consulta é de 30 anos, com exceção de documentos que se referem à privacidade dos cidadãos. Como exemplos, podemos citar os documentos médicos (150 anos), os dossiês pessoais (120 anos), documentos de imposto de renda (60 anos), e documentos cujo acesso ponha em risco a segurança do Estado (60 anos). Segundo T. Schellenberg, é preciso esboçar normas para determinar e impor restrições, que devem estar condicionadas a um limite de tempo, a fim de que todos os documentos preservados venham a ser eventualmente abertos ao público. A idéia de que o estabelecimento de restrições explícitas torna o acesso mais fácil, pois esclarece quais são os ANTROPOLÍTICA

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limites classificatórios, é a base da legislação dos Estados Unidos, mais particularmente do Freedom of Information Act (FIA), criado em 1967 e modificado em 1974/75, que estabeleceu uma distinção entre os documentos que podem ser divulgados, os que devem ser mantidos à disposição do público e os que são liberados através de petições. Os documentos que dizem respeito à defesa e à segurança nacional são classificados como supersecretos, secretos e confidenciais. Os prazos de liberação dos documentos variam entre 30 e 75 anos. No que diz respeito a Portugal, devo sublinhar a enorme dificuldade que tive em encontrar informações acerca da questão arquivística neste país. As poucas informações obtidas se restringiram à análise que José Mattoso fez da situação dos Arquivos, o longo período de instalação do Arquivo Nacional em São Bento não é, pois, a face emergente de um vasto iceberg que se materializa na ausência e legislação adequada e coerente, na inoperância das estruturas diretivas e administrativas existentes, no reduzido prestígio atribuído à profissão e aos cursos que para ela preparam, na exigüidade, quando não na verdadeira miséria, dos meios materiais da maioria dos arquivos distritais e municipais, na total descontinuidade e até divergência contraditória nas medidas práticas tomadas, na efetiva degradação de muitos fundos documentais, na ausência de inventariações sistemáticas e planificadas, nas lacunas da cobertura arquivística nacional, na indiferença com que até pouco tempo têm sido acolhidas as soluções repetidamente propostas pelos arquivistas e, finalmente, em certos casos, na destruição mais ou menos subreptícia de núcleos importantes da documentação oficial e não oficial (1988, p. 69).

Para Mattoso, os governos portugueses nunca haviam manifestado nenhum interesse em implementar uma “política arquivística”, não havendo referências claras à formulação de nenhum tipo de legislação. Porém, destacou que, com as atividades da Comissão para a Reforma e Reinstalação do Arquivo Nacional da Torre do Tombo,11 essa situação poderia ser modificada, pois a decisão de construir um novo edifício para o Arquivo Nacional suscitou a necessidade de uma revisão complexa e estrutural do setor. Nesse sentido, a situação dos Arquivos portugueses em muito se assemelha à dos Arquivos brasileiros, nos quais, até pouco tempo, havia um total descaso com relação à legislação. Segundo José Matoso, um outro aspecto que se destaca é o fato de o “passado” em Portugal ter sido ANTROPOLÍTICA

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sempre considerado “como uma coisa morta, e por isto oposta ao presente” (1988, p. 74), o que para ele pode ser demonstrado pela forma como são chamados os Arquivos da Administração Pública – “históricos ou estáticos”, e também pela falta de preservação dos acervos dos museus e Arquivos, considerados “depósitos de coisas mortas”. Vale ressaltar que, no Brasil, os setores de Arquivos nas instituições públicas são chamados de “arquivo morto”12 por usuários e por funcionários, a despeito dos arquivistas, que detestam esta designação. Tradicionalmente, as Constituições brasileiras trataram a questão documental apenas como a necessidade da organização do Estado, sem se preocupar com a forma de administração ou o direito à informação dos cidadãos. Atualmente, há uma excessiva valorização das possibilidades da nova Lei de Arquivo, como se a existência de uma legislação fosse capaz de resolver todos os problemas, funcionando como uma solução mágica. Segundo Bastos e Araújo, o tratamento dado à legislação documental pode ser dividido em três períodos. O primeiro se refere à Constituição Política do Império do Brasil (1824), e se destacou pela criação do Arquivo Imperial, destinado à guarda dos originais das leis produzidas no Império e das cópias de inventos e patentes criadas ou em exploração em território brasileiro. O Arquivo Imperial foi organizado com base nas seções administrativa (documentos do Poder Executivo e Moderador), legislativa (documentos do Poder Legislativo) e judiciária (processos e autos findos). O Arquivo Imperial funcionava como “depósito documental”, e não havia nenhuma organização arquivística. Aproximadamente um século depois, a década de 1930 foi marcada pela introdução de textos legais que visavam à proteção do Patrimônio Histórico, embora não houvesse qualquer referência à questão dos documentos dos Arquivos. Somente com a Constituição de 1946 apareceu a primeira referência à proteção dos documentos de valor histórico.13 Nessa época foram iniciadas as discussões sobre os documentos como parte do acervo arquivístico. De acordo com Marilena Leite Paes, essas definições acentuavam o aspecto legal dos Arquivos como depósitos de documentos e papéis de qualquer espécie, tendo sempre relação com os direitos das instituições ou dos indivíduos. Os documentos serviam apenas para comprovar direitos, e, quando não atendiam a este requisito, eram transferidos para outras instituições – os museus e as bibliotecas. Paralelamente, neste período, surgiu a preocupação com os Arquivos como organizações memoriais individuais de pessoas públicas. ANTROPOLÍTICA

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A partir de 1980, cresceu um movimento para a elaboração de uma lei de Arquivo com caráter nacional, que definisse a questão das competências para a gestão documental de Arquivos Públicos e privados, as competências para a execução de recolhimento, guarda e acesso, e os procedimentos para o tratamento documental desde a sua produção até o seu arquivamento. A Constituição de 1988 viabilizou a elaboração de uma política para a questão arquivística, que começou com discussões sobre os problemas da proteção legal da informação informatizada, a questão jurídica do arquivamento de informações sigilosas, do segredo com relação ao interesse público e privado, as quais se resumiram a uma só questão: o acesso à informação como um direito legal. Essas discussões culminaram na criação da Lei nº 8.159/91, que dispõe sobre a Política Nacional de Arquivos. Esta lei explicita que o acesso aos documentos públicos é pleno e estabelece que as categorias de sigilo14 serão definidas por decreto, ressaltando que são sigilosos os documentos que ponham em risco a segurança do Estado, da sociedade e do cidadão, principalmente no que se refere à sua intimidade, sua privacidade, sua honra15 e imagem. A nova Lei de Arquivo instituiu o prazo máximo de 30 anos para a restrição aos documentos sigilosos referentes ao Estado e à sociedade, e 100 anos para documentos privados. Porém, há na lei a possibilidade da prorrogação destes prazos. Atualmente, enquanto se discute a regulamentação da Lei de Arquivos, já aparecem críticas com relação aos prazos de liberação de documentos, conforme pude verificar durante o “Seminário Nacional: Acesso à Informação Governamental”, realizado na Casa de Rui Barbosa. Em geral, essas críticas se referiam à idéia da restrição legal como um obstáculo “antidemocrático”, outras diziam respeito ao “atraso” no que se refere às políticas de acesso aos documentos no Brasil, um país de “Terceiro Mundo”. Porém, é interessante sublinhar que os prazos no Brasil não são tão diferentes daqueles previstos nos países de “Primeiro Mundo”. Com relação ao “tempo de duração do sigilo”, há muitas contradições: historiadores e arquivistas acreditam que há uma tendência a exagerar no estabelecimento dos prazos de sigilo, enquanto os governos sempre acham que esse tempo poderia ser maior. Conforme apontou José Mattoso, este conflito também é vivido pelos arquivos portugueses, que se opunham aos juristas “acerca do período para além do qual se deve ANTROPOLÍTICA

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tornar acessível ao público a documentação, seja de que natureza for, mesmo a privada” (1988, p. 76). Um aspecto importante na discussão sobre o acesso à informação é que não basta a formulação e implementação de uma Lei de Arquivo “moderna”, pois a sociedade brasileira sempre combinou o “legalismo formalista” com um sistema de relações pessoais, a lei universal sempre foi vista como o antídoto perfeito contra o nepotismo e o paternalismo, mas esses modos de organização também são acionados como proteção contra leis repressivas a serviço de algum grupo que está no poder. Essa circularidade e essa oscilação é que demonstram as relações entre essas duas vertentes do mundo social brasileiro, ibérico e, talvez, mediterrâneo (DA MATTA, 1987, p. 140).

Portanto, a existência de uma Lei de Arquivo não é a garantia de resolução do acesso à informação. O principal obstáculo ao acesso reside principalmente no modo como a sociedade brasileira encara o estabelecimento de restrições. Este estabelecimento de restrições nunca se aplica universalmente, possibilitando o aparecimento de práticas nas quais o acesso à informação é concedido conforme critérios particulares e não explícitos. A sociedade não vê com bons olhos as restrições, porque não acredita que elas se apliquem a todos. Outro ponto problemático diz respeito ao alcance do sigilo, ou seja, a quem ele protege: o Estado ou o cidadão?

O A RQUIVO

COMO ÓRGÃO DE JUSTIÇA E DE CULTURA

Através deste trabalho tentei desenvolver algumas questões que pudessem contribuir para a compreensão de como uma instituição – o Arquivo Público – guarda e divulga, ou não, o seu acervo. A análise dos fatos revelou que o tratamento dado aos documentos públicos sempre teve como diretriz a não divulgação dos fatos, apesar de muitas vezes existir um discurso favorável à publicidade. Para compreender qual a lógica que rege o funcionamento dos Arquivos, consideramos como válida a hipótese de uma tradição ibérica/mediterrânea que influenciaria os “processos de produção de verdade” aos quais corresponderiam estratégias e atitudes consideradas eficazes e legítimas na consecução de seus objetivos. Segundo Kant de Lima, estas características se manifestam tanto nas práticas jurídicas, quanto ANTROPOLÍTICA

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nas práticas acadêmicas,16 e, por que não dizer, também no sistema burocrático brasileiro?17 Desse modo julgo que é interessante observar a posição dos Arquivos Públicos do Rio de Janeiro na estrutura burocrática. O Arquivo Nacional está subordinado ao Ministério da Justiça, já o Arquivo Estadual do Rio de Janeiro está subordinado à Secretaria de Justiça, enquanto o Arquivo Municipal do Rio de Janeiro relaciona-se à Secretaria de Cultura. A ambigüidade entre a importância do atributo histórico (como um valor cultural) e o atributo jurídico (o valor de prova) dos documentos está refletida nessa divisão burocrática que classifica uma mesma instituição em níveis distintos de hierarquia, utilizando-se de dois critérios considerados igualmente válidos. Portanto, não causa nenhuma estranheza que o Arquivo Público ora esteja atrelado às instituições judiciárias, ora seja ligado às instituições culturais. Atualmente, nos deparamos com uma nova concepção de cidadania, segundo a qual o indivíduo é um sujeito social ativo que define quais são os seus direitos e luta para que sejam reconhecidos. Este novo papel do cidadão forçou a sociedade e as instituições públicas a repensarem suas funções, obrigando-as a conviver com uma maior demanda aos serviços por elas prestados. Nesse sentido, o Arquivo passou a ter um papel de destaque para a comprovação de direitos, mediante o acesso aos documentos armazenados. Frente a esse novo quadro, pode-se tentar explicar a dificuldade que os Arquivos têm encontrado em divulgar seu acervo, apesar de já existirem atualmente profissionais preocupados em fazê-lo. Porém, é bom ressaltar que tanto no Arquivo, quanto em museus e bibliotecas públicas, ainda existem profissionais que acham que os respectivos acervos não deveriam ser expostos ao público, visto que a exposição sempre representa riscos. Para eles, o mais importante é ter estes registros bem guardados, a fim de que continuem existindo, mesmo que jamais sejam vistos por ninguém. De acordo com Marilena Leite Paes, o “museu é a instituição de interesse público, criada com a finalidade de conservar, estudar e colocar à disposição do público conjuntos de peças e objetos de valor cultural”, e a “biblioteca é o conjunto de material, em sua maioria impresso, disposto ordenadamente para estudo, pesquisa e consulta” (1991, p. 1-2). A autora opõe as duas instituições ao Arquivo, alegando que a finalidade das mesmas é “cultural”, enquanto o Arquivo teria objetivos funcionais, ou seja, sua finalidade é servir à administração, tal qual um Cartório. ANTROPOLÍTICA

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Embora este fato não seja negado, tal postura vem sendo contestada por funcionários que alegam que os acervos dos Arquivos também possuem valor “cultural”, e não apenas administrativo. Esta mudança tem alterado também o modo pelo qual esses funcionários representam as suas funções, levando-os a um questionamento sobre suas práticas, tendo em vista uma preocupação maior com o público, abandonando um pouco o perfil do “funcionário burocrático” da administração pública.

O

SEGREDO E A

“ POLÍTICA

DO SIGILO ”

Pelos motivos apontados ao longo do texto, não podemos atribuir a não divulgação dos fatos apenas a uma questão de responsabilidade pessoal dos funcionários, posto que vivem sob uma tradição,18 que ao garantir a perpetuação de certos hábitos reproduz a “política do sigilo”, cuja característica principal é a expressão de um certo temor: os documentos públicos quando analisados podem significar uma censura a uma má administração. Segundo José Honório Rodrigues (19891990, p. 13), a “política do sigilo” é uma velha tradição portuguesa que pretende esconder e sonegar os documentos, independentemente do tempo já decorrido. Além do prazo fixado pela lei, ou pela vontade do cidadão, no caso de documentos particulares, existe um outro aspecto a ser destacado no acesso à informação. Este aspecto está relacionado a essa “política do sigilo”, uma tradição oral que ensinou às sucessivas gerações de arquivistas que “certos” documentos não deveriam ser abertos ao público, e que os critérios utilizados para a seleção destes documentos não deveriam ser explicitados. O temor pela existência de restrições e pela existência de documentos sigilosos está relacionado a nossa tradição inquisitorial, em que investigações sigilosas precediam às acusações públicas durante os procedimentos judiciais. Conseqüentemente, o que era sigiloso sempre poderia deixar de ser. Essa relatividade do sigilo na sociedade brasileira continua presente até hoje, conforme podemos verificar na nova legislação acerca da questão arquivística, mais precisamente no artigo 24 da Lei nº 8.159/91: “Poderá o Poder Judiciário, em qualquer instância, determinar a exibição reservada de qualquer documento sigiloso, sempre que indispensável à defesa de direito próprio ou esclarecimento de situação social de parte” (grifo nosso). Ou seja, não há uma efetiva garantia de que os documentos são realmente sigilosos. De acordo com a lei, o sigilo pode ser quebrado pelo ANTROPOLÍTICA

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Poder Judiciário, podendo ser usado para a “defesa do cidadão”, mas não há nenhuma garantia de que os documentos sigilosos não possam ser usados contra o cidadão. As categorias do sigilo que servirão para a classificação dos documentos públicos não foram fixadas, pois dependem da regulamentação da Lei de Arquivos, o que ainda não aconteceu. Assim, na falta destas definições, os critérios utilizados para os procedimentos classificatórios dependem exclusivamente dos regulamentos internos das instituições e/ ou da vontade de seus dirigentes, a quem cabe o poder de julgar, segundo critérios pessoais, o direito de acesso à informação. Também merece destaque o fato de que as “práticas de tratamento documental” não constituem apenas um método de “armazenamento de dados”, na realidade são um poderoso mecanismo de controle, já que não tornam universalmente acessíveis os acervos sob sua guarda. Os mecanismos utilizados para tal fim são variados, e vão desde a não explicitação das restrições e dos critérios classificatórios da documentação até a acumulação desordenada.

O

SEGREDO COMO MECANISMO DE CONTROLE

O controle do acesso às informações, quando orientado pela existência do segredo, entendido tal como Scheppele o definiu, como a parte da informação que é intencionalmente sonegada por um ou mais atores sociais dos demais, transforma o segredo em um mecanismo que, devido a sua significação simbólica, serve de base para a construção de identidades pessoais e/ou coletivas. O segredo, ao ser compartilhado e individualizado, cria no meio social a possibilidade da autonomia individual, porém paradoxalmente serve também de base para o desenvolvimento do poder, que, por sua vez, controla essa autonomia. Tradicionalmente, o segredo foi estudado pela teoria antropológica relacionado a fenômenos religiosos, cujo enfoque estava voltado para o entendimento do papel dos conhecimentos secretos em sociedades secretas e em rituais iniciatórios. Porém, o enfoque que pretendo desenvolver aqui é o do segredo como parte inerente à vida cotidiana, o qual, para Piot, tem um papel fundamental na negociação dos significados e nos tipos indiretos de comunicação, que constituem o dia-a-dia das relações sociais. Desse modo, o segredo também está relacionado às noções de vergonha, de hierarquia e de igualdade, e aos respectivos contextos nos quais se materializam. ANTROPOLÍTICA

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O uso do segredo como técnica sociológica, como forma de ação, que se mantém neutra acima dos valores de seus conteúdos, sem o qual não se poderia atingir alguns fins, fica claro quando este produz um sentimento de propriedade exclusiva, resultante da necessidade de que outros não tenham essa coisa possuída. Para Simmel, esta atitude é fundamentada pela necessidade que o homem tem de manter a diferença, de não desejar a igualdade. O segredo funciona como elemento diferenciador porque é capaz de criar posições excepcionais, exercendo uma atração social determinada independente de seu conteúdo, agindo, então, como um elemento individualizador. Simmel analisou o segredo tendo como referência as sociedades individualistas,19 nas quais a idéia de indivíduo aparece como uma construção histórica, não universal, relacionada às dinâmicas dos conflitos originados pelo desenvolvimento do capitalismo. Nesse contexto, o segredo é visto como o elemento produtor de identidades, através do estabelecimento de direitos individuais, tais como o direito à privacidade. Porém, segredo e privacidade representam entidades diferentes: o primeiro representa a informação sonegada intencionalmente, que reforça uma relação de poder; já a privacidade representa a possibilidade de autonomia dos indivíduos. Ao analisarmos o papel do segredo na sociedade brasileira nos defrontamos com uma sociedade em que há a convivência de um modelo moral hierárquico, holístico e complementar com um modelo individualizante e universal presente nas legislações. Assim, o segredo se torna uma forma legítima de produção de poder que, no entanto, gera exclusão e desigualdade, fazendo com que algumas pessoas tenham acesso a tudo, enquanto as que ficam à margem necessitem descobrir meios de participar da socialização da informação, nem sempre sendo bem-sucedidas. Kant de Lima ressalta ainda que a própria idéia de igualdade tem significados distintos em sociedades hierárquicas e em sociedades individualistas. No primeiro tipo, ela se fundamenta na semelhança, ou seja, os indivíduos são iguais porque são semelhantes; já no segundo, é fundamentada na diferença; deste modo, os indivíduos são iguais porque são diferentes. A significação sociológica do segredo está no modo de sua realização. Sua medida prática está na capacidade ou inclinação do sujeito para guardá-lo, ou na sua resistência diante da tentação de traí-lo. A revelação do segredo faz com que o sujeito fique vulnerável em seu conhecimento, e, por isso, passível de manipulação. Segundo Kim Schepelle, ANTROPOLÍTICA

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as defesas do segredo, diferentemente das defesas físicas, nunca podem ser reconstituídas, posto que um segredo ao ser revelado jamais pode ser mantido. O paradoxo do segredo é que ele, para ter sentido, deve ser revelado. A existência do segredo serve para mostrar o modo pelo qual a informação é compartilhada em um contexto e restrita em outros, explicitando, assim, as diferenças nos tipos de relações sociais, fazendo ver quem são “o nós” e quem são “os outros”. O segredo possibilita a existência de um mundo distinto do mundo aparente, o que cria um campo de ambigüidade, e conseqüentemente de interpretações conflitivas sobre a realidade, forçando à negociação das posições sociais. A diferenciação social originada pela obtenção de um conhecimento privado traz o prestígio, entendido como a atribuição de uma competência a alguém por outros sujeitos. Para José Gil, o prestígio pode-se transformar em poder, à medida que a pessoa saiba manipular os signos que o representam, de modo a construir um conjunto de significados, com os quais atua sobre a realidade, criando um código ao qual somente ela tem acesso. A estratificação dos que podem, ou não, ter acesso à informação (o segredo) expõe a mentira como o mecanismo utilizado para a preservação de uma possível revelação. Como afirma Kim Schepelle, a mentira é a forma mais sofisticada do segredo, pois envolve a sua sonegação e a substituição por uma outra informação. O documento escrito é, por essência, oposto a tudo o que é secreto, porém, conforme o modo pelo qual as sociedades controlam o acesso à escrita,20 esta também pode fortalecer a existência do segredo. É isso que se verifica na sociedade brasileira onde o domínio da palavra escrita atua como um patrimônio privado, e quem o possui tem a possibilidade de conhecer a verdade, o que acaba por lhe conferir autoridade. Para Laura Gomes, esses fatos expressam o modo como a hierarquia é concebida e experimentada em nossa sociedade, na qual “o conhecimento leva à verdade, por sua vez a verdade confere autoridade e poder” (1991, p. 128). O segredo possui um duplo caráter: é uma forma de controle social, pois dá poder a quem o possui, e, ao mesmo tempo, representa a possibilidade de mudança, pois, à medida que pode ser revelado, cria novas relações de poder e conhecimento.21 A importância do Arquivo enquanto “fornecedor de provas” é fundamental para o entendimento dessa “política do sigilo”, pois, por serem ANTROPOLÍTICA

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secretas, as provas constituem um patrimônio que está sendo sempre negociado numa relação de troca22 entre a sociedade e o Arquivo, de modo que “os segredos tais como dons são trocados” (GOMES, 1991, p. 137). Sendo o Arquivo a instituição à qual se atribuiu a função, efetiva e simbólica, de guardar os documentos, e tendo em vista o papel que o segredo exerce na sociedade – ser o elemento diferenciador – compreende-se o porquê de certas práticas apropriativas e manipuladoras persistirem, apesar de um discurso moderno e democrático a favor do direito à informação. Por ter o poder de controlar a revelação dos fatos, o Arquivo reforça o seu papel de instituição do segredo na estrutura social, legitimadora do conhecimento como algo esotérico. Somente os “iniciados” podem ter o direito à verdade, que confere poder e autoridade a quem possuí-la.

DO

CAOS À ORDEM : O SEGREDO REVELADO

Neste artigo, procurei desenvolver algumas questões que pudessem contribuir para a compreensão de como os Arquivos Públicos tratam seus acervos. Uma primeira conclusão alcançada é a de que os Arquivos Públicos no Brasil não possuem regras públicas e claras de acesso. Pode-se mesmo dizer que não existe uma “política de consulta”, assim, cada arquivo é “independente”, orientando-se apenas pelos critérios pessoais de um diretor temporário, que chega ao cargo através de uma nomeação, o que deixa a instituição vulnerável aos seus projetos pessoais, que nem sempre têm como prioritário o interesse do próprio arquivo e do público. A não existência de uma “política de consulta” dificulta a obtenção da informação desejada, o que provoca no usuário dois tipos de sentimento: a desconfiança, pois não crê que seja possível encontrar alguma coisa no meio “daquela confusão de papel”; e o alívio, ou surpresa, ao constatar que os documentos existem, estão guardados e são acessíveis. Em relação a isso acrescenta-se uma tradição inquisitorial (KANT DE LIMA, 1992), segundo a qual a suspeição rege as relações, fazendo com que o suspeito seja culpado até que se prove o contrário. Sendo assim, aumenta-se a dificuldade na obtenção das informações desejadas, pois o usuário é muitas vezes visto como suspeito. Logo, “no Brasil, os documentos públicos e as pessoas que por eles se interessam são suspeitos” (HEYNEMANN, 1989-1990, p. 77). ANTROPOLÍTICA

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Por outro lado, a instituição também não é considerada muito confiável pelos usuários, pois pode estar “traindo” a sua confiança ao não lhes fornecer o que procuram. Conforme afirmou um funcionário, “nem sempre se pode confiar nas respostas dadas sobre um documento que não foi encontrado, às vezes se diz que ele está na restauração, mas, na verdade, ele está desaparecido”. Se analisarmos a atual Lei de Arquivos, veremos que os direitos do cidadão de acesso às informações estão formalmente resguardados. Porém, como ressalta Wanderley Guilherme dos Santos (1979), o mero reconhecimento da universalidade da cidadania não assegura uma participação justa na distribuição de bens e valores sociais. O maior obstáculo ao acesso é a desorganização dos acervos, que desempenha um papel fundamental, já que impede a obtenção da informação: “a maior parte da documentação produzida é ostensiva, não é sigilosa, a dificuldade do acesso está na sua organização e na falta de uma política de gestão, pois a informação não organizada não serve para nada, a informação armazenada é imprestável” (depoimento de um funcionário). Pode-se afirmar, portanto, que a falta de uma organização real dos Arquivos é a causa da transformação do material preservado em sigiloso, já que só possibilita o seu acesso aos poucos que conseguem compreender sua lógica de funcionamento, tal qual a biblioteca descrita por Umberto Eco em seu livro O nome da rosa. Somente a efetiva discussão sobre essa questão poderá ocasionar uma mudança nesses procedimentos, visando repensar a forma como construímos a nossa memória,23 a nossa identidade e nossa cidadania, posto que a memória tem como função interferir no processo de construção das representações individuais e coletivas, permitindo a relação do presente com o passado. Portanto, a construção da identidade é um fenômeno que se produz em referência a outros, em referência aos critérios de aceitabilidade, de credibilidade, e que se faz por meio da negociação direta com outros. [...] a memória e a identidade são valores disputados em conflitos sociais e intergrupais (POLLAK, 1992, p. 204-205).

A perda progressiva da memória equivale à perda progressiva da identidade. Assim, quando a memória social é reduzida, anulada ou abafada, a sociedade perde a capacidade de conservar sua própria história. A identidade se extravia e as pessoas não conseguem exercer seu papel na coletividade, exercer sua cidadania. A existência de uma memória ANTROPOLÍTICA

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viva é fundamental aos processos de construção de identidade e cidadania, daí a importância de “instituições-memória” eficientes e confiáveis. Esses fatos reiteram a importância de a preservação do acervo estar vinculada à possibilidade de acesso do público às instituições, de tal modo que os obstáculos administrativos e/ou corporativos sejam superados, evitando-se a concentração de poder decisório nas mãos de uns poucos. O acesso deve ser assegurado pela existência de critérios explícitos e publicamente conhecidos, que constituem o princípio fundamental necessário à garantia da universalidade dos direitos.

ABSTRACT This article analyzes information based on the ethnography of the Archive’s functions realized in Rio de Janeiro. It’s aims to observe the different process of the document’s production, preservation and divulgation. Our hypothesis is that procediments have been an influence by a Mediterranean tradition, which the public bureaucratic system cohabits with a private system of relationship and friendship. These two codes, socially legitimated, change the Archive’s function into a secret place. Keywords: Archive; secret; information; bureaucracy; personal relationship.

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N OTAS 1

Sobre tradições mediterrâneas, ver Braudel (988), Peristiany (1988) e Pitt-Rivers (1988, 1992).

2

Os códigos são entendidos aqui como “eixos classificatórios”, ver DaMatta (1987).

3

Sobre os processos de produção de verdade e resolução de conflitos no Brasil, ver Kant de Lima.

4

Durante o trabalho de campo, constatei que esta estrutura não era exclusiva do Arquivo, pois já havia sido observada em Cartórios (MIRANDA, 1993). Considerei então que ela poderia estar presente em outras instâncias de produção e consagração da verdade em nossa sociedade, inclusive nas chamadas “instituiçõesmemória” – bibliotecas, museus e centros de documentação (LE GOFF, 1984).

5

Agradeço ao professor Roberto Kant de Lima ressalva feita com relação à categoria público, que em nossa sociedade não está relacionada com o acesso a um determinado serviço, mas com a idéia de uma coisa que não tem dono, ou que pertence ao Estado, chamado, às vezes, significativamente, de “viúva”.

6

Os arquivos são classificados em correntes, conjunto de documentos em curso ou de uso freqüente; intermediário, conjunto de documentos procedentes de arquivos correntes, que aguardam destinação final; permanentes, aqueles que são preservados, respeitada a destinação estabelecida, em decorrência de seu valor probatório e informativo. Ver Paes (1991) e Belloto (1991).

7

É interessante observar que os arquivistas, embora negassem os estereótipos dos arquivos, sempre se referiam a eles como exemplos.

8

Para a burocracia de balcão, ver Miranda (1993).

9

Merece destaque o papel que os intermediários exercem em “sociedades relacionais”, como diz DaMatta, são eles que promovem “a dinâmica social, criando zonas de conversação entre posições [...] Seu papel não é o de simplesmente sanar cinicamente o conflito, mas de representar um outro pólo estrutural: o do meio, o da figura que está nos dois lados” (1987, p. 112-113).

10

Sobre clientes, ver Peristiany (1988). Sobre a relação de clientes com o serviço público, ver Miranda (1993).

11

O Arquivo Nacional da Torre do Tombo guarda os documentos do Estado português desde a sua origem e grande quantidade de documentos de muitas instituições não estatais. O interessante é que estes documentos foram depositados “provisoriamente”, desde o terremoto de 1755, no Mosteiro de São Bento da Saúde, e lá ficaram por mais de 230 anos.

12

Para uma discussão sobre o “arquivo morto”, ver Miranda, Mouzinho (1996).

13

É importante enfatizar a classificação de documentos como históricos e arquivísticos. Os primeiros estariam relacionados com o passado, o antigo, o velho, enquanto o conceito de arquivístico teria relação com os documentos mais recentes. Atualmente se diz que não há mais esta distinção, que o importante é o “tratamento orgânico do acervo”, mas ainda existem profissionais que fazem essa diferenciação.

14

A categoria sigilo é usada aqui no sentido de conhecimentos que são considerados como secretos e reservados, em oposição a conhecimentos de aquisição imediata. Ver Dal Pra (1990).

15

Devo salientar que a “nova e moderna” Lei de Arquivo tem como uma de suas preocupações a garantia da honra. Para Julian Pitt-Rivers, “o conceito de honra varia de época para época e a sua importância diminuiu muito na sociedade urbana moderna” (1988, p. 49). Porém, apesar de não possuir a força que possuía em determinadas sociedades mediterrâneas, a honra na sociedade brasileira pode ser considerada “um mecanismo que distribui poder, determina quem deve ocupar os lugares de comando e dita a imagem ideal que as pessoas têm da sua própria sociedade” (1988, p. 56). É, portanto, básica para o entendimento dos sistemas de trocas e dos conflitos em nossa sociedade. Ver também Pitt-Rivers (1992).

16

Sobre as práticas acadêmicas, ver Pinto (1993).

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149 17

Sobre burocracia no Brasil, ver Barbosa (1996a), Gouvêa (1994), e Schwartz (1979).

18

O conceito de tradição é entendido aqui como um determinado “padrão” oculto, produzido por um grupo.

19

Sobre a oposição entre sociedades individualistas e hierárquicas, ver DaMatta (1983) e Dumont (1985).

20

Sobre a escrita, ver Goody (1986) e Rama (1985).

21

Kim Schepelle (1988) chama a atenção para o fato de que tanto no Direito quanto na Medicina o poder é baseado no controle e na sonegação da informação. Aqueles que detêm o conhecimento o controlam de modo a excluir os outros da possibilidade de acesso ao mesmo.

22

Sobre as relações de troca, ver Mauss (1974).

23

Para uma discussão sobre a memória, ver também Le Goff (1984).

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MARCELO PEREIRA

A

DE

M E L L O*

CONCEPÇÃO DA DESIGUALDADE EM

H OBBES , L OCKE

E

R OUSSEAU

Este artigo procura discutir o tema da desigualdade em três autores clássicos da teoria política: Thomas Hobbes, John Locke e Jean-Jacques Rousseau, usualmente identificados com a discussão do seu contrário, ou seja, da igualdade. Inspiradores das formulações liberais sobre a institucionalização das liberdades políticas, as suas abordagens explicitam as condições da igualdade entre os indivíduos como precondições e como elementos universais que favorecem a legitimação do poder político. Nosso intuito aqui será, então, discutir as contrafações da igualdade entre os indivíduos nas teorias liberais, tornando explícito o que cada um destes autores subentende como desigualdade. Acreditamos que a relevância desta provocativa abordagem está em discutir os pressupostos destas teorias mostrando as suas fragilidades para o entendimento dos processos de institucionalização das sociedades políticas contemporâneas. Palavras-chave: desigualdade; teoria liberal; natureza.

*

Professor Adjunto de Sociologia da Universidade Federal Fluminense e professor do Programa de PósGraduação em Sociologia e Direito – PPGSD/UFF.

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I NTRODUÇÃO O objetivo deste artigo será discutir a questão da desigualdade tal como formulada por Thomas Hobbes (1979), John Locke (1979), e JeanJacques Rousseau (1980a, 1980b), a partir de dois eixos básicos: o primeiro, relativo aos próprios conteúdos das teorias destes autores e às suas afirmações categóricas e/ou indiretas sobre o tema. Não se trata, aqui, bem entendido, de fazer uma exegese dos textos destes autores, tarefa que ultrapassa as pretensões deste estudo, mas apenas de indicar o lugar da desigualdade na reflexão sobre a organização social e política e as implicações disso para o modelo teórico desenvolvido por cada um destes autores. Penso que terei cumprido o meu objetivo se a provocação de discutir a desigualdade a partir de autores explicitamente preocupados com o seu contrário estiver amparada em evidências que não contradigam os conteúdos analisados e que possa participar com propriedade das reflexões estimuladas pelos referidos autores. O segundo eixo deverá conduzir uma discussão epistemológica dos modelos teóricos em questão. A despeito das limitações deste trabalho para extrair as várias conseqüências do problema, gostaria de discutir algo que julgo importante e que diz respeito à exploração dos limites, das potencialidades e da intercomunicabilidade dos modelos teóricos. O pressuposto desta análise é o de que nos próprios clássicos do pensamento político e social é possível exemplificar com acuidade alguns dos dilemas básicos das ciências políticas e sociais, em especial os problemas relativos à opacidade e à descontinuidade entre os conceitos e a realidade factual que eles querem explicar. Ambas as discussões serão conduzidas sincronicamente no trabalho de forma a contemplar nosso problema particular que é, como disse, analisar as concepções de desigualdade nos referidos autores.

A

DESIGUALDADE NATURAL EM

T HOMAS H OBBES

O tema da igualdade em Hobbes é, com muita propriedade, recorrente em inúmeras análises feitas sobre a obra deste autor. Afinal, no Leviatã, Hobbes se dedica a descrever os inúmeros aspectos da igualdade natural dos homens que é a precondição essencial para a montagem de todo o seu modelo teórico e para a solução institucional universal que este autor apresenta para o problema da ordem. Esse pressuposto da igualdade natural é cuidadosamente trabalhado em diversos momentos da obra de Hobbes, embora possamos destacar ANTROPOLÍTICA

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a discussão deste tema nos seguintes capítulos do Leviatã: no Capítulo XIII, quando o autor descreve o “Estado de Natureza” como o resultado dramático da condição de absoluta igualdade entre os indivíduos; no Capítulo V, quando o autor expõe a sua concepção da “Razão” como um atributo inalienável do indivíduo; e, ainda, indiretamente, na exposição da sua teoria mecanicista dos componentes essenciais da existência humana, “da matéria da qual são feitos os Homens”, da organização de nervos e músculos, como diz, feita nos dez primeiros capítulos do livro em questão. Nesse trabalho, entretanto, em que pese a centralidade desse tema no modelo do autor, a concepção hobbesiana de igualdade será discutida especialmente de forma a abordar o seu reverso, ou seja, a questão da desigualdade. Tal será o tema que orientará a nossa discussão do conteúdo do Leviatã de Thomas Hobbes e que esperamos propicie também a análise de alguns pressupostos do modelo do autor. Como não há, no Leviatã, nenhum capítulo específico sobre a desigualdade, creio que devemos iniciar nossa discussão pelo próprio Capítulo XIII, anteriormente citado, em que Hobbes discute as conseqüências “práticas” da igualdade absoluta que ele imagina ser o principal atributo dos homens no estado natural. É nesse momento que o autor delineia, na minha opinião, ainda que de forma negativa, isto é, pela discussão do seu contrário, a sua teoria sobre a desigualdade. O autor principia este capítulo XIII, com a seguinte observação: A natureza fez os homens tão iguais, quanto às faculdades do corpo e do espírito que, embora por vezes se encontre um homem manifestamente mais forte de corpo, ou de espírito mais vivo do que outro, mesmo assim, quando se considera tudo em conjunto, a diferença entre um e outro homem não é suficientemente considerável para que qualquer um deles possa com base nela reclamar qualquer benefício a que outro não possa aspirar, tal como ele (HOBBES, 1979, p. 74).

Do que está dito acima pode-se depreender que a questão da desigualdade tal como elaborada por Hobbes se apresenta como uma “contrafuga” da mesma concepção de igualdade que o autor atribui aos indivíduos no estado natural. Nessa concepção, a desigualdade é vista, no limite, como uma diferença natural de habilidades particulares, de diferentes “dons”, como os que distinguem o literato e o cientista do homem prático; ou ainda, simplesmente, como uma desigualdade de dotes físicos ou até de inteligência, mas que jamais chegam a ANTROPOLÍTICA

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comprometer a condição essencial de igualdade entre os indivíduos: “Pois todos os homens raciocinam de maneira semelhante, e bem, quando têm bons princípios” (HOBBES, 1979, cap. 5, p. 30). Essa reflexão sobre a desigualdade no modelo teórico de Hobbes nos enseja uma avaliação crítica das suas afirmações desde uma dupla observação. Em primeiro lugar, a concepção naturalizada de desigualdade em Hobbes nos permite afirmar que o seu modelo teórico oferece instrumentos para a reflexão sobre a desigualdade entre indivíduos, mas não sobre a desigualdade social. Na verdade, não existe qualquer variável “social” no modelo hobbesiano, já que nele a sociedade aparece como um artifício derivado da criação do Estado. Neste sentido, a questão da igualdade e, portanto, da desigualdade, nos termos propostos, é pensada com a suposição de que é inerente aos indivíduos enquanto unidades biológicas e não à composição dinâmica de peças complementares de um conjunto social sui generis. Mesmo do ponto de vista formal, o modelo hobbesiano não dispõe de nenhum elemento que lhe permita avaliar os efeitos qualitativos da agregação social sobre o funcionamento prático dos sistemas políticos. Com efeito, o modelo fica impedido de trabalhar com o conteúdo das relações sociais a não ser de maneira artificial e secundária. Assim ocorre, porque no excêntrico modelo hobbesiano, cuja pressuposição é uma ordem política sem sociedade, os valores e sentimentos construídos tipicamente no convívio social são tratados como comportamentos simplesmente relacionais, isto é, como resultados da interação de unidades independentes. Tal é o caso das concepções de “glória”, “honra”, “cobiça” e “orgulho” e também “eqüidade”, “justiça” e “gratidão”, desenvolvidas ao longo do Leviatã. Veja-se, neste trecho do livro supracitado, a maneira como Hobbes argumenta em torno dos fenômenos supostamente morais: A lei de natureza e a lei civil contêm-se uma à outra e são de idêntica extensão. Porque as leis de natureza, que consistem na eqüidade, na justiça, na gratidão e outras virtudes morais destas dependentes, na condição de simples natureza... não são propriamente leis, mas qualidades que predispõem os homens para a paz e a obediência (HOBBES, 1979, p. 162).

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Em segundo lugar, a concepção naturalizada da desigualdade conduz a uma notável insuficiência do modelo para explicar problemas empíricos da realidade socioinstitucional. Em que pese a afirmação corrente em inúmeros de seus intérpretes, especialmente Greenleef (1980) e Polin (1980a, 1980b), de que o modelo teórico de Hobbes, sustentado pelo postulado de uma sociedade civil fundada a partir do Estado, é dotado de um alto grau de consistência lógica e abstração formal, construídas em torno de uma notável economia de pressupostos, a contraposição das suas abstrações com o solo fundacional da sua reflexão, isto é, com a realidade sensível que ele procura entender e explicar, demonstra uma incontrastável fragilidade. No modelo de Hobbes, não encontramos conceitos que nos permitam explicar, por exemplo, os conflitos sociais baseados em interesses econômicos ou/e valores morais e religiosos. Mesmo, e especialmente, os da Inglaterra de 1650. Não me refiro aqui aos “conflitos de classe” ou a qualquer outro tipo de conflito identificado, ex post, pelo acervo teórico contemporâneo das ciências políticas e sociais. Mas àquelas divergências inerentes aos grupos econômicos, étnicos, de status, religiosos e afins, inerentes à sociedade estratificada (“burguesa e capitalista”) que Hobbes via surgir. Em síntese, o que queremos indicar é que o modelo teórico de Hobbes não é capaz de incorporar as variáveis do tipo empírico-social para explicar a desigualdade e qualificar politicamente o modelo institucional que ele propõe. Em vez disso, opta por pressupostos mais “fortes”, no sentido de serem mais abstratos e universalizantes, que permitem a definição formal do problema, mas que limitam proporcionalmente sua capacidade de explicar ou mesmo refletir situações emergentes da dinâmica social. Quando se pensa a questão da desigualdade social como um dado empírico da própria Inglaterra contemporânea de Hobbes, sua teoria nada tem a nos informar. É natural, assim, que o “Estado-Leviatã” apareça neste modelo como a solução para os problemas de construção da ordem social. Do ponto de vista das implicações lógicas e do encadeamento dos pressupostos enumerados pelo autor, a concentração radical do poder político no Leviatã, segundo a solução institucional proposta, parece plenamente justificável num sistema que pressupõe indivíduos naturalmente iguais/desiguais.

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Para concluir, a concepção naturalizada da desigualdade em Hobbes constitui um pressuposto importante do seu modelo e expõe o caráter abstrato e formal de uma teoria que prescinde de qualquer variável societal. Creio que a lógica formal do modelo poderia ser sintetizada mais ou menos assim: dado que os Homens são absolutamente iguais quanto às faculdades do corpo e do espírito e independentes uns dos outros, as desigualdades só se manifestam através do conflito interindividual ou, no nível agregado, através da “guerra de todos contra todos”; mas nunca numa sociedade entendida como complexo de conflitos, desigualdades, valores comuns, ou algo dessa natureza. A ausência de uma variável sociológica constitui, na concepção hobbesiana de um estado gregário com características relativas a uma simples coleção das vontades individuais, um dos principais divisores do pensamento de Hobbes da tradição especificamente liberal, como em John Locke, por exemplo, que oferece um modelo teórico mais aberto ao reconhecimento do conflito e da desigualdade como efeitos derivados da interação social.

A D ESIGUALDADE COMO RESULTADO DA ESCASSEZ , EM J OHN L OCKE Em John Locke, pode-se dizer que o tema da desigualdade é enfrentado frontalmente, no seu Segundo tratado sobre o governo, a partir da exposição de cada um dos três principais estágios do modelo analítico proposto pelo autor: o estado de natureza, o primeiro; o surgimento do dinheiro, o segundo; a escassez de recursos, o conflito e a emergência da sociedade política, o terceiro.1 No modelo teórico de John Locke, da mesma forma como em Hobbes, a questão da desigualdade não é tratada de maneira especial nem é considerada a partir de uma perspectiva estritamente social. Entretanto, como se verá pela exposição sucinta dos seus argumentos, Locke consegue um maior rendimento no tratamento deste tema porque seu modelo reconhece a especificidade das relações sociais como um componente a ser enfrentado na reflexão sobre a ordem. Já na descrição do estado de natureza, no que estamos chamando de primeiro estágio do modelo, é possível perceber que para Locke o estado de natureza não se confunde com uma divisão atomística da sociedade nem degenera num conflito generalizado de unidades independentes, tal como ocorre no modelo hobbesiano. ANTROPOLÍTICA

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Em contraste com a teoria de Hobbes, o modelo teórico de John Locke postula a existência de um estado de natureza composto por indivíduos que estabelecem laços de convivência que os integram a uma vida em sociedade antes da formação da sociedade política: O estado de natureza tem uma lei de natureza para governá-lo que a todos obriga; e a razão, que é essa lei, ensina a todos os homens que tão-só a consultem, sendo todos iguais e independentes, que nenhum deles deve prejudicar a outrem na vida, na saúde, na liberdade ou nas posses (LOCKE, 1979, p. 33).

De acordo com o autor, seriam três os fatores responsáveis, no estado de natureza, pelo gregarismo originário da vida societal: a atração sexual, na medida em que gera os filhos e constitui as emoções primitivas da vida familiar; a produção econômica, que estimula o intercâmbio com vistas ao incremento da produtividade, gerando com isso elos de interdependência que transcendem o aspecto puramente econômico; e, por fim, o domínio senhorial, que estabelece relações duradouras de respeito e fidelidade entre as pessoas. A combinação destes elementos com uma natureza prodigiosa em termos dos recursos disponíveis à satisfação das necessidades básicas oferece as condições perfeitas para o convívio harmônico dos indivíduos no estado natural. Neste estado natural, os princípios básicos do direito natural podem ser exercidos livremente pelos indivíduos: a igualdade, que é dada pela capacidade comum de todo ser de dispor da sua racionalidade para efeitos da autoconservação; a liberdade, no sentido da independência da vontade do outro; e a propriedade, que é o direito de aquisição dos recursos naturais por intermédio do trabalho. Neste último quesito, o corpo aparece como a fonte primordial e o veículo próprio da aquisição e da fruição das riquezas conquistadas pelo trabalho. Locke sintetiza a sua composição desta maneira: De tudo isso, é evidente que, embora a natureza tudo nos ofereça em comum, o homem sendo senhor de si próprio e proprietário de sua pessoa e das ações ou do trabalho que executa, teria em si mesmo a base da propriedade; e o que forma maior parte do que aplica ao sustento ou conforto do próprio ser, quando as invenções e as artes aperfeiçoam as convivências da vida, era perfeitamente dele, não pertencendo em comum aos outros (LOCKE, 1979, p. 51-52).

Com respeito ao ponto específico da nossa reflexão, ou seja, a desigualdade, não obstante a concepção societal que, como dissemos, permeia a ANTROPOLÍTICA

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descrição lockeana do estado de natureza, ela aparece ainda dentro de uma perspectiva naturalizada. Em Locke, persiste a concepção de que a desigualdade é simplesmente o resultado do empenho diferenciado com que as pessoas se entregam ao trabalho, isto é, à modificação da natureza para a satisfação de suas necessidades e paixões. No estado de natureza, além disso, essa desigualdade jamais degenera para um conflito generalizado, “social”, como diríamos, hoje, por dois motivos centrais: o primeiro deriva da própria abundância dos recursos disponíveis, suficientes para a satisfação de todos os apetites; o segundo diz respeito ao imperativo ético da relação das pessoas entre si e com a natureza, que controla o acesso dos indivíduos aos recursos da natureza de acordo com as suas necessidades, impedindo, assim, qualquer um deles de adquirir mais recursos do que possa fruir. O tema da desigualdade será retomado no segundo estágio do modelo, quando Locke discute o surgimento do dinheiro e, depois, quando ele descreve a transição da organização social espontânea para a sociedade política como uma decorrência da escassez, e introduz a idéia do conflito como um traço inerente da ordem. Ainda assim, permanece na sua argumentação, como se verá, a mesma concepção naturalizada da desigualdade entre os indivíduos. De acordo com Locke, o surgimento do dinheiro marca um capítulo especial da evolução da ordem social primitiva ou natural. Segundo o autor, o consenso em torno do valor e dos usos dos metais preciosos e, especificamente, do dinheiro representa um momento especial da evolução societal por uma dupla razão: a primeira delas, de natureza econômica, está relacionada ao fato de que o dinheiro dá vazão à potencialidade de produção do indivíduo, fazendo com que ele possa ampliá-la para além da subsistência e do consumo pessoal, sem que isso signifique o rompimento dos limites primordiais da fruição e incorra no desperdício. Sendo o dinheiro imperecível, a sua acumulação ou de propriedades que tenham correspondência com um valor monetário, seja para uso futuro ou simples troca, é perfeitamente conforme à racionalidade natural, porque não subtrai destrutivamente recursos da reserva comum da humanidade. A segunda razão, igualmente importante, embora menos desenvolvida na reflexão do autor, se encontra no fato de que o surgimento do dinheiro expressa um elevado estado de consenso social em torno de valores comuns, e isso tem efeitos positivos sobre a ordem. O dinheiro, portanto, de acordo com Locke, tem esse poder paradoxal de incrementar a desigualdade natural entre os indivíduos ao mesmo ANTROPOLÍTICA

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tempo em que reforça um universo comum de valores que assegura a coesão dos grupamentos sociais. Segundo Locke: [...] Os homens tornaram praticável semelhante partilha [de ouro e de prata] em desigualdade de posses particulares fora dos limites da sociedade e sem precisar de pacto, atribuindo valor ao ouro e à prata, e concordando tacitamente com respeito ao uso do dinheiro (LOCKE, 1979, p. 53).

Como se observa, a despeito de incorporar a idéia da sociedade como um estado sui generis da organização dos indivíduos, neste segundo momento da análise de Locke, a desigualdade é tratada, ainda, de maneira naturalizada, isto é, como uma decorrência de disposições individuais diferenciadas. Observe-se que, embora o dinheiro seja uma convenção social, os recursos econômicos que ele torna possível mobilizar têm origem no trabalho e na operosidade individuais, sem qualquer mediação social. A terceira e última parte do estudo em foco aborda a emergência da sociedade política a partir do problema da escassez. Segundo a descrição lockeana, a exploração até o limite da capacidade de acumulação de propriedades propiciada pelo dinheiro gera um contexto de escassez de terras e de riquezas naturais que o autor acredita ser a fonte real de movimentos de perturbação da ordem natural das sociedades e o principal motivo que move os homens para a regulação política, pela necessidade de se instituir um poder regulador para os apetites. A emergência de um poder político comum, resultante do consentimento unânime dos indivíduos, é abordada por Locke nos Capítulos VII, VIII e IX da obra citada, quando o autor se dedica à discussão sobre a formação das sociedades políticas. Em Locke, entretanto, podemos adiantar, o estabelecimento da sociedade política não implica qualquer mudança radical no quadro gregário original, dado que sua finalidade é exatamente preservar as conquistas dos indivíduos e restabelecer os direitos naturais à igualdade e à propriedade, sempre que eles forem desrespeitados. Ou seja, a autoridade legitimamente constituída para arbitrar os conflitos deve ter como limite claro o respeito à ordem civil preexistente. Isso inclui, naturalmente, a propriedade conquistada no estado natural e, conseqüentemente, a desigualdade perpetrada pelo trabalho individual. Se compararmos as concepções de Locke e Hobbes sobre a desigualdade, veremos uma convergência expressiva nas suas concepções, em que ANTROPOLÍTICA

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pesem algumas diferenças fundamentais dos seus respectivos modelos teóricos. Em ambos, tal questão aparece como um produto de diferenças individuais e circunscritas às leis que regem a vida das pessoas no estado natural. Apenas em Locke, a sua preocupação com a precedência da ordem civil sobre a ordem política, bem como com os limites do poder do Estado sobre os indivíduos ensejam que seu modelo absorva com maior desenvoltura a questão da desigualdade de interesses individuais num contexto societal, contemplada na análise deste autor sobre o conflito e sobre as formas legítimas da intervenção estatal para a sua superação. Dessarte, seu modelo institucional consegue absorver a idéia do conflito como resultado previsível e rotineiro do convívio social, vide a discussão sobre a repartição dos poderes políticos entre poder executivo, poder legislativo e poder federativo (LOCKE, 1979, p. 86-101), sem abandonar o pressuposto de uma desigualdade naturalizada, pois que ela é fruto, segundo o autor, do confronto natural de interesses (racionalidades) individuais irredutíveis, em última instância, do “bem comum”. Para concluir esta seção, devemos observar que a desigualdade, tal como a aborda Locke, e o conflito oriundo do choque das racionalidades no esforço da autoconservação têm ainda como substrato o indivíduo e não os grupamentos sociais.

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SOCIAL EM

R OUSSEAU

A centralidade do tema da desigualdade em Rousseau torna sua teoria de importância especial para a nossa discussão. Afinal, o esforço teórico deste autor se dirige explicitamente a entender a maneira pela qual os indivíduos perdem a “igualdade natural” e se submetem a uma ordem política comum que, no entanto, legitima e perpetua a desigualdade. Rousseau, como se demonstrará, introduz na discussão liberal sobre a desigualdade algumas concepções que lhe permitem, mais que a qualquer dos autores analisados, aprofundar a compreensão desse assunto desde uma perspectiva especificamente social. Contudo, creio não ser ocioso para a compreensão do problema a observação preliminar de que o tema da desigualdade em Rousseau tem um tratamento diferenciado em cada uma das duas obras deste autor selecionadas para esse trabalho, variando de uma perspectiva mais formalista e abstrata, à maneira hobbesiana, em O Contrato Social (ROUSSEAU, 1980a), até uma definição mais etnográfica e mesmo empiricista da desigualdade no ANTROPOLÍTICA

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Discurso sobre a origem da desigualdade e os fundamentos da desigualdade entre os homens (ROUSSEAU, 1980b). Com respeito ao modelo teórico do Contrato Social, o que me parece ser mais interessante é que Rousseu obtém melhor rendimento que o modelo de Hobbes para explicar a desigualdade social, apesar de ele operar com os mesmos pressupostos básicos do modelo hobbesiano. A saber: indivíduos isolados, um estado de natureza e um pacto social fundador da ordem política. Entretanto, a suposição de indivíduos bons e sociáveis, em vez de egoístas e vorazes, como na suposição de Hobbes, propicia ao modelo rousseauísta o enfrentamento da questão da construção da ordem política, tendo por base as relações sociais. Sua diferença em relação a Hobbes é explicitada, entre outras, pela seguinte passagem: “Antes [...] de examinar o ato pelo qual o povo elege um rei, seria bom examinar o ato pelo qual o povo é um povo, porque esse ato, sendo necessariamente anterior ao outro, constitui o fundamento da sociedade” (ROUSSEAU, 1980a, p. 29). Exposto sucintamente, o modelo teórico de Rousseau, utilizado no Contrato Social para explicar a origem da sociedade e das instituições políticas, podemos destacar o seguinte: em primeiro lugar, o autor concebe um estado de natureza povoado por indivíduos isolados, agrupados no máximo em famílias pouco extensas, naturalmente livres, iguais e sem qualquer referência moral que neles faça desenvolver sentimentos de orgulho, ambição ou glória. Nem mesmo a linguagem, fruto que é da convenção de sinais de comunicação, os indivíduos conheceriam nesse estado. No entanto, nesse estado natural, o Homem descrito por Rousseau é bom e feliz na sua ignorância das regras do convívio social. Como é fácil deduzir, dadas as características desse estado de natureza projetado por Rousseau, a desigualdade continua sendo concebida, tal como nos autores anteriormente abordados, especialmente Hobbes, como uma decorrência de acidentes e inclinações naturais. No Contrato social, alguma mudança neste tipo de abordagem naturalizada do problema se faz notar no momento em que Rousseau começa a descrever a deterioração do “estado de natureza” e a imposição do associativismo como uma necessidade da ampliação da produtividade e do incremento do comércio. Isso ocorrerá, segundo o autor, pela necessidade de conjugação de esforços vitais para a superação de obstáculos à força que cada indivíduo pode isoladamente mobilizar para a conservação do estado natural (ROUSSEAU, 1980a, p. 29-30).

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O que se segue a esse associativismo, na descrição do autor, é a fundação de uma organização coletiva com identidade peculiar ante os indivíduos isolados, mas que é movida pelo objetivo de protegerem os seus interesses individuais e garantir o direito natural à liberdade. Tal é o contexto originário da necessidade do pacto social que é celebrado com o concurso da força de cada indivíduo e formalizado num contrato. A discussão de Rousseau em torno da origem do contrato me parece ser o ponto crucial do modelo, porque representa a culminância dos seus elementos convergentes com o modelo de Hobbes e ao mesmo tempo, expõe a solução singular do autor para o problema do pacto que funda a vida social. Na concepção apresentada por Rousseau no seu Contrato social, tal como em Hobbes, o pacto é o elemento formador da vida coletiva que se realiza por uma decisão racional dos indivíduos. Ou seja, a origem da sociedade, segundo Rousseau, está relacionada a um resultado intencional de um pacto promovido conscientemente por indivíduos independentes. Ainda como no modelo hobbesiano, esse pacto social vem acompanhado de um contrato que assegura prerrogativas do “direito natural” e impõe deveres aos pactuantes. Entretanto, o funcionamento do modelo de Rousseau começa a se diferenciar do modelo de Hobbes a partir das conseqüências que ele extrai desse momento sintético da transição do “estado de natureza” para a vida societal, representado pelo pacto. Para Rousseau, o pacto político constituído pelos indivíduos é capaz de fundar uma associação que, ao subsumir as vontades individuais, ganha identidade própria, qualitativamente diferente da simples soma dos indivíduos. Ao comentar os resultados do pacto social, o autor faz a seguinte observação: Logo, ao invés da pessoa particular de cada contratante, esse ato de associação produz um corpo moral e coletivo, composto de tantos membros quanto a assembléia de vozes, o qual recebe desse mesmo ato sua unidade, seu eu comum, sua vida e sua vontade (ROUSSEAU, 1980a, p. 31).

Entre outras vantagens, do ponto de vista do rendimento analítico, essa concepção de Rousseau permite ao seu modelo teórico, na minha opinião, enfrentar com maior realismo a complexidade das questões empíricas relativas, por exemplo, à organização do governo e da representação política. Hobbes, ao contrário, deriva a sua concepção de orANTROPOLÍTICA

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dem política de um raciocínio estritamente formal e matemático, que poderia ser metaforicamente comparado a uma equação de álgebra elementar cujo resultado é obtido com a soma das unidades; no caso, das vontades individuais. Como vimos, isso torna o seu modelo mais equilibrado e elegante do ponto de vista da solução formal para os problemas suscitados, tal como na discussão sobre as prerrogativas do poder de Estado, porém menos capaz de antecipar alguns dilemas reais da organização política liberal-capitalista. Com respeito especificamente à questão da desigualdade, em que pese a solução original de Rousseau para o contrato, ao conceber a sociedade política como uma síntese sui generis das vontades individuais, ela é sacrificada no modelo em benefício do equilíbrio lógico formal do Contrato social. Neste estudo de Rousseau, a desigualdade é tão-somente o resultado das interações dos indivíduos no estado natural. No Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens (1980b), entretanto, o autor propõe uma análise mais sociológica da desigualdade, antecipando, inclusive, a meu ver, algumas preocupações típicas da abordagem da ciência social oitocentista, que se farão presentes em Karl Marx e Emilie Durkheim. No Discurso, a perspectiva de Rousseau para analisar a desigualdade é conduzida pelo postulado básico de que a desigualdade é originada na sociedade. Ou, por outra forma, o autor desenvolve a concepção de que sociedade é igual a desigualdade e que, portanto, a desigualdade deve ser explicada a partir de categorias sociais e não naturais (individuais). Esse postulado é fundamental para que Rousseau consiga imprimir um significado à desigualdade qualitativamente diferente do que lhe fora atribuído por Hobbes. Por ele, o autor, em contradição aberta com o que está dito no Contrato social, afirma que a origem das sociedades políticas estaria relacionada prioritariamente aos interesses dos proprietários, dos “ricos”, da necessidade de conservar as suas propriedades. Assim, segundo Rousseau, a finalidade da organização política seria garantir a igualdade natural dos indivíduos, mas também preservar as desigualdades perpetradas pela vida social. Curiosamente, o que permite a Rousseau pensar dessa maneira sobre a desigualdade e a organização política são dois pressupostos utilizados pelo modelo teórico de John Locke, a saber, um estado gregário original que precede a ordem política, e uma ordem social que contém preliminarmente alguns elementos básicos de controle e regulação da proANTROPOLÍTICA

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dução econômica, inclusive por intermédio da propriedade (“bens”). Veja-se, por exemplo, este trecho do Discurso: as palavras forte e fraco constituem equívoco [...] pois, no intervalo formado entre o estabelecimento do direito de propriedade ou de primeiro ocupante e o dos governos políticos, adquirem mais justo sentido se substituídas por pobre e rico, uma vez que, na realidade, o homem não tinha, antes das leis, outros meios de subjugar os semelhantes senão lhes atacando os bens ou lhes cedendo parte dos próprios (ROUSSEAU, 1980b, p. 191).

Devemos observar, todavia, que a discussão de Rousseau avança muito mais que o modelo de Locke na compreensão das conseqüências práticas para a ordem política da preexistência de um corpo social. Especialmente, porque, diferentemente do Contrato social, o pacto imaginado por Rousseau na Origem da desigualdade entre os homens tem como protagonistas, não os indivíduos, mas o “povo”, sedimentado pelas “relações sociais” e pelos “chefes” por eles escolhidos. E, na medida em que a desigualdade é concebida como tendo um componente societal, isto coloca um papel diferente para o corpo político, que Rousseau imagina ser o de reparar ou pelo menos impedir o desenvolvimento das desigualdades perpetradas e aguçadas pelo convívio social.

C ONCLUSÃO Como procurei demonstrar neste trabalho, o tema da desigualdade oferece a possibilidade de penetrarmos no universo conceitual dos autores analisados, ainda que não haja em alguns deles um tratamento especial do problema. Aliás, parte da serventia desse estudo sobre a desigualdade está justamente em revelar os pressupostos a este respeito não explicitados nos modelos analisados. Além disso, a discussão sobre a desigualdade em autores tradicionalmente identificados com o ideário de igualdade e liberdade nos oferece uma oportunidade preciosa para qualificarmos, à luz dos seus significados atuais, as concepções liberais sobre estes temas. A este respeito é curioso observarmos que, se a idéia de uma igualdade natural entre os indivíduos nos parece contemporaneamente positiva e politicamente correta, a sua implicação necessária de uma desigualdade também fundamentada nos princípios naturais nos parece inadmissível nos termos atuais da nossa organização política e institucional.

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Como vimos, os estudos sobre a desigualdade em Hobbes, Locke e Rousseau revelam certa coerência, quando afirmam a desigualdade como um atributo e um direito natural dos indivíduos. Com diferentes gradações, todos estes autores trabalham com a idéia utilitarista de uma sociedade que se cria a partir da decisão ponderada entre custos e benefícios dos indivíduos. A exceção talvez seja o Rousseau do Discurso sobre a desigualdade entre os homens, que discute a desigualdade como sendo uma expressão necessária da vida em sociedade. A ausência de variáveis societais nos modelos analisados nos revelou, sobretudo, certo formalismo na discussão sobre a desigualdade, principalmente no modelo teórico de Hobbes, evidenciando a fragilidade de alguns pressupostos utilizados e, também, sua defasagem em relação às concepções mais empíricas sobre o tema. Locke, segundo a nossa avaliação, apresenta um modelo peculiar que combina, ao mesmo tempo, o pressuposto hobbesiano de uma desigualdade natural entre os indivíduos com o suposto sociológico de uma sociedade pré-contratual integrada por relações complexas. De tudo o que foi dito, gostaria de reafirmar que os modelos teóricos analisados antecipam alguns dos dilemas centrais das discussões contemporâneas sobre a ordem, oscilantes entre o formalismo universalizante e a observação particularizada dos fenômenos sociais e institucionais, e que são produzidas a partir do acervo teórico da economia, da sociologia e da ciência política.

ABSTRACT This paper deals with the issue of inequality in three classical authors of political theory: Thomas Hobbes, John Locke and Jean-Jacques Rousseau, usually identified with the discussion of its contrary, the equality. Inspirers of the liberal formulations of the institutionalization of the political liberties, their theories make explicit the condition of equality among the individuals both as pre-condition and as universal matters that enforce the legitimacy of political power. Our proposal here will be to discuss the contra factions of equality among the individuals in the liberal theories, evidencing what each author understands as inequality. We believe that the relevance of this provocative approach is to discuss the presuppositions of these theories showing their fragilities to the understanding of the contemporary institutionalism of political societies. Keywords: inequality; liberal theories; nature.

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N OTAS 1

Aproveito aqui, parcialmente, a classificação de Soares (1993) para a compreensão do pensamento de Locke: “As bases da desobediência legítima segundo Hobbes, Locke, Hume, Rousseau, John Stuart Mill e Burke”.

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Z I L Á M E S Q U I T A* M Á R C I O B A U E R**

A SSOCIATIVISMO

EM

R EDE :

UMA CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA EM TERRITÓRIOS DE AGRICULTURA FAMILIAR ***

*

Professora adjunta da Escola de Administração do Programa de Pós-Graduação em Administração – PPGA – da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS.

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Professor da Fundação Universidade Federal do Rio Grande e mestre em Administração pelo Programa de Pós-Graduação em Administração – PPGA – da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS.

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Este trabalho é um dos frutos do projeto de pesquisa “Certificação e inspeção de produtos orgânicos: indutoras ou dispersoras do associativismo e da cooperação em redes emergentes?”, realizado no âmbito do Edital do CNPq – COAGR 004/2001, área de Agricultura Familiar, período 2002- 2004, sob a coordenação da professora Zilá Mesquita.

No Sul do país, é o agricultor familiar que se tem ocupado predominantemente da produção de alimentos orgânicos. Neste trabalho, busca-se refletir primeiro sobre as múltiplas facetas dos traços identitários atribuídos à agricultura familiar no Sul do Brasil, para então identificar e caracterizar uma rede de geração de credibilidade na produção e comercialização de alimentos orgânicos: a “Rede Ecovida de Agroecologia”, que abrange os três estados meridionais. Assinala-se a forma como esta rede interinstitucional e socioeconômica está se estruturando, sua finalidade, as práticas sociais de cooperação e de comunicação utilizadas, assim como suas relações internas e interinstitucionais. Quanto aos aspectos metodológicos, o trabalho é de natureza eminentemente qualitativa. Inclui: a) a consulta e análise de dados secundários referentes a documentos da Rede; b) a realização e análise de entrevistas semi-estruturadas junto a participantes de Centros de Tecnologia de produtos orgânicos, considerados como alguns dos “nós” da Rede. Enfim, tecem-se algumas considerações sobre a construção em rede de territórios de agricultura familiar. Palavras-chave: identidade; agricultura familiar; associativismo; rede de agricultura familiar; Sul do Brasil.

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I NTRODUÇÃO Os efeitos que a Revolução Verde provocou nas últimas décadas, por vezes sob transformações nem sempre positivas em termos de qualidade de vida, tanto para os que produzem quanto para os que consomem, têm criado oportunidades para reflexões e práticas voltadas para a produção de alimentos ecológicos a partir de pequenas unidades produtivas de organização familiar. No Brasil, o tema ganha atualidade não só pela ausência de uma reforma agrária nunca enfim resolvida no país, cujos efeitos contundentes são noticiados em conflitos no campo, mas ainda por se constituir em uma expectativa em termos de política pública. Em outras palavras: a inclusão dos agricultores familiares, no contexto de uma política pública agrária e agrícola, poderia contribuir para melhorar a distribuição de renda no país. Poderia colaborar ainda para prover o abastecimento alimentar nas áreas urbanas, em um país de urbanização galopante como a que se verificou nas últimas décadas. Há ainda um fato inegável do ponto de vista da segurança alimentar: hoje é o setor da agricultura familiar que disponibiliza, em grande parte, a oferta de alimentos sem o uso daqueles agroquímicos implementados pela Revolução Verde. Uma das regiões em que o setor da agricultura familiar floresceu, sob a (re)construção de atributos identitários próprios, é o Sul do país. Parte-se do pressuposto de que a maneira pela qual os agricultores familiares no Sul do Brasil se constituíram favoreceu a construção do associativismo, o que tem gerado, e pode continuar a gerar práticas sociais nutridoras de sua identidade como ator no meio rural. Três são as justificativas para isso: a) esta forma de agricultura está assentada na vida familiar, que idealmente supõe a cooperação entre indivíduos para a sua manutenção; b) a estrutura fundiária em pequenas unidades pode (embora não necessariamente induza a isto) propiciar intercâmbios e práticas sociais comunitárias como: mutirões, reuniões para fins recreativos ou de trabalho, troca de informações; e c) há fortes raízes culturais de caráter histórico que lastreiam a reprodução dos agricultores familiares, mesmo ao longo de um período de modernização agrícola como o que se verificou no Brasil nas últimas quatro décadas. Estas vivências em comum, estas práticas sociais, ao mesmo tempo em que podem ser tributárias de uma herança social do passado – através de tradições e costumes – podem também inaugurar novas formas de cooperação entre famílias congregadas em núcleos associativos. Tais práticas sociais são alternativas para a construção da identidade coletiANTROPOLÍTICA

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va. Tais fatores consolidaram a constituição de uma forma organizacional em rede entre agricultores familiares: a Rede Ecovida de Agroecologia que será mais adiante examinada. Esta identidade cimentadora do associativismo remete a uma questão mais abrangente: como se constitui a identidade de um grupo social?

A

IDENTIDADE EM MÚLTIPLAS FACETAS

Originalmente o termo identidade diz respeito àquilo que é idêntico, semelhante ou que possui as mesmas características. A identidade também inclui aquelas características que tornam uma pessoa ou grupos diferenciados dos demais e ao mesmo tempo semelhantes entre si. Para os fins a que nos propomos, a identidade é uma construção social complexa e multidimensional que envolve a percepção de si mesmo e dos outros como parte de um grupo (ASHFORT, MAEL, 1989; CUCHE, 1999; MESQUITA, 1997; NKOMO, COX, 1999; SANTOS, 1998), tomado no seu mais amplo sentido, no qual se inscrevem as mais variadas formas de associativismo. Embora reflexões sobre identidade sejam recorrentes em áreas como antropologia, geografia e sociologia, nos estudos organizacionais (que nos interessam aqui devido à forma organizacional emergente em “rede”), esta ainda não se constitui uma tradição (NKOMO, COX, 1999). Inicialmente, é importante que se faça a distinção entre abordagens objetivistas e subjetivistas da identidade, tomando como referência a obra de Cuche (1999). Nas objetivistas, a identidade é dada a partir de critérios determinantes como a origem comum (hereditariedade), a língua, a cultura, a religião, a psicologia coletiva, o vínculo com um território etc. Já nas abordagens subjetivistas, a identidade reflete um sentimento de vinculação ou uma identificação a uma coletividade imaginária, prevalecendo as representações que os indivíduos fazem da realidade social e suas divisões. O que se resgata deste autor para os fins a que nos propomos é a necessidade de entender a influência de ambas as abordagens na construção de uma identidade a partir de uma concepção relacional e situacional. Dessa forma, não existiria uma identidade acabada, definível de uma vez por todas, mas sim uma identidade construída e reconstruída constantemente no interior das trocas sociais que os múltiplos fluxos propiciarem. Não é nosso intuito, porém, classificar a identidade instituída pelos participantes da Rede Ecovida em um determinado tipo. Todavia, é inegável a necessidade de caracterização desta rede como nova forma organizacional: um ponto de partida ANTROPOLÍTICA

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para, quem sabe em outros trabalhos, se compreender melhor as práticas sociais e a maneira como elas contribuem para construir e atualizar as intenções institucionais. Entretanto, se a análise se focar sob a perspectiva da identidade do indivíduo inserido em uma rede e os vínculos que aí se criam, concordamos que assim pode se expressar essa construção identitária: No momento em que o sujeito passa a delimitar seu lugar e sua identidade, cria laços, alianças e insere-se em um espaço de grupo, junto a outros sujeitos com o mesmo interesse. Todos os sujeitos passam então a constituir-se em participantes ativos da rede e também em fiadores da garantia do espaço individual em um contexto de grupo (TURCK, 2001, p. 33).

Esta assertiva corrobora os argumentos mais adiante apresentados, de que os sujeitos atuam como atores sintagmáticos, relacionais, e é oportuno ressaltar que o fazem construindo e mantendo suas identidades através de um processo de compreensão de si mesmos e de suas intervenções na realidade. É por isso que “identidades coletivas passaram a ser compreendidas a partir não só de um agregado de interações sociais, mas também da razão político-estratégica de atores sociais” (SANTOS, 1998, p. 151). Eis aí algo que nos interessa para a compreensão dos atores sociais que temos em mente – os agricultores familiares: uma razão político-estratégica. Atores na acepção de atuar, intervir na realidade e no território em que vivem. Esta construção de uma identidade coletiva no território, a partir de uma razão político-estratégica, a nosso juízo, diz respeito a atores sintagmáticos no território, ou seja: a atores realizando um projeto no território a que pertencem (RAFESTIN, 1980 apud MESQUITA, 1995, p. 82). É neste sentido que a identidade parece se configurar como o amálgama da rede, entendida a mesma como nova forma organizacional que flexibiliza a contigüidade territorial, mas ao mesmo tempo une os atores através desta razão político-estratégica em torno do projeto compartilhado. Por isso, dentre as formas de identidade (legitimadora, de resistência e de projeto) indicadas por Castells (1999), acentuamos a identidade enquanto “projeto”, por se aproximar de uma razão político-estratégica de atores sintagmáticos no território e assim poder se afigurar como um auxílio para a compreensão do associativismo em rede. Para ele a identidade de projeto é uma construção realizada por atores sociais que, se valendo de qualquer tipo de material cultural, buscam não só redefinir sua posição na sociedade como ainda a transANTROPOLÍTICA

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formação da estrutura social. Esse tipo de identidade pode começar como uma identidade de resistência por parte de atores que se sentem em condições de desvantagem perante a sociedade e, de certa forma, estigmatizados por ela (CASTELLS, 1999). Como veremos, isto parece ter algum poder explicativo para a Rede que analisaremos mais adiante. Iluminando um outro ângulo, o das características intrínsecas das identidades coletivas, Borzeix e Linhart (1996) apontam as identidades coletivas como possuidoras de plasticidade, contingência, permeabilidade, configurações múltiplas e constituindo-se em uma aposta do grupo social. A plasticidade confere à identidade um caráter móvel, flutuante e mutável – o que é útil para compreender a maleabilidade da identidade coletiva que possa se constituir na forma organizacional em rede e, sobretudo, em nosso público-alvo: agricultores familiares. Ela é construída através de incidentes e de acontecimentos que a nutrem (permeabilidade), sendo atualizada de acordo com as circunstâncias que lhe conferem voz e forma (contingência). Como nem sempre há consenso no interior de um grupo sobre os traços mais importantes que caracterizam uma identidade, existem, assim, múltiplas configurações possíveis de identidade. Por último, tem-se que a identidade é uma aposta coletiva de certo número de indivíduos que são convidados a se comportar como atores em um jogo, sem saber de antemão se este jogo vale a pena ser jogado. Portanto, o “projeto identitário”, que constitui o amálgama deste associativismo em rede, nunca está acabado. É uma construção permanente, plástica, contingente, permeável e sujeita a configurações múltiplas que complexificam a sua análise. Um outro aporte que pode contribuir para compreender o associativismo em rede assenta-se nos estudos que vinculam identidade e memória (SCHEIBE, 1985; SANTOS, 1998). Uma característica fundamental destes estudos é o entendimento da memória não como pura e simples faculdade mental, mas como construção social, através da seleção de experiências de vida que possibilitam uma narrativa de como somos. Uma vez que temos vários públicos a quem estas narrativas podem servir, temos mais de uma história: “Também os scripts da vida de outras pessoas são às vezes tomados como modelo para suas próprias histórias. De modo que as identidades tomadas são adaptações de versões de outras histórias, pois foram vividas ou inventadas por terceiros” (SCHEIBE, 1985, p. 49). No caso de agricultores familiares, poder-se-ia perquirir se há um reconhecimento próprio, identitário em uma rede tão recente (criada em 2001-2002), cuja história que os participantes partilham ainda não teANTROPOLÍTICA

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ria consolidado uma memória coletiva enquanto Rede. Entretanto, não é à memória da Rede que se deve creditar o vínculo entre identidade e memória coletiva. A memória coletiva existe entre agricultores familiares, mesmo antes da constituição da Rede. Se ela auxiliar a consolidação da Rede, ao apelar para o resgate das origens dos produtores em territórios em que se situa, esta pode ser, talvez, uma perspectiva promissora. Por isso, torna-se pertinente, no âmbito restrito deste trabalho, sem intenções de realizar uma revisão a este respeito, indicar em breves traços uma caracterização despretensiosa da agricultura familiar no Sul do Brasil; mais especificamente, no Rio Grande do Sul.

T RAÇOS

DA AGRICULTURA FAMILIAR NO

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Na agricultura familiar dos três estados meridionais onde atua a Rede Ecovida (Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul), a identidade cultural é um traço distintivo, por ter suas raízes na chegada dos imigrantes, predominantemente italianos e alemães. Embora vindos em meados do século XIX de países europeus que tinham fortes diferenças regionais, eles acabaram por constituir uma identidade interna relativamente homogênea ao longo de seu processo de assentamento no Sul do Brasil. Isso se deveu, em parte, ao abandono e isolamento inicial a que foram relegados. Assim, tanto no caso alemão (saxões, pomeranianos etc.) como no de italianos (do Norte e do Sul) se forma uma identidade cujas origens remetem à etnia (SEYFERTH, 1987). O pertencimento dos agricultores a associações esportivas ou culturais, assim como religiosas, recreativas, de auxílio mútuo e profissional remonta à colonização e, segundo Seyferth (1986), tem papel preponderante na formação da identidade. Foi esta pertença que os aglutinou em torno de objetivos específicos (corais, clubes recreativos, associações de boliche e bocha, cooperativas de crédito e cooperativas de produção). Tais propósitos ajudaram e auxiliam até hoje a fortalecer o espírito associativo. Observamos em contato com agricultores ecologistas, isto é, voltados ao cultivo de produtos orgânicos, que eles são minoritários comparados aos produtores que utilizam a agricultura tradicional. Portanto, é fundamental que o associativismo em Rede tenha uma finalidade bem definida que reforce, tal como acontecia nos primórdios, a identificação dos grupos. Na Rede Ecovida, esta possibilidade traduz-se na produção e comercialização de alimentos ecológicos como projeto de vida. Ela reúne atores sintagmáticos. Integrado a este projeto, o agricultor ANTROPOLÍTICA

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percebe que não está só, sente-se identificado com um grupo que compartilha o mesmo propósito. Pelo fato de que as identidades irão efetivar-se não somente no campo simbólico das interações entre pessoas ou grupos, a dimensão territorial também é significativa. A caracterização dos territórios de agricultura familiar, nos quais a Rede Ecovida teve origem, não pode ser dissociada das áreas de colonização no Sul do Brasil, em terras do Planalto Meridional, freqüentemente em escarpas íngremes e cobertas pela floresta subtropical, com todas as dificuldades para o cultivo da terra, inerentes a este tipo de relevo, solo e vegetação densa, acrescida pelo isolamento em que, por muito tempo, permaneceram essas colônias. Os imigrantes europeus, especialmente os de origem alemã – os primeiros a chegarem à região – foram assentados em áreas despovoadas, quase sempre vales de rios, tanto no Rio Grande do Sul (1824) como em Santa Catarina, e, como informa Seyferth (1987), numa faixa de terra que ia do litoral até o planalto, em lotes que variavam entre 40 e 50 hectares, a fim de cultivá-los em um regime de policultura e trabalho familiar. No Rio Grande do Sul, a colonização italiana, embora tenha ocorrido um pouco mais tarde (1875), se efetivou de forma semelhante à alemã. Ambas tinham em comum a constituição de colônias bastante homogêneas, onde o nativo brasileiro era minoria ou, simplesmente, não existia (SEYFERTH, 1987). No que diz respeito à agricultura familiar hoje, esta dimensão territorial não desapareceu, pois assume uma concretude nas práticas sociais necessárias e nos cuidados com o cultivo da terra em suas várias etapas: preparo, semeadura, tratos específicos, colheita, estocagem e comercialização dos produtos. O resultado de tais práticas, ou seja, os alimentos levados à comercialização, tem um traço distintivo que lhe confere identidade local: tais elementos trazem geralmente o nome do lugar onde atua o grupo, núcleo ou associação e ainda o selo da Rede Ecovida. Além das características históricas que remontam ao século XIX, resta lembrar que foi na região de colonização alemã, mais especificamente no atual município de Nova Petrópolis, no Planalto do Rio Grande do Sul, também conhecida como região da Serra, que foi fundada uma das primeiras cooperativas brasileiras com o objetivo de mobilizar recursos de crédito, e que tinha essencialmente origem rural. É importante lembrar também que mais tarde, sobretudo a partir dos anos 1960 e 1970, o Planalto gaúcho foi um dos “espaços-teste” para a implantação da modernização agrícola no país, o que trouxe várias conANTROPOLÍTICA

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seqüências, dentre as quais: mecanização, êxodo rural, uso de agroquímicos nas lavouras com o conseqüente impacto sobre a saúde dos agricultores e o ambiente natural. Estes fatos, de natureza ambiental, tiveram como corolário inflexões sociopolíticas, dado o modelo de desenvolvimento preconizado à época para o país e sobre o qual (e seus desdobramentos) se produziu vasta literatura. Limitamo-nos a pontuar que as décadas de 1970 e 1980 são marcadas na região por um trabalho militante de setores progressistas das igrejas Católica (Pastoral da Terra) e Evangélica Luterana, que passam a marcar sua presença junto aos agricultores familiares e àqueles oriundos do êxodo rural. Em alguns casos, esta ação militante deu origem ou se desenvolveu paralelamente ao trabalho de ONGs (Organizações Não-Governamentais), como a Cooperativa Ecológica Coolméia sediada na capital, Porto Alegre, mas com fortes incursões na região de agricultura familiar até hoje; o CETAP – Centro de Tecnologias Alternativas Populares, em Passo Fundo; o CAPA – Centro de Assistência ao Pequeno Agricultor, vinculado à Igreja Evangélica Luterana e o CAE – Centro Agroecológico com duas sedes: uma no Planalto, no município de Ipê, e outra no litoral do Rio Grande do Sul, no município de São Pedro de Alcântara. Algumas destas ONGs históricas fazem parte hoje da Rede Ecovida, que apresentaremos mais adiante. Das ONGs e igrejas que apóiam a Rede, pode-se dizer que elas têm tido um papel educativo, lento, mas processual e duradouro, resgatando no agricultor a sua relação “original” de harmonia com a terra e com o meio ambiente, auxiliando-o nos processos de recuperação de técnicas não agressivas ou, se for o caso, nos processos de reconversão das águas e solos contaminados, como é o caso nas áreas de plantio de fumo (FREITAS, MESQUITA, 2002 e 2004). A ação do Estado na década de 1960, através das EMATERs – Empresas de Assistência Técnica e de Extensão Rural –, e das secretarias de agricultura estaduais era marcada por um modelo difusionista e por um saber de seus técnicos que, detentores do conhecimento, seriam os capacitados a repassá-lo. Esse pressuposto teórico colocava o agricultor como agente passivo à espera da difusão da inovação (informações e ensinamentos) “[...] que transformarão sua vida e o tornarão parte integrante do mundo moderno” (ASSIS, 2001, p. 103). Mais recentemente, a partir de 1998, a Secretaria de Agricultura do Rio Grande do Sul assumiu, como política pública, a opção pela agroecologia para apoiar a agricultura familiar. No contexto atual das escolas de agricultura ecológica, esta constitui-se como um movimento na América Latina em torno da preservação ambiental e promoção socioeconômica dos pequenos agricultores. ANTROPOLÍTICA

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A ação das igrejas e das ONGs, por seu lado, tinha como pressuposto teórico e mote inspirador a construção e reconstrução identitárias do pequeno agricultor alicerçadas na necessidade de dirimir a exclusão social a partir do princípio de justiça social.1 Buscou-se, assim, fomentar primeiro o cooperativismo, mais tarde o sindicalismo, sob a forma de inserção dos pequenos agricultores em sindicatos de trabalhadores rurais, e, ultimamente, o associativismo, por meio da formação de associações de agricultores familiares reunidos pelas questões concernentes à produção e à comercialização. Estes parecem ter sido os embriões do associativismo em rede. O fato de o mesmo ser tão recente,2 necessariamente não se constituiria em fator restritivo à identidade coletiva, uma vez que a memória dessas tradições associativas, inscrita ao longo dessas décadas na identidade social dos grupos de agricultores familiares hoje integrantes da Rede, não se refere apenas à memória do recente associativismo em rede. Sendo a memória não apenas um registro histórico de fatos, mas uma combinação de construções sociais passadas com fatos significantes da vida social do presente, encontra-se em permanente reelaboração. Parece que o que se diz ser uma reprodução é, por menos que se admita, uma reconstrução que serve para justificar a impressão que pode ser deixada pelo original. Raramente definida com muita precisão, é esta a impressão que persiste com maior freqüência (BARLETT, 1932 apud SCHEIBE, 1985, p. 51).

Em suma: a memória e a identidade apresentam-se em um processo de interação e construção. A memória, embora nem sempre evidente, integra a identidade, à medida que reforça, através de lembranças, o sentimento de pertencimento a um grupo, e, ao mesmo tempo, é por ela constituída, uma vez que o processo de identificação agirá na seleção e configuração dos episódios a serem lembrados. Ambas: memória e identidade são atualizadas e reconstruídas na interação social da vida cotidiana. Este passado, embora resumido de maneira tão sumária, espera-se que leve à compreensão do substrato existente na memória coletiva que permitiu a emergência da Rede Ecovida de Agroecologia e que está contribuindo, embora não seja a única, para (re)construir a identidade da agricultura familiar nos três estados mais meridionais do Sul do Brasil. Enfim, conscientes de não termos analisado todas as facetas da identidade no universo rural, e que estes breves traços mereceriam complementos enriquecedores acerca da história regional e da agricultura faANTROPOLÍTICA

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miliar que assume particularidades e diversidades mesmo dentro de seus territórios específicos, concordamos que: É importante considerar que o campo não está passando por um processo único de transformação em toda a sua extensão. Se as medidas modernizadoras sobre a agricultura foram moldadas no padrão de produção (e de vida) urbano-industrial, seus efeitos sobre a população local e a maneira como esta reage a tais injunções, não são, de modo algum, uniformes, assim como tais medidas não atingem com a mesma intensidade e proporções as diferentes categorias de produtores. Nesse sentido não se pode falar de ruralidade em geral; ela se expressa de formas diferentes em universos culturais, sociais e econômicos heterogêneos (CARNEIRO, 2001, p. 1).

A TUALIZANDO

A IDENTIDADE : DO ESTIGMA

À VALORIZAÇÃO VIA ASSOCIATIVISMO

Em que pesem tais salvaguardas, esse processo de construção social nos permite tratar a identidade não como uma oposição entre indivíduosociedade, mas como expressão mediadora que transita entre ambos e que integra ainda os valores culturais adquiridos mediante o processo de socialização (MESQUITA, 1997). De acordo com depoimentos de agricultores, é possível perceber que a identidade dos mesmos parece ser diretamente influenciada por suas representações sobre como os outros os percebem. De uma maneira geral eles se sentem inferiorizados ao serem reconhecidos na cidade como “colonos”, embora no meio rural esta seja uma identidade reivindicada e atribuída de forma recíproca por eles. É claro que esta avaliação depende das experiências vividas pelo agricultor no contato com a cidade, mas em muitos casos é possível identificar resquícios de experiências traumáticas de estigmatização. É o que se observa, por exemplo, no seguinte depoimento: “Eles vêm para a cidade buscando o quê? Eles vêm pra estudar claro! Mas [...] o que eles querem realmente é saber se portar no restaurante. Saber andar rua afora e não ser visto de longe: aquele lá é um colono” (depoimento de uma agricultora de Canguçu). Esta e outras falas deixam transparecer que o urbano ainda é visto como superior; que tanto a forma correta de se comportar como a informação e a “educação” correta estão no meio urbano. Dessa maneira, uma igualdade parece ser reivindicada, mesmo que isso entre em contradição com o estilo de vida da colônia, mesmo que comprometa a reproANTROPOLÍTICA

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dução social e cultural de práticas e valores da agricultura familiar. Embora isso seja reflexo de alguns “avanços” da vida moderna, que trazem o urbano para dentro do rural e provocam mudanças nos processos de socialização, muitos agricultores os percebem como pontos positivos: É, hoje parece que não é mais tanto assim, que o próprio agricultor, com todos os meios de comunicação, tem acesso a mais informação. Então ele não tem mais... a diferença não é mais tanta assim, do urbano para o rural e vice-versa (depoimento de um agricultor de Canguçu).

Em contrapartida, a realização de feiras ecológicas e o contato com a cidade por parte dos agricultores ecologistas parecem realmente ter dado um outro sentido à sua identidade. Eles começam a ver valorizados tanto seu estilo de vida como o seu conhecimento. O modo de ver o colono, com o nosso tipo de trabalho [o ecológico] ele tá mudando. Antigamente eles viam um agricultor passar na rua e diziam “lá vai o colono”. Porque sempre tem um meio diferente de andar, um meio diferente de se comunicar, de caminhar. Hoje já não; hoje a gente já tem uma amizade com esse pessoal da [...] com os consumidores daqui, né, então a gente já é visto de outra maneira (depoimento de um agricultor de Pelotas).

É visível que houve mudanças no comportamento do “pessoal da cidade”, mas houve muito mais mudança no comportamento do agricultor, que faz questão de ressaltar a sua condição de produtor ecológico para reivindicar uma posição de maior destaque e, com isso, ter sua identidade reconhecida. A utilização de emblemas e marcas que o identifiquem com a causa ecológica (camisetas, bonés, crachás, adesivos) busca o reconhecimento de uma identidade afirmativa. Tudo isso encontra apoio nas práticas adotadas pela Rede Ecovida. Um agricultor entrevistado, por exemplo, quando fala sobre o uso de crachás considera que o pessoal da cidade o está valorizando, pois quando o chamam é “pelo nome, não é mais: ‘Ô, alemão!’”. O contato com um tipo de público que valoriza a agricultura e o trabalho do agricultor realiza uma verdadeira ressignificação nas identidades. O colono “agora” parece ser visto de forma diferente, sendo respeitado e até admirado. Com isso, o agricultor tem reconhecidas, ao mesmo tempo, sua identidade social e individual; o estigma passa a ser

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emblema. A agroecologia em geral e a feira em particular funcionam, nesse aspecto, como um projeto ressocializador. Referindo-se aos vínculos que podem aprofundar o relacionamento entre os participantes de uma rede, Turck (2001, p. 41) assegura que este movimento de articulação influi nas estruturas institucionais e na vida profissional e pessoal dos sujeitos envolvidos no processo, pois acarreta o compartilhamento de histórias pessoais e a possibilidade de construção coletiva de outras narrativas. Este, a nosso ver, é um elemento instituinte e potencializador na Rede Ecovida pela maneira como está estruturada. A citada autora, referindo-se a uma outra rede, isto é, à rede emergente do Estatuto da Criança e do Adolescente, diz textualmente: É o caminho que os indivíduos e os grupos encontram para serem protagonistas de suas vidas. O processo emerge, então, da reflexão de como os indivíduos se constituem como sujeitos, de como são participantes e participados pelos desenhos sociais. Ser protagonista é viver intensamente todas as possibilidades de tornar-se responsável. É participar de todos os movimentos sociais em que o compartilhar vai construindo possibilidades de intervenção e de mudanças. É a base subjetiva [...], que fundamenta todo o processo de construção de redes sociais (TURCK, 2001, p. 41-42).

Consideramos que a Rede Ecovida de Agroecologia compartilha destes pressupostos. Entretanto, percebemos ainda que é através deste construir interativo de possibilidades de mudança na vida rural brasileira que os atores vinculados à Rede ou às ONGs, ao promoverem a realização de práticas sociais como reuniões, dias de campo e feiras, estão não apenas construindo possibilidades de intervenção e mudança, mas também e concomitantemente construindo e (re)construindo a identidade e a imagem do setor produtivo reconhecido como agricultura familiar, durante tanto tempo percebido apenas como agricultura de subsistência, fechada em si mesma e fora da economia monetária, esta sim, inquestionavelmente valorizada em seu locus particular e específico: o dos territórios urbanos. Vejamos, portanto, como se apresenta constituída a Rede Ecovida de Agroecologia.

A R EDE E COVIDA

DE

A GROECOLOGIA

Segundo documentos da própria Rede e entrevistas com a coordenação da Rede no Rio Grande do Sul, ela é um espaço de articulação que ANTROPOLÍTICA

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envolve agricultores familiares e suas organizações, como também os simpatizantes de tal prática e pessoas envolvidas com a produção, processamento, comercialização e consumo de alimentos ecológicos. A Rede tem como metas fortalecer a agroecologia nos seus mais amplos aspectos, disponibilizar informações entre os envolvidos e criar mecanismos legítimos de geração de credibilidade e de garantia dos processos desenvolvidos por seus membros. Seus princípios preconizam: ter a agroecologia como base para o desenvolvimento sustentável; garantir a qualidade do processo através da certificação participativa; trabalhar com agricultores familiares e suas organizações; ter como base a normativa nacional de produção orgânica; ser regida por normativa própria de funcionamento e de produção. Tais princípios conduzem aos objetivos desta Rede, que assim se expressam: a) desenvolver e multiplicar as iniciativas agroecológicas; b) incentivar o trabalho associativo da produção ao consumo de alimentos ecológicos; c) articular e disponibilizar informações entre organizações e pessoas; d) aproximar, de forma solidária, agricultores e consumidores; e e) ter uma marca-selo que expresse o processo, o compromisso e a qualidade. Os valores que permeiam tais princípios e seus objetivos são indicados no tópico referente à organização e normas de funcionamento: Nós acreditamos que os aspectos inerentes à agroecologia a saber: Proteção do ambiente; justiça e inclusão social, viabilização econômica, adaptação cultural e tecnológica – que visem à construção de políticas públicas – devem ser analisados em conjunto com parâmetros semelhantes, ou seja, a questão ambiental é tão importante quanto a social, a cultural quanto a tecnológica, a econômica quanto a política e vice-versa. Desta forma, para que ocorra um harmônico desenvolvimento da Rede Ecovida de Agroecologia, todos os aspectos acima citados devem ser considerados e fomentados igualmente, a fim de que este movimento não seja de cunho meramente ambiental, ou econômico ou político ou social, mas sim integral (REDE ECOVIDA, 2001).

O trabalho em rede, assim preconizado, ao gerar processos de (re)conhecimento, possibilita nutrir a construção de uma identidade coletiva entre os produtores na agricultura familiar, ao dinamizar e atualizar o significado de pertencimento a um território, a uma organização e a um grupo que comunga valores, tarefas e objetivos em comum. Disto decorre o contínuo movimento na rede, que lhe confere um caráter de aparente impermanência, dada esta característica descentralizaANTROPOLÍTICA

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dora que as contínuas trocas e intercâmbios proporcionam. Este circuito estimula a comunicação entre agricultores de um determinado território e os representantes de ONGs, intercâmbio celebrado nas feiras e em todas as oportunidades de reuniões: desde as assembléias ampliadas – menos freqüentes – até as reuniões de grupos, de comissão de ética, núcleo, “dias de campo” etc. Por outro lado, a Rede Ecovida não é a pioneira nem a única fomentadora dessas idéias. Elas já estão presentes no movimento de agricultura ecológica que se construiu no Sul do Brasil e que tem por base a agricultura familiar. Neste contexto, a Rede constituiu-se recentemente como uma organização que congrega iniciativas ecológicas e seus grupos, funcionando como um catalisador do processo. De acordo com um de seus articuladores, o movimento representa não só a produção de alimentos orgânicos, mas a “valorização, incentivo e construção de uma cultura de justiça social centrada na ética da vida”, ética esta que busca “um mundo onde ninguém tem medo um do outro, ninguém explora ninguém. Um mundo onde a diversidade cultural é preservada” (ENCONTRO DE AGRICULTURA ECOLÓGICA, 2002).

Figura1. Territórios de atuação da Rede Ecovida de Agroecologia, especificando os do RS. A Rede Ecovida hoje se estrutura em três estados: Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Cada um deles é dividido em regiões de atuação da Rede. Segundo a viabilidade, forma-se um núcleo em cada uma delas. Atualmente há 120 grupos organizados de agricultores nos três esANTROPOLÍTICA

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tados e 25 ONGs envolvidas. A coordenação da Rede no Rio Grande do Sul considera que há cinco tipos de pontos nodais (nós) na rede: a) grupos de agricultores familiares ecologistas; b) grupos de consumidores (cooperativas); c) ONGs de assessoria em agroecologia;3 d) agroindústrias familiares, se existirem em cada região; e e) comercializadoras (lojas de produtos orgânicos, entrepostos, desde que tenham caráter familiar e sejam microempresas). É digno de nota o fato de que os grupos interligam-se em núcleos regionais4 para respeitar a identidade da região. Esta razão político-estratégica, a nosso ver, visou a resgatar a identidade coletiva enquanto memória e enquanto projeto da Rede ao conferir aos grupos este papel sintagmático no território. No âmbito atual da Rede, há 18 núcleos, dos quais, no Rio Grande do Sul, há sete que, segundo os entrevistados, estão “calcados em trajetórias históricas” e assim localizados:

Os núcleos são definidos pelo conjunto da Rede. As instâncias decisórias mais abrangentes são os Encontros Ampliados, que são assembléias gerais. Os núcleos em toda a Rede são compostos por, no mínimo, uma organização ou profissional(is) de assessoria em agroecologia, organizações de agricultores (grupos, associações e cooperativas), organizaANTROPOLÍTICA

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ções de consumidores, comerciantes, processadores e membros individuais. Aos núcleos se atribui o papel de serem a referência da Rede em cada região, até mesmo agilizando o trabalho com atividades próprias, mantendo e disponibilizando as informações necessárias à Rede, mantendo atualizado o cadastro dos integrantes, indicando e respaldando a adesão de novos membros, analisando em primeira instância as informações referentes à certificação dos membros, recolhendo anuidades, entre outras. É oportuno esclarecer que o ingresso na Rede somente se faz a partir de indicação de um integrante. Em cada núcleo é formada uma comissão de ética que deve incluir também consumidores na sua composição. Além disso, o núcleo poderá constituir comissão técnica e de certificação. Prevê-se que uma entidade ou pessoa assuma a coordenação do núcleo para facilitar o acesso e intercâmbio de informações e que haja reuniões periódicas, no mínimo duas anuais. Além das associações e núcleos, a estrutura da Rede prevê uma coordenação ampliada compreendendo um coordenador geral e representantes dos núcleos regionais que se reunirão no mínimo duas vezes ao ano. Como instância máxima de decisão, a Rede prevê o encontro ampliado que ocorrerá ao menos anualmente. Em tais encontros, prevê-se um espaço para análise de conjuntura, assunto(s) de “fundo” para discussão, trabalhos de grupo e questões regimentais da Rede como: indicação de novos membros, eleições, modificações de regimento, informes etc. Embora se preconizem as decisões por consenso, caso isto não ocorra, ou o assunto vai para discussão mais aprofundada nas regiões ou é submetido a votação imediata. Nesta última alternativa, cada organização terá direito a um voto com peso 3 e cada indivíduo membro a um voto com peso 1. Quanto às finanças, por tratar-se de uma organização sem fins lucrativos, os recursos financeiros arrecadados destinar-se-ão à manutenção de seus trabalhos e à realização de encontros, seminários, assembléias, produção e divulgação de materiais informativos e didáticos. A Rede hoje não tem recursos próprios, mas há o fundo de miniprojetos. A administração financeira será realizada por uma organização tesoureira eleita bianualmente no encontro ampliado. Apesar desta carência, ela conseguiu no âmbito de sua atuação no Rio Grande do Sul realizar de 25 a 27 de junho de 2002 em Pelotas, com o apoio de 30 entidades governamentais e não-governamentais, o Encontro de AgriCultura Ecológica – celebrando a ética da vida com 1.750 participantes. Nesta ocasião, a Rede Ecovida de Agroecologia no Rio Grande do Sul foi lançada oficialmente. ANTROPOLÍTICA

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Na estrutura da Rede há ainda prevista uma Associação Certificadora denominada Associação de Certificação Participativa. Para compreender a sua existência é preciso ter em conta que no bojo da globalização e um pouco à moda das normas ISO, teve origem em alguns países europeus a certificação de produtos alimentares. No Brasil, esta é uma questão polêmica, desde 1993/94, que não cabe aqui relatar detalhadamente.5 A questão, porém, é relevante para compreender as origens da Rede. Segundo entrevistas realizadas e documentos consultados, no primeiro lustro da década de 1990, os representantes do Ministério da Agricultura convocam setores da sociedade civil para tratar da certificação de produtos orgânicos em reuniões em Brasília. Alguns representantes das ONGs do Rio Grande do Sul, como a Coolméia, o CETAP e o CAE, se reúnem então para discutir normas em comum. Na verdade, estas entidades já se articulavam desde 1988. Por seu lado, considerando esta conjuntura, a partir da EPAGRI – Empresa de Pesquisa e Extensão da Secretaria de Agricultura de Santa Catarina –, é lançado um documento, que define as condições para se atribuir função de certificadora. Segundo os entrevistados, os porta-vozes de movimentos sociais em Santa Catarina reagem contra isso e rasgam o documento. Ainda em reação à posição reivindicada pela EPAGRI, cria-se a Rede Ecovida, que surge como fruto deste processo. Inicialmente, a rede Ecovida nasceu em Santa Catarina e, no seu formato organizativo, origina-se a partir de grupos organizados de agricultores. Se a Ecovida se estabeleceu como uma reação à EPAGRI, no 2º semestre de 1999, surgiu a proposta de ampliar a Rede para os três estados, e em março de 2000, referendou-se a proposta no II Encontro Ampliado. Em 17 de maio de 1999, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento – MAPA – promulga a Instrução Normativa MA nº 07 sobre a certificação de produtos orgânicos. Ela constituiu-se efetivamente em lei em dezembro de 2003, e a próxima etapa foi sua regulamentação em Decreto-Lei. A Portaria nº 17, também do MAPA, de abril de 2001, trata do registro de certificadoras. Segundo documento da Rede, ela assim reagiu a estas determinações: A rede Ecovida surge como resposta ao processo de mercantilização da agricultura ecológica e ao sistema convencional de certificação de produtos orgânicos. A necessidade de promover um sistema próprio de garantia de qualidade dos alimentos produzidos fez com que se desenvolvesse o processo denominado certificação participativa em rede. ANTROPOLÍTICA

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184 [...] A Rede Ecovida de Agroecologia não é uma entidade jurídica, caracteriza-se como uma organização de fato, mas não de direito, tendo em vista que seus objetivos e princípios extrapolam o âmbito da certificação somente. Para fins de formalização do processo de certificação, foi constituída dentro da rede a Associação Ecovida de Certificação Participativa, que possui estrutura jurídica, já adaptada ao marco legal em andamento, mas que está submetida regimentalmente ao controle social da Rede Ecovida (REDE ECOVIDA, 2001).

O que nos interessa aqui destacar é que esta forma de associativismo se expressa a partir de um objetivo bem definido que é a certificação, embora, como bem salientam os seus coordenadores e os documentos da Rede, o engajamento associativo não se constitua em sua razão de ser e muito menos no cerne de sua identidade. A nosso ver, a certificação, do modo que a Rede a percebe, passa a ser um instrumento a corroborar o associativismo preconizado. Esta parece ser a razão de instrumentalizá-la com uma futura certificadora legalmente amparada, prevendo os desdobramentos futuros da instrução normativa, da portaria ministerial e da lei. Dados estes motivos, a Associação de Certificação Participativa dispõe de Comissão Técnica, Conselho de Certificação e Conselho de Ética ou de Recursos. Enquanto as Comissões Técnicas dos estados serão compostas pelas entidades de Assessoria com um mínimo de três membros por comissão, a Comissão de Ética (nos grupos de agricultores e/ou núcleos regionais) compõe-se de três membros (agricultores[as] e/ou técnicos do grupo, com mandato de um ano com renovação de 1/3 de seus membros), escolhidos na assembléia ou em reunião do grupo (associação, cooperativa etc.). A certificação é obtida pelo agricultor que, integrante da rede, por ela se interesse, desde que atenda aos seguintes requisitos e práticas: a) estar em dia com a Rede; b) preencher o formulário de certificação (um por propriedade); c) apresentar os formulários para o Conselho de Ética do Núcleo e solicitar uma visita (intercâmbio); d) o Conselho de Ética dá o parecer (aprovado ou com sugestões); e) o grupo solicita a quantidade de selos ou o atestado e a Coordenação do núcleo pede os selos para o Conselho de Certificação da Rede Ecovida. Assim, não é o agricultor isolado o principal agente de transformação da realidade, mas as associações de produtores ecológicos e cooperativas, ONGs engajadas no processo e consumidores que dão o caráter regional e local à Rede. Parafraseando Carneiro (2001, p.10), quando alude à localidade como referência espacial, poder-se-ia preconizar para os territórios da agricultura familiar um papel qualificador de um uniANTROPOLÍTICA

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verso de relações sociais específico. A nosso ver, o que qualifica este universo são relações sociais que se especificam em torno dos valores e objetivos preconizados, por sua vez resgatados em suas origens. É por isso que esta nova forma organizacional, a rede, embora possa ter raízes territoriais, transpõe os territórios contíguos sem destruir as conexões, ainda que o significado identitário de pertencimento se dê, é verdade, a partir do que é próximo. Contudo, a rede será tanto mais forte, quanto mais por ela se conseguir este amálgama em torno dos valores partilhados. O sentido de pertencimento pode ultrapassar, então, os limites acanhados do local, ao comprometer-se com os valores gestados e vivenciados na Rede, buscando o desenvolvimento territorial. Esta parece ser uma característica das redes de credibilidade da agricultura orgânica, pois sua própria organização, a partir dos núcleos, parece estimular quase que uma superposição do que Ashforth e Mael (1989) denominam de “grupos de identidade” e “grupos organizacionais”. Em outras palavras, na Rede Ecovida, as evidências preliminares da pesquisa nos levam a inferir que a sua identidade social se efetiva a partir dos grupos familiares e dos núcleos, nos quais se fundem as características acima mencionadas dos “grupos de identidade” e dos “grupos organizacionais”. Resta relembrar o importante papel que as ONGs integrantes assumem como centros de intercâmbio e resgate não só de um necessário saber técnico e instrumental, mas como estimuladores desta sociabilidade sem a qual não se nutre a identidade. As ONGs atuantes na Rede Ecovida no Rio Grande do Sul – Cetap, Capa e Centro Ecológico – se associaram num consórcio, visando à união institucional pelo fortalecimento da agricultura familiar e da agroecologia.

C ONCLUSÕES ,

NÃO : CONSIDERAÇÕES A RETOMAR

A Rede Ecovida de Agroecologia, segundo o que nos foi dado observar até o momento, caracteriza-se por uma visão de mundo fundada principalmente no valor confiança entre seus participantes, marcada pela credibilidade acerca da produção e comercialização de produtos alimentares isentos de agroquímicos, considerados nocivos ao ser humano e à natureza. Ao que parece, os princípios preconizados na Conferência do Meio Ambiente – Rio 92 – estão se construindo como uma nova consciência ecológica, sobretudo nos territórios de agricultura familiar. A recuperação de um saber “tradicional”, pelo uso de adubos orgânicos e de técnicas preservacionistas do ambiente natural, o que teria sido negado, relegado a segundo plano ou esquecido durante o ANTROPOLÍTICA

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período mais acentuado da modernização agrícola, ultrapassa os seus próprios limites instrumentais ao aliar-se, agora, a uma valorização do alimento orgânico ecologicamente produzido e processado, pelo próprio agricultor e por um segmento de consumidores rurais e urbanos. Passados mais de dez anos da Conferência Rio 92, entre vitórias e frustrações quanto aos objetivos por ela estabelecidos, experiências afirmativas como esta alimentam a esperança de que reconstruções identitárias através do associativismo – um caminho que nunca é fácil – acenem com um outro futuro para as gerações presentes e as que nos sucederão.

ABSTRACT Family agriculture in South Brazil has charged conventional production by organic food production. The present work tries first to reflect about the several faces of identity and the identity marks on South Brazil familiar agriculture. After we try to identify and to characterize a producers socialeconomic network involved with production and commercialization of organic foods. This network, called “Rede Ecovida de Agroecologia” acting in the three South states of Brazil is now structuring its social cooperative and communicative practices on its inner and external relationships. Methodological aspects of this work includes: a) networks documental analysis; b) interviews with people working on organic products in alternative technology centers. Some considerations about the settlement territorial-historic process in family agriculture in Rio Grande do Sul are presented. Finally this actual territorial network construction and its effects are presented and discussed. Keywords: identity; familiar agriculture; associative forms; familiar agriculture network; South Brazil.

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WARREN, Ilse Scherer. O que há de novo nos movimentos sociais no campo?: redes de movimentos sociais. São Paulo: Loyola, 1996.

N OTAS 1

Esta situação encontra respaldo até hoje, uma vez que um estudo da Secretaria de Coordenação e Planejamento do Rio Grande do Sul, em 1998, diagnosticou dois tipos de pobreza rural neste estado. A mais intensa relaciona-se às relações assalariadas na região Sul do estado e a menos intensa, mas com índices de concentração mais elevados, estaria em áreas de agricultura familiar do Norte do Rio Grande do Sul.

2

Ricardo Abramovay(2000) faz uma análise desta inserção de ONGs na Rede TA – Tecnologias Alternativas – atuante sobre este público.

3

No âmbito deste trabalho, estão sendo chamados de Centros Tecnológicos.

4

No documento consultado, havia sete núcleos. Posteriormente foi criado mais um no Rio Grande do Sul, o núcleo Centro RS.

5

Para maiores detalhes sobre o processo de certificação ver, entre outros e sob a perspectiva da Cooperativa Coolméia, Mesquita, 2002. E ainda: Andrade, Mesquita (2003).

ANTROPOLÍTICA

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A

N T O N Á D I A

D EPOIS

DE

B

B OURDIEU :

O R G E S*

A S CLASSES

POPULARES EM ALGUMAS ABORDAGENS SOCIOLÓGICA S CONTEMPORÂNEA S 1

Este artigo tem por objetivo vincular o caráter vivo das teorias clássicas sobre culturas populares às expansões proporcionadas por renovadas pesquisas. Para tal, se toma o caso da produção de Pierre Bourdieu como marco de uma ruptura com padrões regulares de análise. Em seguida, se aponta para um movimento recente, dos anos 1990 até os dias atuais que, se alimentando desse legado, ajuda a redefinir nossas formas de pensar a cultura popular. Palavras-chave: antropologia do trabalho; cultura popular; luta de classes.

* Autora de Tempo de Brasília: etnografando lugares-eventos da política (Relume-Dumará/NuAP), fruto de sua tese de doutorado em Antropologia Social pela Universidade de Brasília. Atualmente, como bolsista PRODOCCAPES, ensina e pesquisa no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

192

O

PRESENTE DE

B OURDIEU

O estudo das chamadas classes populares inicia-se geralmente por um debate em torno da definição deste tema em si, por um debate em torno da conveniência de tal recorte. Ao longo de décadas, o uso recorrente de um conjunto obrigatório de textos configurou uma espécie de bricolagem incontornável que sob um mesmo guarda-chuva abrigou referências nem sempre compatíveis, mas que não poderiam deixar de ser citadas. Como efeito dessa prática, tal literatura de referência imprimiu um viés necessário sobre a perspectiva adotada. A referência à heterogênea bibliografia que percorria a “cultura popular” tornou-se uma constante nos escritos dos cientistas sociais envolvidos com o assunto, mesmo quando esses eram conscientes das transformações inexoráveis no mundo social e do caráter provisório de toda teoria. O tour poderia ir desde os primórdios folclóricos (espelho de uma perspectiva arqueológica), até os modos de vida dos grupos trabalhadores contemporâneos. Entre estes dois pólos, localizou-se a maioria das etnografias e/ou estudos históricos ou sociológicos produzidos. Em comum todos tinham uma certa convicção de que era possível observar o presente e traçar, a partir do que se supunha serem resquícios (como os survivals de Tylor), um caminho que levasse à origem de certos costumes (pensemos nos usos e abusos da noção de “economia moral” forjada por Thompson). Essa gênese compartilhada daria conta de ilustrar a diferença entre os subalternos e os dominantes desde tempos imemoriáveis com um adendo: ao se contrastar esses estudos com as análises sobre as classes abastadas traçava-se um painel de longa duração onde se figuravam uns e outros ou “nós e eles” como uma divisão perene da vida em sociedade.2 Este processo interessa-nos antropologicamente porque desvela uma forma de tornar rediviva a cisão nós-eles dentro de uma mesma e comum sociedade que, sem pruridos, chamamos de “nossa” (na qual “eles” se incluem ou da qual se excluem) e não “deles”, sendo a diferença justificada como um fato “da realidade” e não propriamente como um fato sociológico. A partir desta constatação “histórica”, por assim dizer, emergiu um outro tipo de universal: já que o passado nos ensinava sobre o presente, tornou-se possível afirmar que haveria classes populares ou o seu equivalente em qualquer parte e em qualquer tempo. A partir disso, em havendo grupos populares em todos os lugares, conseqüentemente seria permitido realizar comparações entre os mesmos. Esse desdobramento possibilitou o exercício de contrastar estudos na ANTROPOLÍTICA

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procura de semelhanças e diferenças entre os grupos ditos populares de lugares distantes. Não raro essas comparações se davam entre algum país considerado periférico em relação a um outro apontado como central (pensemos, por exemplo, no caso de Oscar Lewis e a cultura da pobreza mexicana ou nas teorias desenvolvimentistas que tornavam contemporâneo o esquema cognitivo do evolucionismo). A obra de Pierre Bourdieu e outros companheiros seus emergiu nos anos 1960 em vagas de desconforto com relação a tal perspectiva (BOURDIEU, 1977). No que tange ao tema das classes populares, a produção desse grupo de pesquisadores imprimiu uma inflexão nos padrões de investigação recorrentes.3 No auge do estruturalismo, tais estudos nuançaram as dicotomias vigentes. Suas pesquisas, embora hoje possam parecer ter arestas excessivamente aparadas, foram de fato revolucionárias, ao apresentarem uma concepção de estrutura social que não necessariamente se limitava a pares de oposição estanques (pensemos no contraste entre a análise dos camponeses solteiros vis-à-vis a cosmológica arquitetura da casa cabília).4 Não se tratava mais de analisar a diferença entre as classes apenas sob o viés econômico.5 Uma miríade de categorias e modos de construir um problema sociológico tornou-se necessária a partir deste momento em diante para expressar a “condição de classe” dos trabalhadores. Se lembrarmos Durkheim, Bourdieu e os seus exigiam que os fatos sociais fossem explicados por outros fatos sociais. As idéias de estruturas de capitais ou de habitus constituíram o primeiro grande golpe daquilo que veio a ser denominado como “esporte de combate”: uma arte de defesa sociológica semelhante à razão prática adotada pelos sujeitos que pesquisamos. O que se combatia com esse aparato conceitual em formação eram os estudos bidimensionais, aqueles em que se consideravam apenas duas variáveis em jogo e não raro em relação de oposição (PARSONS, 1974) como modelo de apreciação sociológica. No que tange à “cultura popular” propriamente dita, combatia-se a tendência a se pensar o local de trabalho como um lugar ou de disciplinamento ou de reprodução da ordem hierárquica ou de invenção de uma forma de resistência. Ou a vida nas favelas, vilas e subúrbios como encurralada, miserável, ou genuinamente alegre. Constatando que nenhum survey daria conta de capturar tal heterogeneidade evanescente, esse grupo de pesquisadores reabilitou ainda as técnicas de trabalho de campo etnográfico (como preconizadas por ANTROPOLÍTICA

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Marcel Mauss) para deixar a sociologia se surpreender com o mundo à sua volta (WACQUANT, 2004). Seguiam então os passos de Richard Hoggart, procurando compreender a cultura popular ou das classes trabalhadoras não como uma cultura degenerada, mas como formas múltiplas de expressão e criação simbólicas que desafiavam uma suposta ordem legítima (incluindo aí a ordem legítima no interior da sociologia). Acredito que o grande legado desta fase, embora os estudos sobre educação tenham tido uma repercussão crítica importante, sejam aqueles sobre trabalhadores realizados na Argélia e na França. Essas pesquisas não apenas cruzavam vários temas e problemas, como se adensavam ao longo dos anos com novas investigações feitas por pesquisadores constantemente agregados ao grupo original (pensemos na linha que une Travail et travailleurs en Algérie de 1963 a La misère du monde de 1993). Bourdieu (2005) a propósito deste período relaciona o estabelecimento de “sua” teoria a um conjunto de fatores dos quais se destacam a pesquisa de campo e o consórcio de interesses pessoais e disciplinares distintos voltados para a sociologia. No entanto, apesar das boas intenções e dos resultados práticos dessas pesquisas, sua “reprodução” não se deu de forma tão libertária quanto se poderia sonhar. As ditas obras teóricas advindas deste período (em geral, textos reunidos sob a forma de coletâneas) também se transformaram em uma espécie de liturgia que figurou obrigatoriamente em boa parte dos estudos sobre cultura popular produzidos até os anos 1990. Não falo daquilo que Bourdieu (1996) chama de efeito de teoria – os efeitos do que escrevemos sobre o mundo, sobre nós mesmos. Refirome a um lado mais pernicioso da referência obrigatória que é a redução do inaudito (evidenciado nos textos que com certo menosprezo por vezes são classificados como empíricos) ao modelo. Nesses casos, quem se ressente não é o mundo – que segue seu curso “escapando” dos enquadramentos –, mas a própria teoria sociológica que amordaçada acaba sofrendo de inanição. No caso específico da repercussão dos estudos de Pierre Bourdieu e seu grupo, tal efeito foi ainda mais perverso porque paradoxal, contrariando os ditames de suas próprias investigações. Da recusa à dicotomia, passou-se ao aprisionamento em planos cartesianos. Como em um passe de mágica, muitos estudos sob esta inspiração se reduziam, por fim, a um conjunto de termos – campo, disposições, estratégias, conversão, estruturas de capital e habitus. A sociologia e outras disciplinas correlatas (da antropologia à pedagogia) combatiam agora tudo o que não coubesse nesta linguagem, por vezes travestida em quadros (estatísticos ou ANTROPOLÍTICA

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não). Em pouco tempo, criou raízes e floresceu mais uma vez uma sociologia da conservação. Toda e qualquer sociologia da conservação não conserva somente o mundo social, mas conserva a si mesma, fechando-se, protegendo-se de desafios e de mudanças. E, como conservadora que é, não se ressente de lançar mão dos trabalhadores para se locupletar academicamente. E este é o caso por excelência de todos nós envolvidos com pesquisas acerca da cultura popular. Nossa ilusão sustenta-se obviamente na crença coletiva de que nada escapa aos nossos modelos sociológicos ou sistemas classificatórios tidos como infalíveis. Mas o que fundamenta essa crença por parte dos cientistas sociais? Para enfrentar esta questão, evoco Charles Peirce, acreditando que este filósofo talvez nos ajude mais que outros a elucidar um conceito tão fundamental quanto fugidio como “crença”.

A

DÚVIDA COMO PROPULSORA DA MUDANÇA

Charles Peirce escreveu certa vez que se o homem fosse imortal ele poderia estar perfeitamente seguro de ver o dia em que tudo o que ele acreditou desafiar sua crença e, em suma, se tornar miseravelmente desesperançado. Ele se desmoronaria, como acontece com toda grande fortuna, com toda dinastia, com toda civilização. No lugar disso temos a morte.6

A entronização de modelos teóricos nos obriga à suspensão das pesquisas de campo. Uma suspensão que não significa interrupção, mas isolamento. Nosso procedimento passa a ser restrito: destacamos com nossa espátula teórica camadas de realidade que podemos apreciar por meio das referências costumeiras. Tudo o que não pode ser assim classificado ou jogamos fora ou deixamos intocado. Procedendo desta maneira, evitamos qualquer surpresa ou, nos termos de Peirce, evitamos sujeitar nossas crenças a dúvidas. Felizmente no final da década de 1990, uma onda de pesquisas socioantropológicas emergiu, alimentada pelos avanços anteriores, porém insatisfeita com a inadequação dos modelos às mudanças na vida social. Alguns desses trabalhos, bastante recentes, demonstram a importância de se desconfiar dos modelos estanques, privilegiando um diálogo criativo com a inovação inerente à atividade de pesquisa. É preciso ceder ao fato de que, em momentos precisos, são as teorias naANTROPOLÍTICA

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tivas, como diria Malinowski, que abrem nossos olhos para o que não conseguíamos ver como nossa sociologia. Essa ressalva é importante para percebermos que ao apresentar um conjunto de textos que julgo representativo dessa guinada, estarei, ao mesmo tempo, procurando indicar que mudanças ocorreram na vida dessas pessoas que acreditamos possuírem ou serem as depositárias de uma cultura popular. O movimento teórico não pode ser desvinculado de uma certa pressão das evidências. Nas pesquisas de Lahire, Wacquant e Beaud e Pialoux, encontramos três desdobramentos de uma matriz comum: a socioantropologia francesa inspirada em Bourdieu. Em cada uma delas, perceberemos avanços em direções singulares que emergem de críticas a pontos específicos dos estudos que lhes antecederam. Essas críticas, como procuro defender, se definiram como movimento teórico a partir da parcial perda de eficácia das perspectivas sociológicas consideradas legítimas ante aos fenômenos relativos às culturas populares nos anos 1990.7

L AHIRE

E A CULTURA DOS INDIVÍDUOS

Bernard Lahire é um sociólogo reconhecido por seus estudos sobre educação. O principal objetivo de suas pesquisas tem sido demonstrar que não há uma equivalência a priori entre escola e cultura (no sentido de cultivo). Avançando sobre essas primeiras conclusões, Lahire abre seu mais recente livro, La culture des individus, trazendo o caso do Sr. W, que viremos a saber tratar-se de Wittgenstein. O foco de Lahire é a relação de identidade entre cultura de massa e cultura popular. Uma relação de homologia que ele procura problematizar a partir dos casos concretos encontrados em sua pesquisa. O Sr. W não se trata de um membro das classes trabalhadoras, tampouco sua cultura é popular, no entanto, apesar de membro da elite erudita, Wittgenstein apreciava cinema – um gosto que em nada correspondia ao seu “perfil”. Com este caso “dissonante”, Lahire inaugura sua tese acerca das indeterminações que cercam a composição do gosto dos indivíduos e, conseqüentemente, acerca dos desafios que tal fluidez e heterogeneidade impõem à sociologia. Cada Sr. W que encontramos em campo é a um só tempo um membro de um grupo qualquer e um indivíduo singular. Segundo Lahire, o enquadramento deste sujeito em uma classe ou categoria é sempre um ato arbitrário, ao menos mais arbitrário que sua classificação como indivíduo. Por que razões, ele se pergunta, aos sujeitos de classes populaANTROPOLÍTICA

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res foi negada a condição de indivíduo? Por que ao Sr. W era permitida tal idiossincrasia, mesmo que esta permanecesse incompreendida e rejeitada durante décadas (pensemos nas críticas da Escola de Frankfurt)? Lahire mergulha então no estudo das propriedades sociais dos indivíduos. Para ele, refutar essa dimensão individual assegura aos pesquisadores a certeza de estarem lidando com um “gosto natural”, isto é, um gosto de classe. Vemos que sua grande pesquisa (feita por meio de questionários e conversas com mais de 3.000 pessoas com mais de 15 anos, se contrapondo a uma certa sociologia estatística da recepção cultural) ergue-se em contraste com La Distinction de Bourdieu. Lahire acredita que na última década a busca pela contestação da ordem cultural permitiu aos indivíduos se desviarem de suas marcas de origem e que este fato não deve ser negado ou classificado pelos sociólogos como um subterfúgio, mas como uma outra realidade. Uma realidade marcada por múltiplas orientações no mundo (TAMBIAH, 1996). Essa constatação incita o autor a formular uma outra tese que se contrapõe a Bourdieu: além das variações intra-individuais, devemos começar a perceber uma imensa diversidade de ordens de legitimidade cultural. Não há uma oposição absoluta entre sagrado e profano. Os indivíduos podem alternar práticas legítimas e ilegítimas, dependendo do domínio cultural em que se encontram. Lahire acredita que Bourdieu não levou em conta o “contexto da situação” (MALINOWSKI, 1923) quando empreendeu suas análises que deram origem a tipologias e gráficos de dispersão. Seu argumento recupera muito do legado de Hoggart, para o qual não podemos dizer que o mundo social viva só de estetas ou de excluídos. Nós seríamos e nossos pesquisados também, na maioria das vezes, sujeitos híbridos, visto que estaríamos todos vulneráveis a deslocamentos sociais contínuos (grandes e pequenos). Essa perspectiva conduz Lahire a lançar mão do termo dissonante, que passa a ser central em sua análise de entrevistas atentas às circunstâncias individuais. Para ele, a resposta do pesquisado depende do momento sui generis em que este é interpelado – seja o da própria entrevista ou do caso e momento concreto a que o indivíduo alude para responder às questões propostas (e.g. como influem em suas decisões as companhias das quais se cerca). Essa perspectiva permite a Lahire observar ainda que ascensão e declínio sociais não são movimentos inerciais unos. A mobilidade, para cima e para baixo, pode acontecer em termos sociais, escolares e profissionais. Não necessariamente nesta ordem, nem de modo concomitante. A parANTROPOLÍTICA

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tir da idéia mestra de contestação da ordem, Lahire consegue ainda observar que, sobretudo, os jovens encontram-se sujeitos a um triplo constrangimento: além da escola e da família, seus pares são uma fonte de (des-)estabilização. O contraste entre essas instâncias evidencia para o autor o caráter profícuo de uma apreciação cultural que contemple a mistura de gêneros em vez do purismo. Essa abordagem visa observar as guerras simbólicas travadas dentro de um grupo que, de outras formas, poderia ser visto como homogêneo: O número de lutas simbólicas é proporcional ao número de gêneros e subgêneros culturais diferenciados (musicais, literários, televisivos, cinematográficos, etc.) [...] [e] cada variação de um nível de legitimidade cultural a outro adquire subjetivamente um sentido positivo ou negativo, de elevação ou rebaixamento, de subida ou de descida, de avanço ou de regressão [...] [e] mesmo aqueles que declaram práticas consideradas pouco legítimas em um mundo do qual não sentem vergonha, não esquecem as hierarquias entre as suas diferentes práticas (LAHIRE, 2004, p. 672-673).

Lahire advoga, assim, em favor de uma sociologia da socialização que busca menos que uma sociedade um homo multiplex (LAHIRE, 2004, p. 710). Em vez da homogeneidade, o autor advoga em favor de pesquisas que procurem encontrar a distinção no interior dos grupos sociais. Tal busca nos conduz, no limite, à contestação do próprio conceito de sociedade8 em prol de uma noção mais ampla de socialidade entre indivíduos.

B EAUD

E

P IALOUX

E OS TRABALHADORES SEM EMPREGO

Se em Lahire o tema da educação como porta de acesso à cultura popular foi posto em debate, em Violances urbaines, violance sociale estamos diante da outra parte da dobradiça que teoricamente tem articulado os trabalhadores na literatura sociológica (como, por exemplo, em Paul Willis): a cultura da fábrica. Depois de haverem estudado mudanças nas práticas e, conseqüentemente, no sentido de “ser operário” em uma cidade voltada para o interior de uma fábrica de automóveis, nesta obra mais recente os autores dedicam-se sobremaneira à geração mais jovem, por eles nomeada como “geração precária”. Embora parte desta juventude aspire a uma idade de ouro marcada pelo emprego estável, a realidade vivida por

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todos é bem diferente. Escorregando de um “estágio” (trabalho temporário) a outro, sem jamais serem contratados, esses rapazes e moças sofrem em seu cotidiano o sentido contemporâneo de ser trabalhador: a falsa entrada no mercado de trabalho. O foco desta pesquisa se expandiu do pátio da fábrica para a cidade, para os locais de moradia dos trabalhadores (da geração anterior) e foi aí que se depararam com os filhos – escolarizados – e, paradoxalmente ou talvez mesmo por causa disso, alinhando-se em filas diárias nas instituições de “orientação profissional”. De caráter mais etnográfico que o estudo de Lahire, aqui vemos pessoas concretas que nos são gradualmente apresentadas, visto que para conhecer bem qualquer uma delas faz-se imprescindível acompanhar eventos importantes que marcaram a vida de todos os demais. O quebra-cabeça só se monta ao final da obra. Da observação desses locais em que se busca um estágio, Beaud e Pialoux descobrem que um certo grupo de jovens considera preferível conseguir uma “ocupação” (um bico, um “período de experiência” de três meses) a estar desempregado. Para essa parcela da juventude, ter um trabalho implica ainda ocupar um lugar na cidade. Entretanto, acompanhando o cotidiano dessas instituições, torna-se evidente que parte dessa importância do emprego se deve não mais aos valores operários de outrora (BEAUD; PIALOUX, 1999), mas à importância inusitada de tais escritórios para a organização social desses bairros também precários. Nesses locais se alimenta um sonho de futuro, se administram pequenas doses de violência civilizatória com traços estatais. As filas de espera e as consultas com os conselheiros tornaramse ambiente de uma outra socialização que já não possui mais o chão da fábrica ou os muros escolares para brotar. Esta mudança indica transformações drásticas naquela cidade até os anos 1990 caracterizada por uma transmissão de saber ou reprodução da tradição baseada em laços de parentesco, camaradagem, vizinhança, militância sindical e amizade. Sem essas redes, tecidas desde os mais tenros tempos, os jovens em busca de um emprego confrontam-se com um mundo repleto de papéis e de funcionários que lhes aconselham, que lhes ensinam a acreditar que vale a pena buscar um emprego. Processo de convencimento que se dá porque ambas as partes se engajam em tal tarefa: os conselheiros, por um lado, agindo como empreendedores da moral e os jovens, sobretudo as mulheres, reconfigurando

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suas aspirações vezes sem fim, para se adequarem a este código de esperança.9 Os autores perguntam-se em que medida a escolarização em massa ocorrida durante a última década marcada pelo fechamento das fábricas não se tratou de uma atitude totalmente inconseqüente que hoje se depara com um dilema sem precedentes: de que servem as estatísticas sobre as altas taxas de escolarização se não há futuro para esses rapazes e moças cujos pais, em sua grande parte norte-africanos (SAYAD, 1991), tampouco têm um posto de trabalho?10 Diante de tais transformações, como continuar atrelado a uma sociologia que pense exclusivamente em “estratégias” como abordagem para a “reprodução familiar”? A saída encontrada pelos pesquisadores, embora peculiar, guarda certa semelhança àquela tomada por Lahire. Aqui também o “exame detalhado das histórias individuais dos jovens” (LAHIRE, 2004, p. 337) parece fornecer uma pista para compreendermos a identidade blessée dessas moças e rapazes (p. 51). Gradualmente, a partir da transcrição de diários de campo e de trechos de entrevistas exemplarmente contextualizadas, somos apresentados ao fim da cultura anti-escolar (como encontrávamos em Willis) e também ao fim da cultura do saber prático. Escolarizados, porém munidos de “diplomas ruins”, essa juventude degrada-se como mão-de-obra barata em estágios intercalados pelo desemprego que, em alguns casos, já dura quase uma década. O passo seguinte dessa investigação foi compreender qual o efeito de tais estágios (BEAUD; PIALOUX, 2003, p. 95) sobre o que até então era um dos pilares da sociologia dos trabalhadores: a identidade profissional. Observando diferentes experiências, os autores identificam que, mais do que por causa de uma qualificação específica (como em geral acontecia na geração anterior), obtêm emprego aqueles jovens que se convencem que foram “selecionados” por serem “polivalentes”, por “saberem trabalhar” (p. 141). A maioria, no entanto, não se enquadra neste modelo que, por razões evidentes, tende a não ser inclusivo. Além de não se reproduzirem conforme os moldes da geração anterior, esses jovens desconfiam dos mais velhos e também de seus contemporâneos que conseguem algum bico. Para esses, os conselheiros são vistos como empregadores que não os aceitam. Para os homens, em especial, esta passa a ser uma questão de honra quando percebem que seu modo de ser, seu machismo é condenável nesses ambientes que privilegiam as mulheres porque elas cumANTROPOLÍTICA

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prem funções operárias sem se engajarem em relações de camaradagem tradicionais (como a sindical, por exemplo, que exigiria, segundo os autores, uma formação militante ou uma certa desconfiança em relação à cultura escolar legítima que as mulheres, por terem estudado mais, não conseguiriam esboçar) e também por receberem menos do que se pagaria aos homens. O que poderia parecer uma reversão do equilíbrio entre homens e mulheres (ELIAS, 1987) trata-se, em suma, de uma fragilização salarial de todos esses trabalhadores que incide sobre as mulheres. O quadro traçado leva Beaud e Pialoux a forjarem a expressão “pleno emprego precário” (2003, p. 263) que envolve uma diminutas parcela da população destas pequenas cidades que viviam para as fábricas. E quanto aos demais? Demitidos, sem chance, os jovens, sobretudo os homens, passam a assaltar para ganhar algum dinheiro. São nessas práticas que os autores identificam uma chave para pensarmos uma possível cultura popular característica do final dos anos 90: uma cultura de rua, marcada pela revolta, pela discriminação racial e por atitudes de confronto e desprezo pelos emblemas da sociedade francesa. Poderíamos fazer exercícios futuros para identificar equivalentes deste “francês” para outros casos. Tal deslocamento de perspectiva permitiu a Beaud e Pialoux compreenderem, em vez de uma suposta anomia, um outro tipo de socialização: uma socialização “territorial” (2003, p. 291), marcada por um senso coletivo que se sustenta exatamente pela distância desse jovem do domínio do trabalho, percebido como o lugar por excelência da fragmentação, da individualização, da perda do amor próprio, do exercício da bajulação. Esses rapazes preferem tomar o bairro de assalto em reação à despossessão social que lhes é atribuída, passando a exercer seu poder (masculino notadamente) em espaços públicos.11 Os autores classificam o que normalmente é visto como controle de um território por jovens desnorteados e agressivos12 como “cultura da provocação” (p. 339), isto é, como um sinal da lucidez social desses rapazes. Gradualmente percebemos que além de serem trabalhadoras, as mulheres na periferia são o alvo preferencial dos ataques desses rapazes que assim colaboram para colocá-las em um beco sem saída (p. 357). Elas, ao fim, acabam “beneficiárias” de “trabalhos sociais” que por razões estruturais não conseguem (e talvez não devam jamais conseguir, se pensarmos neste problema desde Carol Stack) dar conta da degradação econômica e social desses grupos de trabalhadores ocorrida nos últimos 20 anos. ANTROPOLÍTICA

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Sem fechar as possibilidades de interpretação, demonstrando que a cada investimento de pesquisa novas facetas da vida dos grupos populares emerge, os autores dedicam-se ainda a discutir os casos desviantes, isto é, o daqueles jovens que enveredam pelo caminho da universidade como uma forma de escapar do veredicto do mercado de trabalho, como uma forma de fugir do ou ao menos mascarar o racismo difuso que incide de modo ainda mais brutal sobre aqueles que não freqüentam os bancos das faculdades (BEAUD; PIALOUX, 2003, p. 335). Grande parte desses jovens não logra concluir o curso universitário iniciado. Outra situação, menos demonstrada, mas aludida e que nos serve de alerta é o engajamento de alguns jovens nos projetos sociais que têm como alvo o próprio bairro em que vivem. Esse fenômeno seria mais um emblemático das contradições em que está submersa esta juventude. Afinal, escolhidos por serem em tese porta-vozes do povo, da vizinhança, gradualmente, esses rapazes e moças aprendem a falar a linguagem dos projetos e, ao fim de algum tempo, encontram-se no meio do caminho: não são mais identificados e acreditados como “um dos nossos” no lugar onde moram e tampouco deixam de ser vistos como periféricos pelos militantes-missionários que fazem visitas esporádicas à periferia. Nas palavras de Beaud e Pialoux, a participação popular não é uma variante da cultura popular, e os projetos nada mais fazem do que iludir os sentidos.

W ACQUANT

E O GUETO ABORDADO EM DUAS FRENTES

Loïc Wacquant por diversas razões tornou-se uma referência recorrente no que tange a estudos sobre cultura popular nos anos 1990. Seu alvo empírico são os guetos norte-americanos, termo que o autor defende orientado por sua perspectiva teórica. Já seu fito acadêmico é a produção de e para think tanks, mascarada pela pretensa isenção acadêmica (BOURDIEU; WACQUANT, 1998). Seus ataques dirigem-se ainda às etnografias “românticas” que reduziriam os processos sociais a um estado “estático” (a Zustandreduktion a que se referiu Norbert Elias), passivo e conseqüentemente passível de ser alterado pelo Estado. A principal característica dos trabalhos criticados por Wacquant seria a falta de uma determinação dos mecanismos de “destituição material e exclusão racial” que perpassam a vida dos moradores dos guetos. No entanto, crê Wacquant, essa revelação não se dá como um passe de mágica e sim por meio de um envolvimento etnográfico de longa duração. ANTROPOLÍTICA

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Esta carta de princípios desse pesquisador é levada a cabo de diferentes formas em suas próprias pesquisas, como frisa Fonseca (2005). Seus textos são por ora bastante genéricos e orientados por um salvacionismo moral que pouco nos ensina “sobre as ambivalências e ponderações de seus informantes frente aos densos processos sociais e políticos de sua existência” (p.128). Por outro lado, em seus artigos baseados em amplas pesquisas estatísticas que tratam da morfologia e dos efeitos sociais do sistema carcerário e de controle social por meio da assistência governamental aos moradores negros de guetos norte-americanos, Wacquant segue de perto os preceitos de Bourdieu, tratando a diversidade a partir de uma teoria sobre as estratégias e trajetórias possíveis no espaço social (WACQUANT, 2001). Em parte desses trabalhos, Wacquant consegue aproximar-se de fatos sociais concretos e significativos, como em Corpo e alma – exemplo de estudo etnográfico, cuja formulação teórica dialoga e desafia as pesquisas sociológicas em ambientes urbanos. Wacquant sugere e defende a partir desta obra que a etnografia deve ser invariavelmente “guiada pela teoria” (WACQUANT, 2002b, p. 1523) e “organicamente ligada ao poder e à diferença” (p. 1526). Esse investimento peculiar de Wacquant nos indica uma outra vereda possível de ser trilhada por aqueles que se ressentem da impotência dos modelos analíticos usuais. Colocando-se como parte do processo de conhecimento – como aprendiz de boxe –, Wacquant avança em relação a um dos últimos empreedimentos de Bourdieu: a idéia de uma socioanálise, ou seja, de uma possibilidade de traduzir os problemas nativos em sua forma autoconsciente. Para Wacquant, este se trata de um objetivo a um só tempo teórico e político. Teórico porque de fato tal conhecimento por meio das teorias nativas constitui o âmago de uma noção fundamental de teoria etnográfica, e político porque, mediante seus ensinamentos aos antropólogos, os nativos – sobretudo aqueles vilipendiados pela exploração capitalista contemporânea – exercem de forma contundente seu ponto de vista analítico e crítico (BORGES, 2005). No estudo em questão, é por meio do corpo, dos ensinamentos do boxe para Wacquant e seus companheiros do Gym que essa teoria nativa da cultura do gueto (uma outra variante da cultura popular atualmente) é compreendida e expandida. Trazendo à tona as vidas de seu velho treinador e dos aprendizes que o cercam, saindo do oásis que é o Gym para lutas e campeonatos, circuANTROPOLÍTICA

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lando pelas redondezas acompanhando seus parceiros que buscam um bico (alguns depois de terem sido presos), Wacquant empreende uma inusitada análise histórica e materialista, tratando de forma sutil de temas clássicos que não surtem mais efeito sociológico se antecedidos por uma teoria prescritiva que invariavelmente considera a realidade inadequada ou aquém do ideário de uma classe dominante – aquela da qual faz parte o pesquisador. Contrapondo-se em alguma medida, embora não absolutamente, à cultura de rua, o Gym constitui-se como um espaço em que a alienação garante a proteção daqueles que o freqüentam como uma espécie de templo, afinal, como diz Wacquant, “ninguém tem um saco de areia em casa” – para treinar é preciso estar junto dos demais e, estando ali, não se está em outras partes: seja se envolvendo em atos de agressão não regrados pelos preceitos do boxe, seja macerando o pântano das filas por emprego ou por assistência social (ou seja, “fora” dos espaços sociais pesquisados por Beaud e Pialoux). É desta forma – tangencialmente – que somos apresentados ao quadro contemporâneo de estratificação social nos Estados Unidos, aos efeitos da desindustrialização e do racismo, pontos que convergem na constituição de um amálgama em que se combinam estruturas de classe, desigualdade de casta, destituição material e exclusão racial. Essa espécie de quintessência da vida dos moradores do gueto, no entanto, é compreendida como um produto do Estado de Penitência (em oposição a um ideal Estado de Providência Social) e não como uma chaga que este mesmo Estado estaria disposto a curar.

C ONCLUSÃO Poucos anos depois da publicação de The uses of literacy (1957) de Hoggart, Ken Loach, cineasta britânico, realizou um documentário (ficcionalizado) chamado Cathy come home. O filme inicia com um romance, um namoro. Essas primeiras imagens em tudo lembram os filmes da Nouvelle Vague francesa: um casal jovem, charmoso, enlaçado na paisagem outonal. O mundo, no entanto, não tarda a desmoronar sobre suas cabeças, logo após seu casamento. E este desabamento não é de ordem existencialista como se costumava representar. Com os filhos surge para os amantes o problema da moradia. Em poucos minutos, somos transportados de meados da década de 1960 à Inglaterra descrita por Marx e Engels. O jovem casal é impedido pelos assistentes sociais de viver com sua família em um lar pequeno e degraANTROPOLÍTICA

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dante. Porém, sem recursos para pagar por uma moradia que fosse considerada digna, começam um longo caminho ladeira abaixo. Inicialmente são expulsos da casa da mãe do rapaz, depois passam a viver em barracos, em trailers, em invasões. Expulsos de todas as situações são acolhidos temporariamente em diversos abrigos que, por ordenações morais, acabam separando fisicamente o casal. Ao fim de tudo, só vemos a mulher, sozinha, vagando à deriva, sem os filhos que “eles” tiraram dela. Certamente não foram as obras fundamentais de Marx e Engels as responsáveis pela semelhança entre a vida desses personagens e a de outros tantos nos anos 1960 do século XIX. No entanto, com este caso, alheio às pesquisas em ciências sociais, é possível chamar a atenção para outras formas de apreciarmos mudanças no mundo social que nos alertam: a) para o caráter rígido de alguns de nossos esquemas analíticos; e b) para a importância da recuperação contínua, cotejada com trabalhos de campos renovados, dos clássicos de nossas disciplinas. De Cathy come home a Bread and Roses, do mesmo Ken Loach, temos um percurso com o qual ainda há o que aprender. Enquanto boa parte da sociologia dedicava-se a corroborar o fim do trabalho, no início dos anos 1990, Ken Loach trazia-nos um caso diferente. Quem assistiu ao filme se lembrará que estamos agora em Los Angeles, nos anos 1990. Apesar do apregoado fim de tudo – da dita era dos extremos –, vemos mais uma vez um jovem casal fadado à separação. Ela migrante mexicana que trabalha ilegalmente como faxineira. Ele um sindicalista que se dedica a organizar manifestações políticas pelo cumprimento das leis trabalhistas. Na década seguinte, Loach produziu uma nova obra, Sweet Sixteen, que transcorre no mesmo cenário de seus filmes e documentários sobre grupos operários. No entanto, neste filme, a exemplo do que apresentam, sobretudo, Beaud e Pialoux e Wacquant, também em Glasgow, o personagem principal, um adolescente (filho único de uma mãe submersa socialmente por seu envolvimento com o tráfico e consumo de drogas) procura salvá-la e salvar a si mesmo pela única porta que lhe parece aberta: o próprio tráfico. Se em Cathy havia a crença no Welfare State e se em Pão e rosas víamos uma migrante mexicana ainda sonhando com o eldorado nos Estados Unidos, com a salvação pelo trabalho, aqui não temos mais o operário, e nem mesmo a assistência social consegue manter aceso qualquer vestígio das estruturas de outrora. Ao final de Sweet Sixteen, estamos mais uma vez diante de um personagem ANTROPOLÍTICA

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errante – com uma importante diferença: sem acreditar mais em uma cultura trabalhadora, da pobreza ou popular. Este cineasta britânico e sua obra nos oferecem um parâmetro externo bastante importante para refletirmos sobre os perigos da inércia em nosso ofício. Algumas de nossas apreciações ditas “científicas” separamse por uma linha tênue dos modos de apreciação e intervenção dos agentes de governo (e hoje de não-governos) que incidem sobre pessoas que insistimos em classificar a partir de sua “cultura”: os populares. No fundo temos em comum a sanha classificatória, afinal, nada que um trabalhador ou pobre (a nomenclatura escolhida já se vincula a um desejo de nomear como abordado no início deste texto) faz pode nos escapar. Nem aos cientistas sociais, nem aos governos. Usando um termo do cinema, podemos nós, cientistas sociais, continuar acreditando nestes enquadramentos? Ao longo deste texto procurei discutir três modalidades de aproximação e análise da vida cotidiana dos grupos trabalhadores que enfrentam a “diferença” contemporânea que marca suas vidas em relação a diversos tipos de “outros” que povoam as cidades. Em cada uma dessas propostas é possível perceber algum avanço em relação às perspectivas teóricas anteriores. Obviamente nenhuma é acabada, definitiva, aplicável a qualquer contexto. Todas têm como característica fundamental a pesquisa empírica pontual – e nos casos de Beaud e Pialoux e Wacquant, não só “empírica”, como etnográfica. Este último adendo não é casual: precisamos praticar nosso ofício de maneira inquieta, desestabilizando nossos fundamentos teóricos, assentando outros a partir de novas pesquisas. Acredito, enfim, que nossos questionamentos sobre o estado atual das teorias sobre culturas populares contemporaneamente não devem em hipótese alguma se desvincular do arejamento constante com que as pesquisas de campo nos agraciam. É preciso que nos perguntemos, como fez Lahire, de que gostam aquelas pessoas que nos recebem como pesquisadores? Ou como inquiriram Beaud e Pialoux, a que se dedicam os trabalhadores atualmente? Como todos os autores expostos propõem, devemos encarar o mundo social no tempo presente não como a mesma realidade de décadas atrás etiquetada com outros rótulos, mas como uma outra realidade. E, como se vê em algumas etnografias contemporâneas, tal postura não resulta de uma mera vontade do pesquisador, mas de um confronto real com símbolos, objetos e lugares que se transformaram: como o Gym de que trata Wacquant, um lugar que já não é mais o que fora em ANTROPOLÍTICA

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outros tempos, porque o mundo que o circunda e as pessoas que nele vivem mudaram.

ABSTRACT Bourdieu’s and his team sociological production is considered a turning point concerning popular culture. After the routinization of their sociological contributions another set of case studies points to a contemporary trend about the same subject. This article review takes on account some of these recent books (e.g. Beaud & Pialoux, Lahire, Wacquant) as paradigmatic of a recent approach on worker’s everyday life. Keywords: worker’s anthropology; popular culture; class struggle.

R EFERÊNCIAS BEAUD, S. 80% au bac: et après ? Les enfants de la démocratisation. Paris: La Découverte, 2002. ______; PIALOUX, M. Retour sur la condition ouvrière: enquête aux usines Peugeot de Sochaux-Montbéliard. Paris: Fayard, 1999. ______. Violences urbaines, violance sociale: genèse des nouvelles classes dangereuses. Paris: Fayard, 2003. BORGES, A. Tempo de Brasília: etnografando lugares-eventos da política. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2003. ______. O sacrifício do nativo: In: SEMINÁRIO RITUAIS, REPRESENTAÇÕES, VIOLÊNCIA, Sessão Teoria Nativas e Teorias Sociológicas. 2005. Comentários ao texto de Marcio Goldman. BOURDIEU, P. A retórica da cientificidade: contribuição para uma análise do efeito Montesquieu. In: ______. A economia das trocas lingüísticas: o que falar quer dizer. São Paulo: EDUSP, 1996. p. 177 – 186. ______. Esboço de auto-análise. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. ______. Escritos de Educação. Petrópolis: Vozes, [19—]. ______. La distinction: critique sociale du jugement. Paris: Minuit, 1979. ______. La maison kabyle ou le monde renversé. In: POUILLON, J.; MARANDA, P. (Ed.). Échanges et communications: mélanges offerts à Claude Lévi-Strauss à l’occasion de son 60ème anniversaire. Paris: Mouton, 1970.

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N OTAS 1

Agradeço as leituras de Leandro Saraiva, Lygia Sigaud e Mariza Peirano.

2

Não devemos esquecer que sempre foi feito o registro oficial ou literário da vida cortesã, aristocrática ou burguesa e que historiadores como E.P. Thompson, não poupando esforços em escavar o passado, conseguiram produzir conhecimento sobre grupos populares cuja experiência fora até então obliterada ou, não raro, caricaturizada sob forma de lendárias aberrações.

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Para o papel crucial da obra de Bourdieu na sociologia sobre grupos de trabalhadores feita no Brasil, ver Leite Lopes (2003).

4

Refiro-me aos textos “Célibat et condition paysanne” de 1962 (BOURDIEU, 2002) e “La maison kabyle ou le monde renversé” (BOURDIEU, 1970).

5

Cf. Roman (2002).

6

Livre tradução de “If man were immortal he could be perfectly sure of seeing the day when everything in which he had trusted should betray his trust, and, in short, of coming eventually to hopeless misery. He would break down, at last, as every great fortune, as every dinasty, as every civilization does. In place of this we have death.” (The doctrine of chances, 1878).

7

Florence Weber, em seu estudo sobre atividades que recheiam a vida de trabalhadores – o que ela chama de travail à-cotê – e que em geral foram negligenciadas nos estudos sobre esses grupos, pergunta-se se essas práticas de “lazer” não existiam antes ou se a sociologia não possuía olhos para as perceber.

8

Cf. Strathern (1996).

9

Para uma reflexão sobre o papel dos documentos como símbolos dotados de uma dupla dimensão, relacionada ao indivíduo documentado e também ao espírito da nação ou ao estado burocrático, ver Peirano (2001). Em Borges (2003), trabalhei à exaustão essa abordagem interpretativa para as diversas experiências dos moradores do Recanto das Emas, cidade nas cercanias de Brasília, a respeito da relação entre a posse e o uso de documentos pelos beneficiários e por funcionários do governo distrital envolvidos com a distribuição de lotes de terra.

10

Um desdobramento dessa constatação se deu de forma curiosa. Um jovem norte-africano (Younes Amrani), depois de ler 80% au Bac, et après?, de Stephane Beaud, escreveu-lhe falando da pertinência de sua análise. Da troca de correspondência entre os dois, resultou uma sociologia epistolar feita a quatro mãos.

11

Bourgois trata de um caso semelhante ao abordar etnograficamente o cotidiano de traficantes de crack em Nova York.

12

Os autores criticam aqui aqueles estudos que vêem tais jovens como os depositários de um mal difuso, como uma “nova classe perigosa” (BEAUD; PIALOUX, 2003, p. 382). Para reflexões a respeito no Brasil, ver Caldeira (1992) e Zaluar (2004).

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RESENHAS

GAUSSOT, Ludovic. Modération et sobriété. Études sur les usages sociaux de l’alcool. Paris: L’Harmattan, 2004.

FERNANDO CORDEIRO BARBOSA*

São muitos os pontos de interesse que chamam a atenção nesse livro de Gaussot. Destaco aqueles que se apresentam como referenciais metodológicos para evidenciar os estudos sociológicos como forma singular de entendimento do caráter social do consumo de bebidas alcoólicas, objetivo central do trabalho. Nesse sentido, ele constrói o texto pela contraposição às concepções hegemônicas das ciências naturais, principalmente da medicina, e pela ratificação dos princípios disciplinares das ciências sociais estabelecidos especialmente a partir de Durkheim e Mauss. O autor, posicionando-se como cientista social, investe na sistematização de proposições disciplinares necessárias à realização de um trabalho de característica sociológica. Ele exalta a necessidade de se desvencilhar da influência do olhar da medicina sobre o tema da alcoolização, pela construção das bases epistemológicas fundantes do olhar sociológico. Por isso, adianta: não cabe ao sociólogo dizer se o alcoolismo é ou não é uma doença, pois que não é médico. Não se trata, da mesma forma, de dizer se a alcoolização é um mal ou um bem. Contudo, também não basta simplesmente marcar posição mediante uma contraposição disciplinar. Trata-se, sim, de contribuir analiticamente para a compreensão de um fenômeno complexo, com múltiplas implicações e diferentes pontos de vista.

*

Doutorando em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFF.

Um dos grandes méritos do trabalho do autor é desmitificar a homogeneidade da visão médica, contextualizando o discurso sobre o alcoolismo. Primeiro, porque no campo médico há distintas visões sobre os efeitos do consumo de bebidas alcoólicas: há teoria

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que versa sobre o alcoolismo como uma perturbação do metabolismo cerebral, implicando lesões internas; há concepções de cunho psicoanalítico, que se esforçam em valorizar os conflitos psíquicos e comportamentais do alcoólatra; e há os que concebem o alcoolismo como um mal biopsicossocial, valorizando o sofrimento do alcoólico, aliás, aspecto que aglutina pontos de convergência de diferentes estudos sobre o alcoolismo. Segundo, pelo fato de a visão médica não ser destituída e isolada do contexto social, havendo confrontação e incorporação de práticas e discursos de diversos agentes sociais pertencentes a diferentes campos de atuação. Assim se evidenciam os embates analisados pelo autor sobre as campanhas de antialcoolização realizadas na França. Cumpre, então, destacar que ele é bastante cioso para não se deixar levar por discursos fáceis e simplificadores da própria visão médica, mesmo que seu intuito seja de apontar outro pressuposto analítico. Gaussot, ainda travando um debate com o discurso médico, é analiticamente primoroso, ao afirmar que as representações coletivas originárias das experiências ordinárias são mais pragmáticas e operatórias que as das campanhas de informação e prevenção do alcoolismo, baseadas nas análises biomédicas. Para o autor, mesmo existindo uma vulgarização e até mesmo uma aceitação relativa do saber médico, há uma valorização das formas de representações tradicionais. O saber médico, centrado sobre as feições orgânicas e psicopatológicas e balizado em torno da categoria da dependência, fica preterido pelo saber fundado sobre as representações corriqueiras do senso comum, que enfatizam o alcoolismo como uma conseqüência moral e social. Um outro ponto a ser observado na leitura do livro de Gaussot é sua contribuição para a construção de referenciais metodológicos sobre o estudo sociológico da alcoolização. Gaussot ressalta a necessidade do respeito do pesquisador à concepção do grupo pesquisado. Explicita que as visões externas ao grupo sobre a alcoolização geralmente visam atribuir um comportamento inaceitável à maneira de viver do grupo de bebedores qualificados como excessivos. Reside aí, talvez, a grande diferença do trabalho dos sociólogos em relação aos outros profissionais, como os da medicina, ao estudarem maneiras de beber. Argumenta o autor que a análise sociológica tem a obrigação de primar pelo cuidado na utilização de termos empregados, evitando-se estabelecer conotações que não sejam as do grupo pesquisado. O cientista social, ao se dedicar ao empreendimento para a compreensão das categorias utilizadas pelo grupo estudado, pode refletir as implicações das práti-

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cas sociais como quadros sólidos que encerram o pensamento, sendo praticamente inseparáveis do funcionamento da sociedade. O conceito de representação social, nesse sentido, é valorizado pelo autor, pois o que está posto em eminência é a construção mental de um sistema cognitivo com lógica própria, que participa da construção social da realidade. O alcoolismo, o alcoólatra, o doente, o bebedor, o embriagado, o bom bebedor, o bebedor social, o bebedor excessivo e também o abstinente são categorias de significados complexos e confusos, que ordenam boas e más maneiras de beber. E, mais do que isto, de ser e estar no mundo. O autor, mais que tudo, convoca os cientistas sociais a se desvencilharem das prenoções e dos julgamentos morais, tarefa não tão fácil e menor, uma vez que o tema é carregado de apriorismos e de julgamentos de valores. Isto não implica dizer, todavia, que o cientista social deva desprezar o onipresente julgamento moral, pois se ele existe é constitutivo da sociedade. Portanto, deve ser considerado nos estudos sobre alcoolização porque é parte do mesmo fenômeno. Para o autor, o desafio que está posto aos cientistas sociais é não realizar o estudo a partir do alcoolismo, como geralmente é feito. Gaussot propõe outro tipo de abordagem: o pressuposto dos estudos sociológicos é buscar entender, não a questão de como ou por que acontece o desvio alcoólico, mas, inversamente, compreender a questão do por que o desvio não ocorre em todos casos. Em vez de interrogar as causas ou as razões do porquê se começa a beber e, eventualmente, a desenvolver uma patologia, a preocupação é compreender como é pensada e definida a normalidade e, por conseqüência, o desvio. Trata-se, portanto, de estudar a construção social da norma e da normalidade. Para fundamentar tais premissas, o autor investiu em pesquisa que visava reconstruir as lógicas que presidem os discursos e as representações de funcionários qualificados de uma empresa pública na França, na maioria homens, pertencentes e possuidores de um padrão de vida de classe média, que, recentemente, tinham-se submetido a uma campanha interna sobre o risco do consumo de bebidas alcoólicas. A pesquisa buscou incentivar essas pessoas a falarem de suas práticas, valores e conceitos sobre a ingestão de bebidas alcoólicas, seja do bom ou do mau beber, objetivando analisar as estruturas mentais destes agentes em relação à alcoolização. Os discursos recolhidos combinavam descrição densa de práticas, pessoais ou dos outros bebedores, e narrativas

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fantásticas ou dramáticas sobre a embriaguez, considerando as imagens atribuídas a eles próprios e aos outros. O autor constata que, entre os entrevistados, é muito mais comum se falar do desvio, do alcoolismo e dos alcoólatras do que da normalidade. Além disso, não é de si que se fala, ao menos diretamente e de forma explícita, mas dos outros. Falar das más maneiras de beber consiste, assim, num meio de afirmar diferença em relação aos outros, a partir da construção de uma identidade positiva para si, ou seja, o da pessoa moderada, que sabe beber, enquanto os outros, os desviantes, são desprovidos da sobriedade e do saber viver. O saber-beber, todavia, não é somente um conhecimento de técnicas e receitas ou uma competência, mas um julgamento moral e social que se organiza em torno de certas regras de representação e significação. O saber-beber, portanto, é sinônimo de moderação e sobriedade, termos emblemáticos que conferem título ao livro. A análise das representações das maneiras de beber, conforme metodologia proposta por Gaussot, possibilita conhecer tanto a normalidade social como a construção dessa normalidade. Por esse aspecto, e pelos demais atributos explicitados nesta resenha, o livro de Gaussot é de extrema importância para os que abraçam essas temáticas e questões. Contudo, o texto perpassa a análise da alcoolização, sobretudo pelo primoroso cuidado com a explicitação dos princípios metodológicos por ele adotados.

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SANTOS JÚNIOR, Orlando Alves dos; RIBEIRO, L. C. de Q. & AZEVEDO, Sérgio (orgs.) Governança democrática e poder local: a experiência dos conselhos municipais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 2004.

P ARTICIPAÇÃO

SOCIOPOLÍTICA NOS CONSELHOS

GESTORES DA S

R EGIÕES M ETROPOLITANAS

DEBORA CRISTINA REZENDE DE ALMEIDA*

Os conselhos gestores representam uma expressão da “nova institucionalidade” brasileira pós-constituinte e se inserem no processo de descentralização que transferiu para as unidades subnacionais – estados e municípios – a responsabilidade decisória sobre políticas públicas e serviços, que antes não lhes eram afetos, e numa perspectiva participativa, possibilitando o controle da sociedade sobre sua elaboração e fiscalização. Estas experiências de práticas participativas se intensificaram nos anos 1990 e passaram a ser objeto de pesquisas no campo das Ciências Sociais. Nesta tendência, o livro organizado por Santos Júnior, Ribeiro e Azevedo (2004) apresenta uma avaliação sistemática e global do impacto da participação “conselhista” sobre a esfera municipal a partir dos resultados da pesquisa1 realizada nas regiões metropolitanas (RM’s) do Rio de Janeiro, Belo Horizonte, São Paulo, Recife e Belém e posteriormente em Curitiba e Porto Alegre. Duas questões orientaram a investigação: a) Seriam os conselhos municipais a expressão da emergência de um novo regime de ação pública, decorrente tanto do fortalecimento da esfera municipal de governo quanto da maior presença dos atores sociais na cena pública?

*

Universidade Federal Fluminense – Mestranda em Ciência Política.

b) A experiência dos conselhos municipais pode aprofundar nossa democracia e possibilitar a instituição de modelos mais democráticos de gestão municipal? (SANTOS JÚNIOR, RIBEIRO & AZEVEDO, 2004, p. 8).

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A proposta do livro consiste ainda em verificar qual é o perfil das organizações que têm assento nos conselhos, sua representatividade social e práticas deliberativas. Santos Júnior, Ribeiro & Azevedo (2004, p. 15) adotam a noção de democracia proposta por O’Donnell (1999) que inclui como requisitos para a efetividade do regime democrático a realização de eleições competitivas associada a um conjunto de liberdades que assegurem o exercício dos direitos de cidadania. Assim, as possibilidades de se exercer a cidadania política estão relacionadas ao acesso aos direitos civis e sociais. Para Santos Júnior, Ribeiro & Azevedo (2004, p. 18-20), a garantia desses direitos e as condições de governança democrática,2 apesar de formuladas no plano nacional, estão atreladas à dinâmica local, pois dependem do vínculo entre o arcabouço legal e a realidade institucional dos municípios – seja pelos frágeis mecanismos locais de garantia dos direitos, seja pelo alto nível de desigualdades sociais. A inovação em relação ao texto de O’Donnell (1999) está na introdução do conceito de cultura cívica e associativa como importante para a democracia. Além das barreiras materiais e legais, a democracia requer uma mudança cultural na sociedade que lhe dê sustentação. Já o arcabouço institucional interfere na tensão entre direitos sociais e participação cívica, na medida em que pode gerar práticas horizontais de participação que minimizem o clientelismo vigente e o impacto das relações assimétricas de poder, disseminando uma cultura democrática que se expresse por meio das práticas dos atores. Vejamos os resultados... Quem participa dos conselhos? O retrato da participação revelou uma relativa uniformidade no perfil dos conselheiros que difere da heterogeneidade da sociedade brasileira.3 Não obstante a diversidade dos segmentos – instituições governamentais, sindicais, patronais, sociedade civil organizada e usuários –, a representação social está atrelada a segmentos com capacidade de organização e presença na cena pública. Os conselheiros apresentam em geral média (ensino médio completo) ou alta escolaridade (curso superior e pós-graduação). Nesse particular, os segmentos da sociedade civil apresentam níveis educacionais mais baixos que os conselheiros governamentais. A mesma diferença entre os segmentos se percebe em relação à renda. O rendimento médio dos segmentos representados no conselho, acima de cinco salários mínimos, também é superior ao da população, porém há diferenças regionais: São Paulo (86%), Rio de Janeiro (66%), Belo Horizonte (58%), ANTROPOLÍTICA

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Recife (50%) e Belém (39%). Em Curitiba, este índice é de 70% no segmento governamental. Os próprios critérios de elegibilidade dos membros dos conselhos obrigam que boa parte deles seja membro de pelo menos uma associação. A cultura cívica e associativa se manifesta por meio da participação em atividades de caráter social e político e de forma substantiva, comprovada pelo alto engajamento sociopolítico nos setores da sociedade organizada (56%) e também governamental (64%).4 A cultura cívica e associativa também se reflete na significativa filiação a partidos políticos em todos os segmentos (47%); em Curitiba o índice foi muito próximo (42,8%), enquanto o contingente da sociedade brasileira filiada é de 3%. Esta é uma sociedade que está altamente informada dos fatos sociais em geral, principalmente por meio de jornais. O associativismo se nutre também da capacitação técnica e política por meio de atividades como seminários, cursos e oficinas. Quais seriam, então, as repercussões para a governança democrática das cidades com este perfil de participação? Apesar de ser uma elite social que participa destes espaços, os autores do livro não assumem como pressuposto o argumento elitista de incapacidade das massas e superioridade das elites. Para Santos Júnior, Ribeiro & Azevedo (2004, p. 28), a escolha pelos estratos médios da população parece refletir a extrema carência e desigualdade da nossa estrutura social em que os cidadãos ou preferem escolher os mais capazes, ou não se envolver, ou, simplesmente, permanecer alheios à participação cívica por não terem condições de reconhecer as oportunidades. O problema do deficit de representação social nos conselhos pode ser superado por meio de incentivos à associação cívica e de investimentos neste modelo participativo. De acordo com Maria da Glória Gohn (2004, p. 61), a inclusão de setores diferenciados, ou seja, a participação dos indivíduos e grupos sociais em termos qualitativos e não somente quantitativos, é essencial para a democracia participativa. Incluir a diversidade dos segmentos sociais no debate das políticas públicas, sem dúvida, é imprescindível para garantir a pluralidade democrática dos conselhos, mas este parece ser um desafio que está relacionado à sua própria dinâmica institucional. Mauro Rego Monteiro dos Santos (2004, p. 139) visualizou esta tensão ao reconhecer que o formato dos conselhos é menos propício à apresentação de demandas e está voltado para a luta pela obtenção de bens de segundo nível – que visa à garantia de direitos que possuem uma dimensão normativa ou ideolóANTROPOLÍTICA

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gica –, atraindo com maior intensidade movimentos neocorporativos. A participação nos conselhos se insere na perspectiva adotada por Azevedo & Prates (1991) de “participação ampliada” ou neocorporativa, definida como aquela que se desenvolve em órgãos colegiados (formados por representantes do poder público e da sociedade organizada), voltados para a elaboração de macropolíticas (políticas regulatórias). Diferentemente, outros espaços que envolvem a população alvo em programas governamentais específicos (políticas distributivas) são caracterizados pela “participação restrita” ou instrumental (AZEVEDO, PRATES, 1991 apud ABRANCHES, AZEVEDO, 2004, p. 164-165). Algumas alternativas para o aperfeiçoamento da representação social nos conselhos são discutidas por Mauro Rego Monteiro dos Santos (2004, p. 131-160), a partir do estudo nos conselhos da Região Metropolitana (RM) do Rio de Janeiro. Os limites relacionados à dimensão institucional da participação podem ser superados pela atuação responsável do conselheiro através da interlocução com sua base social, pela capacidade das organizações sociais representarem interesses mais amplos e pela aproximação com a sociedade divulgando suas ações ou descentralizando as atividades. Os demais artigos destacam alguns temas específicos na prática dos conselhos. Rosa Maria Cortês de Lima e Jan Bitoun (2004, p. 95-130) tratam dos aspectos da cultura cívica nos conselhos da RM de Recife. Baseados em dados sobre o associativismo e a prática cívica dos conselheiros, concluem que a história local tem peso específico no desenho e consolidação da democracia e, portanto, os conselhos canalizam os elementos de participação cívica da sociedade em que estão inseridos. A partir do estudo nos conselhos gestores da RM de Belo Horizonte, Mônica Abranches e Sérgio Azevedo (2004, p. 161-192) destacam o peso do poder público no estabelecimento destas esferas, seja pela sua criação via legislação federal, seja na indicação de quais entidades e representantes da sociedade civil terão assento no conselho. A capacidade deliberativa, de acordo com a percepção de 60% dos atores envolvidos, é de média a baixa. Apesar desta avaliação, os participantes afirmam que as deliberações têm sido implementadas pelo poder público local, percepção confirmada pelo número expressivo de conselheiros (75%) que fiscaliza a sua execução. A despeito da baixa articulação social na criação dos conselhos, a avaliação de seus participantes é positiva quanto ao seu papel institucional e ANTROPOLÍTICA

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social e em relação à colaboração do poder público municipal no provimento de infra-estrutura e informações. A atuação política nos conselhos é pautada por mudanças e continuidades, o que reforça a idéia de que este é um espaço onde está se aprendendo a reconstruir a relação entre o poder público e a sociedade organizada. Silvana Tótora e Vera Chaia (2004, p. 193-222) ressaltam os limites para a democraticidade dos conselhos, baseadas na pesquisa realizada na RM de São Paulo. A monopolização das informações e a implementação dos projetos pela burocracia pública têm relegado os conselhos a uma participação marginal nas políticas públicas, agravada pela escassez de recursos destinados às políticas sociais. Para as autoras, a efetividade dos conselhos depende da ação municipal, do partido político e do prefeito, mas a autonomia também está relacionada com sua história e trajetória de luta. A investigação na RM de Curitiba, realizada por Eloise Machado, Josil Baptista e Thaís Kornin (2004, p. 223-248), caminha para o entendimento de que os conselhos estão se traduzindo numa arena de representação dos interesses do grupo político dominante. A constante interferência do Poder Executivo na dinâmica destas instituições, o elevado número de funcionários públicos e comissionados que as compõem, o protagonismo do discurso técnico e a composição elitizada dos segmentos sociais têm impedido a sua transformação em um espaço plural e democrático Por fim, Soraya Côrtes (2004, p. 249-286) examina a influência do arcabouço institucional nos conselhos gestores de Saúde e Assistência Social da RM de Porto Alegre. A conformação dos conselhos na área de Saúde precedeu à da área de Assistência Social e veio acompanhada de um movimento de descentralização e participação dos usuários anterior à sua institucionalização, situação diretamente relacionada ao maior envolvimento e influência destes nos conselhos municipais de saúde. A dinâmica de funcionamento também é afetada pela importância dos serviços afins. Neste sentido, a abrangência e a complexidade dos serviços de saúde, o percentual de recursos públicos a eles destinados e a importância política dos médicos afetam positivamente a influência política dos conselheiros municipais de saúde. O trabalho, em geral, é notável em revelar quem são os atores inseridos nesta “nova institucionalidade” Pós-Constituinte. Merece também atenção a preocupação dos autores relativa à necessidade de se disseminar

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uma cultura associativa, já que as evidências apontam para a correlação entre capacidade organizativa e participação. É possível concluir que os conselhos gestores surgem não como um projeto local, mas fortemente impulsionados pelo governo federal, vinculados à descentralização das políticas públicas. Apesar dos limites apontados, os conselhos despontam como espaços que podem democratizar a formulação destas políticas, desde que o governo local intervenha e proporcione mudanças no contexto social e na dinâmica política, caminhando para a representatividade democrática destas instâncias. Não obstante as virtudes levantadas, a análise aponta problemas como dificuldade de participação autônoma e plural, interferência desmedida do poder público municipal tanto no seu estabelecimento, quanto na sua prática, e diferenças referentes à importância da área de política pública e à trajetória de luta e criação dos conselhos. Os artigos e o tema são um estímulo à discussão. Muitos dos novos espaços de participação só existem por força da lei que obriga sua criação para o repasse de recursos. E a descentralização de políticas, ao mesmo tempo, tanto representou uma demanda dos movimentos populares no período de redemocratização por efetivos espaços de participação, quanto fez parte de um projeto de retração do Estado, no que tange à garantia dos direitos, almejada pelas políticas liberais das décadas de 1980/90. Assim, a relação entre descentralização e participação na área de políticas públicas pode assumir diferentes formas. Depende da cultura política local e vontade das elites (ALMEIDA , CARNEIRO, 2003); é sensível à heterogeneidade da sociedade brasileira (SOUZA, 1998) e ao desenho institucional (AVRITZER, 2003). O livro oferece importantes pistas para futuros estudos. O desafio agora é ampliar o leque de análise a fim de visualizar como se dá a participação nos conselhos e o que ocupa espaço na pauta das reuniões, já que estas são variáveis essenciais para se aferir a qualidade do processo decisório. Além da representatividade dos conselheiros, deve-se considerar a representatividade das decisões emanadas do conselho, em termos de práticas de negociação, deliberação e fiscalização de políticas públicas a partir de dados que ultrapassem a subjetividade do ator.

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R EFERÊNCIAS ALMEIDA, M. Hermínia Tavares; CARNEIRO, Leandro Piquet. Liderança local, democracia e políticas públicas no Brasil. Revista Opinião Pública, n. 1, 2003. Disponível em: . Acesso em: 15 mar. 2004. AVRITZER, Leonardo; NAVARRO, Zander (Org.). A inovação democrática no Brasil. São Paulo: Cortez, 2003. AZEVEDO, Sérgio; PRATES, A. A. Planejamento participativo, movimentos sociais e ação coletiva. Ciências Sociais Hoje, São Paulo, 1991. O’DONNELL, Guillermo. Teoria democrática e política comparada. Dados, Rio de Janeiro, v. 42, n. 4, p. 577-654, 1999. SANTOS JÚNIOR, Orlando Alves dos; RIBEIRO, L. C. de Q. .; AZEVEDO, Sergio (Org.). Governança democrática e poder local: a experiência dos conselhos municipais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan: FASE, 2004. SOUZA, Celina. Intermediação de interesses regionais no Brasil: o impacto do federalismo e da descentralização. Dados, Rio de Janeiro, v. 41, n. 3, 1998. Disponível em: . Acesso em: 15 abr. 2004.

N OTAS 1

Esta pesquisa fez parte do projeto “Metrópoles, Desigualdades Socioespaciais e Governança Urbana”, coordenado pelo IPPUR/UFRJ, FASE, PUC/BH e PUC/SP, no âmbito do Programa de Apoio aos Núcleos de Excelência (Pronex).

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“Denominamos governança democrática os padrões de interação entre as instituições governamentais, agentes do mercado e atores sociais que realizem a coordenação e, simultaneamente, promovam ações de inclusão social e assegurem e ampliem a mais ampla participação social nos processos decisórios em matéria de políticas públicas” (SANTOS JÚNIOR, RIBEIRO, AZEVEDO, 2004, p. 19).

3

A RM de Porto Alegre não está representada nestes dados relativos ao perfil dos conselheiros, tendo em vista que o foco da autora Soraia Côrtes foi o arcabouço institucional dos conselhos.

4

Todos os dados percentuais agregados apresentados representam as RM’s de São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Recife e Belém.

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NOTÍCIAS DO PPGACP

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NEST NÚCLEO DE ESTUDOS ESTRATÉGICOS O NÚCLEO DE ESTUDOS ESTRATÉGICOS DA UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE (NEST/UFF) reiniciou suas atividades em 11 de dezembro 2003, quando o Magnífico Reitor, Professor Cícero Mauro Rodrigues Fialho, designou o Prof. Dr. Eurico de Lima Figueiredo para o cargo de Coordenador Executivo. Antes, entre 1985 e 1991, o NEST esteve sob a direção do Prof. Dr. René Dreifuss, tendo sido o Prof. Eurico de Lima Figueiredo seu coordenador-adjunto, segundo Portaria do então Reitor da UFF, Prof. José Raymundo Romeo. Agora sob a nova direção, e tendo como seus principais objetivos a análise e a pesquisa nas áreas dos estudos estratégicos, relações internacionais, defesa e segurança, o NEST reorganizou sua estrutura acadêmica e administrativa. Passou a contar com um Conselho Diretor, que o administra, e um Conselho Acadêmico, que serve como seu órgão consultor. Associa-se, mantendo sua plena autonomia, ao Departamento de Ciência Política e ao Programa de Pós-Graduação de Ciência Política da UFF. O Conselho Diretor organiza-se, de início, em quatro áreas de estudos e pesquisa: Estudos Estratégicos e Relações Internacionais (Prof. Eurico de Lima Figueiredo); Economia Global (Prof. Dr. Maurício Dias David); Estudos da Segurança (Prof. Ronaldo Leão Correa); Estudos da Defesa (Prof. Eduardo Italo Pesce) e História dos Estudos Estratégicos e das Relações Internacionais (Prof. Dr. Ângelo Segrillo). Integra-se a essas áreas um corpo, ainda em formação, de pesquisadores de alto nível e titulação, apoiado por jovens alunos da graduação e da pós-graduação da UFF e de outras universidades. O Conselho Acadêmico, integrado por destacadas personalidades no campo acadêmico e militar, traça, anualmente, os objetivos da instituição e tem a seguinte composição: • Prof. Dr. Antônio Celso Alves Pereira (ex-Reitor da UERJ, ex-Presidente da FAPERJ, atual Presidente da Associação Brasileira de Direito Internacional); •

Professor Notório Saber Eurico de Lima Figueiredo (Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da UFF e Presidente do Conselho);

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• Prof. Dr. José Raymundo Romeo (ex-Reitor da UFF e atual Diretor de Assuntos Internacionais do Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras – CRUB). • Prof. Dr. Luís Manuel Rebelo Fernandes (Secretário Executivo do Ministério de Ciência e Tecnologia. Professor de Relações Internacionais da UFF ); •

General de Exército Luiz Gonzaga Schröder Lessa (Presidente do Clube Militar);

• Almirante de Esquadra Mauro César Rodrigues Pereira (ex-Ministro da Marinha do Brasil); •

Prof. Dr. Renato de Andrade Lessa (Professor Titular de Ciência Política da UFF e atual Presidente do Instituto Ciência Hoje da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência);

• Major Brigadeiro Rui Moreira Lima (combatente na Segunda Guerra Mundial); Prof. Dr. Otávio Guilherme Cardoso Alves Velho (exPresidente da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Ciências Sociais – ANPOCS – e Professor Titular de Antropologia Social da UFRJ); • Prof. Dr. Theotonio dos Santos (Professor Titular de Economia da UFF e detentor da cátedra de Economia Global da Universidade das Nações Unidas). Na busca da consecução de suas competências, o NEST pretende atingir, a médio e a longo prazos, os seguintes objetivos: 1. Constituir-se em centro de estudos e pesquisas das questões estratégicas brasileiras no quadro das relações internacionais; 2. Estabelecer planos e implementar políticas que levem à formação de recursos humanos com pensamento estratégico, sejam em termos amplos, sejam em termos restritos; 3. Promover a aproximação, através de atividades comuns, entre a estrutura acadêmica e científica do NEST/UFF e as instituições congêneres, tanto civis como militares, tanto no plano internacional como nacional, mas dando especial ênfase a este último; 4. Desenvolver a parte de “Inteligência de Meios” na área de pesquisa no setor de C&T voltada para assuntos de Defesa e Segurança Nacionais; ANTROPOLÍTICA

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5. Fazer, através da UFF, convênios, financiamentos e contratações de projetos com instituições públicas e privadas, nacionais e internacionais, interessadas, em termos de estudos estratégicos, no desenvolvimento da ciência e da tecnologia no país; 6. Permitir a estudantes de graduação e de pós-graduação, com recursos provenientes de convênios, a profissionalização em termos de pesquisa e extensão, estimulando a formação de alunos em atividades extraclasse como forma de complementar a atividade de docência da Universidade; 7. Organizar, em conexão com outras instâncias acadêmicas da UFF (Pró-Reitorias, Centros, Unidades, Departamentos, Núcleos e Centros de Estudos), possíveis atividades de cooperação e discussão de temas correlatos aos investigados pelo NEST; 8. Planejar e realizar conferências, seminários, ciclo de palestras, debates, simpósios, mesas-redondas etc., sobre assuntos relativos aos objetivos do NEST, não só dentro da UFF, mas também com outras instituições nacionais e internacionais, públicas ou privadas, visando divulgar sua produção de conhecimento; 9. Firmar, em conexão com a Editora da Universidade Federal Fluminense (EdUFF), linhas de publicações próprias (livros, revistas, anuários, relatórios de pesquisas, monografias etc.), além de outros textos que venham a ser produzidos pelo NEST; 10. Propor e coordenar programas e projetos de pesquisas em parceria com instituições dedicadas aos estudos estratégicos, nos planos nacional e internacional, na busca de finalidades comuns; 11. Incentivar o intercâmbio de idéias e de estudiosos na malha nacional e internacional de estudos estratégicos, dando escopo cosmopolita ao NEST/UFF; 12. Montar rede de meios eletrônicos (portal, revista e boletins eletrônicos, banco de dados etc.), e televisivos (cursos a distância, videoconferências, produção de vídeos especiais, recursos multimídia de maneira geral etc.); 13. Manter cooperação, mormente com as agências de fomento à pesquisa do Rio de Janeiro, visando ao desenvolvimento dos estudos estratégicos no Estado e ao aumento de sua presença política na Federação, além de servir como apoio às entidades governamentais e não-governamentais; ANTROPOLÍTICA

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14. Criar rede que acompanhe as conjunturas nacional e internacional do ponto de vista estratégico; 15. Formar um centro de documentação que seja o mais completo possível, constantemente atualizado na área de estudos estratégicos, capacitado a atender não só às suas necessidades, mas também às instituições associadas ao NEST/UFF, cumprindo, nesse aspecto, papel pioneiro; 16. Firmar acordos com o governo do estado do Rio de Janeiro visando ao repasse de informações e dados que contribuam para a formulação de seu planejamento do ponto de vista estratégico e da segurança.

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DISCURSO DO PROFESSOR EURICO DE LIMA FIGUEIREDO Exmo. Sr. Prof. Cícero Mauro Fialho Rodrigues, Magnífico Reitor da Universidade Federal Fluminense, Ilmos. Srs. e Sras. Membros dos Conselhos Superiores Ilmos. Srs. Membros do Conselho Acadêmico do Núcleo de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense que hoje e aqui tomam posse Ilmas. Autoridades universitárias aqui presentes, Prezados colegas que compõem a mesa, Prezados colegas do corpo docente e alunos do corpo discente, Prezados Funcionários da UFF, Meus queridos amigos, amigas, Senhores e senhoras, Ressurge o Núcleo de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense – NEST/UFF – guardando grandes expectativas e generosos objetivos. Pretende reunir em torno da mesa de reflexão e pesquisa civis e militares com o objetivo de traçar os rumos de nosso planejamento como nação culturalmente íntegra, como coletividade republicana, democrática e justa, e como Estado à altura da defesa perene da soberania nacional. Todas essas metas devem se encaixar em um projeto que privilegie, como suposto, a convicção de que, na prevalecente sociedade de conhecimentos, nada é mais importante do que o próprio conhecimento. Na posse dessas idéias-força, sabemos que serão muitos os obstáculos a vencer. Ter-se-á de enfrentar a guarda pretoriana do neoliberalismo que consagra o mercado como deus ex-machina da transformação social. Haverá que se defrontar com os apóstolos do Estado mínimo, como se não fossem simplesmente gigantescas as funções estatais na maior sociedade de mercado do mundo hoje, os Estados Unidos. Será preciso se encarar os arautos da globalização que proclamam a inoperância dos atores estatais em face dos desafios atuais das sociedades internacionalizadas, desconhecendo o nacionalismo praticado pelas grandes potências em defesa de seus interesses. Será necessário flanquear os descrentes nas possibilidades do nosso povo, que mais ANTROPOLÍTICA

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parecem exilados em seu próprio país. No entanto, há mais. Vencer os pessimistas de toda ordem que, achando que os jogos estão feitos, conformam-se com a ordem mundial vigente, que condena a grande maioria da Humanidade à privação dos direitos fundamentais do Homem. Peitar os conservadores de ontem e de sempre que acreditam na força da permanência das estruturas, antes do que no poder da mudança e na busca de projetos contra-hegemônicos. Lutar contra os reacionários que querem fazer os ponteiros da história regredir, embora não saibam nem mesmo para onde. Reagir contra os dependendistas de má cepa que leram erroneamente a história, e apostam no congelamento dos sistemas de dominação, asfixiando a esperança. Opor-se aos adeptos de pensamentos gerados em outras realidades mais avançadas, cujos modelos não captam a força na nossa realidade, tão complexa quanto singular, acomodando-se a uma espécie de mentalidade neocolonial, cujas raízes vêm de longe. Resistir aos seguidores das teses do fim da história, que não se apercebem que é impossível naturalizar-se os processos sociais que, sendo criados pelos homens, podem também ser por eles mesmos modificados. Combater os pós-modernos de diferenciada estirpe que, professando o ponto de vista sem ponto de vista, desconhecem que os poderosos não têm dúvidas em fazer impor seus pontos de vistas, seja pela força da política, seja pela política da força. Neoliberais e estaticidas, descrentes e pessimistas, conservadores e reacionários, dependendistas e neocolonialistas, naturalistas da história e pós-modernos podem, no entanto, esperar o bom combate. À heterodoxia do pensamento que busca a novidade, deve ajustar-se a ortodoxia fundamentada nos cânones da boa ciência. A precisão dos conceitos, a proposição impregnada pelo minucioso labor teórico e submetida à penosa metodologia da demonstração empírica, as conclusões inevitavelmente abertas, pois, tal como acontece com a própria vida, a ciência só cresce com a retificação do erro. O saber obedece, desde sempre, com o que denominamos de “protocolo socrático”: o que se sabe é que nada se sabe, com a condição de que se possa colocar em debate tudo aquilo que se sabe... Na história moderna e contemporânea, de meados do século XV aos nossos dias, não houve grande nação que não contasse com o sólido intercâmbio entre a ciência, a tecnologia e a técnica – personificada na produção acadêmica – e a corporação militar. Com a primeira Revolução Industrial, entre 1750 e 1850, as sociedades européias entram em tempos de grandes, profundas e notáveis transformações. No dizer de um dos mais ilustres representantes do movimento Iluminista, Voltaire, ANTROPOLÍTICA

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“os livros passavam a governar o mundo”. A Revolução Francesa de 1789, emancipando a burguesia e, sobretudo, o camponês, levou ao abandono dos exércitos organizados a partir de linhas fixas – a própria imagem da rigidez do regime absolutista –, transformando-se, gradativamente, em exércitos de massa, abertos a um amplo repertório de movimentos. Os progressos da balística tornaram possível o alcance maior do poder de tiro dos canhões, e as carroças mais leves, construídas por Grebevaul, permitiram o deslocamento mais rápido das baterias. Em 1777, os avanços da tecnologia no campo bélico permitiram a introdução da culatra curta, já que, até essa época, a culatra nada mais era do que o simples prolongamento do cano. Pôde a infantaria, então, dispor de armas mais leves, mais certeiras e mais precisas, propiciando novas concepções de combate, baseadas na variabilidade das formações dispersas. As descobertas e as invenções modificaram para sempre a mentalidade militar, cujo intérprete mais ilustre e mais completo foi Carl Otto Gottlieb Von Clausewitz (1780-1831). O progresso da ciência e da tecnologia chegou aos oceanos no final do século XIX, quando, em 1897, John P. Holland projetou o primeiro submarino moderno, lançado aos mares pela marinha americana em 1990, com o nome de USS Hunley. Os vôos de Dumont e dos irmãos Wright, na primeira década do século XX, introduziram o mundo na era do “mais pesado do que o ar”, modificando para sempre as concepções estratégicas da guerra e da paz. Hoje, as forças armadas mais atualizadas do mundo, entre as quais se incluem as brasileiras, revêem, no contexto da chamada military transformation, a modelagem estrutural dos seus sistemas de defesa à luz do complexo teleinfocomputrônico, para usar a expressão cunhada pelo meu querido amigo René Dreifuss. É por isso que os políticos das grandes potências, quando se permitem deixar de lado a máscara ideológica, não escondem a força das coisas. Segundo Tony Blair, o primeiro-ministro britânico: “diplomacy works best when backed by the threat of force” (“a diplomacia trabalha melhor quando apoiada pela ameaça da força”). Intrincado campo de conhecimento esse, o dos estudos estratégicos. De início, as dificuldades de entendimento surgem do próprio modo como o termo “estratégia” é utilizado de maneira frouxa e imprecisa na literatura em geral. “Estratégia de marketing” “estratégia financeira”, “estratégia operacional”, eis apenas alguns exemplos de como a palavra é usada livremente, sem maiores preocupações com a exatidão de seu emprego. Talvez isso se deva à origem etimológica do vocábulo, onde strategos, em grego, significa general, ou aquele que lida com o ANTROPOLÍTICA

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que tem de geral ou amplo no planejamento das batalhas. Em seguida, mesmo entre os especialistas, não se encontra pacífico consenso a respeito do conceito. Contemporaneamente, a literatura em geral referente aos estudos estratégicos propõe que a disciplina se restrinja à análise do papel do poder militar na política internacional, ora em sentido estrito (forças armadas, desenvolvimento, estrutura, logística), ora em sentido lato (eficiência do poder militar em face da ação econômica e diplomática, principalmente tendo em vista a consecução dos objetivos do Estado), ora com o sentido mais genérico de análise conjugada da organização do poder militar e do poder de Estado. Se durante a Primeira Revolução Industrial as bases do pensamento estratégico dos exércitos mais modernos foram influenciadas, na sua percepção e concepção, pelas contribuições clássicas de Carl Von Clausewitz e Antoine Henri Jomini, na Segunda Revolução Industrial, entre 1860 e 1914, as dimensões naval e aérea foram postas em questão. O almirante norte-americano Alfred Thayer Mahan (1840/1914) e o inglês Julian Corbett, com o seu livro mais conhecido, Alguns princípios de estratégia marítima (1911), deram clássicas contribuições nesse sentido. No campo da estratégia aérea, tornar-se-iam referências obrigatórias as prescrições estratégicas do oficial de cavalaria e engenheiro do exército ítalo, Giulio Douhet. O estrategista italiano, já na primeira década do século XX, sustentava que “o céu se tornaria um campo de batalha tão importante quanto a terra e o mar”. Mas os estudos estratégicos só iriam tomar suas feições mais contemporâneas depois do término da Segunda Guerra Mundial. No decorrer da década de 1950, com os novos meios de destruição maciça, houve necessário estímulo intelectual para a formação de centros de análise e pesquisa sobre o assunto na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos, não por mero acaso, países onde, respectivamente, ocorria o ocaso de um Império, e se consolidava a ascensão de outro. A concreta possibilidade do holocausto nuclear colocou em discussão o conceito crítico de “dissuasão”, que estaria intimamente ligado às estratégias relativas ao controle da escalada nuclear. Amparados metodologicamente na chamada “teoria dos jogos”, onde problemas políticos (portanto, humanos) eram tratados tecnicamente (portanto, como abstrações), essas abordagens logo tiveram de ceder espaço para análises mais propriamente políticas, logo, sempre complexas e inevitavelmente mais densas. Na periferia e semiperiferia do sistema internacional, no contexto da Guerra Fria, os estudos estratégicos em países como o Brasil, tenderam a se desenvolver a partir de uma lógica subsidiária ou complementar à ação da potência ANTROPOLÍTICA

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norte-americana, pelo menos na sua versão oficial. Com o final da Guerra Fria, a partir do final anos 1980 e início dos anos 1990, que coincide com a transição democrática nos países da América do Sul, notadamente no cone sul, os estudos estratégicos no Brasil passaram a tomar novas feições, tanto em termos quantitativos, quanto, principalmente, qualitativos. Cada vez mais entre nós, além dos estudos tradicionalmente produzidos nos círculos militares e diplomáticos, e da rarefeita produção de caráter jornalístico, a academia passou a ocupar, progressivamente, mas também legítima e necessariamente, espaço como interlocutor qualificado no debate estratégico. Amplo, difícil, intricado tema, esse, o dos estudos estratégicos. Não será, assim, nessa oportunidade, o caso de desenvolvê-lo mais ainda, aqui e agora. Isso está sendo feito em um outro trabalho que concluiremos em breve. É hora, então, de reorientar o foco de nossa exposição, e propormos algumas breves considerações sobre o ato que hoje aqui se realiza. Será preciso abordar mais três pontos. O primeiro consubstanciará breve relatório que ofereceremos ao nosso Reitor, às demais autoridades da UFF, aos colegas do Conselho Acadêmico e ao público em geral, depois de quase um ano como Coordenador Executivo do NEST. O segundo sublinhará a importância deste evento e explicitará nossos agradecimentos à Universidade Federal Fluminense que, representada pelo seu Magnífico Reitor, tem dado forte e franco apoio às nossas iniciativas. O terceiro, finalmente, tecerá algumas breves considerações sobre o principal do dia de hoje: o significado da posse do nosso Conselho Acadêmico. O NEST foi criado em 1986 através da Norma de Serviço 308 do então Reitor da Universidade Federal Fluminense, professor José Raymundo Romêo. Homem dotado de notável tirocínio político, e tendo como uma de suas principais características a ágil tomada de decisão, o professor Raymundo Romêo logo percebeu a importância das propostas levadas a ele por René Dreifuss e por mim mesmo, no início de agosto do referido ano. Poucos dias depois, em 21 de agosto, ele assinou a citada Norma de Serviço que, na verdade, quase que ipsis literis traduzia, em adequada linguagem administrativa, a concepção que René havia desenvolvido sobre o que deveria ser um centro de estudos estratégicos. Em outra portaria, ainda na mesma data, designou René como Coordenador Executivo e este orador como Coordenador Adjunto. Sob a liderança de René Dreifuss, um dos mais brilhantes cientistas sociais de sua geração, lamentável e prematuramente falecido no ano passado, o NEST funcionou durante algum tempo com sucesso, tendo sido ANTROPOLÍTICA

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responsável por diversas pesquisas de monta e iniciativas que ficarão registradas na história sobre os estudos estratégicos ainda a ser escrita neste país. Estando o núcleo desativado há já um bom tempo, procurado por mim, o Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação, Prof. Dr. Sidney Luís de Matos Melo, concordou em ouvir as exposições de motivos que a ele apresentei, no ano passado, visando à reorganização do NEST. Convencido da validade de meus argumentos, resolveu solicitar ao nosso atual Magnífico Reitor minha designação como novo Coordenador Executivo, o que foi feito através de Portaria assinada em 11 de dezembro de 2003, o que de pronto significou a reativação do nosso NEST. Nesse quase um ano de atividades não foram poucas as dificuldades por nós enfrentadas, mergulhadas que estão as universidades federais em crônica falta de recursos, já que desde há muito não temos uma política de educação que, para valer, entenda o papel da educação superior no processo de emancipação do Brasil. A percepção de que sempre faltou ao Brasil um projeto de nação que realçasse, antes de tudo, a compreensão do lugar estratégico da educação na construção de nosso futuro, nos inspirou a criar um brasão no qual fizemos escrever sapientia potentia est, ou, saber é poder. Desse modo, era como se, a partir dessa verdadeira petição de princípio, estivéssemos traçando o rumo de nossos trabalhos. Primeiro era preciso montar uma estrutura acadêmica que, em termos operacionais, e a partir da grande autonomia e agilidade que me proporcionava o ato de instituição do NEST, pudesse atrair consciências que ficassem persuadidas da validade de nossos objetivos. Estávamos convencidos de que não são os bons e fartos recursos que produzem as boas idéias; ao contrário, estávamos – como estamos! – convencidos de que são as boas idéias que unem as pessoas que, por elas motivadas, põem-se a trabalhar com dedicação e, com isso, acabam por captar os recursos de que necessitam. Atraídas as competências certas para as funções certas, era preciso estabelecer uma estrutura de convivência baseada na cooperação antes do que na competição. E que, sem nada de início, a não ser a vontade indômita de querer fazer, sonhassem com os pés no chão, se dispusessem a fazer o caminho, caminhando. Tenho agora ao meu lado o meu amigo Maurício Dias David, companheiro de boa jornada há mais de 20 anos, economista de renome, ex-Diretor da Faculdade de Economia da UERJ, doutor em Economia pela Universidade de Paris, com farta experiência, inclusive internacional. O general Iberê Mariano da Silva, ex-Diretor de Pesquisas Especiais e ex-Diretor do Instituto de Pesquisas e Desenvolvimento, ambos pertencentes ANTROPOLÍTICA

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ao Exército Brasileiro, com pós-graduação na França. O professor Ronaldo Leão, economista de formação, com pós-graduação pela Escola Superior de Guerra, e que se tornou nacionalmente conhecido quando, na Guerra do Iraque, foi contratado pela rede Globo como especialista em estratégia militar para comentar para o público os principais episódios militares do conflito. O professor Ítalo Pesce, do Centro de Produção da UERJ, autor de mais de 100 artigos sobre assuntos estratégicos e detentor, em quase 100 anos de sua instituição, do primeiro e único prêmio oferecido a um civil pela Revista Marítima Brasileira pelo trabalho De Costas para o Brasil – A Marinha Oceânica do Século XXI. O professor de História na UFF, doutor Ângelo Segrillo, ainda bastante jovem, mas já com cinco livros publicados, sendo um deles selecionado para concorrer ao Prêmio Jabuti, uma grande distinção que é ofertada a poucos intelectuais brasileiros. Meu querido ex-aluno e orientando na área de Ciência Política, professor Márcio Malta, que, como uma espécie de factótum, tem evidenciado múltiplas competências e habilidades, sendo, inclusive, a partir de concepção nossa, o autor artístico de nosso brasão. Paralelamente à montagem da estrutura operacional e de apoio, partimos à busca de contatos e parcerias. Em setembro deste ano, firmamos acordo de cooperação com o Centro de Estudos Estratégicos da prestigiosa Universidade de Campinas. Temos procurado, igualmente, as instituições militares. Fomos muito bem recebidos na Escola do Comando do Estado Maior do Exército pelo seu Comandante, general Luís Eduardo Rocha Paiva e por toda a equipe do Centro de Estudos Estratégicos, a começar pelo seu Chefe, coronel Eduardo Cunha da Cunha, e pelos seus oficiais adjuntos, coronel Francisco Mamede de Brito Filho, coronel José Maria da Mota Ferreira, tenente-coronel Rui Matsuda e pelo subtenente Ricardo Pereira Cabral. Iniciamos diálogo com a Escola de Guerra Naval através do contraalmirante Reginaldo Reis, do Centro de Estudos Político-Estratégicos. Na Marinha Brasileira, além do almirante de esquadra Mauro César Rodrigues Pereira, e sobre o qual falaremos mais adiante, encontramos recepção entusiasmada, calorosa mesmo, na liderança sensível e perceptiva do contra-almirante Antônio Alberto Marinho Nigro, comandante da Frota de Superfície, o que muito nos desvanece, já que nesse início temos tão pouco a oferecer, a não ser o desejo de fazer, acontecer e servir, em prol de um valor supremo que a todos nós deve unir, o bem maior do nosso grande país. Procuramos, também, outros eminentes colegas para compartilhar propósitos, divulgar projetos e socializar idéias. É preciso mencionar, então, o professor Benício Viero Schimidt da UNB e atual Coordenador Geral de Cooperação InternaANTROPOLÍTICA

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cional da CAPES; o professor titular de História da UFRJ e professor emérito da Escola de Comando do Estado-maior do Exército, Dr. Francisco Carlos Teixeira da Silva; o professor e embaixador Dr. Paulo Roberto de Almeida do Núcleo de Assuntos Estratégicos, órgão da Presidência da República; o professor Manuel Domingos Neto, meu velho companheiro desde a década de 1980 de trabalhos e reflexões sobre as relações entre forças armadas e sociedade e atualmente vice-presidente do CNPq; o professor doutor Severino Cabral, Adjunto da Divisão de Estudos Estratégicos da Escola Superior de Guerra; o meu bom amigo, o cientista político Hélgio Trindade, ex-Reitor da UFRS e atual Presidente da Comissão Nacional de Avaliação do Ensino Superior; last but no the least, Dr. Nelson Mariano, professor aposentado de Química pela UFF, major do Exército na reserva, atualmente Diretor da IMBEL e pesquisador associado do NEST. Nelson, entretanto, entre todos os acima relacionados, possui um título imbatível: é pai de minha nora, a mais que querida Daniela, casada com meu amado filho Leonardo. Muitos outros colegas e companheiros, por meio de palavras e gestos, nos têm trazido, certo e ainda, apoio e solidariedade, mas infelizmente não podemos nos referir a todos. Pedimos desculpas pelas eventuais omissões. Sim, primeiros passos. Montagem da estrutura operacional, contatos e apoios, mas, em seguida, os outros. Promovemos no presente semestre nosso Primeiro Ciclo de Palestras do NEST com o comparecimento promissor de nossos estudantes e de um público selecionado. Os teores de nossas conferências têm sido publicados, periodicamente, no Caderno de Fim de Semana do jornal Gazeta Mercantil de São Paulo, multiplicando em milhares de vezes o alcance de nossas idéias e propostas. Na verdade, Magnífico Reitor, no que diz respeito à divulgação do nome de nossa querida UFF pelos meios de comunicação com a sigla do NEST, não temos dúvidas em dizer que nenhuma outra unidade de nossa universidade mais operou do que a nossa. Basta assinalar que somente o Prof. Ronaldo Leão concedeu quase uma centena de entrevistas a rádios, jornais e revistas, sendo que um número substancial delas foi para as redes nacionais de televisão. Este orador, assim como os demais companheiros, tem também dado muitas outras entrevistas, e igualmente em bom número, sempre se referindo à nossa UFF. Dispomos agora, também, de um sítio na Internet através do qual mantemos a comunidade acadêmica e a sociedade em geral devidamente informadas sobre nossas atividades e projetos. Além disso, a equipe do NEST tem publicado artigos assinados no jornal O Monitor MerANTROPOLÍTICA

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cantil, no Rio de Janeiro. Não obstante, todos têm razão, entre eles o meu querido amigo Maurício Dias David, quando dizem que isso é ainda muito pouco, enquanto as dificuldades são ainda de tão grande porte. As dificuldades, entretanto, quando se tem valioso propósito a ser alcançado, e a alma não é pequena, como nos diz o conhecido verso, servem para enrijecer a vontade e aumentar ainda mais o grau de determinação. Nenhum homem é uma ilha, disse o filósofo com o olhar de longo alcance. Na sociedade vivemos com o apoio, o incentivo e a solidariedade daqueles que, espontaneamente, reconhecendo nossos eventuais méritos, nos prestam sua ajuda e colaboração. Somos daqueles que compreendem que a gratidão não é uma virtude, mas um dever, uma espécie de autocrítica que fazemos, até para nos apercebermos melhor das circunstâncias com as quais dialogamos. Tenho, assim, que fazer algumas breves referências ao nome de algumas pessoas que nos têm oferecido seu prestigioso apoio, pedindo desde já desculpas, mais uma vez, por ocasionais omissões. Em primeiro lugar, é claro, necessário se torna citar, antes de todos, o Magnífico Reitor da UFF, o professor Cícero Mauro Fialho Rodrigues. A sua concordância na realização deste ato e, mais do que isso, sua aceitação para pessoalmente presidi-lo, encontrando espaço na sua congestionada agenda de obrigações, mostra bem, e por si só, o seu entendimento da importância que o Núcleo de Estudos Estratégicos goza nessa grande universidade, sinalizando o suporte institucional que ao NEST foi conferido. Mas é preciso fazer alusão a outros importantes dirigentes da UFF. São eles, o Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação, professor Sidney Luís de Matos Mello, ao qual já fiz especial menção anteriormente; o professor Humberto Machado, Diretor do Centro de Estudos Gerais, que tanto tem-se entusiasmado com nossas idéias; o professor Francisco Palharini, Diretor do Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, que tem nos prestado toda a assistência possível, embora, a título de amistosa e camarada provocação, ainda nos deva uma sala de trabalho; o professor Cláudio de Farias Augusto, Chefe do Departamento de Ciência Política, meu ex-aluno, hoje meu querido amigo, e que nos prestigia sempre. Todos, todos eles, e mais alguns que a memória falha não permite no momento lembrar, têm nos prestado solidariedade e incentivo, em um relacionamento afetuoso, típico de nossa querida UFF, que muito nos envaidece, nos engrandece mesmo, nos dá força. A lista seria, no entanto, incompleta, se mais um nome não fosse incluído. Peço, assim, para finalizar estas referências, licença para um breve parêntese gramatical e trocar o pronome da priANTROPOLÍTICA

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meira pessoa do plural para o da primeira pessoa do singular. Tenho que destacar o nome de meu colega e amigo de muitos anos, professor Gisálio Cerqueira Filho. Durante toda a minha já longa carreira, ele sempre me ilustrou com o beneplácito de sua amizade. Foi com seu decidido apoio que pude levar a bom termo minha administração como Chefe do Departamento de Ciência Política da UFF, durante três mandatos consecutivos. Foi ele o autor da proposta que levou a UFF a me fazer a outorga do título de Notório Saber, uma das altas homenagens que esta universidade pode fazer a um dos seus professores, equivalente na hierarquia de distinções acadêmicas ao título de Doutor Honoris Causa. Foi ele quem, em difícil quadra de minha vida, passando por sérios problemas pessoais, me estendeu a mão e me convidou para lecionar nos cursos de graduação e pós-graduação da prestigiosa PUC/RJ, na qual ele era Diretor do Departamento de Sociologia e Política, aliviando a carga de minhas responsabilidades financeiras. Foi ele quem, não obstante achar que estava sonhando demais – um dos meus maiores vícios, é verdade – resolveu prestar seu prestigioso apoio para que o NEST pudesse ser reativado. Agora, nesse mesmo momento, embora sabendo de meus pesados encargos, e por isso mesmo me levando a vencer minhas próprias resistências, está sendo responsável pela minha candidatura, aliás, infelizmente única, pois não tenho chances de ficar em segundo lugar, ao cargo de Coordenador do Programa de PósGraduação de Ciência Política da UFF, em fase de implantação de seu curso de doutorado. Sobre ele aqui e agora posso dizer, cantarolando na mente a conhecida canção, que não é preciso nem dizer, mas é muito bom saber, que ele é meu amigo de fé e meu irmão camarada. Finalmente, algumas rápidas considerações sobre o sentido deste ato, no plano real, imaginário e simbológico. Os nomes que compõem o Conselho Acadêmico do Núcleo Acadêmico ilustram qualquer colegiado e honram qualquer universidade, quer pelos altos méritos intelectuais de cada um deles, quer pelos altos cargos que todos eles ocupam ou já ocuparam na vida pública brasileira. O nosso cerimonial, logo no início dessa cerimônia, já nos deu breves indicações sobre seus títulos. Mas será preciso fazer algumas referências de caráter mais pessoal. Alguns deles são amigos de longuíssima data, como os professores Antonio Celso Alves Pereira e Otávio Guilherme Cardoso Alves Velho, este último meu dileto amigo desde os bancos escolares do Colégio Militar do Rio de Janeiro. Com o passar do tempo, o número dos anos, quando falamos com os mais jovens, parece chegar a cifras inimagináveis. Conhecemos o professor Theotônio dos Santos, com os seus mais de 30 livros publiANTROPOLÍTICA

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cados, e traduzidos pelo mundo afora, há mais de 20 anos, quando, no Núcleo de Pesquisa e Pós-Graduação das Faculdades Metodista Bennet, tivemos a felicidade de coordenar uma excelente equipe de professores que terá, um dia, seu nome gravado na história das ciências sociais brasileiras. Data desta época também meu primeiro contato com o professor do Instituto de Física, Raymundo Romêo, quando ele nem era Reitor, mas Diretor do Centro de Estudos Gerais, e nós participantes da diretoria que fundou a ADUFF, Associação dos Docentes desta universidade, no final dos anos 1970 e início dos anos 1980. Desde então, fizemos uma excelente amizade que muito nos honra e prestigia, embora o tenhamos enfrentado em uma chapa que se opunha à sua na eleição que o consagrou, pela segunda vez, Reitor de nossa UFF. Foi também nesse tempo que tivemos o primeiro encontro com o professor Luís Fernandes e sua futura mulher, Clara, naquela oportunidade Presidente da UNE, e eu Coordenador-Chefe da campanha do candidato do PMDB, Miro Teixeira, ao governo do estado do Rio de Janeiro. Iríamos revê-lo mais tarde quando, supomos, ele pensou em cursar o curso de Pós-Graduação do Bennett. Mal poderíamos imaginar que ele seria nosso colega, alguns anos depois, já detendo o título de Mestre em Ciência Política, no Departamento de Ciência Política da UFF, e que entre nós seria construída uma boa e franca amizade. Passamos a conhecê-lo melhor ainda na conjunção de forças para enfrentar problemas difíceis da política acadêmica em nossa unidade. Luís Fernandes, com o passar do tempo, devido ao seu brilho, profundidade e seriedade intelectuais, que coexistem com o mais monolítico dos caracteres, tem conquistado nossa profunda e constante admiração. Dizemos sempre, prevendo seu grande futuro, que ele, atualmente Secretário Executivo do Ministério de Ciência Política, será um homem fadado, para felicidade do Brasil, a ser Ministro de Estado da República. O professor Renato Lessa, titular de Ciência Política da UFF, no momento presidindo o Instituto Ciência Hoje, instituição vinculada à prestigiosa Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, SBPC, tem sido, principalmente nos últimos anos, quando nos unimos para enfrentar desafios comuns na nossa vida acadêmica, grande e leal amigo. Na verdade, tendo em vista a brilhante carreira que tem cumprido nas Ciências Sociais de nosso país, Renato ilustra bem a capacidade da UFF de formar pesquisadores e docentes do mais alto nível, inclusive em termos internacionais, já que tendo Renato feito sua graduação nesta universidade, acrescenta sentido e motivação ao trabalho de todos nós. Infelizmente, devido a compromissos inadiáveis, e como havíamos marcado a realização deste evento para o dia 29 de novembro, alguns desses queridos ANTROPOLÍTICA

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amigos não puderam comparecer a este ato e nos enviaram suas escusas a fim de que pudéssemos apresentá-las ao Magnífico Reitor e a todo o público aqui presente. Antônio Celso está em Recife cumprindo missão pela CAPES; Romêo embarcou ontem para a Finlândia para participar de um congresso científico; Theotônio embarca hoje para Paris onde fará exposição em seminário internacional; Renato está presidindo neste instante o colóquio Brasil-Portugal. Tendo feito essas breves referências em relação aos civis, precisamos agora nos referir aos oficiais generais que compõem nosso Conselho. Na verdade, nosso Conselho Acadêmico estaria incompleto, e na realidade não faria para nós sentido, se nele não tivesse lugar para o assento de legítimos representantes de nossas forças armadas. O almirante de esquadra Mauro César Rodrigues Pereira, ex-Ministro de Estado da Marinha do Brasil, tem nos dado decidido suporte, não regateando sua preciosa colaboração. Militar ilustre, inclusive com sólida formação acadêmica, já que consta em seu currículo título que é equivalente entre nós ao de doutor em Engenharia Eletrônica, obtido nos Estados Unidos, é uma liderança querida e respeitada pela força naval. Além disso, é ardoroso defensor de todas as idéias que possam contribuir para a elevação de nosso grau de autonomia diante do mundo unipolar que aí está. Temos planos, na verdade, modificando-se os termos de nosso Regimento, de lhe passar a Presidência deste Conselho em tempo próximo, tendo em vista sua dedicação, capacidade e entusiasmo. O general de Exército Luís Gonzaga Schöeder Lessa, atual Presidente do Clube Militar, cumpriu brilhante trajetória, tendo exercido o Comando Militar do Leste e o Comando Militar da Amazônia. Passamos a conhecê-lo depois de uma série de artigos publicados pelo jornalista Márcio Moreira Alves, nos quais ficou realçado o seu perfil de ardoroso defensor dos interesses nacionais brasileiros em uma região tão estratégica para o nosso futuro, como a amazônica. Sabemos, ademais, de sua pregação, Brasil afora, a respeito das nossas necessidades como Estado nacional, livre e soberano. O major-brigadeiro Rui Moreira Lima é, antes de tudo, um herói do Brasil na Segunda Guerra Mundial. Nos céus da Itália cumpriu mais de 90 missões de combate contra as forças nazifascistas, tendo recebido por isso as mais honrosas condecorações de vários países. O famoso grupo de caças, sob a lendária legenda “senta a pua”, mostrou bem do que é capaz o militar brasileiro, mesmo quando enfrenta os mais experimentados e capazes inimigos. Não fosse isso o bastante, o brigadeiro Moreira Lima sempre se destacou, no desenvolvimento de sua trajetória, pela defesa de um nacionalismo sem ANTROPOLÍTICA

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xenofobia e o respeito sem temores à ordem democrática da República. Como dissemos no início desta alocução, não se constrói uma grande sociedade sem o sólido intercâmbio entre a ciência, a tecnologia e a técnica – personificada na produção acadêmica – e a corporação militar. Parafraseando o grande Tucídides, que viveu entre 460 e 400 a.C., em passagem famosa na sua monumental obra sobre o conflito de Peloponeso, podemos propor que as nações que separam os intelectuais dos seus soldados condenam-se à desvirilização da política e à incompetência na guerra. Queremos que a UFF seja um espaço de encontro e reflexão entre civis e militares para que se imagine, com toda a liberdade criadora, as melhores alternativas estratégicas deste grande país. Eis aí, portanto, nosso Magnífico Reitor, professor Mauro Cícero Fialho Rodrigues, e prezado público, o sentido simbológico profundo da posse deste Conselho. As personalidades que o compõem representam, emblematicamente, o perfil de um projeto de nação que estamos ainda por realizar. Uma sociedade comprometida com o conhecimento, porque é nele que se conquista a verdadeira independência. Um país dedicado à causa da República democrática, ditando o rumo de uma política de desenvolvimento realmente integrativa. Uma coletividade voltada para o resgate de uma dívida social que, como bem disse o Presidente Tancredo Neves, é a maior entre todas as nossas dívidas. Uma nação reconciliada consigo mesma, sem amargores do passado e voltada para os planos generosos do futuro, capaz de oferecer ao mundo a peculiar visão do modo de pensar e sentir e agir da civilização brasileira. Um grande Brasil que, sendo capaz de construir um competente sistema de defesa, seja igualmente capaz de garantir o seu legítimo direito de querer ser, no concerto dos Estados, livre, forte e soberano que, com o apoio dos homens de boa vontade em todo o mundo, esteja sempre voltado para a paz. Muito obrigado.

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RELAÇÃO DE DISSERTAÇÕES DEFENDIDAS NO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA

CURSO DE MESTRADO EM ANTROPOLOGIA

1 TÍTULO: U M

ABRAÇO PARA TODOS OS AMIGOS

Autor: Antonio Carlos Rafael Barbosa Orientador: Prof. Dr. José Carlos Rodrigues Data da defesa: 16/1/1997

2 TÍTULO: A

PRODUÇÃO SOCIAL DA MORTE E MORTE

SIMBÓLICA EM PACIENTES HANSENIANOS

Autor: Cristina Reis Maia Orientador: Prof. Dr. José Carlos Rodrigues Data da defesa: 2/4/1997

3 TÍTULO: P RÁTICAS

ACADÊMICAS E O ENSINO

UNIVERSITÁRIO : UMA ETNOGRAFIA DAS FORMAS DE CONSAGRAÇÃO E TRANSMISSÃO DO SABER NA UNIVERSIDADE

Autor: Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto Orientador: Prof. Dr. Roberto Kant de Lima Data da defesa:16/6/1997

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4 TÍTULO: “D OM ”, “ ILUMINADOS ”

E

“ FIGURÕES ”:

UM ESTUDO SOBRE A REPRESENTAÇÃO DA ORATÓRIA NO

T RIBUNAL

DO JÚRI DO

R IO

DE

J ANEIRO Autor: Alessandra de Andrade Rinaldi Orientador: Prof. Dr. Luiz de Castro Faria Data da defesa: 3/1/1997

5 TÍTULO: M UDANÇA

IDEOLÓGICA PARA A QUALIDADE

Autor: Miguel Pedro Alves Cardoso Orientador: Profª Drª Lívia Neves Barbosa Data da defesa: 7/10/1997

6 TÍTULO: C ULTO

ROCK A

R AUL S EIXAS :

SOCIEDADE

ALTERNATIVA ENTRE REBELDIA E NEGOCIAÇÃO

Autor: Monica Buarque Orientador: Prof. Dr. José Carlos Rodrigues Data da defesa: 19/12/1997

7 TÍTULO: A

CAVALGADA DO SANTO GUERREIRO : DUAS

FESTAS DE

R IO

DE

S ÃO J ORGE

EM

S ÃO G ONÇALO /

J ANEIRO

Autor: Ricardo Maciel da Costa Orientador: Prof. Dr. Roberto Kant de Lima Data da defesa: 23/12/1997

8 TÍTULO: A

LOUCURA NO MANICÔMIO JUDICIÁRIO :

A PRISÃO COMO TERAPIA , O CRIME COMO SINTOMA , O PERIGO COMO VERDADE

Autor: Rosane Oliveira Carreteiro Orientador: Prof. Dr. Roberto Kant de Lima Data da defesa: 6/2/1998

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9 TÍTULO: A RTICULAÇÃO CASA E TRABALHO : MIGRANTES “ NORDESTINOS ” NAS OCUPAÇÕES DE EMPREGADA DOMÉSTICA E EMPREGADOS DE EDIFÍCIO

Autor: Fernando Cordeiro Barbosa Orientador: Profª Drª Delma Pessanha Neves Data da defesa: 4/3/1998

10 TÍTULO: E NTRE “ MODERNIDADE ”

“ TRADIÇÃO ”: DE M APUTO

E

A COMUNIDADE ISLÂMICA

Autor: Fátima Nordine Mussa Orientador: Prof. Dr. Marco Antonio da Silva Mello Data da defesa: 11/3/1998

11 TÍTULO: O S

INTERESSES SOCIAIS E A SECTARIZAÇÃO DA

DOENÇA MENTAL

Autor: Cláudio Lyra Bastos Orientador: Prof. Dr. Marco Antonio da Silva Mello Data da defesa: 21/5/1998

12 TÍTULO: P ROGRAMA

MÉDICO DE FAMÍLIA : MEDIAÇÃO E

RECIPROCIDADE

Autor: Gláucia Maria Pontes Mouzinho Orientador: Profª Drª Simoni Lahud Guedes Data da defesa: 24/5/1999

13 TÍTULO: O

IMPÉRIO E A ROSA : ESTUDO SOBRE A

DEVOÇÃO DO

E SPÍRITO S ANTO

Autor: Margareth da Luz Coelho Orientador: Prof. Dr. Arno Vogel Data da defesa: 13/7/1998

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14 TÍTULO: D O

MALANDRO AO MARGINAL :

REPRESENTAÇÕES DOS PERSONAGENS HERÓIS NO CINEMA BRASILEIRO

Autor: Marcos Roberto Mazaro Orientador: Profª Drª Lívia Neves Barbosa Data da defesa: 30/10/1998

15 TÍTULO: P ROMETER - CUMPRIR : PRINCÍPIOS MORAIS DA POLÍTICA : UM ESTUDO DE REPRESENTAÇÕES SOBRE A POLÍTICA CONSTRUÍDAS POR ELEITORES E POLÍTICOS

Autor: Andréa Bayerl Mongim Orientador: Profª Drª Delma Pessanha Neves Data da defesa: 21/1/1999

16 TÍTULO: O

SIMBÓLICO E O IRRACIONAL : ESTUDO SOBRE

SISTEMAS DE PENSAMENTO E SEPARAÇÃO JUDICIAL

Autor: César Ramos Barreto Orientador: Prof. Dr. José Carlos Rodrigues Data da defesa: 10/5/1999

17 TÍTULO: E M

TEMPO DE CONCILIAÇÃO

Autor: Angela Maria Fernandes Moreira-Leite Orientador: Prof. Dr. Roberto Kant de Lima Data da defesa: 15/7/1999

18 TÍTULO: N EGROS ,

PARENTES E HERDEIROS : UM ESTUDO

DA REELABORAÇÃO DA IDENTIDADE ÉTNICA NA COMUNIDADE DE

R ETIRO , S ANTA L EOPOLDINA

– ES Autor: Osvaldo Marins de Oliveira Orientador: Profª Drª Eliane Cantarino O’Dwyer Data da defesa: 13/8/1999 ANTROPOLÍTICA

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19 TÍTULO: S ISTEMA

DA SUCESSÃO E HERANÇA DA POSSE

HABITACIONAL EM FAVELA

Autor: Alexandre de Vasconcellos Weber Orientador: Profª Drª Delma Pessanha Neves Data da defesa: 25/10/1999

20 TÍTULO: E

NO SAMBA FEZ ESCOLA : UM ESTUDO DE

CONSTRUÇÃO SOCIAL DE TRABALHADORES EM ESCOLA DE SAMBA

Autor: Cristina Chatel Vasconcellos Orientador: Profª Drª Simoni Lahud Guedes Data da defesa: 5/11/1999

21 TÍTULO: C IDADÃOS

E FAVELADOS : OS PARADOXOS DOS

PROJETOS DE ( RE ) INTEGRAÇÃO SOCIAL

Autor: André Luiz Videira de Figueiredo Orientador: Profª Drª Delma Pessanha Neves Data da defesa: 19/11/1999

22 TÍTULO: D A

ANCHOVA AO SALÁRIO MÍNIMO : UMA

ETNOGRAFIA SOBRE INJUNÇÕES DE MUDANÇA SOCIAL EM

A RRAIAL

DO

C ABO /RJ

Autor: Simone Moutinho Prado Orientador: Prof. Dr. Roberto Kant de Lima Data da defesa: 25/2/2000

23 TÍTULO: P ESCADORES

E SURFISTAS : UMA DISPUTA PELO

USO DO ESPAÇO DA

P RAIA G RANDE

Autor: Delgado Goulart da Cunha Orientador: Prof. Dr. Roberto Kant de Lima Data da defesa: 28/2/2000

ANTROPOLÍTICA

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24 TÍTULO: P RODUÇÃO

CORPORAL

DA MULHER QUE DANÇA

Autor: Sigrid Hoppe Orientador: Prof. Dr. Marco Antonio da Silva Mello Data da defesa: 27/4/2000

25 TÍTULO: A

PRODUÇÃO DA VERDADE NAS PRÁTICAS

JUDICIÁRIAS CRIMINAIS BRASILEIRAS : UMA PERSPECTIVA ANTROPOLÓGICA DE UM PROCESSO CRIMINAL

Autor: Luiz Eduardo de Vasconcellos Figueira Orientador: Prof. Dr. Roberto Kant de Lima Data da defesa: 21/9/2000

26 TÍTULO: C AMPO

DE FORÇA : SOCIABILIDADE NUMA

TORCIDA ORGANIZADA DE FUTEBOL

Autor: Fernando Manuel Bessa Fernandes Orientador: Profª Drª Simoni Lahud Guedes Data da defesa: 22/9/2000

27 TÍTULO: R ESERVAS

EXTRATIVISTAS MARINHAS : UMA

REFORMA AGRÁRIA NO MAR ?

U MA

DISCUSSÃO

SOBRE O PROCESSO DE CONSOLIDAÇÃO DA RESERVA EXTRATIVISTA MARINHA DE

A RRAIAL

DO

C ABO /RJ Autor: Ronaldo Joaquim da Silveira Lobão Orientador: Prof. Dr. Roberto Kant de Lima Data da defesa: 29/11/2000

ANTROPOLÍTICA

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28 TÍTULO: P ATRULHANDO

A CIDADE : O VALOR DO

TRABALHO E A CONSTRUÇÃO DE ESTEREÓTIPOS EM UM PROGRAMA RADIOFÔNICO

Autor: : Edilson Márcio Almeida da Silva Orientador: Profª Drª Simoni Lahud Guedes Data da defesa: 8/12/2000

29 TÍTULO: L OUCOS

DE RUA : INSTITUCIONALIZAÇÃO X

DESINSTITUCIONALIZAÇÃO

Autor: Ernesto Aranha Andrade Orientador: Profª Drª Delma Pessanha Neves Data da defesa: 8/3/2001

30 TÍTULO: F ESTA

DO

R OSÁRIO :

ICONOGRAFIA E POÉTICA

DE UM RITO

Autor: Patrícia de Araújo Brandão Couto Orientador: Profª Drª Tania Stolze Lima Data da defesa: 8/5/2001

31 TÍTULO: O S

CAMINHOS DO LEÃO : UMA ETNOGRAFIA DO

PROCESSO DE COBRANÇA DO I MPOSTO DE

R ENDA Autor: Gabriela Maria Hilu da Rocha Pinto Orientador: Prof. Dr. Roberto Kant de Lima Data da defesa: 7/8/2001

32 TÍTULO: R EPRESENTAÇÕES POLÍTICAS : ALTERNATIVAS CONTRADIÇÕES – DAS MÚLTIPLAS

E

POSSIBILIDADES DE PARTICIPAÇÃO POPULAR NA

C ÂMARA M UNICIPAL

DO

R IO

DE

J ANEIRO

Autor: Delaine Martins Costa Orientador: Profª Drª Delma Pessanha Neves Data da defesa: 27/9/2001 ANTROPOLÍTICA

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33 TÍTULO: C APOEIRAS

E MESTRES : UM ESTUDO DE

CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES

Autor: Mariana Costa Aderaldo Orientador: Profª Drª Simoni Lahud Guedes Data da defesa: 29/10/2001

34 TÍTULO: Í NDIOS

MISTURADOS : IDENTIDADES E

DESTERRITORIALIZAÇÃO NO SÉCULO

XIX

Autor: Márcia Fernanda Malheiros Orientador: Profª Drª Tania Stolze Lima Data da defesa: 17/12/2001

35 TÍTULO: T RABALHO

E EXPOSIÇÃO : UM ESTUDO DA

PERCEPÇÃO AMBIENTAL NAS INDÚSTRIAS CIMENTEIRAS DE

C ANTAGALO / RJ – B RASIL

Autor: Maria Luiza Erthal Melo Orientador: Profª Drª Gláucia Oliveira da Silva, Prof. Dr. Carlos Machado de Freitas (co-orientador) Data da defesa: 4/5/2001

36 TÍTULO: S AMBA ,

JOGO DO BICHO E NARCOTRÁFICO :

A REDE DE RELAÇÕES QUE SE FORMA NA QUADRA DE UMA ESCOLA DE SAMBA EM UMA FAVELA DO

R IO

DE

J ANEIRO

Autor: Alcyr Mesquita Cavalcanti Orientador: Profª Drª Simoni Lahud Guedes Data da defesa: 20/12/2001

ANTROPOLÍTICA

Niterói, n. 17, p. 245–271, 2. sem. 2004

253

37 TÍTULO: M ÃOS

DE ARTE E O SABER - FAZER DOS

ARTESÃOS DE I TACOARECI : UM ESTUDO ANTROPOLÓGICO SOBRE SOCIALIDADE , IDENTIDADES E IDENTIFICAÇÕES LOCAIS

Autor: Marzane Pinto de Souza Orientador: Profª Drª Gláucia Oliveira da Silva Data da defesa: 6/2/2002

38 TÍTULO: D O ALTO DO RIO E REPECURU À CIDADE DE O RIXIMINÁ : A CONSTRUÇÃO DE UM ESPAÇO SOCIAL EM UM NÚCLEO URBANO DA A MAZÔNIA Autor: Andréia Franco Luz Orientador: Profª Drª Eliane Cantarino O’Dwyer Data da defesa: 27/3/2002

39 TÍTULO: O

FIO DO DESENCANTO : TRAJETÓRIA ESPACIAL

E SOCIAL DE ÍNDIOS URBANOS EM

B OA V ISTA

(RR) Autor: Lana Araújo Rodrigues Orientador: Prof. Dr. José Carlos Rodrigues Data da defesa: 27/3/2002

40 TÍTULO: D EUS É PAI : PROSPERIDADE OU SACRIFÍCIO ? C ONVERSÃO , RELIGIOSIDADE E CONSUMO NA I GREJA U NIVERSAL DO R EINO DE D EUS Autor: Maria José Soares Orientador: Profª Drª Lívia Neves Barbosa Data da defesa: 1/4/2002

ANTROPOLÍTICA

Niterói, n. 17, p. 245–271, 2. sem. 2004

254

41 TÍTULO: N EGROS

EM ASCENSÃO SOCIAL : PODER DE

CONSUMO E VISIBILIDADE

Autor: Lidia Celestino Meireles Orientador: Profª Drª Lívia Neves Barbosa Data da defesa: 1/4/2002

42 TÍTULO: A

CULTURA MATERIAL DA NOVA ERA E O SEU

PROCESSO DE COTIDIANIZAÇÃO

Autor: Juliana Alves Magaldi Orientador: Profª Drª Lívia Neves Barbosa Data da defesa: 20/7/2002

43 TÍTULO: A F ESTA DO D IVINO E SPÍRITO S ANTO P IRENÓPOLIS , G OIÁS : POLARIDADES

EM

SIMBÓLICAS EM TORNO DE UM RITO

Autor: Felipe Berocan Veiga Orientador: Prof. Dr. Marco Antonio da Silva Mello Data da defesa: 1/7/2002

44 TÍTULO: P RIVATIZAÇÃO

E RECIPROCIDADE PARA

TRABALHADORES DA

CERJ

EM

A LBERTO

T ORRES /RJ Autor: Cátia Inês Salgado de Oliveira Orientador: Profª Drª Gláucia Oliveira da Silva Data da defesa: 4/7/2002

45 TÍTULO: C ADA

LOUCO COM A SUA MANIA , CADA

MANIA DE CURA COM A

SUA LOUCURA

Autor: Patricia Pereira Pavesi Orientador: Profª Drª Lívia Neves Barbosa Data da defesa: 7/1/2003

ANTROPOLÍTICA

Niterói, n. 17, p. 245–271, 2. sem. 2004

255

46 TÍTULO: L INGUAGEM SOCIAL , UM

DE PARENTESCO E IDENTIDADE ESTUDO DE CASO : OS

C AMPO R EDONDO

MORADORES DE

Autor: Cátia Regina de Oliveira Motta Orientador: Profª Drª Gláucia Oliveira da Silva Data da defesa: 7/1/2003

47 TÍTULO: V ILA M IMOSA II: A C ONSTRUÇÃO C ONCEITO DA Z ONA

DO

N OVO

Autor: Soraya Silveira Simões Orientador: Prof. Dr. Marco Antonio da Silva Mello Data da defesa: 20/1/2003

48 TÍTULO: T ÃO

PERTO , TÃO LONGE : ETNOGRAFIA SOBRE

RELAÇÕES DE AMIZADE NA FAVELA DA

M ANGUEIRA

NO

R IO

DE

J ANEIRO

Autor: Geovana Tabachi Silva Orientador: Profª Drª Lívia Neves Barbosa Data da defesa: 20/1/2003

49 TÍTULO: O DO

MERCADO DOS ORIXÁS : UMA ETNOGRAFIA

M ERCADÃO

DE

M ADUREIRA

NO

R IO

DE

J ANEIRO Autor: Carlos Eduardo Martins Costa Medawar Orientador: Prof. Dr. Marco Antonio da Silva Mello Data da defesa: 20/1/2003

50 TÍTULO: P ARA

ALÉM DA

“ PORTA

DE ENTRADA ”: USOS E

REPRESENTAÇÕES SOBRE O CONSUMO DA CANABIS ENTRE UNIVERSITÁRIOS

Autor: Jóvirson José Milagres Orientador: Profª Drª Simoni Lahud Guedes Data da defesa: 10/6/2003 ANTROPOLÍTICA

Niterói, n. 17, p. 245–271, 2. sem. 2004

256

51 TÍTULO: E

O VERBO

( RE ) FEZ

O HOMEM : ESTUDO DO

PROCESSO DE CONVERSÃO DO ALCOÓLICO ATIVO EM ALCOÓLICO PASSIVO

Autor: Angela Maria Garcia Orientador: Profª Drª Delma Pessanha Neves Data da defesa: 12/6/2003

52 TÍTULO: L E

SOUFFLE AU COEUR

&

DAMAGE : QUANDO

O MESMO TOCA O MESMO EM POR SEGUNDO

(L OUIS M ALLE

24

QUADROS

E A TEMÁTICA DO

INCESTO )

Autor: Débora Breder Barreto Orientador: Profª Drª Lygia Baptista Pereira Segala Pauletto Data da defesa: 24/6/2003

53 TÍTULO: O

FACCIONALISMO XAVANTE NA TERRA

S ÃO M ARCOS DAS G ARÇAS

INDÍGENA

B ARRA

E A CIDADE DE

Autor: Paulo Sérgio Delgado Orientador: Profª Drª Eliane Cantarino O’Dwyer Data da defesa: 24/6/2003

54 TÍTULO: C ARTOGRAFIA NATIVA : A REPRESENTAÇÃO DO TERRITÓRIO , PELOS GUARANI KAIOWÁ , PARA O PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO DE VERIFICAÇÃO DA

F UNAI

Autor: Ruth Henrique da Silva Orientador: Profª Drª Eliane Cantarino O’Dwyer Data da defesa: 27/6/2003

ANTROPOLÍTICA

Niterói, n. 17, p. 245–271, 2. sem. 2004

257

55 TÍTULO: N EM

MUITO MAR , NEM MUITA TERRA .

N EM

TANTO NEGRO , NEM TANTO BRANCO : UMA DISCUSSÃO SOBRE O PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DA COMUNIDADE REMANESCENTE DE

Q UILOMBOS

NA I LHA DA

M ARAMBAIA /RJ Autor: Fábio Reis Mota Orientador: Prof. Dr. Roberto Kant de Lima Data da defesa: 27/6/2003

56 TÍTULO: P ENDURA

ESSA : A COMPLEXA ETIQUETA DE

RECIPROCIDADE EM UM BOTEQUIM DO

R IO

DE

J ANEIRO Autor: Pedro Paulo Thiago de Mello Orientador: Prof. Dr. Marco Antonio da Silva Mello Data da defesa: 30/6/2003

57 TÍTULO: J USTIÇA

DESPORTIVA : UMA COEXISTÊNCIA

ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO

Autor: Wanderson Antonio Jardim Orientador: Prof. Dr. Roberto Kant de Lima, Profª Drª Simoni Lahud Guedes (co-orientadora) Data da defesa: 30/6/2003

58 TÍTULO: O

TEU CABELO NÃO NEGA ?

UM

ESTUDO DE

PRÁTICAS E REPRESENTAÇÕES SOBRE O CABELO

Autor: Patrícia Gino Bouzón Orientador: Prof. Dr. José Sávio Leopoldi Data da defesa: 5/2/2004

ANTROPOLÍTICA

Niterói, n. 17, p. 245–271, 2. sem. 2004

258

59 TÍTULO: U SOS

E SIGNIFICADOS DO VESTUÁRIO

ENTRE ADOLESCENTES

Autor: Joana Macintosh Orientador: Profª Drª Laura Graziela Figueiredo Fernandes Gomes Data da defesa: 16/2/2004

60 TÍTULO: A CIENTIFIZAÇÃO DA ACUPUNTURA MÉDICA B RASIL : UMA PERSPECTIVA ANTROPOLÓGICA

NO

Autor: Durval Dionísio Souza Mota Orientador: Prof. Dr. Roberto Kant Lima; Profª Drª Simoni Lahud Guedes (co-orientadores) Data da defesa: 19/2/2004

61 TÍTULO: D AS

PRÁTICAS E DOS SEUS SABERES :

A CONSTRUÇÃO DO PRAÇAS DA

“ FAZER

POLICIAL ” ENTRE AS

PMERJ

Autor: Haydée Glória Cruz Caruso Orientador: Prof. Dr. Roberto Kant Lima Data da defesa: 19/2/2004

62 TÍTULO: O

PROCESSO DENUNCIADOR



RETÓRICAS ,

FOBIAS E JOCOSIDADES NA CONSTRUÇÃO SOCIAL DO DENGUE EM

2002

Autor: Anamaria de Souza Fagundes Orientador: Prof. Dr. Marco Antonio da Silva Mello Data da defesa: 29/3/2004

63 TÍTULO: R UA

DOS I NVÁLIDOS ,

124 –

A VILA É A CASA DELES

Autor: Marcia Cörner Orientador: Prof. Dr. Marco Antonio da Silva Mello Data da defesa: 29/3/2004

ANTROPOLÍTICA

Niterói, n. 17, p. 245–271, 2. sem. 2004

259

64 TÍTULO: S ANTA T ECLA , G RAÇA

E

L ARANJAL :

REGRAS

DE SUCESSÃO NAS CASAS DE ESTÂNCIA DO

B RASIL M ERIDIONAL Autor: Ana Amélia Cañez Xavier Orientador: Profª Drª Eliane Catarino O’Dwyer Data da defesa: 25/5/2004

65 TÍTULO: D ESEMPREGO

E MALABARISMOS CULTURAIS

Autor: Valena Ribeiro Garcia Ramos Orientador: Profª Drª Delma Pessanha Neves Data da defesa: 31/5/2004

66 TÍTULO: D IMENSÕES

DA SEXUALIDADE NA VELHICE :

ESTUDOS COM IDOSOS EM UMA AGÊNCIA GERONTOLÓGICA

Autor: Rosangela dos Santos Bauer Orientador: Profª Drª Simoni Lahud Guedes Data da defesa: 9/6/2004

67 TÍTULO: L AVRADORES

DE SONHOS : ESTRUTURAS

ELEMENTARES DO VALOR CULTURAL NA CONFORMAÇÃO DO VALOR ECONÔMICO . UM ESTUDO SOBRE A PROPRIEDADE CAPIXABA NO MUNICÍPIO DE VITÓRIA

Autor: Alexandre Silva Rampazzo Orientador: Profª Drª Lívia Martins Pinheiro Neves Data da defesa: 26/7/2004

ANTROPOLÍTICA

Niterói, n. 17, p. 245–271, 2. sem. 2004

260

RELAÇÃO DE DISSERTAÇÕES DEFENDIDAS NO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA POLÍTICA

CURSO DE MESTRADO EM CIÊNCIA POLÍTICA

1 TÍTULO: G ESTÃO

DA EDUCAÇÃO MUNICIPAL :

A ADMINISTRAÇÃO DO

T RABALHADORES NO A NGRA DOS R EIS

P ARTIDO

DOS

MUNICÍPIO DE

Autor: Claudio Batista Orientador: Prof. Dr. José Ribas Vieira Data da defesa: 17/10/1997

2 TÍTULO: U TOPIA

REVOLUCIONÁRIA VERSUS REALISMO

POLÍTICO : O DILEMA DOS PARTIDOS SOCIALISTAS NA ÓTICA DOS DIRIGENTES DO

PT

FLUMINENSE

Autor: Gisele dos Reis Cruz Orientador: Profª Drª Maria Celina Soares D’Araujo Data da defesa: 7/11/1997

3 TÍTULO: R ELAÇÃO ONG–E STADO :

O CASO

ABIA

Autor: Jacob Augusto Santos Portela Orientador: Profª Drª Maria Celina Soares D’Araujo Data da defesa:18/11/1997

ANTROPOLÍTICA

Niterói, n. 17, p. 245–271, 2. sem. 2004

261

4 TÍTULO: R EFORMA

E STADO E POLÍTICA DE TELECOMUNICAÇÕES : O IMPACTO DAS MUDANÇAS RECENTES SOBRE A EMBRATEL DO

Autor: José Eduardo Pereira Filho Orientador: Profª Drª Lívia Neves Barbosa Data da defesa: 18/12/1997

5 TÍTULO: E NTRE A DISCIPLINA E A POLÍTICA : C LUBE M ILITAR (1890 – 1897) Autor: Claudia Torres de Carvalho Orientador: Prof. Dr. Celso Castro Data da defesa: 19/12/1997

6 TÍTULO: A SSOCIATIVISMO M ILITAR 1940

NO

B RASIL : 1890/

Autor: Tito Henrique Silva Queiroz Orientador: Prof. Dr. Ari de Abreu Silva Data da defesa: 22/12/1997

7 TÍTULO: E SCOLA

DE

G UERRA N AVAL

DOS OFICIAIS SUPERIORES DA

G UERRA

DO

NA FORMAÇÃO

M ARINHA

DE

B RASIL

Autor: Sylvio dos Santos Val Orientador: Profª Drª Maria Antonieta Parahyba Leopoldi Data da defesa: 6/2/1998

8 TÍTULO: O P ODER L EGISLATIVO

REAGE : A IMPORTÂNCIA

DAS COMISSÕES PERMANENTES NO PROCESSO LEGISLATIVO BRASILEIRO

Autor: Ygor Cervásio Gouvea da Silva Orientador: Prof. Dr. Fabiano Guilherme Mendes dos Santos Data da defesa: 13/8/1998

ANTROPOLÍTICA

Niterói, n. 17, p. 245–271, 2. sem. 2004

262

9 TÍTULO: A

EXPERIÊNCIA DO I TAMARATY DE

84

A

96:

ENTRE A TRADIÇÃO E A MUDANÇA

Autor: Joana D’Arc Fernandes Ferraz Orientador: Prof. Dr. Ari de Abreu Silva Data da defesa: 15/9/1998

10 TÍTULO: C ENTRAIS

SINDICAIS E SINDICATOS

Autor: Fernando Cesar Coelho da Costa Orientador: Profª Drª Maria Celina Soares D’Araujo Data da defesa: 16/11/1998

11 TÍTULO: A

DIMENSÃO POLÍTICA DA FAMÍLIA NA

SOCIEDADE BRASILEIRA : O CONFLITO DE REPRESENTAÇÕES

Autor: Guiomar de Lemos Ferreira Orientador: Prof. Dr. Gisálio Cerqueira Filho Data da defesa: 15/12/1998

12 TÍTULO: A OMS,

O

E STADO

E A LEGISLAÇÃO

CONTRÁRIA AO TABAGISMO : OS PARADOXOS DE UMA AÇÃO

Autor: Mauro Alves de Almeida Orientador: Prof. Dr. Ari de Abreu Silva Data da defesa: 21/12/1998

13 TÍTULO: V IOLÊNCIA

E RACISMO NO

R IO

DE

J ANEIRO

Autor: Jorge da Silva Orientador: Prof. Dr. Roberto Kant de Lima Data da defesa: 23/12/1998

ANTROPOLÍTICA

Niterói, n. 17, p. 245–271, 2. sem. 2004

263

14 TÍTULO: N OVAS DEMOCRACIAS : AS VISÕES DE R OBERT D AHL , G UILLERMO O’D ONNEL E A DAM P RZEWORSKI Autor: Jaime Baron Orientador: Profª Drª Maria Antonieta Parahyba Leopoldi Data da defesa: 16/7/1999

15 TÍTULO: C ONSELHO T UTELAR :

A PARTICIPAÇÃO POPULAR

NA CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE EM

N ITERÓI – RJ

Autor: Maria das Graças Silva Raphael Orientador: Prof. Dr. Ari de Abreu Silva Data da defesa: 13/12/1999

16 TÍTULO:O L EGISLATIVO M UNICIPAL NO CONTEXTO DEMOCRÁTICO BRASILEIRO : UM ESTUDO SOBRE A DINÂMICA LEGISLATIVA DA C ÂMARA M UNICIPAL DE N OVA I GUAÇU Autor: Otair Fernandes de Oliveira Orientador: Prof. Dr. Ari de Abreu Silva Data da defesa: 20/12/1999

17 TÍTULO: A

GERÊNCIA DO PENSAMENTO

Autor: Cláudio Roberto Marques Gurgel Orientador: Prof. Dr. Gisálio Cerqueira Filho Data da defesa: 8/2/2000

18 TÍTULO: V IOLÊNCIA

NO

R IO

J ANEIRO : A DO MAL – A PRODUÇÃO

DE

PRODUÇÃO RACIONAL

LEGAL SOBRE SEGURANÇA PÚBLICA NA

A SSEMBLÉIA L EGISLATIVA

DO

R IO

DE

J ANEIRO

Autor: Fabiano Costa Souza Orientador: Prof. Dr. Gisálio Cerqueira Filho Data da defesa: 9/2/2000 ANTROPOLÍTICA

Niterói, n. 17, p. 245–271, 2. sem. 2004

264

19 TÍTULO: A S

B RASIL

IDÉIAS DE DIREITO NO

SEISCENTISTA

E SUAS REPERCUSSÕES NO EXERCÍCIO E NA JUSTIFICATIVA DO PODER POLÍTICO

Autor: Ana Patrícia Thedin Corrêa Orientador: Prof. Dr. Gisálio Cerqueira Filho Data da defesa: 8/6/2000

20 TÍTULO: A GÊNCIA

BRASILEIRA DE INTELIGÊNCIA :

GÊNESE E ANTECEDENTES HISTÓRICOS

Autor: Priscila Carlos Brandão Antunes Orientador: Profª Drª Maria Celina Soares D’Araújo Data da defesa: 25/8/2000

21 TÍTULO: D ILEMAS

B RASIL FINANCEIRA :

DA REFORMA DA SAÚDE NO

FRENTE À GLOBALIZAÇÃO

IMPLEMENTANDO A DESCENTRALIZAÇÃO DO SISTEMA PÚBLICO E A REGULAÇÃO DO SISTEMA PRIVADO DE SAÚDE

Autor: Ricardo Cesar Rocha da Costa Orientador: Profª Drª Maria Antonieta Parahyba Leopoldi Data da defesa: 22/9/2000

22 TÍTULO: E NTRE

O BEM - ESTAR E O LUCRO : HISTÓRICO E

ANÁLISE DA RESPONSABILIDADE SOCIAL DAS EMPRESAS ATRAVÉS DE ALGUMAS EXPERIÊNCIAS SELECIONADAS DE BALANÇO SOCIAL

Autor: Ciro Valério Torres da Silva Orientador: Prof. Dr. Eduardo Rodrigues Gomes Data da defesa: 23/10/2000

ANTROPOLÍTICA

Niterói, n. 17, p. 245–271, 2. sem. 2004

265

23 TÍTULO: O S

EMPRESÁRIOS DA EDUCAÇÃO E O

SINDICALISMO PATRONAL : OS SINDICATOS DOS ESTABELECIMENTOS PRIVADOS DE ENSINO NO ESTADO DO

R IO

DE

J ANEIRO

Autor: Marcos Marques de Oliveira Orientador: Profª Drª Maria Celina Soares D’Araujo Data da defesa: 14/12/2000

24 TÍTULO: C OMPORTAMENTO

ELEITORAL : ABERTURA E

MUDANÇA POLÍTICA EM

C ABO V ERDE

Autor: João Silvestre Tavares Alvarenga Varela Orientador: Prof. Dr. Gisálio Cerqueira Filho Data da defesa: 16/2/2001

25 TÍTULO: A

POLÍTICA COMO BOATO : UMA ANÁLISE DO

PROGRAMA DE DESPOLUIÇÃO DA BAÍA DE

G UANABARA Autor: Paulo Rogério dos Santos Baía Orientador: Prof. Dr. Luis Manuel Rebelo Fernandes, Prof. Dr. Gisálio Cerqueira Filho (co-orientador) Data da defesa: 26/3/2001

26 TÍTULO: T RABALHO

E EXPOSIÇÃO : ESTUDO DA

PERCEPÇÃO AMBIENTAL NAS INDÚSTRIAS CIMENTEIRAS DE

C ANTAGALO /RJ

Autor: Maria Luzia Erthal Mello Orientador: Profª Drª Gláucia Oliveira da Silva, Prof. Dr. Carlos Machado de Freitas (co-orientador) Data da defesa: 4/5/2001

ANTROPOLÍTICA

Niterói, n. 17, p. 245–271, 2. sem. 2004

266

27 TÍTULO: D A

POLÍTICA DE BASTIDORES À FESTA DAS

DIRETAS : RAZÃO , EMOÇÃO E TRANSAÇÃO NA TRANSIÇÃO DEMOCRÁTICA BRASILEIRA

Autor: Alessandro Câmara de Souza Orientador: Prof. Dr. Gisálio Cerqueira Filho Data da defesa: 20/6/2001

28 TÍTULO: E NTRE

A NATUREZA E A CONVENÇÃO

CRÍTICA DA

C IÊNCIA P OLÍTICA



A

E DA MORAL

MODERNA E SUA REORIENTAÇÃO NA PERSPECTIVA DE

M ORELLY

Autor: William de Andrade Pujol Pastor Orientador: Profª Drª Maria Antonieta Parahyba Leopoldi Data da defesa: 20/12/2001

29 TÍTULO: S AMBA

E SOLIDARIEDADE : CAPITAL SOCIAL E

PARCERIAS COORDENANDO AS POLÍTICAS SOCIAIS DA

M ANGUEIRA , RJ

Autor: Maria Alice Chaves Nunes Costa Orientador: Profª Drª Maria Antonieta Parahyba Leopoldi Data da defesa: 14/3/2002

30 TÍTULO: C APITAL

SOCIAL OU FAMILISMO AMORAL ?

UM

BALANÇO DO CAPITAL SOCIAL ACUMULADO EM COMUNIDADES DA

B AÍA

DE

G UANABARA

Autor: Carlos Artur Felippe Orientador: Prof. Dr. José Augusto Drummond Data da defesa: 26/3/2002

ANTROPOLÍTICA

Niterói, n. 17, p. 245–271, 2. sem. 2004

267

31 TÍTULO: O B ANCO M UNDIAL

E O CAPITAL SOCIAL :

NOVAS CONCEPÇÕES SOBRE O PAPEL DO ESTADO E DA SOCIEDADE CIVIL NO PROCESSO DE DESENVOLVIMENTO

Autor: Débora Cardoso Pulcina Orientador: Profª Drª Maria Antonieta Parahyba Leopoldi Data da defesa: 14/6/2002

32 TÍTULO A

REFORMA DO

REESTRUTURAÇÃO

B RASIL : BUROCRÁTICA , DEMOCRACIA

E STADO

NO

E GOVERNABILIDADE

Autor: Ledilson Lopes Santos Junior Orientador: Prof. Dr. Ari de Abreu Silva Data da defesa: 30/9/2002

33 TÍTULO: A

ESCOLHA DO MAGNÍFICO : UMA ANÁLISE DO

SISTEMA DE ESCOLHA DOS DIRIGENTES DAS UNIVERSIDADES PÚBLICAS FEDERAIS BRASILEIRAS

Autor: Reinaldo Carlos de Oliveira Orientador: Prof. Dr. Ari de Abreu Silva Data da defesa: 17/12/2002

34 TÍTULO: G LOBALIZAÇÃO E PODER : F ÓRUM E CONÔMICO M UNDIAL E A SUPRANACIONALIDADE POLÍTICA

Autor: Alessandro Carvalho Silva Orientador: Prof. Dr. René Armand Dreifuss Data da defesa: 18/12/2002

ANTROPOLÍTICA

Niterói, n. 17, p. 245–271, 2. sem. 2004

268

35 TÍTULO: O

AGUDO ACORDE DO VIOLINO :

GOVERNABILIDADE E ESTABILIDADE NA GESTÃO

F ERNANDO H ENRIQUE C ARDOSO Autor: Eliane Almeida Martins Orientador: Prof. Dr. Gisálio Cerqueira Filho Data da defesa: 18/12/2002

36 TÍTULO: O

PENSAMENTO POLÍTICO DE

EM

A LBERTO T ORRES

O LIVEIRA V IANA

Autor: Anderson da Silva Nogueira Orientador: Prof. Dr. Gisálio Cerqueira Filho Data da defesa: 19/12/2002

37 TÍTULO: R ELIGIÃO

DE ELITE ?: A DOUTRINAÇÃO LIBERAL

POR MEIO DO PROTESTANTISMO MISSIONÁRIO

( OS REFLEXOS 1960)

NAS DÉCADAS DE

1950

E

Autor: Plínio Moreira Alves Orientador: Prof. Dr. Ari de Abreu Silva Data da defesa: 14/1/2003

38 TÍTULO: A

ESCALADA EM BUSCA DO PAU - DE - SEBO DO

OPERÁRIO EM BUSCA DO PRÊMIO BURGUÊS .

A NTONIO E VARISTO

DE

M ORAES

E A

LEGISLAÇÃO TRABALHISTA

Autor: Célia Regina do Nascimento de Paula Orientador: Prof. Dr. Gisálio Cerqueira Filho Data da defesa: 26/2/2003

ANTROPOLÍTICA

Niterói, n. 17, p. 245–271, 2. sem. 2004

269

39 TÍTULO: I DEOLOGIA VERSUS ESTÉTICA : AS CRÍTICAS I B IENAL DE A RTES DE S ÃO P AULO

À

Autor: Ana Paula Conde Gomes Orientador: Profª Drª Maria Celina Soares D’Araújo Data da defesa: 26/6/2003

40 TÍTULO: A INDA

SOMOS PROTECIONISTAS ?

AS

POLÍTICAS

GOVERNAMENTAIS DE PROTEÇÃO E LIBERAÇÃO DO MERCADO NO ÂMBITO DA INDÚSTRIA AUTOMOBILÍSTICA BRASILEIRA

Autor: Jean Pierre Machado Santiago Orientador: Profª Drª Maria Antonieta Parahyba Leopoldi Data da defesa: 27/6/2003

41 TÍTULO: O

GRUPO

POLÍTICA

CÉSAR MAIA: LÍDERES, PARTIDOS E NO RIO DE JANEIRO

Autor: Francisco Moraes da Costa Marques Orientador: Profª Drª Maria Celina D’Araujo Data da defesa: 16/12/2003

42 TÍTULO: É O

POSSÍVEL O CONTROLE SOCIAL CONTROLAR

E STADO ?

Autor: Sônia Nogueira Leitão Orientador: Profª Drª Maria Celina Soares D’Araújo Data da defesa: 10/2/2004

43 TÍTULO: D EMOCRATIZAÇÃO ,

ATIVISMO INTERNACIONAL

E LUTA CONTRA A CORRUPÇÃO .

E STUDO

DE

CASO SOBRE A TRANSPARÊNCIA BRASIL E A TRANSPARENCY INTERNATIONAL

Autor: Aline Bruno Soares Orientador: Profª Drª Maria Antonieta Parahyba Leopoldi Data da defesa: 18/2/2004 ANTROPOLÍTICA

Niterói, n. 17, p. 245–271, 2. sem. 2004

270

44 TÍTULO: C RIME

E POLÍTICA NO

E SPÍRITO S ANTO

Autor: Célia Maria Vilela Tavares Orientador: Profª Drª Maria Celina Soares D’Araújo Data da defesa: 19/2/2004

45 TÍTULO: O

SETOR DE PETRÓLEO E GÁS NATURAL NO

BRASIL APÓS

1990 –

REGULAÇÃO E

DESENVOLVIMENTO

Autor: Marcello de Mello Corrêa Orientador: Profª Drª Maria Antonieta Parahyba Leopoldi Data da defesa: 4/4/2004

46 TÍTULO: T EORIAS

SOCIAIS E PESQUISAS DE OPINIÃO

PESQUISA SOCIAL BRASILEIRA



– 2002

Autor: Dalva da Costa Sartini Orientador: Prof. Dr. Alberto Carlos Almeida Data da defesa: 16/4/2004

47 TÍTULO: G UERRA ,

GUERRILHA E TERRORISMO :

CONTRIBUIÇÃO A UMA DISCUSSÃO CONCEITUAL FACE AOS ATAQUES DE

2001

AOS

11

DE SETEMBRO DE

EUA

Autor: Friederick Brum Vieira Orientador: Prof. Dr. Gisálio Cerqueira Filho Data da defesa: 22/4/2004

48 TÍTULO: P REPARADOS PARA O FRACASSO ? P OLÍCIA E POLÍTICA NO R IO DE JANEIRO (1999 – 2002) Autor: Wilson de Araújo Filho Orientador: Prof. Dr. Ari de Abreu Silva Data da defesa: 23/4/2004

ANTROPOLÍTICA

Niterói, n. 17, p. 245–271, 2. sem. 2004

271

49 TÍTULO: C ONTROLE

SOCIAL NO CONSELHO MUNICIPAL

DE SAÚDE DE

N ITERÓI

Autor: Gláucia Marize Amaral Orientador: Prof. Dr. Ari de Abreu Silva Data da defesa: 30/4/2004

50 TÍTULO: E LEIÇÕES EM TEMPOS DIFÍCEIS : A VITÓRIA DE F ERNANDO H ENRIQUE C ARDOSO EM 1998 E A GESTÃO DA CRISE ECONÔMICA

Autor: Ricardo Basílio Weber Orientador: Profª Drª Maria Antonieta Parahyba Leopoldi Data da defesa: 18/6/2004

ANTROPOLÍTICA

Niterói, n. 17, p. 245–271, 2. sem. 2004

Revista Antropolítica

ARTIGOS PUBLICADOS

REVISTA

NO

1– 2O

SEMESTRE DE

1996

Artigos Brasil: nações imaginadas José Murilo de Carvalho Brasileiros e argentinos em Kibbutz: a diferença continua Sonia Bloomfield Ramagem Mudança social: exorcizando fantasmas Delma Pessanha Neves Ostras e pastas de papel: meio ambiente e a mão invisível do mercado José Drummond

Conferências Algumas considerações sobre o estado atual da antropologia no Brasil Otávio Velho That deadly pyhrronic poison a tradição cética e seu legado para a teoria política moderna Renato Lessa

Resenha Uma antropologia no plural: três experiências contemporâneas. Marisa G. Peirano Laura Graziela F. F. Gomes

REVISTA

NO

2 – 1O

SEMESTRE DE

1997

Artigos Entre a escravidão e o trabalho livre: um estudo comparado de Brasil e Cuba no século XIX Maria Lúcia Lamounier O arco do universo moral Joshua Cohen A posse de Goulart: emergência da esquerda e solução de compromisso Alberto Carlos de Almeida

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In córpore sano: os militares e a introdução da educação física no Brasil Celso Castro Neoliberalismo, racionalidade e subjetividade coletiva José Maurício Domingues Do “retorno do sagrado” às “religiões de resultado”: para uma caracterização das seitas neopentecostais Muniz Gonçalves Ferreira

Resenhas As noites das grandes fogueiras – uma história da coluna Prestes José Augusto Drummond Os sertões: da campanha de Canudos, Euclides da Cunha; o sertão prometido: massacre de Canudos no nordeste brasileiro Terezinha Maria Scher Pereira

REVISTA

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3 – 2O

SEMESTRE DE

1997

Artigos Cultura, educação popular e escola pública Alba Zaluar e Maria Cristina Leal A política estratégica de integração econômica nas Américas Gamaliel Perruci O direito do trabalho e a proteção dos fracos Miguel Pedro Cardoso Elites profissionais: produzindo a escassez no mercado Marli Diniz A “Casa do Islã”: igualitarismo e holismo nas sociedades muçulmanas Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto Quando o amor vira ficção Wilson Poliero

Resenha Nós, cidadãos, aprendendo e ensinando a democracia: a narrativa de uma experiência de pesquisa Angela Maria Fernandes Moreira-Leite ANTROPOLÍTICA

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4 – 1O

SEMESTRE DE

1998

Artigos Comunicação de massa, cultura e poder José Carlos Rodrigues A sociologia diante da globalização: possibilidades e perspectivas da sociologia da empresa Ana Maria Kirschner Tempo e conflito: um esboço das relações entre as cronosofias de Maquiavel e Aristóteles Raul Francisco Magalhães O embate das interpretações: o conflito de 1858 e a lei de terras Márcia Maria Menendes Motta Os terapeutas alternativos nos anos 90: uma nova profissão? Fátima Regina Gomes Tavares

Resenha Auto-subversão Gisálio Cerqueira Filho

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5 – 2O

SEMESTRE DE

1998

Artigos Jornalistas: de românticos a profissionais Alzira Alves de Abreu Mudanças recentes no campo religioso brasileiro Cecília Loreto Mariz e Maria das Dores Campos Machado Pesquisa antropológica e comunicação intercultural: novas discussões sobre antigos problemas. José Sávio Leopoldi Três pressupostos da facticidade dos problemas públicos ambientais Marcelo Pereira de Mello Duas visões acerca da obediência política: racionalidade e conservadorismo Maria Celina D’Araújo ANTROPOLÍTICA

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SEMESTRE DE

1999

Artigos Palimpsestos estéticos y espacios urbanos: de la razón práctica a la razón sensible Jairo Montoya Gómez Trajetórias e vulnerabilidade masculina Ceres Víctora e Daniela Riva Knauth O sujeito da “psiquiatria biológica” e a concepção moderna de pessoa Jane Araújo Russo, Marta F. Henning Os guardiães da história: a utilização da história na construção de uma identidade batista brasileira Fernando Costa A escritura das relações sociais: o valor cultural dos “documentos” para os trabalhadores Simoni Lahud Guedes A Interdisciplinaridade e suas (im)pertinências Marcos Marques de Oliveira

REVISTA

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7 – 2O

SEMESTRE DE

1999

Artigos Le geste pragmatique de la sociologie française. Autour des travaux de Luc Boltanski et Laurent Thévenot Marc Breviglieri e Joan Stavo-Debauge Economia e política na historiografia brasileira Sonia Regina de Mendonça Os paradoxos das políticas de sustentabilidade Luciana F. Florit Risco tecnológico e tradição: notas para uma antropologia do sofrimento Glaucia Oliveira da Silva Trabalho agrícola: gênero e saúde Delma Pessanha Neves

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SEMESTRE DE

2000

Artigos Prolegômenos sobre a violência, a polícia e o Estado na era da globalização Daniel dos Santos Gabriel Tarde: Le monde comme feerie Isaac Joseph Estratégias coletivas e lógicas de construção das organizações de agricultores no Nordeste Eric Sabourin Cartórios: onde a tradição tem registro público Ana Paula Mendes de Miranda Do pequi à soja: expansão da agricultura e incorporação do Brasil central Antônio José Escobar Brussi

Resenha Terra sob água – sociedade e natureza nas várzeas amazônicas José Augusto Drummond

REVISTA

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9 – 2O

SEMESTRE DE

2000

Artigos Desenvolvimento económico, cultural e complexidade Adelino Torres The field training project: a pioneer experiment in field work methods: Everett C. Hughes, Buford H. Junker and Raymond Gold’s re-invention of Chicago field studies in the 1950’s Daniel Cefaï Cristianismos amazônicos e liberdade religiosa: uma abordagem histórico-antropológica Raymundo Heraldo Maués Poder de policía, costumbres locales y derechos humanos en Buenos Aires de los 90 Sofía Tiscornia ANTROPOLÍTICA

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A visão da mulher no imaginário pentecostal Marion Aubrée

Resenha Reflexões antropológicas em tópicos filosóficos Eliane Cantarino O’Dwyer

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10/11 – 1O/2O

SEMESTRES DE

2001

Artigos Profissionalismo e mediação da ação policial Dominique Monjardet The plaintiff – a sense of injustice Laura Nader Religião e política: evangélicos na disputa eleitoral do Rio de Janeiro Maria das Dores Campos Machado Um modelo para morrer: última etapa na construção social contemporânea da pessoa? Rachel Aisengart Menezes Torcidas jovens: entre a festa e a briga Rosana da Câmara Teixeira O debate sobre desenvolvimento entre o Brasil e os EUA na década de cinqüenta W. Michael Weis El individuo fragmentado y su experiencia del tiempo Carlos Rafael Rea Rodríguez Igreja do Rosário: espaço de negros no Rio Colonial Luitgarde Oliveira Cavalcanti Barros In nomine pater: a ciência política e o teatro intimista de A. Strindberg Gisálio Cerqueira Filho Terra: dádiva divina e herança dos ancestrais Osvaldo Martins de Oliveira

Resenha Estado e reestruturação produtiva Maria Alice Nunes Costa ANTROPOLÍTICA

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12/13 – 1O/2O

SEMESTRES DE

2002

Artigos Transição democrática e forças armadas na América Latina Maria Celina D’Araújo Mercado, coesão social e cidadania Flávio Saliba Cunha Cultura local y la globalización del beber. De las taberneras en Juchitan, Oaxaca (México) Sergio Lerin Piñón Romaria e missão: movimentos sociorreligiosos no sul do Pará Maria Antonieta da Costa Vieira “O estrangeiro” em “campo”: atritos e deslocamentos no trabalho antropológico Patrice Schuch A transmissão patrimonial em favelas Alexandre de Vasconcelos Weber A sociabilidade dos trabalhadores da fruticultura irrigada do platô de Neópolis/ SE Dalva Maria da Mota A beleza traída: percepção da usina nuclear pela população de Angra dos Reis Rosane M. Prado Povos indígenas e ambientalismo – as demandas ecológicas de índios do rio Solimões Deborah de Magalhães Lima Raízes antropológicas da filosofia de Montesquieu José Sávio Leopoldi

Resenhas A invenção de uma qualidade ou os índios que se inventa(ra)m Mercia Rejane Rangel Batista China’s peasants: the anthropology of a revolution João Roberto Correia e José Gabriel Silveira Corrêa

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SEMESTRE DE

2003

Dossiê Esporte e modernidade Apresentação: Simoni Lahud Guedes Em torno da dialética entre igualdade e hierarquia: notas sobre as imagens e representações dos Jogos Olímpicos e do futebol no Brasil Roberto DaMatta Transforming Argentina: sport, modernity and national building in the periphery Eduardo P. Archetti Futebol e mídia: a retórica televisiva e suas implicações na identidade nacional, de gênero e religiosa Carmem Sílvia Moraes Rial

Artigos As concertações sociais na Europa dos anos 90: possibilidades e limites Jorge Ruben Biton Tapia A (re)construção de identidade e tradições: o rural como tema e cenário José Marcos Froehlich A pílula azul: uma análise de representações sobre masculinidade em face do viagra Rogério Lopes Azize e Emanuelle Silva Araújo

Homenagem René Armand Dreifuss por Eurico de Lima Figueiredo

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SEMESTRE DE

2003

Dossiê Maneiras de beber: proscrições sociais Apresentação: Delma Pessanha Neves Entre práticas simbólicas e recursos terapêuticos: as problemáticas de um itinerário de pesquisa Sylvie Fainzang Alcoólicos anônimos: conversão e abstinência terapêutica Angela Maria Garcia “Embriagados no Espírito Santo”: reflexões sobre a experiência pentecostal e o alcoolismo Cecília L. Mariz

Artigos Visões de mundo e projetos de trabalhadores qualificados de nível médio em seu diálogo com a modernidade tardia Suzana Burnier O povo, a cidade e sua festa: a invenção da festa junina no espaço urbano Elizabeth Christina de Andrade Lima Antropologia e clínica – o tratamento da diferença Jaqueline Teresinha Ferreira Mares e marés: o masculino e o feminino no cultivo do mar Maria Ignez S. Paulilo

Resenhas Antropologia e comunicação: princípios radicais José Sávio Leopoldi Politizar as novas tecnologias: o impacto sócio-técnico da informação digital e genética Fátima Portilho Criminologia e subjetividade no Brasil Wilson Couto Borges

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2004

Homenagem Luiz de Castro Faria: o professor emérito por Felipe Berocan da Veiga

Dossiê Políticas públicas, direito(s) e justiça(s) – perspectivas comparativas Apresentação: Roberto Kant de Lima Drogas, globalização e direitos humanos Daniel dos Santos Detenciones policiales y muertes administrativas Sofía Tiscornia Os ilegalismos privilegiados Fernando Acosta

Artigos Estado e empresários na América Latina (1980-2000) Álvaro Bianchi O desamparo do indivíduo moderno na sociologia de Max Weber Luis Carlos Fridman A construção social dos assalariados na citricultura paulista Marie Anne Najm Chalita As arenas iluminadas de Maringá: reflexões sobre a constituição de uma cidade média Simone Pereira da Costa

Resenhas Ética e responsabilidade social nos negócios Priscila Ermínia Riscado Novas experiências de gestão pública e cidadania Daniela da Silva Lima Uma ciência da diferença: sexo e gênero Fernando Cesar Coelho da Costa ANTROPOLÍTICA

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COLEÇÃO ANTROPOLOGIA E CIÊNCIA POLÍTICA 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12. 13. 14. 15. 16.

Os fornecedores de cana e o Estado intervencionista Delma Pessanha Neves Devastação e preservação ambiental no Rio de Janeiro José Augusto Drummond A predação do social Ari de Abreu Silva Assentamento rural: reforma agrária em migalhas Delma Pessanha Neves A antropologia da academia: quando os índios somos nós Roberto Kant de Lima Jogo de corpo: um estudo de construção social de trabalhadores Simoni Lahud Guedes A qualidade de vida no Estado do Rio de Janeiro Alberto Carlos Almeida Pescadores de Itaipu (Série Pesca no estado do Rio de Janeiro) Roberto Kant de Lima Sendas da transição Sylvia França Schiavo O pastor peregrino Arno Vogel Presidencialismo, parlamentarismo e crise política no Brasil Alberto Carlos Almeida Um abraço para todos os amigos: algumas considerações sobre o tráfico de drogas no Rio de Janeiro Antônio Carlos Rafael Barbosa Escritos exumados – 1: espaços circunscritos – tempos soltos L. de Castro Faria Violência e racismo no Rio de Janeiro Jorge da Silva Novela e sociedade no Brasil Laura Graziela Figueiredo Fernandes Gomes O Brasil no campo de futebol: estudos antropológicos sobre os significados do futebol brasileiro Simoni Lahud Guedes

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17. Modernidade e tradição: construção da identidade social dos pescadores de Arraial do Cabo (RJ) (Série Pesca no estado do Rio de Janeiro) Rosyan Campos de Caldas Britto 18. As redes do suor – a reprodução social dos trabalhadores da pesca em Jurujuba (Série Pesca no estado do Rio de Janeiro) Luiz Fernando Dias Duarte 19. Escritos exumados – 2: dimensões do conhecimento antropológico L. de Castro Faria 20. Seringueiros da Amazônia: dramas sociais e o olhar antropológico (Série Amazônia) Eliane Cantarino O’Dwyer 21. Práticas acadêmicas e o ensino universitário Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto 22. “Dom”, “Iluminados” e “Figurões”: um estudo sobre a representação da oratória no Tribunal do Júri do Rio de Janeiro Alessandra de Andrade Rinaldi 23. Angra I e a melancolia de uma era Gláucia Oliveira da Silva 24. Mudança ideológica para a qualidade Miguel Pedro Alves Cardoso 25. Trabalho e residência: estudo das ocupações de empregada doméstica e empregado de edifício a partir de migrantes “nordestinos” Fernando Cordeiro Barbosa 26. Um percurso da pintura: a produção de identidades de artista Lígia Dabul 27. A sociologia de Talcott Parsons José Maurício Domingues 28. Da anchova ao salário mínimo: uma etnografia sobre injunções de mudança social em Arraial do Cabo/RJ (Série Pesca no estado do Rio de Janeiro) Simone Moutinho Prado 29. Centrais sindicais e sindicatos no Brasil dos anos 90: o caso Niterói Fernando Costa

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30. Antropologia e direitos humanos (Série Direitos Humanos) Regina Reyes Novaes e Roberto Kant de Lima 31. Os companheiros – trabalho e sociabilidade na pesca de Itaipu/ RJ (Série Pesca no estado do Rio de Janeiro) Elina Gonçalves da Fonte Pessanha 32. Festa do Rosário: iconografia e poética de um rito Patrícia de Araújo Brandão Couto 33. Antropologia e direitos humanos 2 (Série Direitos Humanos) Roberto Kant de Lima 34. Em tempo de conciliação Angela Moreira-Leite 35. Floresta de símbolos – aspectos do ritual Ndembu Victor Turner 36. Produção da verdade nas práticas judiciárias criminais brasileiras: uma perspectiva antropológica de um processo criminal Luiz Figueira 37. Ser polícia, ser militar: o curso de formação na socialização do policial militar Fernanda Valli Nummer 38. Antropologia e direitos humanos 3 Roberto Kant de Lima

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NORMAS

DE APRESENTAÇÃO DE TRABALHOS

1. A Revista Antropolítica, do Programa de Pós-Graduação em Antropologia e Ciência Política da UFF, aceita originais de artigos e resenhas de interesse das Ciências Sociais e de Antropologia e Ciência Política em particular. 2. Os textos serão submetidos aos membros do Conselho Editorial e/ou a pareceristas externos, que poderão sugerir ao autor modificações de estutura ou conteúdo. 3. Os textos não deverão exceder 25 páginas, no caso dos artigos, e oito páginas, no caso das resenhas. Eles devem ser apresentados em uma cópia impressa em papel A4 (210 x 297mm), espaço duplo, em uma só face do papel, bem como em disquete no programa Word for Windows 6.0, em fontes Times New Roman (corpo 12), sem qualquer tipo de formatação, a não ser: • indicação de caracteres (negrito e itálico); • uso de itálico para termos estrangeiros e títulos de livros e periódicos. 4. As citações bibliográficas serão indicadas no corpo do texto, entre parênteses, com as seguintes informações: sobrenome do autor em caixa alta; vírgula; data da publicação; vírgula; abreviatura de página (p.) e o número desta. (Ex.: PEREIRA, 1996, p. 12-26). 5. As notas explicativas, restritas ao mínimo indispensável, deverão ser apresentadas no final do texto. 6. As referências bibliográficas deverão ser apresentadas no final do texto, obedecendo às normas da ABNT (NBR-6023). Livro: MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos e outros textos escolhidos. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978. 208 p. (Os pensadores, 6).

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LÜDIKE, Menga, ANDRÉ, Marli E. D. A. Pesquisa em educação: abordagens qualitativas. São Paulo: EPU, 1986. FRANÇA, Junia Lessa et al. Manual para normalização de publicações técnico-científicas. 3. ed. rev. e aum. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 1996. 191 p. Artigo: ARRUDA, Mauro. Brasil : é essencial reverter o atraso. Panorama da Tecnologia, Rio de Janeiro, v. 3, n. 8, p. 4-9, 1989. Trabalhos apresentados em eventos: AGUIAR, C. S. A. L. et al. Curso de técnica da pesquisa bibliográfica: programa-padrão para a Universidade de São Paulo. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE BIBLIOTECONOMIA E DOCUMENTAÇÃO, 9. 1977, Porto Alegre. Anais... Porto Alegre: Associação Rio-Grandense de Bibliotecários, 1977. p. 367-385. 7. As ilustrações deverão ter a qualidade necessária para uma boa reprodução gráfica. Elas deverão ser identificadas com título ou legenda e designadas, no texto, como figura (Figura 1, Figura 2 etc.). 8. Os textos deverão ser acompanhados de título e resumo (máximo de 250 palavras), bem como de três a cinco palavraschave. Título, resumo e palavras-chave também devem ser apresentados em inglês. 9. Os textos deverão ser precedidos de identificação do autor (nome, instituição de vínculo, cargo, título, últimas publicações etc.), que não ultrapasse cinco linhas e endereços para contato (endereço eletrônico e telefones). 10. Os colaboradores terão direito a cinco exemplares da revista. 11. Os originais não aprovados não serão devolvidos. 12. Os artigos, as resenhas e a correspondência editorial deverão ser enviados para: Comitê Editorial da Antropolítica Programa de Pós-Graduação em Antropologia e Ciência Política Campus do Gragoatá, Bloco “O” 24210-350 – Niterói, RJ Tels.: (21) 2629-2862 e (21) 2629-2863 ANTROPOLÍTICA

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Deposite o valor da(s) obra(s) em nome da Universidade Federal Fluminense/ Editora (Banco do Brasil S.A., agência 4201-3, conta 170500-8), depósito identificado nº 15305615227047-5. Envie-nos o comprovante de depósito, através de carta ou fax, juntamente com este cupom, e receba, sem qualquer despesa adicional, a encomenda em sua residência ou local de trabalho.

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