Depois, O Golpe: As eleições de 1962 no Clube Militar

September 17, 2017 | Autor: Rachel Cardoso | Categoria: Military History, Brazilian History, Military, Military Club, Brazilian Dictatorship, Clube Militar
Share Embed


Descrição do Produto

Anpuh Rio de Janeiro Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro – APERJ Praia de Botafogo, 480 – 2º andar - Rio de Janeiro – RJ CEP 22250-040 Tel.: (21) 9317-5380

DEPOIS, O GOLPE: AS ELEIÇÕES DE 1962 NO CLUBE MILITAR Rachel Motta Cardoso Mestranda do Programa de Pós-graduação em História Social (PPGHIS) da UFRJ Este trabalho tem como objeto de estudo as eleições realizadas no Clube Militar (CM) no ano de 1962 e, além disso, voltado para o período da Crise da Legalidade em sentido amplo, ou seja, aquele localizado no intervalo 1961-1964. Nele, destacamos a ação de um grupo que constitui uma das correntes candidatas à diretoria do CM em 1962: “nacionalistas legalistas”. Para tratarmos isto, consideramos bastante significativo o estudo das eleições do Clube Militar em 1962, quando o grupo antinacionalista, representado pela “Cruzada Democrática”, sai vitorioso. Este acontecimento é entendido aqui como fundamental para a criação das condições políticas que favoreceram o golpe em 1964. Além disso, as origens deste movimento nacionalista em fins dos anos 1940 e a disputa nas eleições do Clube Militar também não devem ser esquecidas, de forma a deixar claro o processo de disputas entre as alas nacionalista e antinacionalista — também chamada de “entreguista” ou “golpista”, como sugerem Rouquiéi e Nelson Werneck Sodréii. Enfim, nas condições em que se travava a disputa entre as correntes militares nacionalistas e liberais pela orientação do desenvolvimento econômico, a eleição de 1962 antecipou o desfecho de 1964, servindo de prévia da constituição de uma aliança golpista vitoriosa, formada, essencialmente, em torno de temas como a associação com o capital estrangeiro e o anticomunismo. O que podemos verificar é que não podemos estudar os militares nacionalistas que estiveram presentes durante a Crise da Legalidade sem entender o processo anterior, que vinha desde os anos 1950. Daí, termos como um dos objetivos da pesquisa, entender até que ponto estas mudanças são significativas para a derrota do grupo nacionalista legalista nas eleições do Clube Militar em 1962 e para a articulação dos golpistas para o golpe de 1964, dividindo esta aliança entre nacionalistas e legalistas originária nos anos 1950 para as eleições à presidência com a candidatura de JK. O outro objetivo é aprofundar o conhecimento de como as eleições do Clube Militar de 1962 expressaram a forma como se dá a disputa de poder pelos partidos militares. Para entendermos melhor o que temos em questão, se torna necessário um maior esclarecimento a respeito do CM:

‘Usos do Passado’ — XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006:

“Associação civil, com sede e foro na cidade do Rio de Janeiro, fundada em 26 de junho de 1887. Tem como principais objetivos ‘estreitar os laços de união e solidariedade entre os oficiais das forças armadas’, ‘depois os interesses dos sócios e pugnar por medidas acauteladoras dos seus direitos’ e ‘incentivar as manifestações cívicas e patrióticas e interessar-se pelas iii questões que firam ou possam ferir a honra nacional e militar’.” (p.1383) .

Como abordaremos a atuação de grupos que têm o nacionalismo como ideologia que os divide em grupos distintos, achamos profícuo tratarmos do período em que o tema começa a ser debatido. Logo, um histórico do Clube Militar se limitará a este período relacionado com o surgimento das correntes ligadas ou não ao nacionalismo. Quando o debate em torno da questão do petróleo se inicia, o Clube Militar começa a dar sinais da sua importância no cenário político nacional e como local de debate de correntes políticas distintas oriundas tanto do meio militar quanto do civil. O Clube é visto como um “elemento privilegiado de ligação entre a sociedade política e a instituição militar, porquanto refletiu a opinião das diferentes correntes militares sobre os problemas da atualidade política e da instituição militar. As eleições para a diretoria do Clube, por sua vez, permitiriam iv conhecer o estado dessa opinião e medir a influência dessas correntes.”

As eleições para o Clube Militar começam a apresentar as divisões presentes no corpo das Forças Armadas (FFAA) e as disputas no meio civil. Para Peixoto, “O Clube Militar viveu todas as vicissitudes da vida política brasileira daquela época. Sua história é igualmente a história do debate político que se desenrolou no Brasil e também dos v acordos concluídos entre as correntes militares e os grupos civis.”

A temática do nacionalismo é sempre conectada a do processo de construção e consolidação do Estado. O que devemos deixar claro é que não podemos dissociar a tendência militar nacionalista do posicionamento e discussão dos grupos civis a respeito do mesmo tema. Daí a importância do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) para os civis na construção de uma ideologia nacionalista. É neste instituto que encontramos os grandes defensores do nacionalismo e, de acordo com Peixoto, um “aparelho ideológico dos grupos nacionalistas civis e militares” vi. Ainda quanto ao caráter das divisões no seio das Forças Armadas, especialmente no exército, temos uma questão importante presente. O debate em torno do desenvolvimento econômico a ser adotado na época, ou seja, uma industrialização com caráter intervencionista estatal ou uma outra baseada na participação do capital estrangeiro para a exploração dos recursos naturais existentes no país. As cisões estariam ligadas a este tipo de posicionamento. Desta forma, esclarece Peixoto: “Desenvolvimento econômico, organização política e política internacional, tais eram os grandes temas de debate no seio da instituição militar. Foi em torno desses assuntos que se criaram cismas político-ideológicos e se organizaram as correntes militares que agiam no interior das Forças Armadas e disputavam o controle do Clube Militar” vii.

2

‘Usos do Passado’ — XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006:

3

Além disso, não podemos esquecer que: “O Estado Novo transformara o Exército em uma instituição que participava ativamente do processo da tomada de decisão. Mas a estrutura autoritária do regime, apesar de ter politizado o Exército, impedia o desenvolvimento do debate político. E foi preciso aguardar 1945, a queda de Vargas e a redemocratização, para que as correntes militares, que se tinham criado nos últimos viii anos da ditadura de Vargas, pudessem se manifestar mais livremente” .

A noção de partido militar também é necessária para a discussão neste trabalho: “...compreendido como uma corrente estruturada e que conduz uma ação sistemática em busca de um certo número de objetivos” ix Os partidos militares, como propõe Alain Rouquié, começam a defender suas perspectivas. É de acordo com esta lógica que temos as disputas para a direção do Clube Militar e a formação, em março de 1952, da Cruzada Democrática, com o objetivo de concorrer às eleições para a presidência do Clube Militar, que seriam realizadas em maio do mesmo ano. Era formada por membros da ala conservadora das Forças Armadas. Foi ela quem dirigiu o Clube Militar de 1952 até 1956, retomando o poder em 1962x, data que marca o nosso estudo. É a necessidade de debate político e de uma manifestação mais livre que impôs ao Clube Militar um novo papel, transformando-o em “centro ativo de formulação e de discussão de opções políticas” xi. As conferências pronunciadas no Clube Militar entre 1947 e 1948, a respeito do petróleo, são bem ilustrativas quanto à questão dos partidos militares. O general Júlio Caetano Horta Barbosa defende o monopólio estatal do petróleo; enquanto o general Juarez Távora defende uma participação da iniciativa privada, incluindo capital estrangeiro, na indústria do ramo petrolífero. A partir de então teríamos duas correntes distintas dentro das Forças Armadas e que passariam a disputar a direção do Clube Militar: a ala nacionalista e o grupo chamado, pelos primeiros, de entreguista ou antinacionalista, que deu origem à Cruzada Democrática (1952). Em 1950, a ala nacionalista, que era liderada pelos generais Newton Estillac Leal e Horta Barbosa, vence as eleições do Clube Militar. A ala “entreguista” se organiza e funda a Cruzada Democrática que, em seu manifesto, acusa os oficiais nacionalistas de serem colaboradores, de forma consciente ou não, da infiltração comunista nas Forças Armadas

xii

.

Peixoto também coloca a questão da infiltração do comunismo que a Cruzada havia denunciado em seu manifestoxiii. Com a vitória da Cruzada, o Clube Militar abandonou o seu comprometimento com a tese do monopólio estatal do petróleo xiv. Em 1955, a Cruzada Democrática, aliada à União Democrática Nacional (UDN), e mais outras forças que participaram da derrubada de Vargas no ano anterior, se opõem às candidaturas de Juscelino Kubitschek (JK) e João Goulart (Jango) às eleições presidenciais que seriam realizadas em outubro do mesmo ano. O primeiro era acusado de corrupção, e o segundo, de manter estreitas ligações com os

‘Usos do Passado’ — XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006:

sindicatos. Com a vitória destes candidatos os adversários começam a defender a idéia de impedir a posse de JK e Jango, ainda que por meios extra legaisxv . Mas “eclodiu movimento militar liderado pelo general Herique Lott com o objetivo de deter uma conspiração em preparo no próprio governo então chefiado pelo presidente interino Carlos Luz, devido ao impedimento de Café Filho por motivo de saúde, e de garantir a posse de Juscelino e Goulart” xvi De acordo com Sérgio Lamarão, o êxito deste movimento dos militares nacionalistas legalistas teria provocado um esvaziamento do poder obtido pela Cruzada Democrática na área militar. Nas eleições de 1956, a ala nacionalista, liderada pelo general João de Segadas Viana e com o apoio de Lott, venceu as eleições para a direção do Clube Militar. A Cruzada só retornaria em 1962 com o general Augusto da Cunha Magessi Pereira. O período chamado de Crise da Legalidade é marcado pela renúncia do então presidente Jânio Quadros em 1961. Os três ministros militares vetam a posse do vice-presidente, João Goulart. Os militares da ala nacionalista legalista que integram a Campanha da Legalidade — liderada por Leonel Brizola, então governador do Rio Grande do Sul — defendem os termos da Constituição e apóiam a posse de João Goulart. O marechal Teixeira Lott escreve um manifesto em 26 de agosto, em que critica a posição do marechal Odylio Denys, o Ministro da Guerra, ao tentar impedir a posse de Goulart. Além disso, em seu manifesto Lott solicita a ajuda dos intelectuais, dos estudantes, dos operários, do povo em geral e de seus “camaradas das Forças Armadas que saberão portar-se à altura das tradições legalistas que marcam a sua história no destino da Pátria” xvii. No clima de enfrentamentos políticos, que vinha desde a renúncia de Jânio em 1961, teríamos as eleições de 1962 para a presidência do Clube Militar. Os nacionalistas são representados pelo general Peri Bevilaqua. A respeito de Bevilaqua, da chapa União, e a importância política das eleições de 1962: “[Peri Bevilaqua] Disputou em maio de 1962, como representante da corrente nacionalista, a eleição para a presidência do Clube Militar. O pleito traduziu o quadro de intensa polarização política então vivido no seio das forças armadas desde a crise provocada pela xviii renúncia do presidente Jânio Quadros” (p.656) .

Do outro lado da disputa teríamos a chapa daqueles que queriam uma abertura maior para o capital estrangeiro. Quem representava esta chapa era o general Augusto da Cunha Magessi. As eleições terminaram com vitória da Cruzada Democrática (CD), que obteve 4.884 votos contra os 4.312 votos recebidos pela chapa nacionalistaxix. A vitória da CD significa um êxito também dos setores militares e civis que conspiravam contra o presidente João Goulartxx. Enfim, não devemos esquecer que “as eleições do Clube eram um instrumento que permitia avaliar a opinião militar” xxi.

4

‘Usos do Passado’ — XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006:

5

Para Peixoto, a corrente nacionalista militar teria sido formada durante o Estado Novoxxii, conforme sugere também Carvalho quando situa este período como o de formação das Forças Armadas enquanto atores políticos. Esta relação entre a formação desta corrente e o Estado Novo também deve ser entendida de acordo com uma lógica de uma “estreita correlação entre desenvolvimento industrial e potência militar” xxiii. Ainda assim, é importante lembrar que “o nacionalismo jamais chegou a produzir uma doutrina elaborada, dentro ou fora das Forças Armadas.” xxiv. Enquanto ideologia, o nacionalismo era direcionado aos civis e tinha como finalidade a mobilização das camadas populares xxv. Como definiríamos ou caracterizaríamos o nacionalismo militar? O texto de Peixoto, nos parece apropriado. Diz ele: “O nacionalismo enquanto ideologia de um desenvolvimento de tipo nacional, não privilegiava qualquer das formas de exercício de poder político: era partidário de soluções que estimulassem a industrialização e evitassem a penetração do capital estrangeiro, mas o nacionalismo, sobretudo no interior das Forças Armadas, caracterizava-se por um forte conteúdo antiliberal, cujas origens devem ser buscadas principalmente na oposição aos grupos agroexportadores, mais do que na oposição aos fundamentos do liberalismo enquanto doutrina xxvi política” .

Um outro aspecto importante que devemos tratar neste ponto do trabalho é a existência de um grupo nacionalista legalista, conforme visto no item Apresentação deste projeto. Mas o que são esses militares legalistas? Para Peixoto, há uma mudança quanto ao posicionamento dos militares nacionalistas durante as eleições de JK para presidente. Se até aquele momento, os nacionalistas eram conhecidos por um posicionamento mais radical, “... os oficiais nacionalistas, em seus esforços para sustentar Kubitschek e derrotar Juarez [Távora], tiveram que reorientar sua ação: de nacionalista passaram a constitucionalistas, legalistas. A corrente nacionalista, durante todo o período de governo Kubitschek, se apresentará como defensora da Constituição; seu nacionalismo ficará mais prudente e mais moderado” xxvii

É importante percebermos que há uma diferença entre estes militares nacionalistas legalistas que apóiam Lott no manifesto para a posse de JK e os da Crise da Legalidade.

A

aliança

entre

nacionalistas e legalistas teria se dado neste momento, ou seja, no período de crise que antecedeu a posse de Juscelino Kubitschek. Antonio Carlos Peixoto alerta para o fato de que esta “era uma aliança bastante determinada por circunstâncias históricas bem definidas”

xxviii

. Peixoto acredita que os

nacionalistas legalistas foram divididos em função das constantes alterações hierárquicas feitas por Goulart: “...ser legalista no tempo de Goulart significava, até certo ponto, defender o nacionalismo radical. Quando o governo Goulart começa a exigir uma revisão dos quadros constitucionais e a exercer seu poder fazendo aprovar as ‘reformas de base’, a defesa da legalidade constitucional é

‘Usos do Passado’ — XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006:

transferida para as mãos dos antigos ‘golpistas’, que traduzem o sentimento majoritário das xxix Forças Armadas”

Isto teria provocado o isolamento da corrente nacionalista e seu afastamento das Forças Armadas após o golpe de 1964. O uso dos termos “nacionalistas” e “antinacionalistas” está pautado na divisão também proposta por José Murilo de Carvalho. De acordo com o autor, no período de 1945 e 1964, “As Forças Armadas dividiram-se em pelo menos dois grupos”

xxx

. Estes grupos estariam divididos em torno do

nacionalismo e do comunismo. Como proposta de estudos, Carvalho divide estes dois eixos de conflito em quatro grupos: a) Nacionalista direitista ou nacionalista anticomunista: apóiam o nacionalismo, mas tem opinião desfavorável ao comunismo; b) Nacionalista de esquerda: quanto ao nacionalismo se identifica com o primeiro grupo, mas, por não aderir ao anticomunismo, se afasta dos nacionalistas direitistas; c) Cosmopolita de direita ou anticomunista: profundamente anticomunista e nãonacionalista; d) Cosmopolitas liberais: apenas uma possibilidade teórica, este grupo não se concretizou. Ainda segundo José Murilo, uma aliança entre os nacionalistas anticomunistas e os cosmopolitas anticomunistas teria se dado no segundo governo de Vargas. Eles teriam se aliado contra o grupo nacionalista de esquerda, sendo o conflito representado pelos partidos militares nas disputas pelas eleições do Clube Militar na década de 1950xxxi. A disputa entre estes grupos teria durado até o golpe de 1964, passando pela vitória da ala anticomunista nas eleições do CM em 1962 e chegando à deposição do presidente Goulart. Daí a importância da noção de partidos militares para o presente estudo e a discussão em torno do nacionalismo. No que diz respeito à proposta metodológica desta pesquisa, devemos deixar claro qual a perspectiva de trabalho em que nos enquadramos de acordo com as linhas de pesquisa existentes sobre as relações entre os militares e a política, ou seja, uma escolha entre as linhas de estudo instrumental ou institucional-organizacional. Para nos posicionarmos, escolhemos um trecho de Peixoto, que demonstra nossa opção de trabalho: “[As Forças Armadas], como instituição que faz parte de um conjunto mais vasto – o aparelho de Estado – , não se acham desvinculadas da sociedade global. E de modo algum se pode considerar a organização militar como refratária aos processos e aos mecanismos que atuam xxxii no conjunto da vida social e política” .

Quanto à metodologia a ser utilizada, concordamos com a proposta de Peixoto. Entendemos que é na interação das Forças Armadas com os agentes sociais que encontramos os “fundamentos do

6

‘Usos do Passado’ — XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006:

comportamento militar e os pontos-chave que possibilitam a sua compreensão”

7

xxxiii

. Mas como se dá

esta interação? Podemos localizá-la de acordo com cada tipo de concepção quanto ao estudo das relações entre militares e civis. Na concepção instrumental, a interação “é assegurada a partir do momento em que os grupos sociais se dirigem às Forças Armadas, determinam e fixam os limites da ação militar.” xxxiv Na abordagem institucional-organizacional, “a interação assume a forma de estratégias que se opõem, ou convergem, em um mesmo plano de ação” xxxv. O autor destaca um problema nesta forma de entendimento. Essas estratégias não aparecem como “o resultado do conjunto de relações entre os agentes em confronto. Pelo contrário, a estratégia aparece como função apenas das percepções e decisões institucionais e não se deixa influenciar por outras variáveis que não são as específicas da organização.” xxxvi. É de acordo com esta lógica de interação que trabalharemos. Esta interação está presente em todo o processo de elaboração de estratégias pelas correntes militares. Cabe ainda ressaltar que nossa proposta é entender a interação e o jogo político. Quando temos estes dois pontos, entendemos de que forma as correntes estabelecem estratégias e podem modificá-las ao longo dos acontecimentos, estando a corrente ideológica em disputa (1945-1964) ou em hegemonia (1964) xxxvii. Segundo Peixoto: “Essa noção também permite que o jogo político das Forças Armadas seja percebido como resultado de convergências estabelecidas entre as elites militares e as frações das elites civis. O output político das Forças Armadas não é mais reduzido a pressões puramente institucionais ou sociais. Ele será o resultado de convergências decorrentes de um certo tipo de percepções análogas e da fixação de um certo número de objetivos também semelhantes, referentes ao processo do desenvolvimento global. É em função dessas convergências que os agentes militares e civis organizam seus sistemas de alianças, que podem variar segundo as mudanças criadas pela dinâmica da vida social e afetam as percepções e objetivos.” xxxviii. O fenômeno da interação intervém em todos os níveis: 

Formação das características institucionais;



Determinação das opções estratégicas;



Origem e evolução das tensões e dos conflitos militares.

O conjunto destes três fatores dá origem a uma matriz do comportamento militar, pois incorpora fatores macrossociais e a atuação dos agentes civis xxxix. A respeito do conceito chave deste trabalho, Rouquié esclarece da melhor forma o uso do termo partidos militares:

‘Usos do Passado’ — XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006:

“Essa metáfora não tem outro objetivo, em um primeiro momento, senão o de assinalar firmemente a perspectiva escolhida: as Forças Armadas podem ser forças políticas que desempenham, por outros meios as mesmas funções elementares que os partidos, e sobretudo que conhecem em seu seio – tanto quanto os partidos, mas segundo outra lógica – processos de xl deliberação, de tomadas de decisão, e até mesmo de união e articulação sociais” .

Consideramos pertinente a noção de partidos militares para o presente estudo. Em Partidos Militares no Brasil, Alain Rouquié trabalha com este conceito para entender o caráter intervencionista das Forças Armadas na América Latina, mas especialmente o quadro do Brasil: “De maneira bastante flexível, o conceito de partido militar enfatiza as situações em que exército e política se relacionam e as instâncias institucionais de inserção da política no aparelho militar (e vice-versa). Concretamente: os partidos militares podem ser verdadeiros partidos fundados por militares para agirem na sociedade civil ou a cristalização de tendências que lutam pelo poder no âmbito da instituição militar e em estruturas políticas próprias do exército, e inclusive na organização militar como um todo, quando certos chefes se esforçam por transformáxli la em organização política unificada.” .

De acordo com o autor, o partido militar teria surgido a partir da Revolução de 30, com a criação do Clube 3 de Outubro por tenentes e jovens oficiais exaltados. Isto seria um embrião de partido revolucionárioxlii. Neste momento, o texto de José Murilo de Carvalho nos parece útil para entendermos este processo de criação de partidos militares e suas disputas. Como sugere Carvalho, no intervalo correspondente a 30-45 se dá um processo de construção de atores políticos. Sendo que de 1930 até o Estado Novo, teríamos a constituição de Vargas e os militares enquanto atores políticos. Com o fim deste regime e a queda de Vargas, teríamos um processo de democratização, tendo o intervalo 1945-1964 apresentado a multiplicação de atores na arena política. Segundo Carvalho, “No caso das Forças Armadas, a democratização significou, inclusive, o surgimento do que poderíamos chamar, com Alain Rouquié, de partidos políticos militares. As Forças Armadas dividiramse em pelo menos dois grupos que lutaram sem tréguas até a vitória de um deles, em 1964.” xliii. A existência destes partidos no interior das Forças Armadas se relaciona com as divisões também vividas no cenário político civil nacional. As disputas entre estas correntes começa a ser amplamente divulgada pela imprensa a partir de 1945, tendo esta posicionamento a favor de uma ou outra correntexliv. O que nos é útil neste conceito de Rouquié é o conflito existente entre o partido militar e os partidos militares. O primeiro seria a instituição em si e o segundo representaria as tendências existentes no Exército. Complementando tal quadro, o autor define que: “À vontade de preservar a unidade do Exército como indispensável ‘poder moderador’, capaz de assegurar a ‘harmonia entre a autoridade de fato e a de direito’, contrapõem-se as divergências oriundas da sociedade civil, não somente devido à cooptação ‘legítima’ dos militares

8

‘Usos do Passado’ — XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006:

por todos os atores nacionais, mas também como conseqüência da ausência de consenso nacional xlv acerca dos problemas mais importantes do desenvolvimento e do Estado.” .

Quanto à importância do estudo do Clube Militar e o uso da noção de partidos militares neste trabalho, Rouquié parece esclarecer novamente: “Em um sistema civil com forte componente militar, como o Brasil de 1930 a 1964, as eleições do Clube Militar eram (...) quase tão importantes para a sobrevivência dos governos xlvi quanto as eleições nacionais” .

Um outro conceito importante a ser utilizado é o de “canalização”. Isto se daria também na relação entre civis e militares. O grupo da organização que agisse próximo a um determinado grupo civil canalizaria um conjunto de exigências para a instituição militar. De acordo com Peixoto, o processo inverso, ou seja, grupos civis canalizando solicitações e pressões militares, também se pode produzir. Sendo assim, as correntes militares têm uma função canalizadora, a hierarquia filtra essas pressões oriundas dos grupos civis. Esse processo de filtragem se dá na medida em que a hierarquia afasta as solicitações que não são consideradas legítimas e aceita outras xlvii. Finalmente, após termos apresentado o tema e explicitado os métodos de trabalho e alguns conceitos da pesquisa, achamos adequado comentar com mais detalhe o principal corpo documental com o qual estamos trabalhando: Arquivo Peri Constant Bevilaqua, depositado no Museu Casa de Benjamin Constant (MCBC), no Rio de Janeiro, subordinado à 6ª Superintendência Regional (6ª SR) do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). No que se refere a este arquivo, trabalharemos com documentos produzidos pelo candidato da chapa nacionalista (chamada de União), general Peri Bevilaqua. Outros tipo de fontes primárias contidas nesse arquivo a serem trabalhadas dizem respeito aos Comunicados Internos (CIs) oriundos do Ministério da Guerra e do Ministério da Marinha; correspondência ativa e passiva do líder da chapa nacionalista; notas para imprensa; notas de instrução oriundas do Ministério da Guerra sobre acontecimentos relativos ao ano de 1962 (como a de número 4-E3 por exemplo, em que esclarece sobre o problema social da greve em São Paulo); artigos escritos por Bevilaqua a respeito de questões ligadas à situação político militar, o que nos ajuda a entender o clima político vivido e o posicionamento do líder da chapa União; TELEX e telegramas enviados e recebidos por Peri Bevilaqua, etc. Além deste arquivo, as atas de reuniões realizadas no Clube Militar durante o período da Crise da Legalidade (1961-1964).

i ii

ROUQUIÉ, Alain (org.). Os Partidos Militares no Brasil. Rio de Janeiro: Record, s/d. SODRÉ, Nelson Werneck. História Militar do Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965.

9

‘Usos do Passado’ — XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006: iii

10

LAMARÃO, Sérgio. “Cruzada Democrática”. In: ABREU, Alzira Alves de; et al (org.). Dicionário Histórico Biográfico Brasileiro (pós-1930). 2ª ed. Ver. E atualiz. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 2001, volume II, pp. 1383-1389. iv PEIXOTO, Antonio Carlos. “O Clube Militar e os confrontos no seio das Forças Armadas (1945-1964)”. In: ROUQUIÉ, Alain (org.). Os Partidos Militares no Brasil. Rio de Janeiro: Record, s/d, p.78. v Id., p.74. vi PEIXOTO, op.cit, p. 87. vii PEIXOTO, A.C. op. cit., cf. p. 77. viii Id., cf. p. 89. ix PEIXOTO, A.C., op. cit., p. 112. x LAMARÃO, Sérgio. “Cruzada Democrática”. In: ABREU, Alzira Alves de et al (org.). Dicionário Histórico Biográfico Brasileiro (pós-1930). Op. Cit. volume II, p. 1725-1726. xi Id. xii LAMARÃO, op. cit., cf. p.1275. xiii PEIXOTO, op. cit., cf. p. 96. xiv LAMARÃO, op. cit., cf. p. 1726. xv LAMARÃO, op.cit., cf. p. 1726. xvi Id., p. 1726. xvii SODRÉ, op. cit., p. 327. xviii “Peri Bevilaqua”. In: ABREU, Alzira Alves de et al (orgs.). Dicionário Histórico Biográfico Brasileiro (Pós-1930). Op. Cit., volume I, pp. 655-657. xix Idem e LAMARÃO, Sérgio. “Clube Militar”. In: ABREU, Alzira Alves de. et al (org. ). Dicionário Histórico Biográfico Brasileiro (pós-1930). Op. Cit., volume II, pp. 1383-1389. xx LAMARÃO, Sérgio, op. cit., cf. p. 1387. xxi PEIXOTO, op. cit, p. 89. xxii Idem, cf.p. 78. xxiii Idem, cf. pp. 78-79. xxiv Idem, p. 87. xxv Idem. xxvi Idem, p. 73. xxvii PEIXOTO, op. cit, p. 104. xxviii Idem, p. 109. xxix Id., p. 108. xxx CARVALHO, José Murilo. “Vargas e os militares”. In: PANDOLFI, Ducle (org.). Repensando o Estado Novo. RJ: Editora FGV, s/d, p. 343. xxxi Idem,. p.344. xxxii PEIXOTO, Antonio Carlos. “Exército e política no Brasil.Uma crítica dos modelos de interpretação”. In: ROUQUIÉ, Alain. Os Partidos Militares no Brasil. Rio de Janeiro: Record, s/d, pp. 30-31. xxxiii Idem, p. 31. xxxiv Idem. xxxv Idem, pp. 31-32. xxxvi Idem, p. 32. xxxvii Idem, cf. p. 32. xxxviii Idem, pp. 32-33. xxxix Idem, cf. p. 34. xl ROUQUIÉ, Alain. Op. Cit., p. 12. xli ROUQUIÉ, Alain. “Os processos políticos nos partidos militares do Brasil. Estratégia de pesquisa e dinâmica institucional”. In: ________. Os Partidos Militares no Brasil. Op. Cit., p. 13. xlii Id.., cf. p. 13. xliii CARVALHO, op. cit., p. 343. xliv ROUQUIÉ, op. cit., cf. p. 14. xlv Idem, p. 16. xlvi Idem, p. 14. xlvii PEIXOTO, op. cit., cf. pp. 34-35.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.