DÉRCIO MARQUES: IMAGEM REVOLUCIONÁRIA DE UM TROVADOR DAS LUTAS SOCIAIS

May 27, 2017 | Autor: Duda Bastos | Categoria: Music History, Popular Music Studies
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DÉRCIO MARQUES: IMAGEM REVOLUCIONÁRIA DE UM TROVADOR DAS LUTAS SOCIAIS. Eduardo Cavalcanti Bastos1 Resumo: O poeta-cantador Dércio Marques atuou, desde os anos 70, como representante artístico do canto revolucionário no acontecimento de poetas-cantadores do Brasil. Em si, este artista projeta, a partir de sua dimensão espetacular, o imaginário trovadoresco cuja revelação maior é a cena atávica do menestrel, seguida pela imagem do cantador representante das causas do povo. Sua obra musical contém um legado peculiar na difusão da canção de protesto, inspirando-se, frequentemente, nas obras do português Zeca Afonso. Compôs, no cenário musical referendado nas lutas sociais, um cancioneiro sobre o homem em suas questões campesinas diante das opressões e injustiças sociais. Em especial, sua obra Canto Forte – Coro da Primavera, se mostra importante para o debate atual, face às condições sócio-políticas travadas nesse momento no país.

Palavras-chave: Dércio Marques – canção de protesto – canção de intervenção – poetascantadores – trovadores.

A obra musical Canto Forte – Coro Da Primavera de Dércio Marques2 nos apresenta contextos sobre um fenômeno observado na atuação de poetas-cantadores contemporâneos: a canção de intervenção, também conhecida como canção de protesto. Dessa forma, a imagem trazida por esses artífices da música se projeta, arquetipicamente, numa grande cena de sujeitos vacantes, em busca de suas utopias, autenticados por uma voz comunitária imbuída em lutas sociais. Nesse sentido, é possível considerar que a

Doutor em Artes Cênicas, professor do Centro Multidisciplinar de Santa Maria da Vitória na Universidade Federal do Oeste da Bahia. Coordenador da Pós-graduação em Arte e Ação Cultural (PósArtCult). 2 Dércio Rocha Marques (1947 – 2012), poeta-cantador mineiro, sociólogo, originalmente registrado como Montiero, por causa de seu pai de origem uruguaia. Influenciado desde cedo pela cultura uruguaia, nas décadas de 50 e 60, mirava-se num cancioneiro de apelos humanísticos, solidariedade e valorização da dignidade humana. O povo uruguaio era envolto em movimentos sociais caracterizados, politicamente, por um corpo nação, que emitia sensação de pertencimento a apenas uma nação latino-americana, segundo narrativas do próprio cantador. No Uruguai, aprendera a cantar os costumes e a conviver com um grande número de menestréis – cantadores chamados chanchaleiros e fronteiriços – e conheceu outros instrumentos musicais como o charango, que mais tarde marca as apresentações e gravações do compositor. A musicalidade que envolvia o pequeno grupo de Dércio e seus irmãos sofre influência, nesse período, além da música uruguaia, da música da Bolívia e do Peru, constituindo um repertório cujo lirismo marcaria suas primeiras gravações e repercutiria em toda obra. Faleceu em 26 de junho de 2012, em Salvador, em decorrência de complicações cirúrgicas para tratamento de câncer. 1

canção se arma como instrumento de construção política para o posicionamento ideológico de tais questões. A partir desse contexto, podemos observar que a trajetória artística de Dércio Marques nos apresenta a intensa conjugação de sua obra com aspectos sociais de seu tempo. A militância pelas causas educacionais, ecológicas e políticas fez parte da fundação de sua carreira musical, principiando-se nos anos 60, em que atuava com os irmãos Darlan e Dorothy, embora seria com a sua irmã que viria construir, sempre através da música, as primeiras apresentações, projetos sociais e educacionais. O envolvimento com projetos sociais possibilitou a Dércio certa notoriedade no cenário de artistas integrados aos movimentos de pesquisas da cultura dos povos, a ponto dele vir a tornar-se pesquisador bolsista pela Sociedade Brasileira para o Progresso e Ciência (SBPC), trabalhando em algo semelhante à empreitada de Mário de Andrade, na década de 30, cujo o nome é controverso, chamada: Missão de Pesquisas Folclóricas (TONI, 2004a, p. 07). Através de sua iniciativa no SBPC, Dércio coleciona um novo acervo de costumes e manifestações artísticas culturais das regiões interioranas do Brasil, pesquisando e montando um repertório sonoro que seria, mais tarde, usado em muitas de suas gravações. Este trabalho durou até o momento em que os militares assumiram o poder e restringiram as verbas para pesquisas desse tipo. No princípio da carreira questionava as desigualdades sociais e as angústias que acompanham o homem contemporâneo, utilizando um texto denso, coligido de poetas como Atahualpa Yupanqui, Elomar Figueira Mello e José Maria Giroldo. Até seu lirismo musical revelava um cenário cotidiano, numa representação menos folhetim e densamente poética das trocas afetivas entre as pessoas. Em 1977, participou do espetáculo em favor da SBPC juntamente com Milton Nascimento, Chico Buarque, Elis Regina, Marília Medaglia, MPB4 e outros, além de atuar como intérprete em festivais importantes da cena musical brasileira daquela época, tais como Festival de 1979 de Música Popular, da Rede tupi e o MPB 80, da Rede Globo (MELLO, 2003, p. 474). Associado a Dércio, nestas pesquisas patrocinadas pela SBPC, estava ainda Marcus Pereira, com quem trabalhava desde 1973, um incentivador da produção musical regionalista, de gravadora e selo próprios, e patrocinador de muitas outras obras artísticas de referências culturais ausentes da grande mídia. Marcus Pereira era um fomentador

atuante do acontecimento de poetas-cantadores até 1982. Após a extinção do Selo Marcus Pereira, a Copacabana assume a carteira de artistas pertencentes àquela gravadora, em seguida convoca Dércio Marques para preencher um espaço deixado por Geraldo Vandré que, desde 1970, já não cantava mais no Brasil. Sendo assim, a Copacabana elegia Dércio para ocupar o lugar de poeta-cantador numa lista que contemplava cerca de 400 artistas. Estava, a partir dessa biografia, constituído um artista a perfilar a imagem do poetacantador revolucionário. Dércio Marques figurava ainda, enquanto imagem artística e social, a ranhura estética medievista do trovador menestrel. Dizemos isso em relação a dois aspectos importantes: a figura performativa do cantante e o ambiente temático por onde trafegam as canções de sua obra. A presença medieval, tal como num rito de passagem entre universos estéticos, atravessa as vozes e composições musicais provocando sensações de outro tempo, e nessa condição não está impressa um dizer próprio, mas, principalmente, a voz de toda uma camada ocupada pela opinião pública de apreciadores e da mídia periodista. Entendemos a apropriação dessa cena medieva, para nosso tempo como um fator, que apesar do deslocamento temporal – intempestivo -, precipita certa intenção para ligações com cenas remotas. Uma vontade de pertencer e se recolocar como imagem de outro tempo. Esta ligação atemporal se dispõe numa franja de representações antigas cujas sensações não sabemos muito bem como forma fincadas em nossa percepção, mas entre algumas brumas do conhecimento é possível tatear e compreender o modo pelo qual operam as apropriações medievas, incitadoras habituais de nosso imaginário. O constructo cênico das obras de certos poetas-cantadores potencializa o estilo épico das histórias de cavaleiros, torres, castelos e elegias de peregrinos violeiros a vagar sem destino, em busca de anunciar sua passagem, cuja importância é também profética, instituída como missão revolucionária para o cantador e seu cantar, tal como ele cantava: “Pobre do cantor de nossos dias que não arrisca sua corda pra não arriscar sua vida3” (MARQUES: 1979, faixa 07). Dércio Marques, considerado então como trovador, inscrito neste arquétipo, Composição de Pablo Milanés, gravado por Dércio Marques no disco Canto Forte - Coro Da Primavera. Pelos 50 anos da Declaração dos Direitos Humanos de 1979. Referência musical disponível na internet. 3

trouxe em sua imagem certo apoio estético para “encenar” o canto das angústias humanas nas complexas questões sociais do Brasil. Inscreveu sua arte cancioneira sob a penumbra de uma chama atávica, abrigando a imagem do trovador, sustentada na expressão comum das diversas tradições, projetando elementos visivos atrelados entre as belezas de um passado memorial e as lutas sociais contemporâneas. Podemos dizer que esta imagem trovadoresca se potencializa na identificação desses cantadores como arautos representantes das causas do povo, embora o trovadorismo medieval não se apresente, na fundação de sua história, como algo inerente à tal dimensão popular, mas outrossim, como um acontecimento atado à sociedade cortês, cujo cenário é o ambiente palaciano dos antigos castelos e mosteiros medievais (BRUNEL-LOUBRICHON, 1997, p. 07). Mas o efeito de imagem trovadoresca é celebrado em músicos atuantes, desde os anos 60 e reconhecidos no arquétipo trovador, nessa mesma condição estética, atores também de um cancioneiro de protesto, tais como Bob Dylan, Joan Baez, Sílvio Rodrigues, Zeca Afonso, Pablo Milañez, León Gieco e tantos outros. Dércio é uma ressonância brasileira dessa presença. Este cantador era revestido do arquétipo vacante, compondo ou interpretando canções que falam de andarilhos, buscadores, muitas vezes unidos a um forte sentimento de exílio. Sentimentos que podem estar vinculados à busca frenética pela comunidade perdida; ou a busca dos sem comunidade; ou de uma comunidade comunista, comunidade recíproca ao outro por tendência de compartilhamentos diversos (BLANCHOT, 1983, p.12), comunidade a escapar da realidade de uma civilização cada vez mais insatisfeita e individualista. Apenas supomos essa sensação de exilados através de alguns vestígios, talvez atrelados ao mito universal do caminhante e peregrino, aquele que tem a vigília expectante do chamado para partir e encontrar o seu lugar.

Embora Dércio possua composições sobre manifestações das culturas rurais, assumiu, em grande parte, durante a sua carreira artística, a via do caminho existencialista, muitas vezes trazendo paisagens dolorosas nas letras das canções. Trouxe cenas inflamadas pela sua busca, envolvido em condição afetiva própria, dispondo, em seus cantares, de sonoridades plangentes, reflexivas, e, por vezes, entristecidas, reproduzindo continuamente dramas pessoais e comunitários. E não será estranho que a cena lamuriante, realizada por ele, como imagem da canção, existencial ou do amor não realizado, traga modos do sentimento cortês diante do ambiente passional das realezas, cantadas pelos antigos trovadores. Nesta medida, a presença desse lirismo melancólico, buscando vias de fuga, trazendo ainda uma aura envolta em mistérios, segue a mesma fixação do cancioneiro de novos trovadores, tais como Zeca Afonso, Nick Drake, Donovan, entre muitos outros, principalmente atuantes entre os anos 60 e 70. O poeta-cantador canta sua angústia emaranhando-se em sua teia de melancolia sem transparecer qualquer perspectiva de modificação. Sem dúvida, falamos dessa condição do canto a respeito da idiossincrasia de todo poeta-cantador a cantar suas partidas, suas passagens, seu amor ao caminho e a sua condição fugidia. Mas esta talvez seja a marca de um momento geral para os poetas-cantadores desse acontecimento musical que o consagra trovador, abrigando o sentimento nostálgico diante da desilusão do mundo aturdido em banalidades, na contramão à cultura dos homens das cidades. São cantos de exílio marcados vezes pela mágoa, vezes pelo desespero das causas do povo, vezes pelas lutas do homem do campo, utilizando seu ofício de cantar para tornar o mundo mais justo e consciente. Relvas4 (Dércio Marques e Cláudio Murilo) Pela relva atiça o vento de um verde sem esperança Perdendo a cor na distância, vai meu povo lavrando, O trigo alegre plantando, e só o joio colhendo Vai meu povo sofrendo, em meio à terra ardente Onde a semente prospera, e a fome lhe rói o ventre Vai pelas ruas dos bairros, no cais do porto ao veleiro No subúrbio operário, na praça e no firmamento Com grãos de estrelas plantando 4

Referência musical disponível na internet.

E só a noite colhendo Com grãos de estrelas plantando E só a noite colhendo (MARQUES, 1979, faixa 12).

Dércio Marques, por toda sua obra, dos anos 70 em diante, sempre incorporou as influências da música portuguesa deste período, especialmente a discografia de Zeca Afonso. Em 1979, seis anos após a Revolução dos Cravos, chega a gravar Canção de Embalar (MARQUES, 1979, faixa 03) de Zeca Afonso no seu álbum Canto Forte – Coro Da Primavera. Uma obra com traços homônimos da canção de Zeca Afonso: O Coro da Primavera de 1971. A Canção de Embalar, carrega contorno melodioso, considerado pelo próprio Zeca Afonso, como forma estilística trovadoresca (RIBEIRO, 1994, p. 83). As qualidades melódicas dessa toada unem-se ao propósito da letra da canção, renitente, sob a censura de um Portugal salazarista, em que eram necessárias metáforas para denunciar o regime totalitário, escapando assim, dos modos da censura. Não foi muito diferente com a composição dos poetas-cantadores brasileiros neste período, incutidos por um país imerso nos antagonismos do ISEB5, órgão determinado a identificar e produzir as ideologias nacional-desenvolvimentistas para diferenciar “nação” de “antinação” (RIDENTI, 2010, p. 123) cujas características perfilavam o adestramento militar sob o perfil eugenista. Segundo Dércio Marques, a realização do álbum Canto Forte – Coro Da Primavera se inspira diretamente na Revolução dos Cravos, e, neste caso, o “coro” representa uma obra caudatária do acontecimento português. Como um colecionador e pesquisador de repertório da música do mundo, Dércio, na década de 70, descobria a força do canto poético português de cunho revolucionário de intervenção. Trouxe ainda para seu disco as canções: Que força é essa de Sérgio Godinho; Acontecer e Vim de Longe de Paco Bandeira, todos compositores e cantadores portugueses de intervenção. Apesar da inspiração direta no papel da canção portuguesa intervindo na realidade social daquele país, ele estava também orientado pelos atributos estéticos da canção. Dércio via em Zeca Afonso um trovador de intervenção, alinhamento de reconhecimento artístico que

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Instituto Superior de Estudos Brasileiros.

contribuía para o conceito da confraria trovadoresca, cúmplices ao estilo e à certa estilística do canto e da canção social. O primeiro álbum de Dércio Marques chama-se Terra, Vento, Caminho, de 1977. Esta obra traz o canto profundo do homem por reivindicar alento diante de sua angústia e beleza diante de um mundo fragilizado, tão frágil quanto a própria existência, e traz estas evidências em suas letras. Este LP nasceu após uma grande incursão pela América Latina e o interior brejeiro de um Brasil mitigado em poesias das grotas, pelos casebres do interior mineiro e baiano. A arte dos poetas cantadores parece compor rastros de um caminho remoto em direção à certa misantropia, de uma prática performativa inscrita na história do ideal de se cantar, de soltar a voz irmanando com as palavras cantadas a intenção pelo refúgio insólito. O canto parece capaz de imprimir tal vínculo emocional, solitário e sonhador. Certa cumplicidade estética, segundo Paul Zumthor (2000), feito texto poético performativo, concebido na medida em que “o ouvimos e não de maneira metafórica, aquilo que ele nos diz”. Pois, nessa conexão, podemos perceber “a materialidade, o peso das palavras, sua estrutura acústica e as reações que elas provocam em nossos centros nervosos” (ZUMTHOR, 2000, p. 64). Esta conexão, é, portanto, um movimento, de todos, do cantador e seus pares, é um caminho de espetáculo. Estar em condição teatral diante do outro é a realização intimista. Toda evocação íntima, entretanto, requer um fator igualmente onírico de aproximação, o sonho é seu enlevo de bem-estar, de atração do outro. Mas a música narra, por vezes, em ricas filigranas, eventos sensoriais e, especialmente, os que se referem ao pressentimento humano; um estado perceptivo revelador e mediador dos sentidos para uma “vida plena”, propiciadora da dilatação do ser e, por conseguinte, de sua flexibilização frente ao Outro (BOCCIA, 2006, p. 60).

As canções aparecem testemunhando um grande passado de múltiplas inteligências e talentos artísticos conjugados no presente, intensamente registradas no recôndito de um modo sensível de expressão. A casa do poeta-cantador errante e revolucionário é um lugar proeminente de solidão e presença, terra e ar, repouso e

cansaço, um ponto de memória sempre recuperado ao entoar das canções, afanado por suas constantes lutas. O canto atávico nos Coros da Primavera No álbum Canto Forte – Coro Da Primavera, das doze canções apresentadas, quatro são compostas por cantadores portugueses6. Todas aglutinam uma ambiência semelhante no modo da canção, quando o aspecto considerado é a dimensão estéticomusical. Mas, na década de 70, não foi Dércio o único brasileiro a registrar algumas canções de Zeca Afonso e de outros autores portugueses. A sua irmã Dorothy, sua excompanheira Diana Pequeno e ainda a cantora Nara Leão gravaram, em 1974, os temas Grândola, Vila Morena e Maio Maduro de Maio, os quais foram incluídos no EP A Senha do Novo Portugal da editora Philips7. Esses artistas não fariam tais registros apenas pelo ideal humanista e revolucionário apresentado nas canções de Zeca Afonso. Havia uma medida que não seria possível equacionar entre o ideal utópico do clamor político popular impresso na poética das canções e as imagens mentais auditivas presentes na sonoridade das tramas estéticas das mesmas. Estas tramas aproximam e reforçam a mensagem, o conceito. Robert Jourdain (2005) nos diz que a imagem mental auditiva é o que permite a manipulação dos tons no ouvido da mente com a mesma exatidão com que os escritores manipulam as palavras. Segundo ele: “compreender as imagens auditivas e sua base na memória é o primeiro passo para compreender como os compositores criam suas maravilhas” (JOURDAIN, 1998, p. 213), embora as imagens mentais sejam nada mais que uma “frágil sombra da realidade”. Desde a sua primeira obra Terra, Vento, Caminho, de 1977, Dércio Marques compunha um repertório adequado para ouvidos atentos a questões políticas prementes num Brasil humanamente fraturado. Do outro lado Atlântico, Zeca Afonso, poetacantador português, desde 1974, confrontava o regime totalitarista de Portugal. Embora não tenha sido uma luta de um homem só, Zeca Afonso, através de seu engajamento A Canção de Embalar de Zeca Afonso; Que força é essa de Sérgio Godinho de 1971, Acontecer e Vim de Longe de Paco Bandeira, de 1972. 7 Direto do website da Associação José Afonso. Disponível em: http://www.aja.pt/as-2-versoes-de-joseafonso-por-nara-leao. Acesso em: 12 de junho de 2016. 6

artístico, contribuiu significativamente com o quadro de mudanças de um Portugal tumultuado politicamente trazendo a canção de sua autoria Grândola, Vila Morena de 1964, outorgada como o hino da revolução de 1974. Neste mesmo ano, lançou o álbum Coro dos Tribunais através do qual fez forte alusão ao novo momento de liberdades portuguesas. Desde 1985, o Brasil se liberava do regime militar, mas ainda é possível perceber as feridas continuadas, acúmulos das heranças complexas desde o período colonial e, após este, o legado de períodos imperialistas confusos fundando, ainda, regimes políticos autoritários, organizados sobre mitos de nacionalidade. São motivações que expõem o Brasil, segundo Eduardo Arantes, à vocação de ser sempre um país condenado a dar certo. Para além de um mito fundador de uma nacionalidade periférica, desse encontro marcado com o futuro, talvez a esperança cultivada pelo idealismo da canção de intervenção seja a de realizar, através do clamor, um país “projetado para mais à frente”8, diante da consciência amena do atraso, da “grandeza ainda por realizar” (ARANTES, 2010, p. 25). É sob a cena violenta de repressão militar e controle social que se assentava uma sociedade brasileira incomodamente desbalanceada. De um lado estavam as elites econômicas em seu silêncio lacônico de apoio aos militares, vencidos pelo medo e pela valorização de tradicionalismos, do outro se encontrava uma massa trabalhadora desautorizada a reivindicar seus direitos e as classes estudantil e artística, atrapalhadas pelas políticas repressoras. Embora sob a mão pesada desses episódios de tensão e censura, ações artísticas despertavam como oposição ao regime e muitas delas emblemavam contra a tiranização dos poderes, forças atuantes contra às liberdades individuais, agentes de domínios culturais e socioeconômicos. Em relação à produção musical, no Brasil, estas canções ficaram conhecidas como Canções de Protesto. Do outro lado continental, nos EUA, Bob Dylan, além de representar a cena americana para a canção de protesto, era uma chave performática para o estilo do trovador contemporâneo. Em 1978, a baiana Diana Pequeno, tendo Dércio Marques como produtor artístico, lançava seu primeiro disco, com a versão em português da canção Blowin' in the Wind, de Bob Dylan. Esta canção deu popularidade, na época, a Diana e firmou sua

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ZWEIG, Stefan. Brasil, um país do futuro. Coleção L&PM Pocket, 2006.

parceria com Dércio, indo até a produção de seu segundo álbum, Eterno como a areia. Diana também chegou a cantar, mas não gravou, Serei Teu Bem, uma versão da canção americana I’ve Got a Friend, de Carolyn King, uma balada trovadoresca contemporânea. A americana Carolyn King foi uma importante agitadora musical que, na Califórnia, protagonizou um movimento Folk na célebre casa de shows de Los Angeles chamada The Troubadour, casa de espetáculo incutida na propagação de artistas das protests songs. Nos EUA, esse estilo neotrovadoresco ficou perfilado na Folk Music, sendo, neste tempo, difundido por todo mundo como gênero de uma canção do meio rural ainda com um acento cult, pois era a também a música do meio universitário. O bar-casa-de-espetáculos, reconhecidamente importante, lançou vários nomes da cena Folk americana e internacional, tais como: Elton John, David Crosby, Kris Kristofferson, Bonnie Raitt, Van Morrison, James Taylor, a própria Carolyn King, além de muitos outros (KING; TAYLOR, 2011, 57”). Para eles, era um movimento musical que reconhecia no estilo Folk uma forma de atuar na dissolução dos conluios mercadológicos das gravadoras fabricantes de reis da música e alternativa para combater o autoritarismo militar da guerra do Vietnam entre outras causas políticas (KING; TAYLOR, 2011, 1’51”). Doug Weston, o proprietário do The Troubadour, possuía uma personalidade excêntrica e investiu recursos para manter o estabelecimento até os anos de 70, momento em que deixou a administração do clube, que funciona até os dias atuais. Também não era estranho que se chamasse The Troubadour, num momento de pleno cotejamento estético dos simbolismos medievais. A proposta do The Troubadour é apresentar a contribuição dos animadores e artistas, os músicos e cantores, atores e escritores folk, que são os equivalentes modernos do menestrel medieval e que tecem a saga dos nossos tempos, como fez o trovador antigo 9 (KING; TAYLOR, 2009, 1’17”).

Revolucionários ou não, esses acontecimentos musicais das canções de protesto trouxeram outra respiração para a elaboração criativa em meio à dimensão popular

“It is the purpose of The Troubadour to present the contribuition of the folk entertainers and artists, the musicians and singers, the actors and writers who are the modern counterpart of the medieval minstrel and who spin the saga of our times as did the troubadour of old” (KING; TAYLOR, 2009, 1’17”). 9

artística de nosso tempo. De notada importância também por preservar a memória de um momento histórico, a canção de protesto, ou de intervenção, movimenta o ideário utópico em prol de uma sociedade mais idealizadora, poética com adjuntos de justiça. Tais valores muitas vezes são creditados apenas às correntes socialistas e marxistas do comunismo utópico, anarquismos dentre outras expressões político-ideológicas. Essa modalidade da canção remonta à dimensão massiva que algumas dessas crenças puderam ganhar na intenção de convocar um sentimento patriótico, de luta, de resistência sem afastar-se da poética: orientação artística aglutinadora da poesia e da canção associadas à condição da própria vida. Tais obras artísticas eram transformadas em armas de contestação através da voz, elaborando um representativo corpo decisivo para as manifestações causarem mudanças. Dércio Marques, em 1979, ao lançar o Canto Forte – Coro Da Primavera mirado no modelo da música Coro da Primavera, de Zeca Afonso, deseja enfim participar de uma revolução universal construída no mesmo laço de utopia. A canção Coro da Primavera está no álbum de Zeca Afonso, lançado em 1971, intitulado Cantigas do Maio, marco e ponto alto na carreira deste artista (AFONSO, 2010, p. 344). É neste álbum que também encontramos Grândola, Vila Morena, uma espécie de La Marseillaise da Revolução dos Cravos, censurada, inclusive, pelo Estado Novo português. Coro da Primavera10 (Zeca Afonso) Cobre-te canalha Na mortalha Hoje o rei vai nu Os velhos tiranos De há mil anos Morrem como tu Abre uma trincheira Companheira Deita-te no chão Sempre à tua frente Viste gente Doutra condição Ergue-te ó Sol de Verão Somos nós os teus cantores 10

Canção disponível na internet.

Da matinal canção Ouvem-se já os rumores Ouvem-se já os clamores Ouvem-se já os tambores [...] (AFONSO, 2010, p. 102)

Uma revolução da primavera parece, ao que tudo indica, ter sido influenciada a partir do conhecido aforismo atribuído a Che Guevara sobre a ação revolucionária: “as tantas rosas que os poderosos matem nunca conseguirão deter a primavera”. A proposição amplia ainda mais o contexto primaveril das revoluções e talvez tenha servido de inspiração para todos que vieram após a Revolução Cubana, um período controverso, cheio de mal-entendidos a inspirar o ideal libertário da América Latina, principalmente de um de seus principais líderes: Ernesto Che Guevara. O próprio Roberto Freire, dito anarquista ou socialista libertário, concebia esse ideário comunista revolucionário como um sistema autoritário e decepcionante (ABUJAMRA, 2003, 6’25”)11. Evidentemente, o revisionismo da história também traz consigo a carga opiniosa, deslizante sobre afirmações passionais das mais variadas perspectivas. Mas esse quadro parece sinalizar a preferência dos latino-americanos por episódios conflitivos de sua história, tais como massacre dos nativos indígenas, os períodos tenebrosos da escravidão e violência das ditaduras. Nesse quadro, o poeta-cantador não é um representante do mérito e destemor para o campo de batalha, ele é um esteta a atuar nos bastidores dessa cultura, embora um ou outro tenha sido preso e torturado, como foi o caso do artista pernambucano Geraldo Azevedo, durante o regime militar brasileiro, e o da cantora argentina Mercedes Sosa, em 1979, presa pelos militares durante um show, enquanto advertia “se o cantor se cala, a vida se cala” (NARLOCH, 2013. p. 46): “Si se calla el cantor calla la vida/ porque la vida, la vida misma es todo un canto/ si se calla el cantor, muere de espanto/ la esperanza, la luz y la alegría” (SOSA; GUARANY, 1973, faixa 01). No depoimento de Dércio Marques ao programa Itajubá em Foco12, é possível conceber essa influência da revolução portuguesa, segundo o próprio cantador a revelar: Disponível em https://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=eJKI0NM7jvw#!. Acesso em: 12 de junho de 2016. 12 Canal 20 de TV a cabo local, Itajubá, Minas Gerais. 11

“o segundo (Canto Forte – Coro Da Primavera) já era um trabalho social [...] coincidia com a Revolução dos Cravos”13 (ITAJUBÁ EM FOCO, parte 1). Dessa forma, essa obra musical constituiu uma união estética e ideológica, não exatamente cronológica, entre os momentos vividos por essas duas culturas lusófonas até o findar do período setentista, na despedida de seus regimes totalitaristas militarizados. E, enfim, era um tempo onde a canção de protesto exibia seus últimos suspiros de contexto revolucionário. Restou dessa memória, até o momento, a marca indelével e criativa de uma forma humanista de compor a obra artística buscando ideais utópicos. Constituíam-se, ainda, obras orientadas a partir da experiência e revelação do imaginário socialista utópico, fruto de ações concretas, provenientes de lugares teatrais, não apenas aqueles voltados para a atividade cênica, mas àqueles incorporados às ruas, praças, estádios, igrejas e muitos outros. Toda esta conjuntura nos coloca também diante de um memorial do peregrino ou andarilho, cuja presença artística se enlaçava aos ideais revolucionários. A imagem formada pela gravação de Grândola Vila Morena, de Zeca Afonso, que abre ao som do povo marchando, se posiciona diretamente nesse arquétipo caminheiro de um exército de militantes. Longe de liquidá-los com rótulos exclusivos de apenas cantadores desse tipo de canção, ou de cidadãos exemplares e coerentes em suas opções políticas, é importante observá-los na relevância de suas biografias e obras. Esses poetas-cantadores são fontes expressivas para outros entendimentos sobre o desenrolar do curso da história de momentos tão singulares, cujos fatores mobilizadores ainda geram ecos em fragmentos da sociedade politizada na atualidade. De notada presença ruralista, esses atores da canção de ideais revolucionários tiveram data e hora para começar. Eles pertencem aos movimentos de resistência às ditaduras e guerras, despontando na cena mundial como engajados à voz última das causas do povo. Talvez tenham sido os últimos a marcar este tipo de atuação no meio musical amparado pela condição social. É provável que a reconhecida imagem do cantor de protesto tenha ficado para trás. O primeiro disco de Dércio, Terra, Vento, Caminho, em 1977, pelo selo Marcus Pereira, foi também marcadamente social, propondo uma música que traduzia a imagem

Itajubá em Foco, entrevista Dércio Marques – parte 1. Canal 20 de TV a cabo local, Itajubá, Minas Gerais. Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=MQJ3ZCLn8Uw. Acesso em: 12 de junho de 2012. 13

poética do povo e das lutas da América Latina. A partir dessa obra viria a ocupar, durante muitos anos, um pouco do cenário midiático e dos palcos de festivais e movimentos sociais. Até a época do seu desaparecimento, em 2012, trabalhava com criações artísticas sobre o ambiente amoroso das relações afetivas humanas – uma obra derradeira chamada Canções Bordadas – e fazia corpo a um projeto social contra a transposição do rio São Francisco, sendo parceiro de outros cantadores na composição do hino desse movimento cujo título é Das águas do Velho Chico nasce um rio de esperança. Em sua última apresentação televisiva, no programa Sr. Brasil, com o Rolando Bodrim na TV Cultura, em abril de 2012, fazia seu canto final de intervenção, despedindo-se de suas lutas. Cantou a canção de domínio público do Vale do Jequitinhonha: Beira-mar, utilizando a imagem do canoeiro a descer o rio, performatizando uma triste partida, encerrando, assim, sua carreira trovadora. “[...] Adeus, adeus, toma adeus/ Que eu já vou-me embora/ Eu morava no fundo d'água/ Não sei quando eu voltarei/ Eu sou canoeiro/ Eu não moro mais aqui/ Nem aqui quero morar/ Ô beira mar, adeus dona/ Adeus riacho de areia14” (MARQUES, 1999, faixa 03). Referências ABUJAMRA, Antônio. Provocações. Entrevista com Roberto Freire. São Paulo: TV Cultura, 2003. AFONSO, José. Todas as Canções. Partituras, letras, cifras. Lisboa: Assírio & Alvim, 2010. ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do nordeste e outras artes. Recife: FNJ, Massangana; São Paulo: Cortez, 2001. ARANTES, Paulo Eduardo. Baderna. Zero à Esquerda. São Paulo: Conrad, 2010. BLANCHOT, Maurice. La Communauté Inavouable. Paris: Les Éditions de Minuit, 1983. BOCCIA, Leonardo. Choros da Humanidade. Salvador: LVBOCCIA, 2006. BRUNEL-LOBRICHON, Geneviève; DUHAMEL-AMADO, Claudie. Au temps des troubadours. XIIe. – XIIIe. Siècles. Mesnil-sur-l’Estrée: HachetteLittératures, 1997.

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Referência musical disponível na internet.

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