Deriva e Psicogeografia na cidade contemporânea: experimento situacionista no centro do Recife

June 24, 2017 | Autor: Luiz Augusto | Categoria: Guy Debord, Situationist International, Psycogeography, Derivé, Recife
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO Centro de Artes e Comunicação Departamento de Design Programa de Pós-Graduação em Design

LUIZ DO MONTE

DERIVA E PSICOGEOGRAFIA NA CIDADE CONTEMPORÂNEA: EXPERIMENTO SITUACIONISTA NO CENTRO DO RECIFE

Recife 2015

LUIZ DO MONTE

DERIVA E PSICOGEOGRAFIA NA CIDADE CONTEMPORÂNEA: EXPERIMENTO SITUACIONISTA NO CENTRO DO RECIFE

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação

em

Design

da

Universidade Federal de Pernambuco como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Design. Linha de Pesquisa: Design, Tecnologia e Cultura.

Orientador: Prof. Dr. Gentil Porto Filho

Recife 2015

AGRADECIMENTOS Aos meus pais, Marcos e Mariza, pelo maior incentivo aos meus estudos e realizações pessoais. Às minhas irmãs, meus avós e minha família pelo amor, carinho e compreensão. À minha querida sogra, Fernanda Andrade Lima, pelo incentivo incessante ao mestrado e minha evolução pessoal. Ao meu orientador, Gentil, pela atenção, empolgação, crença e grande dedicação. Aos babilônicos e a galerarq pelo amizade e apoio constante. Ao meu quarteto especial: Ju, Camila, Tiago e Bruno. Ao Laboratório de Inteligência Artística (i!) pelo auxílio mútuo e companheirismo. Aos membros da banca qualificação: Luiz Amorim e Oriana Duarte, pelas valiosas contribuições, em especial a Oriana, cujas contribuições continuaram na disciplina Design e Corpo. Aos muitíssimos especiais amigos de deriva: Matheus Mota, Rodrigo Cm, Bruno Cardim, Augusto Ferrer, Bruna Ferrer e João Pessoa. A Caio Rihan, companheiro de pesquisa e de João da Carne de Sol. À Maria Eduarda Dantas, pelo “corre” da xerox de Perniola em Brasília. À minha inqualificável companheira, Luiza. E a todos aqueles que, de alguma forma, auxiliaram neste projeto.

“Caminho a passo lento. Creio que alguém me espia do alto, das cornijas. Vai passando na sombra a ronda dos meus sonhos.” (Joaquim Cardozo)

RESUMO Este trabalho tem como objetivo experimentar a deriva e a psicogeografia, técnicas provenientes do movimento artístico intitulado Internacional Situacionista, no centro expandido do Recife. A deriva e a psicogeografia foram conceitos criados pelos situacionistas por volta da década de 1950. Enquanto a psicogeografia se apresenta como uma ciência de apreensão das afetividades urbanas, a deriva é compreendida pelo movimento como uma técnica de passagem por ambientes da cidade que compõe um desdobramento prático dessa apreensão psicogeográfica. A pesquisa pretende verificar a validade das técnicas em relação às suas propostas de aplicação e as possíveis contribuições dessa revisitação de ideias situacionistas numa cidade contemporânea. Para aplicação das técnicas foi elaborada uma metodologia baseada primordialmente nos preceitos situacionistas, mas que também agregou questões relativas à fenomenologia, à psicologia e ao estudo de mapas e diagramas. A partir dessa metodologia foram realizadas pesquisas de campo de cunho experimental que geraram documentos, relatos e ilustrações referentes ao resultado desse processo. As conclusões expostas posteriormente apontam para a validação de algumas das hipóteses situacionistas relativas à aplicação das técnicas e discutem em grande parte o papel das novas tecnologias além de outros fatores que tornam a experiência da deriva e da psicogeografia singulares na contemporaneidade. Palavras-chave: psicogeografia.

Internacional

Situacionista,

Guy

Debord,

Recife,

deriva,

ABSTRACT This work intents to experience the dérive and the psychogeography, techniques of the artistic movement called Situationist International in the expanded center of Recife. The derive and the psychogeography were concepts created by the situationists in the 1950’s. While the psychogeography presents itself as a seizure science of urban affections, the drift is understood by the movement as a technique of passage through city environments, which makes up a practical unfolding of psychogeographic apprehension. The research aims to verify the validity of the techniques in relation to their proposals and the possible contributions of revisiting situationist ideas in a contemporary city. For the application of the techniques a methodology based primarily in Situationists precepts was created, but also with the addition of questions related to phenomenology, psychology and the study of maps and diagrams. Based on this methodology were performed experimental nature field researchs that generated documents, reports and illustrations for the result of this process. The conclusions later exposed point to the validation of some of the Situationists assumptions related to the application of techniques and discuss mostly the role of new technologies and other factors that make the experience of drift and psychogeography unique in contemporaneity.

Keywords: Situationist International, Guy Debord, Recife, dérive, psychogeography.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 8 1 INTERNACIONAL SITUACIONISTA ...................................................................... 12 1.1 Trajetórias ........................................................................................................ 13 1.2 Anticapitalismo e Revolução Cotidiana ............................................................ 16 1.3 Contra o Funcionalismo ................................................................................... 20 1.4 Superação da Arte ........................................................................................... 25 1.5 Métodos de Ação ............................................................................................. 28 1.5.1 A Pintura Industrial..................................................................................... 29 1.5.2 Détournement ............................................................................................ 30 1.5.3 Situação Construída .................................................................................. 31 1.5.4 Urbanismo Unitário .................................................................................... 33 2 DERIVA E PSICOGEOGRAFIA ............................................................................. 36 2.1 A Herança Londrina e o Flâneur Parisiense..................................................... 37 2.1.1 Londres ...................................................................................................... 38 2.1.2 Paris........................................................................................................... 40 2.2 Passeios Dadaístas e Surrealistas................................................................... 41 2.2.1 A Influência Dadaísta ................................................................................. 42 2.2.2 A Incursão Surrealista................................................................................ 43 2.3 Os Conceitos.................................................................................................... 45 2.4 A Cidade como Labirinto .................................................................................. 49 2.4.1. O Mercado de Les Halles ......................................................................... 51 2.4.2 A Zona Amarela ......................................................................................... 52 2.4.3 O Labirinto Holandês ................................................................................. 54 2.4.4 Nova Babilônia ........................................................................................... 55 2.4.5 The Naked City .......................................................................................... 58 2.5 Deriva e Psicogeografia na Contemporaneidade ............................................. 60 2.5.1 A IS Revisitada .......................................................................................... 61 2.5.2 Casos......................................................................................................... 63 3 METODOLOGIA..................................................................................................... 70 3.1 Aspectos Teóricos............................................................................................ 72 3.1.1 Método Fenomenológico ........................................................................... 74 3.1.2. Diagramas e Cartografia Afetiva ............................................................... 77

3.2 Aspectos Práticos ............................................................................................ 83 3.2.1. Pesquisa de Campo.................................................................................. 83 3.2.3. Sítio de Aplicação ..................................................................................... 87 3.3. Confecção de Pesquisa-piloto......................................................................... 89 3.3.1 Piloto 01 ..................................................................................................... 90 3.3.2 Piloto 02 ..................................................................................................... 93 3.3.3 Piloto 03 ..................................................................................................... 96 3.3.4 Piloto 04 ..................................................................................................... 99 3.3.5 Piloto 05 ................................................................................................... 104 3.3.6 Piloto 06 ................................................................................................... 108 3.3.7. Considerações Sobre os Pilotos ............................................................. 112 4 EXPERIMENTAÇÃO E ANÁLISE ........................................................................ 115 4.1 Parâmetros de Aplicação ............................................................................... 116 4.2 Experimentos ................................................................................................. 119 4.2.1 Primeiro Experimento .............................................................................. 119 4.2.2 Segundo Experimento ............................................................................. 129 4.2.3 Terceiro Experimento............................................................................... 137 4.2.4 Conclusões e Mapas Resultantes............................................................ 146 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................. 152 REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 159 APÊNDICES............................................................................................................ 167 APÊNDICE A – Relato de descrição psicogeográfica – Pesquisa-piloto 01 ........ 168 APÊNDICE B – Breve relato psicogeográfico – Pesquisa-piloto 02 ..................... 169 APÊNDICE C – Mapa de percurso de deriva – Experimento 01 .......................... 170 APÊNDICE D – Mapa de percurso de deriva – Experimento 02 .......................... 171 APÊNDICE E – Mapa de percurso de deriva – Experimento 03 .......................... 172 APÊNDICE F – Mapa de ilustração da hipótese dos becos................................. 173 APÊNDICE G – Mapa de inter-relação de ambiências nostálgicas ..................... 174 APÊNDICE H – Mapa de inter-relação de ambiências-pátio................................ 175 APÊNDICE I – Mapa de ilustração de elementos de jogo ................................... 176

8 INTRODUÇÃO Por serem concebidas pelo homem de maneira intensamente coletiva, as grandes cidades adquiriram o caráter de um grande artefato dinâmico, e em certos aspectos, imprevisível. Talvez, por conta dessas características, as metrópoles sempre foram elementos de grande estima por parte de artistas, intelectuais, pesquisadores, dentre outros. Para a Internacional Situacionista (IS), grupo artístico surgido no fim da década de 1950, as grandes cidades não se configuravam apenas como mote para intervenções ou obras de arte, mas sim como o palco e objeto principal para a realização da obra de arte total, de uma revolução que pudesse unir a vida cotidiana dessas cidades à prática artística humana de maneira indissociável. Os membros do movimento situacionista pretendiam transformar o modo de vida nas metrópoles por intermédio de ações artísticas de cunho urbanístico. “A arte integral de que tanto se falou, só se poderá realizar no âmbito do urbanismo” (DEBORD, 1957). Não obstante, além do caráter subjetivo e lúdico próprio de ações artísticas, a teoria situacionista estava imbuída de um agudíssimo aspecto político. Os situacionistas consideravam que a ascensão do sistema capitalista, e das novas propostas teóricas do campo da arquitetura, do design, da publicidade, estariam conduzindo o mundo a um tipo de esterilização, que ameaçava acabar com qualquer senso de espontaneidade ou ludicidade (SADLER, 1999, p. 5). Para tanto, o movimento criou diversas técnicas e atividades que iam além esfera artística, e tinham o intuito de recuperar o sentido espontâneo e dinâmico das cidades, considerados escassos pelo grupo. Os situacionistas procuravam utilizar esses recursos como instrumento de auxílio na transformação da sociedade. “Sabemos que essa mudança é possível por meio de ações adequadas” (DEBORD, 1957). A realização dessas ações e a consequente transformação da sociedade na visão situacionista seria atingida quando o ambiente das cidades atingisse um nível de composição integral e coletivo, intitulado pelos situacionistas de urbanismo unitário. “Nossas perspectivas de ação sobre o cenário chegam, no seu último estágio de desenvolvimento, à concepção de um urbanismo unitário” (DEBORD, 1957). Apesar do grupo ter encerrado suas atuações sem efetivamente reedificar a sociedade aos moldes do urbanismo unitário, as atividades e publicações da IS tiveram grande

9 repercussão no campo da arte e da política, servindo como inspiração teórica para artistas, pesquisadores, movimentos sociais e outros domínios da sociedade. A intenção deste trabalho é revisitar a teoria situacionista e contextualiza-la no centro do Recife, procurando adicionar uma camada de conhecimento no conjunto das pesquisas urbanas promovidas na cidade. Essa nova camada, baseada numa investigação subjetiva e de cunho artístico, típica dos situacionistas, se incorpora as pesquisas do campo da arquitetura, do design, da antropologia, da psicologia, entre outras disciplinas e contribui para a ampliação dos conhecimentos gerais sobre as cidades contemporâneas, principalmente em relação à apreensão dos aspectos afetivos e psíquicos das cidades, cuja complexidade exige tal intercambio de ciências. Além disso, outro aspecto importante da revisitação da teoria situacionista diz respeito a questão política do direito à cidade e o uso dos espaços públicos nas cidades contemporâneas. As cidades brasileiras vivem atualmente um momento de tentativa, por parte de setores da sociedade, de restituição dos bens comuns e de resgaste da noção de espaço público por parte dos poderes públicos e da sociedade em geral. Em várias cidades do país eclodem movimentos sociais que reivindicam a ampliação do uso das mesmas por parte dos cidadãos, dada a percepção de que este direito vem sendo usurpado, aos poucos, por uma lógica de empreendimentos privados e sucateamento dos centros urbanos, muitas das vezes apoiados, inclusive, pela esfera governamental. No Recife, alguns desses movimentos podem ser destacados, como o Coque (R)Existe, que luta conta a desapropriação residencial de moradores do bairro do Coque em virtude da construção de um terminal rodoviário por parte do governo do estado de Pernambuco. Além de argumentar contra a ilegalidade da obra em relação a lei de uso e ocupação do solo prevista para a área, o movimento salienta a importância da identificação dos indivíduos com seu lugar de moradia na construção de uma sociedade harmônica. Relacionado intimamente com a reinvindicação da noção de espaço público, o Ocupe Estelita é outro movimento social que pode ser citado como exemplo. O movimento consiste de ocupações planejadas por grupos no facebook, que acontece em domingos específicos no espaço do Cais José Estelita, situado na bacia do Pina, área litorânea do centro do Recife. As ocupações surgiram como um ato contra o projeto de torres empresariais planejadas por um consórcio imobiliário que adquiriu

10 parte do terreno num leilão realizado pela prefeitura da cidade. O evento critica o impacto visual e demográfico da possível implementação do empreendimento, promove discussões e palestras sobre questões urbanísticas, e atua juridicamente em defesa do patrimônio histórico ferroviário presente na localidade. Dado o intuito de reaplicar ações situacionistas no âmbito de uma cidade contemporânea, foram escolhidas, dentre essas ações, duas técnicas indissociáveis de investigação urbana: a deriva e a psicogeografia. A deriva e a psicografia são técnicas de cunho subjetivo que procuram diagnosticar aspectos afetivos relativos a dinâmica urbana ao mesmo tempo que atuam como ação política de contestação aos paradigmas vigentes da movimentação do habitante na cidade. Além de objetos de estudo principais da pesquisa, a aplicação das duas técnicas configura o objetivo principal do trabalho, que é o de analisar os resultados da aplicação da deriva e da psicogeografia no centro expandido do Recife. Tendo esse objetivo em vista, a dissertação se estrutura em quatro capítulos, sendo incumbência do primeiro tratar da história e do desenvolvimento da Internacional Situacionista. O primeiro capítulo leva o nome do movimento e começa tratando da trajetória inicial e da criação da IS por parte de grupos artísticos da época. Nesse contexto é apresentado, baseado principalmente em autores como Simon Sadler e Mario Perniola, o caráter anticapitalista do movimento, e a busca de seus integrantes por uma mudança efetiva na vida cotidiana da sociedade. Também são objetos de discussão no capítulo a repulsa, por parte dos situacionistas, em relação às teorias funcionalistas desenvolvidas pela arquitetura e urbanismo da época e a tentativa do movimento situacionista de superação dos parâmetros da arte, no intuito de torna-se o último movimento de vanguarda (SADLER, 1999, p 1). O capítulo é concluído com uma análise dos variados métodos de ação situacionistas, tanto no âmbito das artes gráficas e plásticas, quando em relação às atividades pensadas e praticadas nos espaços urbanos. O segundo capítulo tem foco principal na elucidação dos conceitos da deriva e da psicogeografia. Em virtude disso, o capítulo se inicia com um panorama acerca dos primórdios da psicogeografia, passando pelas primeiras incursões da literatura voltada a experiências urbanas, desenvolvida principalmente nas capitais europeias de Londres e Paris. Além disso, o início do capítulo aborda também as primeiras experimentações artísticas que utilizaram a cidade como palco de realização,

11 destacando o pioneirismo dos movimentos dadaísta e surrealista nesse contexto. A partir daí o texto se volta de fato a análise das técnicas situacionistas, procurando explicitar as nuances dos conceitos de cada uma das técnicas e ainda elucidando o grau de relação entre elas. Por fim, o capítulo trata da inter-relação das técnicas situacionistas e da teoria do movimento em geral com o conceito de labirinto. A partir dessa relação são apresentadas ações realizadas ou conceituadas pelos situacionistas baseadas em preceitos labirínticos e que possibilitaram ou estimularam o uso da deriva e da psicogeografia. O capítulo se encerra de fato com a exposição da literatura e de ações contemporâneas baseadas nas técnicas situacionistas. O terceiro capítulo é responsável pela apresentação de aspectos teóricos de áreas afins, como a filosofia e a psicologia, que se relacionam com as técnicas situacionistas e servem como contribuição para construção metodológica da pesquisa. Baseado nesses aspectos são expostas as premissas práticas da metodologia, como o caráter experimental e de campo da pesquisa, o objetivo geral e os objetivos específicos, além da delimitação do sítio de aplicação dos experimentos. Nesse contexto também são apresentados e discutidos, como parte do processo prático da metodologia, pesquisas-piloto que visam aprimorar o processo de investigação presencial e diminuir, de modo prévio, as possíveis incongruências relativas aos experimentos planejados. No quarto e último capítulo são relatados e analisados, de acordo com as previsões metodológicas, três experimentos de derivas efetuadas no centro do Recife. A descrição dos três experimentos e das ações dos pesquisadores durante suas aplicações procura relaciona-los com as hipóteses e questionamentos discutidos nos capítulos anteriores da dissertação. Além disso, em virtude dos três experimentos, são apresentados e anexados ao trabalho mapas afetivos que têm o objetivo de ilustrar os resultados obtidos dessa aplicação. Por fim, são retratadas as considerações finais relativas a todo processo da dissertação, com conclusões concernentes às problematizações de cada capítulo, e ainda uma conclusão relativa ao objetivo geral. Essa conclusão indica que a aplicação das técnicas mantém, em parte, algumas de suas premissas hipotéticas, como as unidades de ambiência e o tempo particular da deriva, mas sofre grande interferência das questões inerentes à contemporaneidade, como o avanço da tecnologia e a velocidade das relações e informações dos dias atuais.

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1 INTERNACIONAL SITUACIONISTA

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13 “Nossa ideia central é a construção de situações, isto é, a construção concreta de ambiências momentâneas da vida, e sua transformação em uma qualidade passional superior” (DEBORD, 1957). Esta é uma das definições fundamentais que deram origem, em 1957, à Internacional Situacionista, grupo de artistas, pensadores e ativistas que teve como componente principal de suas reflexões e intervenções as cidades, em especial seus centros urbanos e a relação desses espaços com a vida cotidiana. Por volta da década de 1950, surgem na Europa diversos grupos políticos e artísticos, dedicados especialmente a repensar a relação entre arte e vida cotidiana, criticando sobretudo os ideais vigentes não só do momento artístico, como também dos conceitos de arquitetura e urbanismo instaurados na época. Esses grupos estavam imbuídos, na sua maioria, de um forte desejo de propor algo que fosse além das vanguardas históricas (SADLER, 1999, p. 1), cujos preceitos ainda vigoravam no campo das artes. Apesar da vontade de realizações de contraponto teórico, esses coletivos sofreram ainda muitas influências dessas vanguardas. Baseados principalmente em ações e intervenções urbanas iniciadas pelo movimento Dadá e pelos surrealistas, muitos artistas e ativistas da década de 1950 iniciaram discussões acerca da arte em publicações e realizaram intervenções em várias capitais da Europa. Em dado momento, por conta do contexto político e econômico e de desenvolvimento das cidades, as pesquisas e investigações de determinados grupos começaram a se voltar para o âmbito dos centros urbanos e iniciaram uma tendência de reavaliação dos conceitos de urbanismo vigentes. Em julho de 1957, a junção de alguns desses grupos em congressos internacionais resultou na formação de uma única entidade. Surge a então intitulada Internacional Situacionista. 1.1 Trajetórias Em 1951, o ativista e intelectual francês Guy-Ernest Debord (1931–1994) se encontra com o poeta, crítico de cinema e artista romeno Isidore Isou (1925–2007), por ocasião do quarto festival de cinema de Cannes. Nesse tempo, Isidore Isou já havia fundado, por volta de 1946, o grupo Letrista, movimento artístico e cultural com

14 produção intensa no campo da poesia, mas que também abarcava o cinema e a pintura. Como resultado desse encontro, Debord e Isou fundam em 1952 a Internacional Letrista, um desdobramento teórico do movimento Letrista, que dura até o ano de 1957, tendo como principal material teórico a revista Potlatch. Segundo Jacques (2003, p. 16), “as questões tratadas em Potlatch [...], passaram a tratar da vida cotidiana em geral, da relação entre arte e vida e, em particular, da arquitetura e do urbanismo, sobretudo da crítica ao funcionalismo moderno”. Paralelamente a esse encontro e à formação da Internacional Letrista, existiam na Europa coletivos cujas ações também visavam a uma nova relação entre arte e vida no contexto urbano. O grupo CoBrA1 tinha como principais membros três artistas: o dinamarquês Asger Jorn (1914–1973), o belga Cristhian Dotremont (1922–1979) e o holandês Constant Nieuwenhuys (1920 – 2005). Segundo Jacques (2003, p. 17) desses três, posteriormente, Constant e Jorn se tornaram grandes conceituadores do pensamento urbano situacionista. Pode-se destacar, ainda que de modo breve, a LPA2, grupo dirigido pelo artista inglês Ralph Rumney (1934–2002) que trocava correspondência com os membros da Internacional Letrista (JACQUES, 2003) e que procurava atuar no âmbito da investigação dos aspectos subjetivos das cidades. Fundado por Asger Jorn após a dissolução do CoBrA, o MIBI3 também foi um coletivo importante na trajetória da formação do grupo situacionista, cujo periódico principal se chamava Erística. O movimento surgiu como uma crítica à abertura de uma nova escola da Bauhaus em Ulm, no ano de 1955. Além disso, o MIBI foi responsável pela reunião desses grupos no ano de 1956 em Alba, na Itália, num evento intitulado de Primeiro Congresso de Artistas Livres (SADLER, 1999, p. 2). A constante correspondência entre os membros mais importantes desses grupos e os reincidentes congressos e reuniões culminaram na criação da Internacional Situacionista em 1957, num encontro em Cosio d’Arroscia, uma pequena comuna ao norte da Itália. Nesse encontro foi apresentado por Debord um dos principais textos do pensamento situacionista, o Relatório sobre a Construção de Situações e sobre as Condições de Organização e de Ação da Tendência

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Copenhague, Bruxelas, Amsterdam (CoBrA), 1948-1951. London Psychogeographical Association (LPA): Associação Psicogeográfica de Londres. 3 Movimento Internacional por uma Bauhaus Imaginista (MIBI), 1954-1957

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15 Situacionista Internacional, com fortes críticas urbanas e que já continha em si elementos importantes para a compreensão das ideias situacionistas.

Figura 1. Síntese genealógica da Internacional Situacionista, baseada em Sadler (1999, p. 2). Desenho do autor.

A Internacional Situacionista pode ter sua existência balizada historicamente entre os anos de 1957 e 1972, com uma produção realmente ativa do movimento enquanto grupo até 1969. Tendo em vista esse período histórico, o filósofo e professor de estética Mario Perniola divide o livro que escreveu sobre o movimento, Os Situacionistas (2009), em três capítulos, que por sua vez correspondem a três fases do movimento compreendidas pelo autor como distintas entre si. A primeira fase, considerada por Perniola como a fase artística (2009, p. 15), seria equivalente ao intervalo entre 1957 e 1962, período de surgimento do movimento, quando as atividades e os métodos relacionados à investigação lúdica da cidade e a procedimentos artísticos eram indissociáveis da crítica teórica. Em 1962, o grupo passa por uma ruptura, e a ala que defendia uma abordagem mais artística é expulsa por completo. Esse fato configura o início da segunda fase (PERNIOLA, 2009, p. 41) como uma etapa do movimento dedicada principalmente à elaboração de crítica social, contra as ideologias funcionalistas, tecnocráticas, econômicas,

comunicacionais,

entre

outros

aspectos

que

conformavam a

16 consolidação da sociedade capitalista. Essa fase dura de forma aproximada até 1967, ano do lançamento de A Sociedade do Espetáculo, de Guy Debord. A terceira fase compreende aproximadamente os anos de 1967 a 1972. Intitulada por Perniola como o período da realização da teoria, configura-se como uma fase em que as críticas são postas à prova, com influências inclusive em ações sociais relevantes, como o Maio de 1968, na França. Nessa fase são realizadas as maiores reflexões sobre a trajetória e as práticas do grupo e também uma projeção, nas considerações de Debord, para uma futura interpretação do movimento como um estopim para a verdadeira revolução. Nestes últimos anos nota-se um esforço, por parte de Debord, de oficializar a produção textual do movimento e assegurar que, apesar do encerramento prático, as ideias situacionistas continuassem como símbolo da revolução cotidiana. Essa divisão da trajetória do grupo em fases, apesar de explicitada na obra de Perniola, também pode ser compreendida em outras obras que tratam da Internacional Situacionista, como nos livros Assalto à Cultura, escrito pelo artista e historiador Stewart Home em 1988, e The Situationist City (A Cidade Situacionista), de Simon Sadler, acadêmico britânico especialista em história da arquitetura. Alguns dos aspectos tratados ao longo deste texto serão relacionados com as fases descritas de acordo com a relevância que essa relação possa despontar. 1.2 Anticapitalismo e Revolução Cotidiana A Internacional Situacionista foi um movimento de raiz essencialmente anticapitalista. O grupo visava transformar profundamente o modo de vida das sociedades; a crítica a um tipo de vida no qual as condições sociais tornavam-se elementos subordinados ao sistema de lucro do capital era um dos pontos principais dos textos do movimento. As novas cidades pré-fabricadas exemplificam claramente a tendência totalitária de organização de vida do capitalismo moderno: os habitantes isolados (geralmente isolados no âmbito da célula familiar) veem a vida reduzida à pura trivialidade da repetição combinada com o consumo obrigatório de um espetáculo igualmente repetitivo (DEBORD, 1962).

17 Esse posicionamento é compreensível, tendo em vista que os anos de 1950 se configuram como um período de pós-guerra, que sofreu grande influência da massificação dos bens de consumo advindos da segunda revolução, e que se configuram como uma década importante para a consolidação de grandes inovações tecnológicas, da publicidade e do sistema capitalista (HOBSBAWM, 1995). Entretanto, em relação ao progresso técnico — elemento de suma importância para um desenvolvimento capitalista —, Perniola (2009, p. 18–19) relata uma suposta divisão de ideias entre os situacionistas. Segundo o filósofo italiano, as opiniões de Constant e Pinot-Gallizio4 diferiam do posicionamento de Debord. Eles seriam partidários da automatização em função da revolução: Com a automação não existirá mais o trabalho, no sentido corrente do termo; não existirá mais o repouso, mas um tempo livre para livres energias antieconômicas [...]. Nós precisamos dominar a máquina, dedicando-a ao gesto único — inútil, antieconômico, lúdico — a fim de criar uma nova sociedade antieconômica, uma que seja poética, mágica, artística (PINOT-GALLIZIO, 1959).

Constant e Gallizio acreditavam, desse modo, que o processo de automação substituiria a necessidade do trabalho operário, o que traria a liberdade necessária para a criação artística dos indivíduos, planejada pelos situacionistas. A contraposição de Debord a essa visão é demonstrada, de acordo com Perniola (2009, p.19), no trecho em que o autor recusa a possibilidade do sistema capitalista contribuir para a transformação social idealizada pelo grupo: Acredito que o capitalismo seja incapaz de dominar e de empregar plenamente as suas forças produtivas, incapaz de abolir a realidade fundamental do desfrute, portanto incapaz de deixar o posto pacificamente às formas superiores de vida evocadas do seu próprio desenvolvimento material (DEBORD, 1959).

Enquanto Constant e Gallizio acreditavam na automação do sistema capitalista como um instrumento para a revolução, Debord se mostrava cético e proclamava que a superação do capitalismo só poderia existir com a supressão do mesmo. Sobre os dois argumentos, Perniola (2009, p. 19) conclui que “no primeiro caso, se trata de uma

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Giuseppe Pinot-Gallizio (1902-1964), artista italiano.

18 aplicação na existência cotidiana de um nível artístico permitido pelo progresso técnico; no segundo caso, de uma mudança qualitativa de vida inseparável do renascimento da revolta proletária”. Independentemente desse embate acerca da automatização, os situacionistas criticavam com firmeza a submissão da estrutura social ao capitalismo. Para tanto, um dos conceitos mais utilizados pela IS foi o termo espetáculo. O espetáculo, expressão concebida por Guy Debord, tenta traduzir em apenas uma palavra a mercantilização aplicada às relações sociais e às imagens veiculadas inerentes à lógica capitalista. Segundo Debord (1997, p. 24), “o espetáculo na sociedade corresponde a uma fabricação concreta da alienação”. A noção de espetáculo se consagrou, portanto, como um dos elementos de impulsão das críticas situacionistas ao capitalismo. Era comum que os textos difundidos pelo movimento incorporassem colagens de jornais, obras de arte ou quadrinhos que ironizassem o capitalismo e a publicidade, como no caso da televisão, reconhecida pelos situacionistas como “o veículo de explosão do poder do espetáculo da modernidade adequado para afetar a percepção do espaço real” (SADLER, 1999, p. 16).

Figura 2. “Hoje à noite, o espetáculo em casa”, Internationale Sittuationiste #8 (1963).

Essa crítica frente aos parâmetros principais do capitalismo e contra o conceito de espetacularização da sociedade é ainda mais intensa na segunda e na terceira fase do grupo, compreendida aproximadamente entre os anos de 1962 e 1972. Num texto situacionista de 1963, Debord afirma que a sociedade da alienação já exerce influência em boa parte das relações globais e reivindica a possibilidade de inverter esse processo para que a sociedade pudesse exercer o controle de sua própria vida.

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A mesma sociedade de alienação, controle totalitário e consumo passivo espetacular reina em todos os lugares, apesar da diversidade de seus disfarces ideológicos e jurídicos. A coerência dessa sociedade não pode ser entendida sem uma crítica abrangente, iluminada pelo projeto inverso de uma liberdade criativa, um projeto onde cada um possa controlar todos os níveis de sua própria história (DEBORD, 1963).

Para os situacionistas, uma sociedade alienada pelo espetáculo só poderia ter esse caráter invertido em função de uma revolução que fornecesse a liberdade necessária para uma gestão coletiva da própria vida em sociedade. Portanto, esse período de elucubração do conceito de espetáculo e de críticas à sociedade da época foi de grande valor para o amadurecimento político da IS. Em 1967, além da veiculação usual de mais uma revista da Internacional Situacionista (nesse caso, a de número onze), são lançados em paralelo dois livros, fruto do pensamento de dois membros importantes do grupo: Raoul Vaneigem5 e Guy Debord. No livro de Vaneigem, A Arte de Viver para as Novas Gerações, o autor explora como eixo central as questões pertinentes à vida cotidiana, traça uma condenação à manipulação advinda da massificação do trabalho alienado e das tecnologias e proclama ações que tornem a vida cotidiana interessante, criativa e espontânea (VANEIGEM, 2002). Esse discurso, claramente alinhado com os ideais situacionistas, também faz apologia à criação de situações, importante conceito descrito por Debord no documento de fundação da IS. A Sociedade do Espetáculo é o trabalho mais conhecido de Guy Debord. Nele o autor esmiúça o já citado conceito do espetáculo, desdobrando-o em aproximadamente duzentos comentários que elaboram uma teoria crítica do espetáculo em suas diversas facetas. O texto descreve o espetáculo como a consequência do modo capitalista de organização social, que passa a assumir novas formas e conteúdo. Num dos comentários do livro, relativo ao capítulo A separação consumada, Debord (1997, p. 25) argumenta: “o espetáculo é o capital em tal grau de acumulação que se torna imagem”.

5

Raoul Vaneigem (1934), escritor e filósofo belga.

20 Em ambos os livros, os autores refutam a tese marxista da luta de classes, indo além dela, argumentando que a libertação da situação de espetáculo não viria apenas com o embate entre hierarquias, mas, sim, com uma profunda e contínua revolução, de atitudes cotidianas. Enquanto Debord (1997, p. 141) o faz de maneira implícita nas considerações sobre o espetáculo — “emancipar-se das bases materiais da verdade invertida, eis no que consiste a autoemancipação de nossa época” —, Vaneigem expressa de maneira intensa e direta: Aqueles que falam de revolução e luta de classes sem se referirem explicitamente à vida cotidiana, sem compreenderem o que há de subversivo no amor e de positivo na recusa das coações, esses têm na boca um cadáver (VANEIGEM, 2002, p. 31).

É possível defender que ambos os textos, apesar de adicionarem valiosas contribuições políticas e sociais, são derivados do pensamento teórico político marxista6, que historicamente combatia a hegemonia do sistema capitalista. Além disso, mais especificamente no caso d’A Sociedade do Espetáculo, são perceptíveis as relações com os escritos de Georg Lukács7, filósofo húngaro, de conceitos igualmente alinhados com o marxismo (JAPPE, 2008). Desse modo, pode-se caracterizar a atitude anticapitalista situacionista como um

desenvolvimento

da

teoria

política

marxista,

com

o

incremento

de

posicionamentos ainda mais radicais de enfrentamento dos aspectos alienantes característicos das sociedades onde vingaram os modernos meios de produção. 1.3 Contra o Funcionalismo Segundo Bourriaud (2011, p. 39), a criação do modernismo se configura como o surgimento de uma nova mitologia no campo da arte. No que compete ao âmbito da arquitetura e do urbanismo, o surgimento dessa nova mitologia foi apreendido de uma maneira mais racional e funcionalista, como afirma Françoise Choay (2003, p. 9): “o espaço urbano é tratado conforme uma análise das funções humanas. Uma classificação rigorosa instala em locais distintos o habitat, o trabalho, a cultura e o lazer”. 6 7

Karl Marx (1818–1883), autor de O Capital e do Manifesto do Partido Comunista. Georg Lukács (1885–1971), autor de História e Consciência de Classe

21 A prática do urbanismo consolidada na Europa durante a primeira metade do século XX é chamada por Lamas (2004, p. 234) de urbanística formal. Segundo o autor, a escola francesa teria influenciado profundamente a urbanística formal, tendo como exemplo principal os traçados de Haussmann8, que atribuíram simplicidade e praticidade ao planejamento das cidades. Além das intervenções de Haussmann, a difusão e prática da urbanística formal na Europa foi constituída por alguns outros planejadores de diversos países (LAMAS, 2004, p. 236). Como exemplo disso é possível citar alguns desses planejadores, como Camillo Sitte e Otto Wagner, austríacos que criaram metodologias particulares na concepção de habitações; Jean Forestier, Alfred Agache e Etienne de Gröer, que, apesar de franceses, concretizaram diversas intervenções em Portugal; e Albert Speer, alemão, cujos conceitos de urbanismo funcionalista se alinharam com os da filosofia de crescimento nacional do Partido Nazista, tendo este se tornado arquiteto -chefe do Terceiro Reich.

Figuras 3 e 4. Albert Speer, plano para Berlim; Otto Wagner, plano Grosstadt.

Ainda segundo Lamas (2004, p. 293), a urbanística formal poderia ser relacionada de modo aproximado ao período entre as duas guerras mundiais, tendo deixado uma filiação conceitual, a qual Lamas intitula de novo urbanismo. Após a urbanística formal, um novo tipo de urbanismo começa a se desenvolver.

8

Georges-Eugène Haussmann (1809–1891), prefeito de Paris entre 1853 e 1870, autor do Plano de Paris.

22 Esse novo urbanismo, de grande racionalismo na composição dos espaços e funcionalismo no planejamento, ficou conhecido historicamente como urbanismo moderno ou modernista (KLEMEK, 2004). O urbanismo modernista adaptou as teorias modernas, adequadas inicialmente ao campo da arte e da arquitetura, para o da cidade. O funcionalismo relativo ao zoneamento de espaços exclusivos para habitação, recreação, trabalho e circulação e ainda a defesa de edifícios de tipologia moderna, altos e que ocupassem pouco espaço na quadra, constituem grande parte da teoria urbanística da época. As ideias e práticas do urbanismo modernista passam, portanto, a ser discutidas nos CIAMs (Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna). No entanto, apesar de terem atingido seu auge durante as realizações desses congressos e de terem produzido diversas propostas e documentos, foram poucos os projetos de urbanismo modernista realmente executados (FRAMPTON, 1997). Uma das personalidades expoentes nesse período é o arquiteto franco-suíço Le Corbusier, que, conforme Lamas (2004, p. 337), exerce forte influência nesses congressos, principalmente no intervalo que compreende os anos de 1933 a 1947. A visão corbusiana sobre a arquitetura e o urbanismo é considerada até hoje como um marco do período modernista de ambos os campos. De acordo com Choay (2003, p. 183), os temas em torno dos quais se organizavam as cidades planejadas por Corbusier se constituíam em: “classificação das funções urbanas, multiplicação dos espaços verdes, criação de protótipos funcionais e racionalização do habitat coletivo”. Ainda segundo Choay (2003, p. 184), as críticas de Le Corbusier e seus companheiros, classificados pela autora como progressistas, incidiam principalmente sobre a desordem e a insegurança das cidades da época e iniciaram uma defesa a práticas de estandardização do urbanismo, como o conceito do homem de necessidades-tipo e da apologia à máquina, solidificada por Le Corbusier em sua distinta frase “a casa é uma máquina de morar” (1994, p. 205). Por defender essa lógica de mecanização dos espaços, Le Corbusier recebeu duras críticas. Segundo Frampton (1997, p. 191), o artista e crítico Karel Teige atacou as concepções corbusianas com veemência, chegando a considerar os edifícios projetados por Corbusier como “estritamente utilitários” e “verdadeiras máquinas” (TEIGE, 1929 apud FRAMPTON, 1997, p. 192).

23

Figuras 5 e 6. Plan Voisin, Plano de Le Corbusier para Paris (1925).

No início dos anos 1950, ou seja, da segunda metade do século XX — período contemporâneo ao surgimento da IS —, esse novo urbanismo, moderno, começa a ser contestado por grupos e teóricos que também teciam censuras à teoria funcionalista, como, por exemplo, os arquitetos do Team X9, que, segundo Jacques (2003, p. 26), apesar de participarem dos CIAMs, já apontavam dentro destes o declínio das proposições modernistas. Segundo Lamas (2004, p. 338), o Team X tem sua consagração confirmada no ano de 1959, em Waterloo, quando se encerram definitivamente os CIAMs. Para os arquitetos do Team X, as relações humanas deveriam suplantar a lógica funcional premeditada pela Carta de Atenas10. Uma distinta consideração de um texto escrito por membros do grupo em 1953 demonstra a preocupação com a identidade das cidades em contrapartida à concepção da urbanização racional: “Pertencer” é uma necessidade emocional básica — suas associações são da ordem mais simples. Do “pertencer” — identidade — provém o sentido enriquecedor da urbanidade. A ruazinha estreita da favela funciona muito bem exatamente onde fracassa com frequência o redesenvolvimento espaçoso (SMITHSON, 1968 apud FRAMPTON, 1997, p. 330, grifo do autor).

Em 1956, Pierre Francastel, historiador francês, também vai de encontro às premissas urbanísticas modernas, em específico à teoria corbusiana, concebendo a seguinte sentença: “o universo de Le Corbusier é concentracionário. [...] ninguém tem 9

Team X (ou Team 10) pretendia manter o espírito do CIAM através de uma revisão crítica. Manifesto urbanístico resultante do IV CIAM, realizado em Atenas, 1933.

10

24 o direito de construir à força a felicidade de seu vizinho. A isso chama-se Inquisição” (FRANCASTEL, apud LAMAS, 2004, p. 391). Entretanto, os julgamentos mais intensos e avessos ao legado do modernismo foram realizados pelos situacionistas (SADLER, 1999, p. 8). A IS acreditava que a falta de conhecimento das motivações comportamentais dos cidadãos por parte dos arquitetos e urbanistas os descredenciava a planejar moradias e espaços com melhores condições de uso. Além disso, o grupo também era contra a predefinição dos espaços das cidades, pois essa demarcação dependeria da vontade de cada um e da coletividade, não podendo ser determinada por um planejador (JACQUES, 2003, p. 19). Ainda sobre a herança do modernismo, os situacionistas afirmaram: Suas contribuições positivas — a adaptação às funções práticas, inovação técnica, conforto, a eliminação do ornamento — são banalidades atualmente. No entanto, embora o seu campo de aplicação seja [...] estreito, isso não levou o funcionalismo a adotar uma teórica modesta. A fim de justificar filosoficamente a extensão de seus princípios de renovação para toda a organização da vida social, o funcionalismo tem se relacionado, aparentemente sem nenhuma reflexão, com as doutrinas conservadoras mais estáticas (e, ao mesmo tempo, tem-se congelado em uma doutrina inerte) (INTERNACIONAL SITUACIONISTA, 1959, tradução nossa).

Em relação às diferenças entre as ideias da IS e as do Team X, Simon Sadler argumenta que: Claramente houve uma espécie de choque de filosofias, os situacionistas pedindo aos arquitetos para renunciar suas visões majoritárias antes de mais nada, e o Team X pedindo aos arquitetos para que estes pressionassem até que fossem descobertos os próprios fundamentos do habitat (SADLER, 1999, p. 32).

Além de considerações negativas sobre o desenho urbano asséptico, a divisão de funções, entre outras características do urbanismo modernista, ao qual eles tratavam como urbanismo funcionalista, os situacionistas iniciaram também uma forte crítica acerca de dois aspectos: o uso exacerbado dos automóveis e o trabalho como consumidor de grande parte da vida cotidiana. Na sua cartilha intitulada Posições Situacionistas sobre a Circulação, publicada na terceira edição da revista da IS em 1959, Debord se contrapõe à possível

25 construção de vias expressas em Paris, declarando que “o rompimento da dialética do meio social humano em favor dos automóveis [...] mascara sua irracionalidade sob justificativas pseudopráticas”. Nesse mesmo texto, Debord lança mão das ideias de Corbusier: “o tempo de transporte, como Le Corbusier observou, com razão, é um trabalho excedente que, correspondentemente, reduz a quantidade de tempo livre”, para posteriormente adicionar a visão situacionista de que os seres humanos deveriam desperdiçar menos tempo com o fluxo cotidiano e mais tempo na construção lúdica e coletiva: “devemos substituir os trajetos como um complemento para o trabalho por trajetos como artifício de distração”. Os situacionistas criticaram, portanto, a arquitetura e o urbanismo moderno paralelamente à construção de um conceito completamente inovador em relação às cidades e ao modo de vida. Nesse sentido torna-se oportuno o dito elaborado por Jacques (2003, p.19): “enquanto os modernos acreditaram, num determinado momento, que a arquitetura e o urbanismo poderiam mudar a sociedade, os situacionistas estavam convictos de que a própria sociedade deveria mudar a arquitetura e o urbanismo”. 1.4 Superação da Arte A quebra de paradigmas relativos à concepção de arte foi a grande tônica de diversos grupos no início do século XX. O panorama da arte na década de 1950, período de incubação e nascimento da IS, era de grande efervescência teórica, mas ainda em parte conservador. Segundo Archer (2001), no início da década de 1960 a arte ainda era concebível, majoritariamente, no âmbito da pintura e da escultura. As colagens cubistas e outras, a performance futurista e os eventos dadaístas já haviam começado a desafiar esse singelo “duopólio” [...]. No entanto, ainda persistia a noção de que a arte compreende essencialmente aqueles produtos do esforço criativo humano que gostaríamos de chamar de pintura e escultura (ARCHER, 2001, p. 1).

Apesar do esforço por parte de algumas vanguardas artísticas da primeira metade do século, como o movimento Dadá e o Surrealismo, que obtiveram determinado sucesso na contestação de aspectos dogmáticos da arte, pode-se considerar que o sistema artístico — ou num termo utilizado por Perniola (2009, p.

26 16), o establishment — tenha cooptado as ideias contestadoras de vanguarda e anexando-as ao seu processo habitual de relações e à sua lógica de mercado. Em contrapartida a esse cenário consideravelmente reacionário em que a arte se deixava mergulhar é que surgem parte das considerações situacionistas. A IS e seus membros buscavam romper substancialmente com o establishment artístico vigente, o qual julgavam ser mais um dos elementos sociais a serviço da lógica do capital (PERNIOLA, 2009, p. 16). Sendo assim, durante a primeira fase do movimento, uma das preocupações principais era descortinar a realidade capitalista da arte. Para tanto, o grupo distribuiu panfletos com conteúdo crítico em assembleias internacionais de arte e publicou artigos que procuravam nortear modos de utilizar a arte como forma de minar o próprio establishment, como Dentro e contra o Cinema, publicado no primeiro periódico da IS, em 1958. Além disso, foi publicado, na revista número três da IS, o texto intitulado O Significado de Decadência na Arte, onde os situacionistas repreendem a crítica e produção moderna, insinuando que estas contribuem para a lógica do espetáculo, e propõem mais uma vez que os artistas superem essa produção, sem incorporar-se a ela ou negá-la, em virtude da abolição desse cenário. O embaraço dos críticos modernistas é completado pelo constrangimento de artistas modernos, a quem a decomposição acelerada em todos os setores impõe constantemente a necessidade de analisar e explicar as suas hipóteses de trabalho [...]. Devemos nos mover em frente, sem anexar-nos a qualquer coisa, quer na cultura moderna, quer na sua negação. Nós não queremos trabalhar para o espetáculo do fim do mundo, mas para o fim do mundo do espetáculo (INTERNACIONAL SITUACIONISTA, 1959, tradução nossa).

O movimento surrealista também foi alvo de observações críticas situacionistas em relação ao sistema artístico. A relação que a IS criara com as questões lúdicas da vida previa a inserção destas no cotidiano, enquanto que a liberação surrealista dos sonhos, do irreal e da magia se contrapunha a esse cotidiano factual, o que colaboraria com a dicotomia vigente preconizada pelo sistema social da época. Na medida em que continua a sustentar a oposição entre uma realidade concebida como o âmbito no qual se exercita a eficácia racional e uma realidade concebida como o âmbito onde se exprime a fantasia irracional, o Surrealismo sustenta o status quo (PERNIOLA, 2009, p. 18).

27

O que os situacionistas propunham em contrapartida aos surrealistas era fundir arte e vida cotidiana num mesmo fluxo, em que não se pudesse distinguir onde começa um e termina outro. A IS pretendia, por conseguinte, erradicar as fronteiras entre o tempo de diversão e o tempo de tarefa, reunindo-os num único momento, numa única situação. Essa relação de rompimento com o establishment não tem a ver apenas com as questões de regência do sistema artístico e com o capitalismo, mas também com mudanças em relação à própria teoria da arte, aos valores e conteúdos da produção realizada na época e à separação entre arte e vida cotidiana. Segundo Sadler (1999, p. 1) “os situacionistas não queriam ser apenas mais uma vanguarda, mas a última vanguarda, sepultando as práticas frequentes de história, teoria, política, arte, arquitetura e vida cotidiana”. Com essa afirmação o autor pretende destacar o tamanho da singularidade e pretensão da teoria situacionista. Ao se lançar como a última vanguarda, a IS pretendia deturpar completamente os preceitos e as relações com os movimentos anteriores no intuito de transformar não apenas a arte em sua teoria, mas também as relações em sociedade.

Figura 7. Ação artística situacionista. Cartazes com os dizeres: “Transposição da arte” e “Realização da Filosofia”.

Perniola (2009, p. 20) conceitua a “superação da arte” como um dos elementos de maior destaque na teoria situacionista. A tentativa da IS de sobrepujar o âmbito artístico denotava igualmente uma forma de ampliação do campo da arte. Conectar de forma indissociável as práticas humanas subjetivas com a práxis vital traria consigo um admirável acréscimo de conhecimento sobre a própria vida e suas relações. Nas

28 palavras de Debord (1957): “uma ação revolucionária na cultura não pode ter por finalidade traduzir ou explicar a vida, mas deve expandi-la”. A diferença da IS em relação às vanguardas previamente reconhecidas se evidencia inclusive no posicionamento do grupo frente aos próprios conceitos e denominações. O fato do grupo decidir usar uma sigla como alcunha em vez dos “ismos” recorrentes demonstra a lógica antidogmática. “Não existe situacionismo, o que

significaria

uma

doutrina

de

interpretação

dos

fatos

existentes”

(INTERNACIONAL SITUACIONISTA, 1958). Os situacionistas criam, portanto, que não havia situacionismo, mas uso ou interpretação situacionista da sociedade. Com os seguintes objetivos traçados, a IS delineou como objetivo a experimentação contínua de seus procedimentos: “Propomos uma pesquisa experimental a ser efetuada coletivamente em algumas direções que definimos neste momento e em outras, a serem ainda definidas. [...] Nossas hipóteses de trabalho serão reexaminadas a cada transformação futura, venha de onde vier” (DEBORD, 1957). A partir de então e posteriormente, com a continuidade de publicações periódicas e ações urbanas, a IS desenvolveu uma série de métodos de atuação que visavam revolucionar a cultura vigente. 1.5 Métodos de Ação Como dito anteriormente, a primeira fase de duração do movimento (1957– 1962) foi um período de conceituações predominantemente artísticas. Os conceitos criados pelos situacionistas suscitaram novas possibilidades de intervenção tanto no contexto urbano quanto no contexto comunicacional. Esse fato gerou, por parte dos situacionistas, um clima de experimentação que culminou na eleição de alguns métodos de procedimento. Alguns dos métodos elencados foram utilizados para a subversão de ideias publicitárias, em consonância com a lógica anticapitalista. Outros métodos tiveram maior relação com o contexto urbano. Com a experimentação de alguns desses métodos no domínio da cidade, também foi apresentada a possibilidade de realização de ações cujos caráteres se assemelham a hipóteses metodológicas, algumas em maior, outras em menor grau de concretização.

29 Em relação às hipóteses e projeções, podem-se destacar a busca situacionista pelo denominado urbanismo unitário e ainda a ideia-chave do grupo, que influenciou inclusive sua nomeação, a situação construída. Além disso, podem ser citados como técnicas mais famosas o desvio (ou détournement), a psicogeografia e a deriva. Os processos situacionistas e seus respectivos objetivos serão elencados a seguir, com exceção apenas da psicogeografia e da deriva, que em virtude da sua importância para a pesquisa, serão abordadas no segundo capítulo, à parte. 1.5.1 A Pintura Industrial A pintura industrial é fruto majoritariamente das ações do já citado pintor italiano e situacionista Giuseppe Pinot-Gallizio, que participara anteriormente do MIBI. PinotGallizio produzia rolos de tela pintados com pistolas e resina, feito com o intuito de cobrir grandes extensões e ambientes da cidade (JAPPE, 2011, p. 196). Era, portanto, uma ironia ao sistema de desenho industrial, pois na verdade o artista não produzia pinturas em série, mas modelos únicos de rolos de tela pintados manualmente. “Os rolos de tela resultantes eram descritos como industriais por causa da escala, e não por seu processo de produção” (HOME, 1999, p. 58). A intenção dos situacionistas, com a pintura em grande escala, era a de cobrir grandes espaços e até ruas inteiras (GROSSMAN, 2006, p. 53-54), desviando, assim, o aspecto das ambiências do local, como no caso da exposição Caverna da Antimatéria, onde as paredes de um museu foram cobertas por pinturas industriais.

Figura 8. Caverna da Antimatéria - Giuseppe Pinot-Gallizio (1958–1959).

30 Assim como arquitetos racionalistas do entreguerras tinham cobiçado a produção em massa como uma metáfora para revolucionar a produção de edifícios, os situacionistas, agora, atentavam para a produção em massa da arte para revolucionar a produção do espaço (SADLER, 1999, p. 37, tradução nossa).

A pintura industrial era, portanto, uma ação que lançava mão da ideia de automatismo pictórico ao mesmo tempo em que era artesanal, além de propor uma reinvenção dos espaços pensados para sua aplicação. Ela se enquadra como mais uma estratégia situacionista de reestruturação do elo entre arte e vida cotidiana e como uma proposição de ações de cunho lúdico e ativista na cidade, como afirma o próprio Pinot-Gallizio em seu Discurso sobre a Pintura Industrial e uma Arte Unitária Aplicável: Quando milhares de pintores que hoje trabalham em detalhes nonsense adquirirem as possibilidades oferecidas pelas máquinas, não haverá mais carimbos gigantes, chamados de pinturas, para satisfazer o investimento de valor, mas quilômetros de tecido oferecidos nas ruas, nos mercados, por permuta, permitindo a milhões de pessoas apreciar e estimular a experiência de seus arranjos (PINOT-GALLIZIO, 1959).

1.5.2 Détournement O détournement, ou “desvio de elementos estéticos pré-fabricados” (INTERNACIONAL SITUACIONISTA, 1958), foi um dos métodos situacionistas mais importantes, principalmente no período de início da circulação de ideias do movimento, dada a sua característica essencialmente propagandista. A técnica permitiu aos situacionistas a reprodução de suas ideias de uma forma artística e publicitária, mas ao mesmo tempo controversa e irônica em relação aos dois campos. Produto da Internacional Letrista, movimento antecedente à IS, o texto intitulado Um Guia Prático para o Desvio, lançado em 1956, é um dos registros que melhor esclarece o conceito. Segundo Guy Debord e Gil J. Wolman, autores do documento: “a interferência mútua de dois mundos sensíveis, ou a união de duas expressões independentes, supera os elementos originais e produz uma organização sintética de grande eficácia” (DEBORD; WOLMAN, 1956). O que os até então letristas defendiam nessa frase era a interferência estética em obras de arte já realizadas e

31 conhecidas, de forma que o produto dessa intervenção gerasse um resultado de interesse artístico e potência revolucionária. Segundo Perniola (2009, p. 28), o valor do desvio “consiste no fato de que, por meio dele, objetos e imagens estritamente ligados à sociedade burguesa [...] são subtraídos de seu destino e postos em contexto qualitativamente diverso, em uma perspectiva revolucionária”. Sendo assim, o détournement se configura como uma ação transformadora de artefatos de modo a deturpar sua condição espetacular, modificando-se em agente da revolução cotidiana. Apesar de ter sido concebida primordialmente em referência à deturpação de elementos artísticos, a noção de détournement pode ser transposta, de modo aproximado, para o âmbito urbano. Em relação à questão do desvio de elementos na cidade, o texto de Debord e Wolman também tece considerações: Se o desvio fosse estendido às realizações urbanísticas, poucos ficariam insensíveis à reconstrução exata de toda uma vizinhança de uma cidade em outra. A vida é sempre um labirinto: desviá-la dessa maneira a tornaria verdadeiramente bela (DEBORD; WOLMAN, 1956).

O desvio, portanto, atuaria como elemento de auxílio à lógica de encarar a cidade enquanto labirinto de jogos e realizações. Lógica esta da qual também fazem parte os métodos de investigação afetiva das cidades e as hipóteses de intervenções urbanas que promovessem a aproximação da arte à práxis vital. 1.5.3 Situação Construída Descrita pela própria IS como um “momento da vida, concreta e deliberadamente construído pela organização coletiva de uma ambiência unitária e de um jogo de acontecimentos” (INTERNACIONAL SITUACIONISTA, 1958), a construção de situações é periodicamente relembrada pela organização em seus escritos como uma forma de transformar as condições urbanas e sociais estabelecidas pela lógica capitalista e burocrática. Segundo Perniola (2009, p. 26), o conceito pode ser observado sob a perspectiva psicológica, técnico-urbanística e existencial. Em relação ao último termo, o autor destaca que a situação construída é uma composição de aspectos tanto

32 individuais quanto coletivos no espaço-tempo e valoriza o conceito como uma ação efetiva para que se consiga exceder a arte, além de destacar o caráter indeterminável do seu tempo de existência: A situação seria uma superação da arte, nela se manifestaria plenamente aquela abundância de energias vitais que é constrangida e reificada pela própria existência de um produto artístico, de uma obra de arte. [...] se diferencia tanto do instante irrepetível quanto do momento repetível: é quase impossível determiná-la exatamente, distinguindo seu início e seu fim (PERNIOLA, 2009, p. 27).

Ao tratar da construção de situações, Sadler (1999, p. 105) avalia a ideia como uma ambição admirável e relaciona-a com a expressão Gesamtkunstwerk, conceito estético oriundo do Romantismo alemão, referente à reunião de vários tipos de arte numa obra de arte única, total. Ainda segundo Sadler (1999, p. 105), “cada situação construída proporcionaria uma decoração e ambiente de tal poder que estimularia novos tipos de comportamento”. Tanto Sadler como Perniola relacionam a construção de situações a uma visão comunista de momento. Sadler (1999, p. 105) lembra que Lefebvre11, em seu texto publicado no ano de 1965, intitulado La Proclamation de la Commune, relata a existência de algo aproximado a uma “situação” em seus estudos sobre a Comuna de Paris. Perniola vai mais a fundo ao considerar o conceito de situação construída como uma ferramenta de transição para uma sociedade sem classes: “O conceito de situação parece, às vezes, designar um instrumento operativo intermediário entre a vida alienada e a sociedade sem classes, outras vezes, enfim, a sociedade comunista efetivamente realizada” (PERNIOLA, 2009, p. 28). A construção de situações foi, apesar da carga poética em sua conceituação, de suma importância para a solidificação dos preceitos situacionistas. Com sua característica de grande transformação do contexto urbano e social, as situações construídas faziam parte do plano da IS, que, junto com outros métodos desenvolvidos, visava implementar uma nova forma, igualmente revolucionária, de urbanismo: o urbanismo unitário.

11

Henri Lefebvre (1901–1991), filósofo e sociólogo francês.

33 1.5.4 Urbanismo Unitário Os planos situacionistas para as grandes cidades apontavam primordialmente para um novo modelo de disposição civil, o urbanismo unitário (UU). A construção de situações, a deriva e a psicogeografia seriam instrumentos indispensáveis nessa nova lógica de cidade. De acordo com Sadler (1999, p. 117, tradução nossa), “os situacionistas vislumbraram uma cidade constituída de situações grandiosas, entre as quais os habitantes iriam derivar, interminavelmente”. O UU seria o estágio no qual os métodos de experimentação da cidade e a criação de situações estariam tão aprimorados que as cidades passariam a traduzirse fisicamente numa dinâmica de constante mutação. O urbanismo unitário não aceita a fixação das cidades no tempo. Induz, ao contrário, à transformação permanente, a um movimento acelerado de abandono e de reconstrução

da

cidade

no

tempo

e,

ocasionalmente,

também

no

espaço

(INTERNACIONAL SITUACIONISTA, 1959).

O conceito apresentado previa uma sociedade cuja experiência coletiva de cidade pautasse de forma fundamental as relações sociais, ideia muito distante da lógica tradicional da sociedade baseada nas relações capitalistas. “Na cidade do urbanismo unitário, no entanto, as dinâmicas urbanas não seriam mais dirigidas pelo capital e pela burocracia, mas pela participação” (SADLER, 1999, p. 117). Perniola (2009, p. 24) corrobora esse argumento quando afirma que o funcionalismo se preocupa “somente com idoneidade dos meios em relação aos fins”, e acrescenta que a ideia improdutiva de felicidade do funcionalismo se articula em apenas duas frentes: “a circulação dos automóveis e o conforto da casa”. Igualmente descrito na revista IS n. 1 enquanto um “conjunto de artes e técnicas que concorrem para a construção integral de um ambiente em ligação dinâmica com experiências de comportamento” (INTERNACIONAL SITUACIONISTA, 1958), o UU, baseado na combinação de técnicas e procedimentos artísticos anticapitalistas, seria, portanto, o elemento principal da ação situacionista contra a sociedade do espetáculo. Entretanto, algumas questões a respeito disso podem ser ponderadas. Tendo em vista a utilização de métodos e uma teoria de crítica tão específica, além de atribuições consideravelmente limitadas, os situacionistas estariam se

34 aproximando de um racionalismo prático próprio do funcionalismo modernista. Ou seja, se a intenção principal do movimento era de subjugar a lógica capitalista e espetacular da sociedade, planejar esse processo num formato predeterminado de urbanismo poderia ser considerado um ato de reenclausuramento de ideias. Controverso ou não, esse tipo de raciocínio radical, sobretudo por parte de Guy Debord, principal liderança do grupo, chegou a levar à expulsão do situacionista Constant12, inventor do projeto Nova Babilônia. Nova Babilônia consiste numa megaestrutura criada por Constant como um projeto artístico e especulativo, inspirada no design experimental difundido nas décadas de 1950 e 1960 (SADLER, 1999, p. 127), que, segundo o autor, serviria como base para a implementação do UU. A estrutura de Nova Babilônia seria apta a variações modulares de acordo com o desejo de seus habitantes e própria para o exercício das diversas práticas situacionistas. Contudo, segundo Debord, por se tratar de uma proposição arquitetônica, o projeto de Constant limitava as questões primárias do UU, que seriam a participação coletiva no planejamento das cidades e a liberdade orgânica e formal dessa organização (DEBORD, 1959). Mesmo depois de sua saída da IS e da divergência com Debord, Constant continuou seu trabalho de especulação sobre Nova Babilônia (SADLER, 1999, p.123), concedendo-lhe forma visual e aprimorando seus conceitos de experiência coletiva de cidade. O UU se apresenta, portanto, como a proposta situacionista de revolução total da vida cotidiana; nesse estado de sociedade, os situacionistas atingiriam seu objetivo máximo, o de “não separar a utilização lúdica e direta da cidade, coletivamente sentida, do urbanismo como construção” (INTERNACIONAL SITUACIONISTA, 1959). E ainda seria no âmbito do UU que os conceitos situacionistas se realizariam e se desenvolveriam em sua plenitude. Os jogos e emoções reais nas cidades atuais são inseparáveis do projeto do UU, como mais adiante as realizações do UU não deverão estar separadas dos jogos e emoções que nascerem dessa realização (INTERNACIONAL SITUACIONISTA, 1959).

Apesar de majoritariamente concebidos e aprimorados pela IS, os conceitos de deriva, psicogeografia e situação construída — aplicações na cidade para a

12

Constant Nieuwenhuys (1920–2005), mais conhecido como Constant, pintor, escultor e arquiteto holandês.

35 constituição do urbanismo unitário — têm suas raízes advindas de experiências urbanas de tempos anteriores ao movimento, com os quais os situacionistas em muitos casos negaram relações. Os próprios movimentos de vanguarda anteriores à IS tanto no teatro, na literatura quanto em outros segmentos artísticos com tendência à crítica social, principalmente nas grandes cidades europeias, tiveram influência na construção do pensamento situacionista sobre as cidades. As concepções urbanas situacionistas estão, desse modo, embasadas num lastro histórico de experimentações, teorias e bibliografias que já traziam consigo elementos análogos no combate contra uma sociedade racionalista e burocrática, sendo, portanto, inegável o impulso dos movimentos de vanguarda e afins para o caminho situacionista. Um grande exemplo disso foi a considerável influência, por parte principalmente dos movimentos dadá e surrealista, na construção de dois dos conceitos principais da IS: a deriva e a psicogeografia.

36

2 DERIVA E PSICOGEOGRAFIA

2

37 2.1 A Herança Londrina e o Flâneur Parisiense Londres foi a primeira concretização urbana da revolução industrial, e a literatura inglesa do século XIX mostra a tomada de consciência dos problemas de atmosfera e das possibilidades qualitativamente diferentes numa grande aglomeração (INTERNACIONAL SITUACIONISTA, 1959).

Apesar de não terem sido citadas de modo periódico e veemente nas publicações do movimento, as influências acerca do pensamento situacionista podem ser notadas em diversas frentes de produção artística e teórica. Naturalmente, as associações entre teorias anteriores à IS em afinidade com a mesma, realizadas por estudiosos e acadêmicos interessados, foram sendo desenvolvidas e tomando corpo em tempo posterior ao encerramento do grupo. A citação em destaque acima é um dos poucos registros, por parte do grupo, relativos a um reconhecimento de qualidade e ideias afins concernentes a um tipo de movimento anterior. A referência situacionista a Londres não é por acaso. Segundo o escritor britânico Merlin Coverley (2010, p. 11), a construção do conceito de psicogeografia decorre de uma série de fatores, os quais estão predominantemente associados à história de duas grandes cidades europeias. Em seu livro intitulado Psicogeografia, o escritor e editor contemporâneo Merlin Corveley busca elucidar quais elementos sociais e artísticos contribuíram para o desenvolvimento do termo situacionista. Em relação ao conceito em si, pode-se expor que o autor encara o significado da psicogeografia de forma abrangente, descrevendo a expressão como “uma ferramenta de tentativa de transformação da vida urbana, inicialmente de proporções estéticas, mas posteriormente utilizada cada vez mais para fins políticos” (COVERLEY, 2010, p. 10). Coverley divide o livro em quatro capítulos, sendo o primeiro dedicado à capital inglesa e o segundo à capital francesa. Em ambos os capítulos, o autor descreve variados artistas, escritores, figuras públicas e até fictícias relacionadas a um comportamento marginal, irreverente e explorador em relação ao panorama urbano.

38 2.1.1 Londres Ao tratar da influência londrina na evolução do pensamento psicogeográfico, Coverley destaca principalmente autores e poetas literários, com exceção de um arqueólogo. O primeiro autor que ele relaciona como iniciante da lógica psicogeográfica é Daniel Defoe13: “Defoe é o primeiro escritor a oferecer uma visão de Londres baseada em sua própria e peculiar topografia imaginária” (COVERLEY, 2010, p. 35). Defoe é autor de um dos maiores romances da história ocidental, Robinson Crusoé. Segundo Coverley (2010, p. 36), ao escrever sua obra-prima em 1719, Defoe “introduz um personagem que tem influenciado tanto o romance quanto a literatura de psicogeografia desde então”. O segundo escritor lembrado por Coverley é William Blake14, considerado por Ian Sinclair15 o “Padrinho da Psicogeografia” (COVERLEY, 2010, p. 32). Segundo Coverley (2010, p. 40), a relação de Blake com a Londres da época se tornou tão intensa a ponto de ser indivisível. Ainda sobre essa estreita relação de Blake com Londres, Coverley destaca uma frase de Peter Ackroyd16, autor da biografia de Blake, que indica uma grande afinidade do poeta com a lógica psicogeográfica. Segundo Ackroyd (1995, p. 20 apud COVERLEY, 2010, p. 40), “Blake possuía um fortíssimo sentido de lugar e, por toda sua vida, ele foi profunda e variadamente afetado por áreas específicas de Londres”. O terceiro autor em destaque é Thomas de Quincey17, ao qual Coverley se refere como o primeiro efetivo praticante da psicogeografia (2010, p. 42). De Quincey foi durante boa parte de sua vida viciado em ópio, não por acaso uma de suas obras mais famosas é sua autobiografia Confissões de um Comedor de Ópio, de 1821. Esse fato fez com que De Quincey levasse uma vida de tendência boêmia e marginal. As viagens movidas a narcótico através da Londres de De Quincey em sua juventude parecem capturar exatamente um estado de deriva sem rumo e observação distante que viriam a se tornar as marcas da deriva situacionista por volta de cento e cinquenta anos depois (COVERLEY, 2010, p. 42, tradução nossa).

13

Daniel Defoe (1660–1731), escritor e jornalista londrino. William Blake (1757–1827), poeta, tipógrafo e pintor londrino. 15 Ian Sinclair (1943), escritor e cineasta britânico, psicogeógrafo contemporâneo. 16 Peter Ackroyd (1949), romancista, biógrafo e crítico literário londrino. 17 Thomas de Quincey (1785–1859), jornalista e escritor britânico. 14

39 Em pleno século XIX, Blake e De Quincey poetizavam Londres de acordo com os aspectos afetivos aos quais a cidade lhes submetia. Foram, portanto, iniciantes na arte de deambular pela cidade e apreender seus aspectos subjetivos, tendo influenciado posteriormente diversos autores e estudiosos. Robert Louis Stevenson18 e Arthur Machen19 são citados por Coverley por conta da relação de ambos com o imaginário gótico de Londres. Ao tratar de Stevenson, Coverley enaltece a sua influência em relação ao legado do cenário gótico: Fica claro para mim que são os sonhos e pesadelos de Stevenson que têm proporcionado a imagem mais duradoura da cidade, inspirado toda uma tradição da Londres gótica e estabelecido uma irreal, porém eterna, paisagem que colore eternamente nossa experiência de cidade (COVERLEY, 2010, p. 47).

Em relação a Machen, Coverley (2010, p. 50) salienta o fato do escritor ter montado uma trajetória de deambulações que escaparam da lógica de explorar o centro de Londres, partindo para uma investigação nas quadras dos subúrbios. Ao fim das considerações sobre Machen, Coverley reafirma o valor da influência do galês para a posteridade: “Machen aponta o caminho para a atual geração de psicogeógrafos demonstrando como eles podem explorar os limites exteriores e anônimos de Londres” (COVERLEY, 2010, p. 50). O último autor citado por Coverley relacionado a Londres é Alfred Watkins20. Watkins é artífice da teoria intitulada de Ley Lines, conceito relativo a alinhamentos geográficos de caráter histórico, podendo ser relacionado a significados ocultos e religiosos. O que Coverley avalia como elemento interessante do pensamento de Watkins é o fato do arqueólogo ter aberto o leque referente a questões pouco claras sobre forças e sensações que determinados lugares exercem sobre as pessoas. Segundo Coverley (2010, p. 54): “A noção original de Watkins reflete a reinterpretação da própria psicogeografia, que tem sido semelhantemente distanciada de suas origens”.

18

Robert Louis Stevenson (1850–1894), escritor, poeta e roteirista de viagem escocês radicado na Inglaterra. Arthur Machen (1863–1947), escritor e jornalista galês radicado na Inglaterra. 20 Alfred Watkins (1855–1935), escritor, arqueólogo autodidata, antiquário, fotógrafo e empresário britânico. 19

40 Apesar da grande preponderância de personagens londrinos, a influência sobre o conceito de psicogeografia não se resume apenas à capital inglesa. Como grande centro urbano da Europa, Paris também foi palco de personagens e ações cujo conteúdo foi importante para o desenvolvimento de intervenções qualitativas e subjetivas na cidade e consequentemente para o desenvolvimento do conceito de psicogeografia, ideia-chave do pensamento urbano situacionista. 2.1.2 Paris O elemento principal da influência de Paris em relação à psicogeografia foi o flâneur. O flâneur é um termo utilizado para descrever um tipo de personagem urbano existente na Paris do século XIX. A palavra, por sua vez, representa a fusão aproximada de termos como: andarilho, vagabundo, boêmio, indolente, entre outros (SHAYA, 2004). Por fim, o que a expressão tenta caracterizar é a representação de um personagem que vagueia pelas ruas das cidades e que não possui as preocupações habituais de um cidadão submetido às demandas morais e sociais comuns. Segundo Coverley (2010, p. 58), as primeiras descrições do termo na literatura são provenientes dos escritores Charles Baudelaire21 e Walter Benjamin22. Ambos os autores tratam do conceito em relação a um texto do escritor Edgar Allan Poe23. O Homem da Multidão, escrito por Allan Poe em 1840, retrata a explosão da modernidade europeia através de um personagem anônimo que persegue um homem pelas ruas de Londres. Sobre o flâneur preconizado por Allan Poe, Coverley faz o seguinte comentário: “o andarilho cujos movimentos transformam seu ambiente fornece uma ligação com uma tradição perdida, que recupera a cidade como local de experimentação política e estética” (COVERLEY, 2010, p. 59, tradução nossa). Em relação a uma concepção teórica acerca dos comportamentos do flâneur, existe uma divergência sobre às posições de Baudelaire e Benjamin. Segundo Coverley (2010, p. 61), o flâneur retratado por Baudelaire corresponde a uma figura idealizada num cenário igualmente idealizado, que se relaciona a todos os habitantes 21

Charles Baudelaire (1821–1867), ensaísta, crítico de arte, tradutor e poeta francês. Walter Benjamin (1892–1940), ensaísta, crítico literário, filósofo e tradutor alemão. 23 Edgar Allan Poe (1809–1849), autor, poeta, editor e crítico literário estadunidense.

22

41 de alguma maneira, mas que, ao mesmo tempo, não representa nenhum deles de forma concreta. No que diz respeito ao posicionamento de Benjamin, é possível afirmar que, apesar de compartilhar dos aspectos lúdicos descritos por Baudelaire sobre o flâneur, o escritor alemão descreve o personagem como mais um elemento da cadeia funcionalista da sociedade industrial, como exposto por Coverley (2010, p. 64): “em meio a processos invisíveis da sociedade industrial, o flâneur é reduzido a pouco mais que um dente da catraca, uma automação regida pelas pressões de uma multidão selvagem, tanto herói do modernismo quanto sua vítima”. Em última análise, Coverley (2010, p. 65) descreve o flâneur como uma figura composta de vários sinônimos: vagante, detetive, explorador, dândi24 e andarilho são exemplos de adjetivos que podem ser relacionados ao personagem. Entretanto, segundo o autor, “dentro desses muitos e frequentemente contraditórios papéis, sua característica predominante é a maneira como ele faz das ruas sua casa; esse é o seu verdadeiro legado para a psicogeografia” (COVERLEY, 2010, p. 65). As considerações literárias de Baudelaire e Benjamin por Paris e de Blake e De Quincey por Londres formam um esboço e contam uma história das primeiras formas de deambulação na cidade. Posteriormente a esse princípio de ação experimental urbana, tiveram início, no começo do século XX e também nas cidades citadas, algumas atitudes realizadas por movimentos de vanguarda, que procuraram desenvolver de forma artística a investigação e atuação no âmbito da cidade. 2.2 Passeios Dadaístas e Surrealistas No dia 14 de abril de 1921, em Paris, às três da tarde e sob um dilúvio torrencial, os membros do movimento dadá encontraram-se em frente à igreja de Saint-Julien-lePauvre. Com essa ação, pretendem inaugurar uma série de excursões urbanas aos lugares banais da cidade (CARERI, 2013, p. 71).

Por seu caráter cultural efervescente e com uma geografia urbana extremamente rica, Paris também foi palco do surgimento de variados movimentos

24 Dândi, figura comum ao fim do séc. XVIII e início do séc. XIX; homem de bom gosto, senso estético e passatempos refinados, mas não necessariamente pertencente à nobreza (Oxford English Dictionary. Oxford University Press, 1989).

42 artísticos, dentre os quais, dois se destacam pela sua posterior influência no pensamento urbano situacionista. Os movimentos dadaísta e surrealista foram as primeiras organizações artísticas dispostas a dar início a um tipo de investigação urbana da cidade enquanto prática estética. Os passeios por Paris, portanto, foram incorporando cada vez mais ações artísticas e políticas, que combatiam a visão estagnada da arte moderna e do modelo social presente. “Para os dadaístas, a frequentação e a visita aos lugares insossos são uma forma concreta de realizar a dessacralização total da arte, a fim de alcançar a união entre arte e vida, entre sublime e cotidiano” (CARERI, 2013, p. 74). 2.2.1 A Influência Dadaísta O movimento dadá desenvolveu, deste modo, as práticas antes perpetradas pelo flâneur, tratando a própria cidade como um organismo estético a ser descoberto. Em relação a essas ações dadaístas, o arquiteto e psicogeógrafo contemporâneo Francesco Careri25, em seu livro Walkscapes: o Caminhar como Prática Estética, destaca que, apesar de Duchamp26 ter proposto, em 1917, o ready-made27 de um edifício inteiro em Nova York, os dadaístas fizeram algo muito mais revolucionário na ação em Saint-Julien-le-Pauvre, pelo fato dela “contestar abertamente as tradicionais modalidades de intervenção urbana” (CARERI, 2013, p. 75). O grupo anunciou em jornais o comunicado do evento, convidando os interessados a participar e destacando o passeio como uma “nova forma de interpretação da natureza aplicada não à arte, mas à vida” (CARERI, 2013, p. 76). Segundo Careri (2013, p.77), durante o percurso os dadaístas fizeram leituras de textos do dicionário Larousse ao acaso, entregaram presentes e tentaram mudar a trajetória dos transeuntes nas ruas. Ainda de acordo com Careri (2013, p. 75), o passeio dadá foi de grande contribuição para o desenvolvimento da linguagem da arte urbana por representar a “primeira operação simbólica que atribuiu valor estético a um espaço vazio, e não a um objeto”.

25

Francesco Careri (1966), arquiteto italiano, professor do Departamento de Estudos Urbanos - Università degli Studi Roma Ter. Marcel Duchamp (1887–1968), pintor, escultor e poeta; artista modernista precursor do ready-made. 27 Ready-made, estratégia de uso e ressignificação de objetos industrializados em âmbito artístico.

26

43

Figura 9. Chamada para o evento dadaísta do dia 14 de abril de 1921.

O Dadaísmo deu início, portanto, à exploração das banalidades urbanas de uma forma extremamente inovadora. De acordo com o intuito do próprio movimento — contestar as formas de arte realizadas até o momento — os dadaístas perambularam pela cidade não apenas com o objetivo de intervir em lugares específicos, mas de analisá-la como um artefato artístico. A caminhada do grupo sem deixar indícios pela cidade, apenas com a finalidade de experimentá-la, além de se contrapor à lógica das clássicas modalidades de intervenção artística urbana, distanciava-se enormemente do caráter funcionalista do urbanismo modernista e suas pretendidas operações por considerar a cidade como um lugar de compreensão, e não de remodelação. “Com a exploração do banal, o dadá dá início à aplicação das pesquisas freudianas do inconsciente da cidade, tema que será desenvolvido a seguir pelos surrealistas, pelos letristas e pelos situacionistas” (CARERI, 2013, p. 77). 2.2.2 A Incursão Surrealista “A prática surrealista do automatismo, na qual ao inconsciente foi dado rédea livre, não se limitou apenas à escrita automática, mas se estendeu, também, à caminhada” (COVERLEY, 2010, p. 74).

44 O movimento surrealista publica seu primeiro manifesto em 1924, entretanto é possível argumentar que o surgimento do grupo data de 1918 (COVERLEY, 2010, p. 72), quando seus dois principais membros se conhecem: André Breton28 e Louis Aragon29. Ambos são descritos por Coverley (2010, p. 73) como não cumpridores de planos e adeptos de um estilo digressivo, fruto imperativo de uma Paris do início do século XX — na qual as ruas eram palco de boemia, prostituição — e vagabundos sem rumo. É nesse cenário que os surrealistas iniciam suas experimentações urbanas, as quais, apesar da posterior crítica de Guy Debord, foram de grande importância para a construção das máximas urbanas da IS. “A causa do fracasso ideológico do Surrealismo é ter acreditado que o inconsciente era a grande força, enfim descoberta, da vida” (DEBORD, 1957). Pelo início da década de 1920, Breton e Agaron, que também haviam participado das andanças dadaístas, incorporaram o mecanismo desse tipo de ação, adicionando a ele a lógica surrealista do automatismo psíquico. Segundo Careri (2013, p. 78), na primeira ação urbana surrealista, um grupo formado por quatro membros “decide partir de Paris para chegar de trem a Blois, uma pequena cidade escolhida ao acaso sobre um mapa, e daí seguir a pé até Romorantin”. O resultado dessa ação dos partidários do Surrealismo rendeu um texto escrito por Breton, que viria a reverberar, posteriormente, no próprio manifesto do movimento. Destaque para a concepção desse primeiro passeio, relatado em entrevista, por André Breton: Todos estávamos de acordo, então, em considerar que há uma grande aventura a ser realizada. “Abandonem tudo [...] Partam pelas ruas”: era o motivo das minhas exortações naquele período. Mas por quais ruas partir? Pelas ruas materiais, era pouco provável; pelas ruas espirituais, nós mal as víamos. Restava o fato de nos ter vindo a ideia de combinarmos esses dois tipos de rua (PARINAUD, 1952 apud CARERI, 2013, p. 79).

Os surrealistas, portanto, se utilizaram das deambulações para atingir um estado de torpor, no qual as relações psíquicas e espirituais do transeunte entravam em consonância com os aspectos do ambiente definido. Essa lógica de contato com

28 29

André Breton (1896–1966), escritor e poeta francês. Louis Aragon (1897–1982), escritor e poeta francês.

45 o inconsciente por intermédio de passeios foi de grande importância para o desenvolvimento das posteriores experiências letristas e situacionistas. Em decorrência da guerra, as ruas foram radicalizadas como nunca, e a mudança revolucionária estava no ar. Se o andarilho urbano dava continuidade ao seu caminhar sem rumo, consequentemente o próprio ato de andar tinha de se tornar subversivo, um meio de reconquistar as ruas para o pedestre. A psicogeografia estava prestes a nascer (COVERLEY, 2010, p. 77).

2.3 Os Conceitos Desde até mesmo antes da fundação da IS, alguns dos grupos que a originaram já discutiam práticas e comportamentos antiespetaculares que prezavam por uma aproximação do indivíduo com a cidade. Em 1954 o próprio Debord, juntamente com Jacques Fillon, escreve um texto para a revista Potlatch em que preconiza essas ações no âmbito urbano. As grandes cidades são favoráveis à distração que chamamos de deriva. A deriva é uma técnica de andar sem rumo. Ela se mistura à influência do cenário. Todas as casas são belas. A arquitetura deve se tornar apaixonante. Nós não saberíamos considerar tipos de construção menores. O novo urbanismo é inseparável das transformações econômicas e sociais felizmente inevitáveis (DEBORD; FILLON, 1954 apud JACQUES, 2003, p. 17).

Entretanto, foi na primeira revista do movimento situacionista que foi publicado o manifesto em que os membros registraram suas primeiras definições. Nela, os situacionistas descrevem, além de algumas das práticas analisadas no primeiro capítulo, dois conceitos inovadores de experiência na cidade: a deriva e a psicogeografia. A deriva é descrita especificamente pela revista IS n. 1, em 1958, como um “modo de comportamento experimental ligado às condições da sociedade urbana: técnica de passagem rápida por ambiências variadas [...]” (INTERNACIONAL SITUACIONISTA, 1958). Na revista de n. 2 da IS, também de 1958, é republicado um texto de autoria de Guy Debord, originalmente publicado em 1956, no periódico Les Lèvres Nuesse. O texto, intitulado Teoria da Deriva, se propõe a desdobrar ainda mais

46 o conceito, delineando inclusive instruções sobre o número ideal de participantes, duração das derivas e delimitação do campo de experiência. Durante as várias apreciações do texto, Debord manifesta algumas opiniões sobre os possíveis resultados da aplicação da deriva nas cidades, como, por exemplo: a possível identificação de espaços, aos quais o situacionista concede o título de unidades de ambiência, e a hipótese do reconhecimento de elementos chamados por ele de plaques tournantes, expressão francesa que representava uma “alusão às placas giratórias e manivelas ferroviárias responsáveis pela mudança de direção dos trens” (JACQUES, 2003, p. 23). As lições da deriva permitem estabelecer os primeiros levantamentos das articulações psicogeográficas de uma cidade moderna. Além do reconhecimento de unidades de ambiência, de seus componentes fundamentais e de sua localização espacial, percebem-se os principais eixos de passagem, as saídas e as defesas. Chegase à hipótese central de plaques tournantes psicogeográficas. Medem-se as distâncias que separam de fato duas regiões de uma cidade, distâncias bem diferentes da visão aproximativa que um mapa pode oferecer (DEBORD, 1958).

A realização da deriva pretende suscitar hipóteses, e não necessariamente resolvê-las (DEBORD, 1975, p. 58). A intenção é percorrer a cidade com a finalidade de fazer emergir dela elementos relativos ao acaso do passeio, como a organicidade de paisagem urbana, as espontâneas situações cotidianas e a efervescência própria do trânsito dos indivíduos, ou seja, a vida citadina em sua forma legítima. A diferença do trajeto de deriva para o caminhar habitual está na abertura do participante para as questões da geografia afetiva da cidade, nesse sentido “os acasos da deriva são fundamentalmente diferentes dos do passeio” (DEBORD, 1957). Em mais uma de suas críticas aos surrealistas, Debord comenta que a tentativa de passeio pelas cidades francesas, por parte de Breton e Aragon na década de 1920, fracassou pelo fato do grupo constituído por quatro surrealistas “pouco desconfiar do acaso” e complementa que “caminhar por descampados é sem dúvida deprimente, e as possíveis intervenções do acaso, em tais circunstâncias, são raríssimas” (DEBORD, 1958). Com essa afirmação Debord procura demonstrar a importância de se derivar em centros urbanos, dado que a premissa do acaso no âmbito de uma

47 cidade grande e movimentada permitiria um maior “reconhecimento de efeitos de natureza psicogeográfica” (DEBORD, 1958). Apesar de usar essa premissa do acaso, da deambulação, a deriva preconizada por Debord (1958) deveria ser produzida de um modo particular, dentro de limitações previamente estabelecidas, como o campo experimental, o tempo ideal e o número de participantes. Essas restrições inerentes ao método podem parecer uma contradição à lógica de negação do funcionalismo e do planejamento defendida pelos situacionistas. Planejamento é a palavra da moda, a palavra em evidência, dizem alguns. Os especialistas falam de planejamento econômico e de urbanismo planejado, depois dão uma piscadela com ar conveniente e, contanto que haja reciprocidade na encenação, todo mundo aplaude (VANEIGEM, 1961, tradução nossa).

Entretanto, essas limitações se apresentam apenas como uma circunscrição natural ao exercício da deriva, que tem uma finalidade claramente experimental. Elas são determinadas apenas como uma maneira de balizar a execução da técnica. O objetivo principal da deriva continua sendo o de contribuir para o desenvolvimento das premissas situacionistas, no intuito de romper com a lógica do espetáculo. “A deriva é uma transgressão do mundo alienado” (SADLER, 1999, p. 94, tradução nossa). É possível admitir, portanto, que a deriva situacionista é um procedimento que envolve uma ação de experiência direta com a cidade, que investiga suas sinuosidades e seus aspectos subjetivos com o intuito de reunir pressuposições concernentes à relação afetiva entre bairros e, acerca das distâncias e proximidades geográficas, componentes que remetem a outro importante conceito cunhado pelos situacionistas, o da psicogeografia. A prática da deriva está intimamente ligada à psicogeografia. A psicogeografia também é descrita pela revista IS n.1 como um “estudo dos efeitos exatos do meio geográfico, conscientemente planejado ou não, que agem diretamente sobre o comportamento afetivo dos indivíduos” (INTERNACIONAL SITUACIONISTA, 1958). Desse modo, o indivíduo que investigue as implicações do meio urbano de maneira subjetiva pode se considerar um psicogeógrafo. Para Perniola, essa intenção situacionista de subjetivar a racionalidade das cidades constituía uma relação de afronta a uma visão tradicionalista, estritamente

48 geométrica e racional: “na base de todas essas pesquisas está a tentativa de superar a geometria euclidiana, a qual funda uma visão exclusivamente quantitativa do espaço” (PERNIOLA, 2009, p. 24). Desse modo, os situacionistas iniciaram, com a psicogeografia e a deriva, uma mudança de perspectiva que contrapunha a tradição de analisar as cidades de maneira quantitativa com um inovador aspecto qualitativo. Na tentativa de elucidar a relação entre os termos deriva e psicogeografia, parece adequado afirmar que a deriva se constitui como uma técnica de investigação da psicogeografia, como é descrito no texto apresentado por Debord na fundação da Internacional Situacionista: “uma primeira tentativa de modo de comportamento já foi obtida com o que chamamos de deriva, [...] um meio de estudo da psicogeografia e da psicologia situacionista” (DEBORD, 1957). Essa tese também é confirmada por outro membro da IS, o libanês Abdelhafid Khatib, que afirma em 1958: “Os recursos da psicogeografia são numerosos e variados. O primeiro e mais sólido é a deriva experimental” (KHATIB, 1958). E ainda pela arquiteta Paola Jacques, pesquisadora assídua da teoria situacionista, quando afirma em seu livro Apologia da Deriva (2003, p. 22) ser evidente que “a deriva era o exercício prático da psicogeografia”. Sendo assim, é possível admitir que a psicogeografia se configura como uma ciência ou método de exploração dos aspectos afetivos da cidade, tendo a deriva como principal elemento de investigação. A relação intrínseca entre ambos artifícios proporcionou aos situacionistas um novo modo de encarar o processo de investigação de cidades. Aos seus modos, mas amparados nessas proposições, os artistas se debruçaram pela cidade gerando relatos, cartografias e montagens fotográficas que traziam à tona aspectos até então escondidos pela espetacularização das cidades.

Figura 10. Détournement de uma fotonovela criada por Ralph Rumney com imagens de Veneza, 1957.

49

Enquanto

a

psicogeografia

fornecia

aos

situacionistas

uma

visão

fenomenológica das cidades, a deriva servia como um instrumento de levantamento de dados, além de força motriz do levantamento de hipóteses psicogeográficas. A repetição dessas técnicas por parte dos situacionistas confirmava, portanto, a asseveração de Debord (1957): “O progresso da psicogeografia depende muito da extensão estatística de seus métodos de observação e, principalmente, da experimentação por intervenções concretas no urbanismo”. 2.4 A Cidade como Labirinto A Internacional Letrista e seu posterior desdobramento, a Internacional Situacionista, são fruto quase que direto dessa forte carga teórica urbana, vinda de Londres, do flâneur e das vanguardas parisienses. A deglutição intelectual dessas práticas e teorias somada ao intuito de mudar radicalmente as condições de vida em sociedade e de superar a arte moldaram as acepções situacionistas sobre as cidades. O produto básico desse ciclo foram os métodos e as conjecturas anteriormente mencionados: a criação de situações, o urbanismo unitário, a deriva e a psicogeografia. Em comum entre todos esses conceitos está a lógica da cidade como labirinto, ou seja, como um ambiente propício à distração e ao prazer do andar aleatório. “Os labirintos pareciam ser o ambiente ideal para induzir a interação social necessária para as situações” (SADLER, 1999, p. 115, tradução nossa). Os situacionistas foram os primeiros grandes partidários do conceito de jogo relativo ao urbanismo. Essa noção de brincadeira aplicada às cidades visava projetar um aspecto lúdico necessário aos métodos de investigação, para que estes não fossem encarados de uma maneira funcionalista, mas de um modo novo e divertido. Os situacionistas, que se especializaram na exploração do jogo e do lazer, compreendem que o aspecto visual das cidades só tem valor se relacionado com os efeitos psicológicos que possa produzir, [...] pensamos que todo elemento estático e inalterável deve ser evitado e que o caráter variável ou móbil dos elementos arquitetônicos é condição para uma relação flexível como os acontecimentos que neles serão vividos (NIEUWENHUYS, 1959).

50 Os membros da IS acreditavam que o jogo era um dos elementos principais na construção de uma nova perspectiva de cidade. Entretanto, a noção do jogo situacionista não pode ser confundida com a consciência de jogo ligada ao desenvolvimento do capitalismo: o jogo não deveria se limitar à lógica ignóbil do simples ganhar ou perder. A nova fase de afirmação do jogo deveria caracterizar-se pelo desaparecimento de todo elemento de competição [...]. O elemento de competição deve desaparecer em favor de um conceito mais realmente coletivo de jogo: a criação comum das ambiências lúdicas escolhidas (INTERNACIONAL SITUACIONISTA, 1958).

Essa conceituação do jogo situacionista também está ligada ao conceito elaborado Johan Huizinga30 em 1938, o Homo Ludens. A teoria de Huizinga (2000, p. 13) aceita o jogo enquanto elemento inato aos seres humanos e aos animais, reconhecendo-o como uma divisão elementar da vida e, por consequência, precedente à cultura. De acordo com o autor, “o jogo realiza, na imperfeição do mundo e na confusão da vida, uma perfeição temporária e limitada” (HUIZINGA apud INTERNACIONAL SITUACIONISTA, 1958). É dele que os situacionistas retiram a noção do jogo enquanto significado essencial da vida. “Nessa perspectiva histórica, o jogo — experimentação permanente de novidades lúdicas — nunca aparece fora da ética, da questão do sentido da vida” (INTERNACIONAL SITUACIONISTA, 1958). Para tentar exemplificar a pertinência do jogo nos métodos situacionistas, serão expostos alguns experimentos realizados durante a existência do grupo: intervenções ou tentativas de alteração efetiva dos ambientes construídos, que tinham como objetivo perpetrar e tornar habitual a construção lúdica na vida cotidiana e ainda instigar a experimentação e o levantamento de hipóteses sobre uma possível cidade coletiva.

30

Johan Huizinga (1872–1945), professor e historiador holandês.

51 2.4.1. O Mercado de Les Halles Como parte integrante da revista IS n. 2, de 1958, foi publicado um texto de autoria de Abdelhafid Khatib31, um documento intitulado Esboço de Descrição Psicogeográfica do Les Halles32, que reporta uma interessante experiência de deriva e anotações psicogeográficas realizada num bairro de Paris. No início do texto, Khatib (1958) descreve a deriva e psicogeografia como formas desenvolvidas pelos situacionistas de “rearrumar o meio urbano” e de “modificá-lo substancialmente”. Logo após, ele traça uma opinião sobre as possibilidades cartográficas do estudo dos conceitos. “O resultado desse estudo pode, em retorno, modificar essas representações cartográficas e intelectuais no sentido de uma maior complexidade, de um enriquecimento” (KHATIB, 1958). Nesse ponto, o argelino demonstra a preocupação por parte dos membros da IS em mudar a relação tradicional referente à concepção de mapas. A relação entre o homem e sua cartografia poderia passar de uma representação geometricamente objetiva para uma em que os aspectos qualitativos pudessem ser observados e apreendidos, como no recorte apontado por ele referente às unidades de ambiências no bairro de Les Halles.

Figuras 11 e 12. Mapas de unidade de ambiência e fluxos internos de Les Halles.

31 32

Abdelhafid Khatib, argelino; membro da Internacional Situacionista. Les Halles, bairro parisiense onde até 1960 existiu o mercado central de Paris.

52 Os posteriores comentários, por parte de Khatib, dos aspectos geográficos no bairro de Les Halles são realizados em forma de um relato descritivo. As fronteiras, as ruas, o tipo de ocupação e as características arquitetônicas são relatados detalhadamente. A fidelidade relativa à Teoria da Deriva, de Debord, é outro elemento de importante destaque; Khatib descreve zonas de atributos particulares e as intitula, tal qual a teoria debordiana, de unidades de ambiência: “a primeira zona, a leste, está compreendida entre as Ruas Saint-Denis de Turbigo, Pierre-Lescot e a Praça SainteOppurtune” (KHATIB, 1958). E, além disso, descreve um tipo de nó urbano cuja centralidade possui características próprias de uma plaque tournante. A zona de interferência central, a plaque tournante das diversas direções de ambiências do Les Halles, é, como já indicamos, o complexo Bourse du Commerce/Praça dos Deux-Écus [...]. As diversas direções que se cruzam nessa plaque tournante afetam muito o itinerário que um indivíduo ou grupo deseje efetuar, com aparente espontaneidade, dentro ou fora do Les Halles (KHATIB, 1958).

A descrição do Les Halles é por fim encerrada por Khatib com considerações que fazem apologia à apropriação dos transeuntes do bairro em função da construção de uma vida livre e coletiva. Segundo o autor, em conclusão a todo o relato psicogeofráfico, “convém propor que esse mercado se torne um parque de diversões para a educação lúdica dos trabalhadores” (KHATIB, 1958). 2.4.2 A Zona Amarela A Descrição da Zona Amarela consiste em um projeto arquitetônico fictício concebido por Constant. O nome dado ao plano tem origem na cor do solo predominante, e ele foi publicado originalmente na revista IS n. 4. As descrições realistas referentes a um possível projeto edificado se alternam com relatos subjetivos concernentes à ambiência do conjunto. Os diferentes níveis — três a leste, dois a oeste — são sustentados por uma construção metálica, alteada do solo. Para a sustentação dos andares e dos prédios internos utilizou-se o titânio. [...] A longa estada num desses locais tem o benéfico efeito de uma lavagem cerebral e costuma ser praticada na intenção de desmanchar os possíveis novos hábitos (CONSTANT, 1960).

53

O caráter lúdico do texto reafirma a questão fundamental do discurso situacionista, a defesa do jogo e suas derivações. Também pode ser percebida a intenção, por parte de Constant, de promover uma desorientação labiríntica ao implementar aspectos mutáveis e grandes variações de atmosferas no projeto da edificação. A formação em níveis superpostos implica que a maior parte da superfície deve ser iluminada e climatizada artificialmente [...]. Isso faz parte da integrante dos jogos de ambiência, que são uma das atrações da Zona Amarela. Convém notar, aliás, que em vários lugares passa-se bruscamente para o ar livre (CONSTANT, 1960).

Figuras 13 e 14. Planta baixa e maquete do projeto da Zona Amarela.

Talvez, pela sua formação em arquitetura, Constant tenha absorvido as teorias situacionistas com uma tendência a uma produção material dos espaços. No entanto, suas contribuições teóricas e plásticas foram de fundamental importância para a discussão do grupo acerca de seus objetivos. A Zona Amarela se concatena com várias outras proposições situacionistas, cujo intuito principal era de promover situações inusitadas em contraposição à passividade e alienação do espetáculo (DEBORD, 1957).

54 2.4.3 O Labirinto Holandês Em 1959, os situacionistas acertaram com o Stedelijk Museum de Amsterdã a organização de uma manifestação geral, em parte usando os locais desse museu e em parte fora dele. Tratava-se de transformar em labirinto as salas 36 e 37 do museu no mesmo momento em que três dias de deriva sistemática seriam efetuadas por três equipes situacionistas (INTERNACIONAL SITUACIONISTA, 1960).

O texto intitulado O Mundo como Labirinto foi publicado na revista IS n. 4, no ano 1960. Os relatos presentes no documento afirmam a intenção dos situacionistas de construir um labirinto no museu holandês, que não foi bem-sucedida por conta de restrições elaboradas pela Prefeitura de Amsterdã.

Figuras 15 e 16. Mapas das estruturas do labirinto.

Os relatos descritivos do labirinto holandês se assemelham com os da Zona Amarela na intenção de transmitir uma atmosfera de ludicidade em relação ao projeto. As passagens, conformação e nuances da proposta são poeticamente descritas no intuito de estimular mais uma vez a lógica do jogo. O labirinto, cujo plano havia sido estabelecido pela seção holandesa da IS (...) consiste em um percurso que pode variar, teoricamente, de 200 metros a 3 quilômetros. O teto, ora a 5 metros, ora a 2,44 m (parte cinzenta), pode baixar, em certos lugares, a 1,22 m. Seu arranjo não visa a nenhuma decoração de interior nem à miniatura de ambiências urbanas, mas tende a constituir um meio misto, jamais visto, pela mistura de características internas (apartamento decorado) e externas (urbanas) (INTERNACIONAL SITUACIONISTA, 1960).

55 A ideia prática do labirinto evoca a teoria da construção de situações por intermédio da invenção de espaços-tempo nos quais a deriva e a psicogeografia pudessem ser executadas e discutidas. Apesar da não concretização do plano do labirinto, o texto situacionista aponta para a possibilidade de sua execução em outros lugares, numa nova tentativa experimental de condicionar situações. “Esse labirinto não deve ser edificado numa outra construção, mas, com mais flexibilidade e em função direta das realidades urbanas, num terreno vago, bem situado, da cidade escolhida, a fim de ser o ponto de partida de derivas” (INTERNACIONAL SITUACIONISTA, 1960). 2.4.4 Nova Babilônia Como dito anteriormente, a Nova Babilônia foi um projeto de caráter polêmico para o movimento, também realizado pelo holandês Constant. Segundo Sadler (1999), o projeto consumiu ao todo mais de uma década de trabalho do artista. A essência do trabalho consistia em tentar traduzir os conceitos de urbanismo unitário e situação construída numa estrutura que pudesse ser alterada de forma constante e autônoma, como um projeto de cidade situacionista (WIGLEY; CONSTANT, 1998). Além disso, a adaptação dos habitantes à Nova Babilônia permitiria, segundo Constant (1972), a vivência de um estado de deriva quase que permanente, onde a lógica do jogo e do labirinto seria habitual. Eu vejo a Nova Babilônia como uma teia, uma rede que recobre todo o mundo. Viver em um lugar fixo não faz parte da Nova Babilônia, o modo de vida sedentário que remonta desde o final da idade da pedra, quando a humanidade começou a produzir, quando o homem fundou comunidades e adotou a agricultura. Antes dessa era, os homens eram nômades, caçadores. A minha hipótese é a de que com o desaparecimento do trabalho monótono nós acabaremos com a necessidade dos indivíduos de permanecerem presos a determinados locais. Na Nova Babilônia não há mais casas particulares. A cidade inteira é uma imensa e coberta casa coletiva, uma casa com incontáveis quartos, salas e corredores, onde poderemos passear por dias e semanas, mas onde também encontraremos pequenos espaços para a nossa privacidade. A Nova Babilônia é um labirinto inesgotável em suas variações, um palácio com milhares de quartos (CONSTANT, 1962 apud WIGLEY; CONSTANT, 1998).

56

Figura 17. Implantação da Nova Babilônia no tecido urbano da cidade.

É amplamente notável a influência dos conceitos situacionistas, principalmente o do urbanismo unitário, na concepção do projeto. A lógica da não aceitação das cidades fixas no tempo e no espaço, além da inclusão das experiências de deriva e psicogeografia como práticas a serem realizadas no projeto demonstram a preocupação de Constant em tornar viável uma vivência situacionista num edifício arquitetônico. Segundo Sadler (1999, p. 123), Nova Babilônia consistia numa “tentativa de dar forma visual ao urbanismo unitário”. Entretanto, mesmo com o alinhamento de Nova Babilônia com a teoria do UU, o projeto foi alvo de grandes críticas dos situacionistas, especialmente de Guy Debord. As críticas de Debord e dos situacionistas recaíam principalmente sobre o caráter cerceador da proposta de um edifício (SADLER, 1999), uma vez que uma das grandes críticas dos situacionistas era justamente dirigida à lógica de pensar espaços de forma individualista, própria dos arquitetos. Isso demonstra, em parte, um pensamento coerente por parte dos situacionistas, considerando-se que o texto de apresentação da IS, escrito por Debord, já incorporava a seguinte sentença: Cabe deixar claro que não se pode considerar criação aquilo que é mera expressão pessoal no âmbito de meios criados por outrem. Criar não é arrumar objetos e formas, mas é inverter novas leis a respeito desse arranjo. Enfim, é preciso acabar entre nós com o sectarismo, que se opõe à unidade de ação com possíveis aliados [...] (DEBORD, 1957).

57

Figura 18. Organicidade de Nova Babilônia.

Mesmo tendo sido alvo de contestações ainda no início do projeto, Constant “continuou a abordar os problemas de jogo, flexibilidade e nomadismo em Nova Babilônia” (SADLER, 1999). Esse processo culminou, inevitavelmente, em formatos visuais de apresentação da proposta. Fato que, por um lado, trouxe uma impressionante expressão plástica e artística ao trabalho, mas que, por outro, só veio a aumentar o conflito com as ideias de não planejamento físico da IS.

Figura 19. Experimento de maquete da Nova Babilônia.

58 Por volta do início década de 1960, por conta dos diversos desentendimentos, a relação de Constant com a IS é finalmente rompida, muito embora o artista tenha continuado a trabalhar no aprimoramento dos conceitos de Nova Babilônia por pelo menos durante mais uma década. E ainda assim sem nunca abdicar de seus argumentos principais para o projeto, de que a Nova Babilônia seria “um projeto social e coletivo e que seu trabalho deveria ser entendido como nada além do que uma estrutura projetada para a construção de situações e decoração para uma vida de lazer” (SADLER, 1999). 2.4.5 The Naked City The Naked City (A Cidade Nua) é, talvez, a obra mais famosa da Internacional Situacionista, devido à sua ampla divulgação por intermédio da imagem principal do projeto. Concepção de Guy Debord e Asger Jorn, de 1957, representa um estudo de Paris baseado nas hipóteses de reconhecimento de unidades de ambiência, plaques tournantes e outros elementos que a aplicação da deriva e da psicogeografia conseguiram revelar. Apesar do grande reconhecimento de The Naked City, o mapa foi uma experiência precedida pelo Guia Psicogeográfico de Paris, de 1956, cuja autoria também foi responsabilidade de Debord e Jorn. A cartografia representativa do Guia Psicogeográfico se assemelha bastante com a do segundo trabalho em termos plásticos. Para sua construção foram utilizados recortes da cartografia original da cidade e adicionados elementos estéticos, que podem ser vistos, inclusive, como détournements visuais. Ambos os mapas demonstram uma experiência de espaço fragmentada e descontínua, áreas que são experimentadas como distintas são separadas no mapa para representar as unidades de ambiência. Em paralelo, as setas servem para relacionar essas diferentes zonas e baseiam-se nas forças de atração e repulsão reconhecidas no decurso da deriva, podendo ser consideradas, de acordo com Debord, como “os principais eixos de passagem, as saídas e defesas” (DEBORD, 1958).

59

Figura 20. Guia Psicogeográfico de Paris. Guy Debord, 1956.

Figura 21. The Naked City. Guy Debord, 1957.

60 As deduções foram feitas de acordo com as “derivas” em torno da cidade, à procura de provas sobre a condição da Paris contemporânea; Debord e Jorn enfatizaram o rigor do seu trabalho de detetive roubando o título The Naked City do famoso drama e documentário de 1948 sobre detetives de Nova York em ação (SADLER, 1999, p. 61).

A Cidade Nua demonstra grande parte de sua força em sua composição visual, marcada pelas setas e pelos recortes de cartografia; o mapa criado por Debord e Jorn se configura como uma peça estética enormemente comunicacional. O impacto das relações subjetivas intrínsecas ao mapa transmite ao admirador a ideia de que as representações cartográficas detêm um potencial muito maior, o qual o funcionalismo geométrico por si só não consegue atingir. Os mapas psicogeográficos são um convite à experimentação de derivas e relatos nas cidades contemporâneas. Aliadas ao desenvolvimento social da pós-modernidade e da era digital, as intervenções urbanas contemporâneas podem tomar partido desses conceitos com o intuito de criar novas perspectivas sobre as cidades. Torna-se cabível, portanto, reafirmar a proclamação de Debord em Cosio d’Arroscia (1957) “Já se interpretaram bastante as paixões; tratase agora de descobrir outras”. 2.5 Deriva e Psicogeografia na Contemporaneidade Segundo alguns autores, reportagens e documentos atuais, é possível perceber uma crescente onda de reavivamento das teorias situacionistas principalmente no final da década de 1990 e começo dos anos 2000. Assis e Machado (2003) argumentam que esse novo estímulo à IS se deu, muito provavelmente, por conta da publicação por parte de grandes editoras e também de editoras independentes de livros sobre Guy Debord e sobre o movimento situacionista. Aliado a esse fato, deve-se salientar que, em tempo paralelo ao mencionado, ocorre o importante fenômeno da popularização da internet, que se configura como um elemento amplificador da divulgação das ideias situacionistas, tendo em vista que o caráter de rede, de velocidade e de fragmentação próprios da internet se assemelham ao da produção bibliográfica situacionista. É plausível considerar que os estudos sobre deriva e psicogeografia na contemporaneidade se encontram em efervescência, mas ainda com uma grande possibilidade de desenvolvimento.

61 2.5.1 A IS Revisitada O professor de história da arquitetura da Universidade da Califórnia, Simon Sadler, em seu livro de 1999, The Situationist City, delineia um apanhado histórico e crítico, fazendo respeitáveis considerações inclusive sobre o caráter utópico do movimento. O italiano Mario Perniola, estudioso da Estética, também traz à tona considerações importantes acerca do caráter artístico e político da IS no livro Os Situacionistas: o Movimento que Profetizou a Sociedade do Espetáculo, onde o autor considera como um dos grandes desejos do movimento a superação da arte e a quebra do establishment. Mckenzie Wark, australiano e professor da universidade The New School, em Nova York, publicou em 2011 o livro The Beach Beneath the Street (A Praia sob a Cidade). Wark investiga a diversidade das teorias situacionistas traçando o desenvolvimento do grupo a partir da boemia parisiense da década de 1950 até os eventos de protesto em maio de 1968. Além da riqueza historiográfica do texto, o autor tece considerações sobre os possíveis impactos contemporâneos da teoria situacionista. Também professor em Nova York, na Universidade Estadual de Binghamton, o americano Tom McDonough é conhecido por suas publicações sobre a IS. Dentre as mais importantes estão Guy Debord and the Situationist International, de 2004, e The Situationists and the City, de 2009. A ênfase em relação à segunda fica por conta da reunião dos principais textos situacionistas em língua inglesa e também pela rica e variada documentação de ilustrações referentes ao movimento. Ainda no âmbito internacional, pode-se destacar as contribuições do artista, professor, teórico e curador independente americano Keith Sanborn. Sanborn é autor de vários ensaios críticos, publicações em periódicos e palestras em espaços de arte e ensino. Numa de suas recentes palestras, intitulada de Duas Abordagens do Desvio: Guy Debord e René Viénet33, o artista analisa as premissas do desvio, ou détournement, nas obras cinematográficas dos dois situacionistas correlacionandoas, inclusive, com elementos característicos de desvio em outros campos da arte, como na literatura.

33

René Viénet (1944), sinólogo, teórico situacionista e cinegrafista francês.

62 No Brasil, o maior documento sobre a IS é o livro de Paola Jacques, Apologia da Deriva, de 2003, que reúne os mais importantes textos dos teóricos situacionistas traduzidos para português. Além disso, Jacques faz inferências importantes sobre o pensamento situacionista e a circulação das ideias em seu contexto histórico. É valido também considerar o livro Arquitetura e o Urbanismo Revisitados pela Internacional Situacionista (2006), resultado da pesquisa de iniciação científica de Vanessa Grosman, na USP, responsável por analisar as reverberações da teoria situacionista na arquitetura e no urbanismo contemporâneos. Na Londres contemporânea, existe uma particularidade interessante sobre o pensamento psicogeográfico. É possível distinguir alguns autores que somam várias publicações que tratam do tema, como Iain Sinclair, autor e editor de livros como London Orbital (2003) e London: City of Disappearances (2006), que descrevem a cidade sob uma visão psicogeográfica; o escritor Will Shelf e o cartunista Ralph Steadman, que, apesar de britânicos, publicam em 2006 o livro ilustrado Psycogeography, com relatos de ambiências e situações vividas em Nova York. Outro escritor britânico de interesse situacionista é Stewert Home, autor do livro Assalto à Cultura (2006), e estreitamente ligado a um grupo intitulado Associação Psicogeográfica de Londres (London Psychogeographical Association – LPA), coletivo que compartilha algumas experiências situacionistas na década de 1950, passa um grande tempo inativo e retorna timidamente por volta da década de 1990. Atualmente ainda é possível consultar alguns dos textos da LPA em uma plataforma on-line, e alguns de seus membros ainda realizam derivas e escrevem sobre psicogeografia (COVERLEY, 2010). O americano David Prescott-Steed também merece destaque por sua recente publicação The Psychogeography of Urban Architecture (2013), que, segundo o próprio autor, “explora como uma improvisação, criativa e prática traduzida como deriva, trabalha para desfamiliarizar nossa experiência moderna e tardia de ambiente construído, promovendo uma nova visão sobre comportamentos culturais rotineiros” (PRESCOTT-STEED, 2013). Outra distinta obra atual que incide sobre as questões relativas à deriva e à psicogeografia é Walkscapes: o Caminhar como Prática Estética (2013), do arquiteto italiano Francesco Careri. Walkscapes descreve a percepção da paisagem através do ato de caminhar: narrando desde o nomadismo primitivo até as vanguardas artísticas,

63 em especial o movimento dadá e o Surrealismo. A narrativa do livro inicia no começo do século XX, mas desemboca na Internacional Letrista e na Internacional Situacionista, perpassando ainda pelas questões relativas ao grupo Stalker, do qual Careri participou, à arte conceitual e à land art. O estudo e a compreensão do panorama atual dos estudos psicogeográficos é de caráter fundamental para uma pesquisa contemporânea sobre o assunto. O entendimento do estado da arte permite a investigação e a contextualização dos problemas a serem explorados e consequentemente uma maior relevância das possíveis contribuições a serem apresentadas em pesquisa. 2.5.2 Casos Baseados tanto na teoria original dos anos 1960 como nas reverberações contemporâneas descritas, alguns grupos, coletivos de arte e profissionais de áreas afins produzem cada vez mais experimentos relacionados à experiência de cidade, por intermédio seja da deriva e da psicografia, seja apenas de apreensão e registro de afetividades. Com a rápida popularização do uso da internet e a facilidade de aquisição de aparelhos tecnológicos, a maioria desses experimentos já se apresentam em formato de mídias locativas, com fotografias, vídeos e georreferenciamento digitais, além de muitas vezes serem registrados on-line. Com o intuito de exemplificar algumas dessas ações, serão elencados a seguir alguns trabalhos de caráter experimental que suscitaram hipóteses e reflexões acerca do uso da deriva e da psicogeografia nos dias atuais. A escolha desses trabalhos se deu, principalmente, pela capacidade de adaptação das teorias situacionistas a instrumentos de registro, apreensão e intervenção na cidade próprios da contemporaneidade. 2.5.2.1 Mapeando Lençóis

O trabalho Mapeando Lençóis se apresenta como um tipo de relato cartográfico colaborativo devidamente construído com a previsão de uso de mídias locativas e organizado pela pesquisadora e artista Karla Brunet. Durante o projeto, foi elaborado

64 um mapa juntamente com os participantes do evento Submidialogia e a comunidade local da cidade de Lençóis/BA, em especial crianças. O projeto é uma mistura de low e high tech. O projeto utilizava precários mapas fotocopiados em papel A3, onde o “errante” podia desenhar o seu caminho com canetas coloridas. […] A motivação veio do interesse em misturar essas práticas situacionistas com tecnologias como o celular a internet em um lugar com pouca infraestrutura. Em uma cidade pequena, mesclando experiências dos visitantes de fora, de grandes centros urbanos, e habitantes da cidade (BRUNET, 2008).

O registro cartográfico, que descreve os fluxos e os trajetos no espaço, foi estabelecido a partir de uma deriva pela cidade. Essa deriva contou com anotações analógicas, diretamente no mapa impresso e com um posterior registro digital, com a submissão de fotografias, dados de áudio e vídeo no site do projeto: www.lencois.art.br.

Figura 22. Imagem do site do projeto Mapeando Lençóis.

A introdução do uso de um site da internet para registro da deriva em Lençóis demonstra o quanto os parâmetros da cartografia podem ser expandidos nos dias atuais. Além disso, o trabalho evidencia uma maneira diferenciada de mapear os trajetos da deriva. A ilustração também não faz uso efetivo do mapa da cidade e demonstra sua atividade através das linhas de força, diferenciadas por cores, referentes aos percursos produzidos, destacando locais importantes do trajeto com pontos inseridos nessas linhas.

65 2.5.2.2 Amsterdam RealTime Em 2002 aconteceu uma exposição comemorativa no Museu Municipal de Amsterdã (Gemeentearchief van Amsterdam) intitulada Mapas de Amsterdã 1866– 2000. Para a exposição, o grupo Waag Society, juntamente com os artistas Esther Polak e Jeroen Kee, criou um tipo de instalação que se utilizou de um meio tecnológico para um novo tipo de mapeamento afetivo, a Amsterdam RealTime.

Figura 23. Imagem do mapa gerado por ocasião da exposição Amsterdam RealTime.

Na exposição foram entregues antigos mapas da cidade em um espaço com monitores e uma grande tela de projeção em tempo real do mapa de Amsterdã. Pela cidade havia participantes equipados com computadores de bolso e telefones com GPS. As linhas de rastreamento dos transeuntes se sobrepunham umas às outras, fazendo surgir um mapa e criando uma imagem da cidade que não consistia em edifícios, estradas e canais, mas nos movimentos das pessoas. O site do projeto ainda pode ser visitado no endereço: www.realtime.waag.org. Qualquer um podia se inscrever para ser um participante por uma semana e, no final do período, recebia uma versão impressa de sua própria rota. Com isso, o museu e os artistas conseguiram despertar nos visitantes a ideia de contemplação e cartografia afetiva de Amsterdã. Além disso, Amsterdam RealTime demonstra o quanto recursos habituais da vida contemporânea, como o mapeamento por GPS, via

66 smartphones, tablets ou outros instrumentos comuns aos dias atuais, podem servir como impulsionadores de reflexões políticas e artísticas na cidade. 2.5.2.3 Urban Drifts (2009–2014)

O artista e designer Ryan Raffa, organizador do blog www.ryanraffa.com, é autor de um trabalho de investigação na cidade de Nova York, intitulado de Urban Drifts. Urban Drifts é uma série de passeios de bicicleta centrados na investigação através de espaços urbanos. Fazendo uso do conceito situacionista de deriva, este projeto procurar perceber como novos insights pessoais, dados móveis, mapas sonoros psicogeográficos, fotografias e performance podem mudar a relação entre as paisagens urbanas, as emoções e as ações dos habitantes da cidade (RAFFA, 2009).

Para a execução do projeto, Raffa lançou mão, fundamentalmente, de registros por GPS e de registros via fotografia digital, os quais, por si só, já apresentaram resultados expressivos de leitura cartográfica e imagética da cidade.

Figuras 24 e 25. Mapeamento georrefenciado e imagético de Urban Drifts.

67 O ponto mais interessante do trabalho do artista foi a conversão do mapeamento geográfico das derivas em som. Um programa de computador consegue transformar a latitude, longitude, altitude, velocidade, direção, frequência cardíaca e temperatura dos passeios de bicicleta em tons, batidas, samples e elementos percussivos. Esses sons, por sua vez, são manipulados por Raffa de uma forma performativa para expressar o impacto físico e psicológico dos passeios.

Figura 26. Exemplo do programa de conversão de mapa em som.

O projeto Urban Drifts adiciona, portanto, um importante modo de experiência de cidade. Não apenas mapiado aspectos afetivos dela, como também realiza uma conversão semiótica desses aspectos, fazendo aflorar elementos até então camuflados ou mesmo imperceptíveis mediante os trajetos racionais da vida urbana. 2.5.2.4 Peluqueria Carangi

Resultado do trabalho de conclusão do curso de Arquitetura e Urbanismo, pela então estudante e artista Marie Carangi, Peluqueria Carangi consistiu na criação de ambientes-situação na cidade do Recife, cujo dispositivo inicial era o serviço de cortes de cabelo oferecido pela autora. Fazendo uso do recurso situacionista da deriva, Carangi mapeou e ocupou lugares da cidade, explorando relações de ruínas, festas, espaços públicos e

68 institucionais. “As situações são construídas pela presença a partir de brechas desvendadas no espaço urbano e das disponibilidades no cotidiano, onde são criados ambientes abertos de estar provisório entre os limites do público e do privado” (CARANGI, 2013). Os registros do trabalho foram manipulados, compilados e receberam um memorial descritivo por parte da artista. Eles podem ser visitados na plataforma online colaborativa: www.cargocollective.com/peluqueriacarangi.

Figura 27. Disposição afetiva dos ambientes-situação. Marie Carangi, 2013.

Tendo em vista os problemas contemporâneos de urbanismo das cidades brasileiras, o trabalho de Carangi também se relaciona com uma questão política que começa a emergir no País: a demanda de ocupação e uso coletivo dos espaços públicos das cidades, como uma maneira de combater a massificação imobiliária e as relações de empreendimentos privados com o poder público. Por estar situado no Recife, o projeto ganha uma importante dimensão de inspiração e análise para esta pesquisa, além de auxiliar na projeção de visões situacionistas e da potencialidade da utilização das técnicas na cidade.

69

Figura 28. Exemplo do serviço de corte de cabelo/performance.

A análise e compreensão desses tipos de trabalho aliada à bibliografia dos autores contemporâneos comentadores da teoria situacionista se configuram como elementos de grande importância para a pesquisa vigente. Essa importância se resume não apenas à compreensão dos processos contemporâneos de inspiração situacionista, como também à reflexão teórica para a construção metodológica da pesquisa. A utilização de mídias locativas e sua inserção on-line, as novas formas de registros de georreferenciamento, a tradução semiótica de aspectos particulares da deriva e ainda a revisitação e reinterpretação afetiva de locais do Recife são pontos importantes a serem avaliados como recursos e possibilidades para a experiência de apreensão urbana pretendida por este trabalho.

70

3 METODOLOGIA

3

71 O presente capítulo pretende, através dos subsídios discutidos e abordados na fundamentação teórica, elaborar uma sequência metodológica que atenda à proposta do projeto de investigação afetiva de cidade. Tendo sempre em vista o objetivo principal da pesquisa, de avaliar os resultados da aplicação da deriva e da psicogeografia enquanto instrumentos de análise do centro do Recife. Nesse contexto é importante destacar que apesar das investigações psicogeográficas contemporâneas terem retornado às discussões acadêmicas, como afirma Coverley (2010), e também retornado aos experimentos por conta de grupos e artistas destacados anteriormente, a Teoria da deriva, elaborada por Guy Debord em 1958, ainda é pouca explorada em termos da discussão de sua profundidade teórica e experimental. Elucida-se, portanto, mais um fator que aponta a importância de experimentar, documentar e analisar derivas alinhadas com teoria situacionista na cidade contemporânea. A razão da escolha pela pesquisa e investigação de métodos situacionistas reside também na possibilidade de dar continuidade a uma busca, iniciada por Debord e pela a Internacional Situacionista, por aspectos subjetivos e afetivos da cidade como um artificio para fomentar novas práticas urbanas. Não temos receitas nem resultados definitivos. Propomos apenas uma pesquisa experimental a ser efetuada coletivamente em algumas direções que definimos neste momento e em outras, a serem definidas. A própria dificuldade de chegar às primeiras realizações situacionistas é uma prova de como é novo o domínio onde penetramos. (...). Nossas hipóteses de trabalho serão reexaminadas a cada transformação futura, venha de onde vier (DEBORD, 1957).

Apresentadas as características práticas da presente dissertação fizeram-se necessárias pesquisas relativas a melhor escolha para o método de procedimento a ser utilizado. Tendo em vista que o método de procedimento se constitui de “etapas mais concretas da investigação, com finalidade mais restrita em termos de explicação geral dos fenômenos menos abstratos” (MARCONI; LAKATOS, 2003, p.221). E que, estas etapas “pressupõem uma atitude concreta em relação ao fenômeno e estão limitadas a um domínio particular” (MARCONI; LAKATOS, 2003, p.221), foi escolhido como método de procedimento da pesquisa o método experimental.

72 O método experimental é um método fundado na experiência. Seu objeto é controlado para se atingir resultados pretendidos. Dessa forma, o objeto é colocado sob condições ideais, reproduzidas em laboratórios ou não, selecionando-se as hipóteses a serem verificadas (BONAT, 2009, p.28).

Partindo da escolha pelo método de procedimento será realizada, de início, uma apresentação da metodologia de pesquisa dividida em duas vertentes. A primeira vertente, dos aspectos teóricos, trata da fundamentação científica dos métodos situacionistas como instrumento de análise de pesquisa. Ela discute a deriva e psicogeografia enquanto métodos fenomenológicos. Além disso, realiza uma análise sobre o quanto a aplicação dessas técnicas dialoga com o exercício de diagramas e cartografias afetivas. A segunda vertente tratará da construção prática, ou seja, da elaboração das etapas concretas necessárias para a obtenção dos resultados que serão analisados. Além disso, discutirá também a seleção de hipóteses, o sítio de aplicação e outros procedimentos a serem verificado para a realização do objetivo do trabalho. 3.1 Aspectos Teóricos O objeto de estudo dessa dissertação consiste em métodos ou técnicas de considerável nível de subjetividade, para tanto, faz-se necessário o aporte teórico em outros campos de comum relação, ou seja, a construção de um trabalho interdisciplinar, com o objetivo de buscar em outras áreas de conhecimento subsídios para o aprimoramento dessa análise subjetiva. Para tanto, foram designados linhas de abordagem que juntas compõem um conjunto teórico com a função de abarcar conteúdos de qualidade acerca dos objetos e objetivos de estudo. Uma das linhas teóricas foi estabelecida como sendo a da pesquisa fenomenológica. O método fenomenológico de pesquisa vem sendo aprimorado ao longo dos tempos e se apresenta pautado na ciência da fenomenologia, que segundo Moreira (2002, p.62) procura entrar “em contato com as ‘próprias coisas’, dando destaque à experiência vivida”. As referências usadas para o tema têm fontes no livro

73 O Método Fenomenológica na Pesquisa, de Daniel Moreira, e ainda nos textos do filósofo Merleau-Ponty34, grande teórico da fenomenologia. Outra linha teórica refere-se às questões gráficas, cartográficas e psicológicas intrínsecas a este projeto. Considerando-se que muitas dos aspectos observados durante os experimentos serão traduzidos graficamente, faz-se necessário buscar algumas teorias que deem um suporte congruente a essa possibilidade de registro. Esse ponto de vista traz contribuições relativas aos processos simbólicos e visuais, que por sua vez, estreitam ainda mais a relação da pesquisa com o campo do design. Para tanto, serão mescladas duas correntes, que passeiam entre a filosofia e psicologia. A primeira corrente trata do estudo dos diagramas enquanto elementos de auxílio ao direcionamento de pesquisas. O teórico escolhido desta área foi Kenneth Knoespel35, que avalia o assunto sob a perspectiva filosófica de Deleuze36. A segunda corrente discute a questão das cartografias afetivas, conceito que pertence originalmente ao campo da psicologia, mas que recentemente vem ganhando força e sendo avaliado às vistas da arquitetura e, principalmente, do urbanismo. Os autores selecionados para o assunto são a psicoterapeuta Suely Rolnik37, autora do livro Cartografia Sentimental, publicado pela primeira vez em 2006 e outros pesquisadores, do ramo da psicologia e da arquitetura, que abordam dentre outras coisas a cartografia como método de pesquisa-intervenção. E por fim, considerando que o objeto de estudo deste projeto são os métodos situacionistas, estabeleceu-se como um desses aspectos teóricos os próprios textos do movimento, como Teoria da Deriva, Descrição Psicogeográfica do Les Halles dada sua relevância referente ao levantamento de hipóteses pela experiência dos métodos e seu caráter aberto em relação a formulação de outras possibilidades de apreensão urbana. A função desse conjunto é montar um escopo teórico para uma melhor fundamentação teórica e prática relativa, com o objetivo de elucidar quais aspectos de cada campo teórico podem contribuir para aos elementos de experimentação e análise inerentes ao trabalho. 34

Maurice Merleau-Ponty (1908–1961), professor e filósofo fenomenólogo francês. Kenneth J. Knoespel, professor de engenharia e artes independentes no Instituto de Tecnologia da Georgia (Georgia Tech). 36 Gilles Deleuze (1925–1995), filósofo francês. 37 Suely Rolnik, psicoterapeuta, crítica cultural em diversos periódicos, professora e integrante do Núcleo de Estudos da Subjetividade da PUC - São Paulo. 35

74 3.1.1 Método Fenomenológico Não é surpresa que em se tratando de uma pesquisa de procedimento experimental sejam aventadas, também, questões fenomenológicas haja vista que ambos os temas estão profundamente imbricados. Partindo do princípio que o método experimental tem sempre origem numa indagação sobre o relacionamento de variáveis da natureza, a fenomenologia se apresenta como um auxílio na resposta dessas indagações, por sua natureza de tentativa de elucidação dessas variáveis. De acordo com Moreira (2002, p. 10), o método fenomenológico se divide em duas abordagens: a abordagem filosófica e a empírica. “Em ambos os casos o ponto de partida é a realidade e o objetivo é a sua compreensão” (MOREIRA, 2002, p.10). A transposição desse método para a apreensão de questões da cidade é convenientemente enérgica, dado que a cidade é um território de realidades plurais a serem compreendidas. Uma questão que surge de forma automática em se tratando de tentativas de apreensão urbana é a percepção do ambiente. Ao deambular por uma determinada cidade estamos sempre sujeitos aos seus objetos e fazemos uma interpretação dos sinais que nos sãos fornecidos. Entretanto, essa tomada de consciência das coisas por intermédio da percepção pode ser mais ou menos profunda dependendo do ritmo em que se anda e da abertura que se dá a experiência do trajeto. Quando caminhamos no modo “automático” correspondente ao cotidiano do trabalho, da escola, do banco, tendemos a perceber os ambientes de uma forma igualmente automatizada. Nós acreditamos saber muito bem o que é "ver", "ouvir", "sentir", porque há muito tempo a percepção nos deu objetos coloridos ou sonoros. Quando queremos analisá-la, transportamos esses objetos para a consciência. Cometemos o que os psicólogos chamam de "experience error", quer dizer, supomos de um só golpe em nossa consciência das coisas aquilo que sabemos estar nas coisas. Construímos a percepção com o percebido. (MERLAEU-PONTY, 1999, p. 25-26).

Um dos grandes atos da teoria situacionista da deriva foi justamente o de tentar quebrar com a lógica automatizada do caminhar. A implementação metodológica das errâncias procurava se dedicar mais à própria reflexão do trajeto em si, do que a seus objetivos:

75

Uma ou várias pessoas que se dediquem à deriva estão rejeitando, por um período mais ou menos longo, os motivos de se deslocar e agir que costumam ter com os amigos, no trabalho e no lazer, para entregar-se às solicitações do terreno e das pessoas que nele venham a encontrar (DEBORD, 1958).

Este raciocínio se alinha ao fato dos situacionistas rejeitarem a lógica massificadora da sociedade, a qual eles consideravam espetacular. A deriva serve, deste modo, como um contrapondo a um mundo que os situacionistas consideravam sufocar os cidadãos, dado seu caráter opressor e limitador de ambições. Prova disso é a afirmação de um dos situacionistas sobre essa sociedade: “Chega a nos abafar (...); reagimos-lhe de acordo com nossos instintos em vez de reagir de acordo com nossas aspirações” (KHATIB, 1958). Mais uma vez é citada a questão do instinto em contraposição à reflexão sobre as aspirações humanas. O instinto que o argelino Abdelhafid Khatib procura suplantar nesse caso é, justamente, o da visão apenas superficial dos fenômenos da cidade. A missão situacionista era justamente a de romper com a languidez de uma cultura inerte e implementar uma intervenção eficaz que instaurasse novas ambiências, cujos atributos fossem agudos e promovessem “curta duração e mudança constante” (KHATIB, 1958) dessas ambiências. Através dessa lógica de contraposição a uma sociedade alienante, e do uso da deriva e da psicogeografia enquanto formas de fuga de um padrão de vida irrefletido, os situacionistas criaram hipóteses que buscavam, precisamente, a quebra, ou mesmo, a inversão destes paradigmas. As já referenciadas hipóteses de unidades de ambiência: “além do reconhecimento de unidades de ambiências, de seus componentes fundamentais e de sua localização espacial“ (DEBORD, 1958) e a metáfora das plaques tournantes: “chega-se à hipótese central de plaques tournantes psicogeográficas” (DEBORD, 1958), são demonstrações desse objetivo. O fato interessante dessa investigação de hipóteses de objetos de percepção é que ela também é tônica do método fenomenológico de pesquisa. Segundo Moreira (2002, p. 25) “o mais importante critério de seleção de um delineamento experimental é o de que ele seja apropriado para o teste das particulares hipóteses de estudos”. O próprio uso do adjetivo “experimental” após o termo delineamento, por parte do autor, é idêntico ao que, por vezes, os situacionistas se referiam à deriva:

76

A deriva é um modo de comportamento experimental numa sociedade urbana. (...) Os outros meios, como a leitura de fotos aéreas e de mapas, o estudo de estatísticas, de gráficos ou de resultados de pesquisas sociológicas, são teóricos e não possuem esse lado ativo e direto que pertence à deriva experimental (KHATIB, 1958, grifo nosso).

As hipóteses situacionistas destacadas foram desenvolvidas paralelamente a produção bibliográfica relativa a primeira fase de existência do grupo, a força dessas reflexões reside, portanto, no experimentalismo artístico, radical e na empolgação frente aos imediatos questionamentos à sociedade da época. A hipótese relativa às unidades de ambiência, por exemplo, é claramente derivada de uma análise fruto de caminhadas com atenção intransigente às atmosferas visitadas. E a mínima prospecção desmistificada mostra que nenhuma distinção, qualitativa ou quantitativa, das influencias dos diversos cenários construídos numa cidade pode ser formulada a partir de uma época ou de um estilo arquitetônico, e menos ainda a partir das condições de habitat (DEBORD, 1955).

Isso demonstra o quanto a teoria situacionista se aprofundou em termos de um exame afetivo das cidades, e o quanto a negação em relação aos aspectos alienantes da sociedade são importantes na busca de uma não-percepção automatizada. Com relação a seguinte hipótese levantada na Teoria da Deriva, a hipótese das plaques tournantes, pode-se considerar uma profundidade subjetiva ainda maior, pelo agravante do sentido particular atribuído à expressão. A expressão plaque tournante, traduzida de forma brusca para o português tem o significado de plataforma giratória. O termo original se refere às plataformas comuns em malhas ferroviárias que servem como um pivô de troca de direções, onde os trens podem mudar de um trilho para outro e seguir na direção definida. Ao mesmo tempo, segundo dicionários franceses o termo funciona como expressão idiomática que designa uma “localização que serve como ponto de encontro ou referência” (WIKTIONNAIRE, 2015), ou ainda, um “lugar de reuniões, de intercâmbios e de decisões” (L’INTERNAUTE, 2015).

77

Figura 30. Exemplos de plaques tournantes ferroviárias.

Além dessa subjetivação intrínseca ao próprio termo que, por si só, já carrega uma transposição de significado, os próprios situacionistas em sua teoria, acabam por adicionar alguns outros sentidos ao vocábulo. No verso do mapa de The Naked City, escrita pelo próprio Debord, reside uma pequena definição acerca das setas vermelhas, associadas às plaques tournantes: “desvios de direção espontâneos feitos por alguém que circula nesses ambientes, alheio às conexões úteis, que usualmente direcionam seu caminho” (DEBORD apud JAQUES, 2003, p. 35). A missão, portanto, de identificar plaques tournantes numa cidade passa pelo exercício de imersão nas percepções não-corriqueiras que os ambientes tendem a fornecer, e ainda pela atenção aos dispositivos que possam influenciar o desvio de direções num trajeto de deriva. 3.1.2. Diagramas e Cartografia Afetiva Ao tratar da representação de elementos nas cidades é comum que se considere o uso de mapas ou esquemas aproximados que permitam reproduzir o posicionamento ou mesmo a escala dos objetivos em duas dimensões. O uso da cartografia é inerente às cidades desde suas primeiras formações, dado o seu grau de eficiência enquanto instrumento de localização, medição e representação.

78 A deriva e a psicogeografia, enquanto instrumentos de intervenção e análise da cidade, fazem uso igualmente da cartografia. Entretanto, a cartografia utilizada como

instrumento

situacionista

visa

traduzir

elementos

pouco

comuns

à

representação tradicional. Por conta disso, a confecção e análise de uma cartografia psicogeográfica está imbuída de processos e subjetivações que concernem a campos ainda pouco explorados. Estes campos serão, portanto, objetivo de análise discussão nesse capitulo, com objetivo de melhor entendimento de seus processos. Há tempos, o uso da diagramação no conceito de projetos relativo ao campo da arquitetura, do design, e de outras áreas tem sido valorizado. A reflexão causada pelo exercício de ordenamento gráfico de pensamentos, seja em formato de croquis, mapas de fluxo, zoneamento espacial, entre outros, é tida como elemento de grande contribuição para a melhoria da qualidade desses projetos. Se os diagramas, enquanto sistemas de tradução gráfica de significados, permitem ao seu projetista transpor elementos porventura abstratos em superfícies concretas, então pode-se considerar que estes diagramas prestam um serviço no ordenamento de aspectos subjetivos da natureza. Diagramas são simples desenhos ou figuras que usamos para pensar com ou para pensar através. A ideia de pensar por meio de um diagrama é crucial, não só porque um digrama fornece ordem a estabilidade, mas porque ele é um veículo para desestabilização e descoberta (KNOESPEL, 2002, p. 10, tradução nossa).

O engenheiro Kenneth Knoespel intitula a segunda parte de um de seus artigos sobre diagramas de Diagram and Metaphor (Diagrama e Metáfora), em face da capacidade dos diagramas em concretizar elementos tal qual uma expressão metafórica é capaz de traduzir uma determinada ação ou circunstância em palavra. Segundo Knoespel (2002, p. 12) é apropriado pensar que os diagramas se traduzem em veículos que nos permitem observar o quanto o discurso visual é realmente composto de uma genealogia de figuras que delineiam a geração de significados. Os mapas psicogeográficos elaborados pelos situacionistas, em especial os mapas de Guy Debord, demonstram o quanto esta noção de transposição de um discurso visual pode ser eficaz. Nesse sentido a cartografias psicogeográficas podem ser vistas como uma experiência de diagramação do processo de deriva, e consequentemente de apreensão urbana.

79

Figura 30. Exemplo de composição psicogeográfica.

A composição de um mapa psicogeográfico é pautado na adaptação de conceitos linguísticos para o campo da expressão gráfica. Os conceitos de unidades de ambiência, por exemplo, são representados por secções dos lotes e ruas fotocopiados do mapa de Paris. Os pontos de inflexão dos trajetos são representados pelas setas vermelhas, ganhando certa personalidade de acordo com suas curvaturas e comprimentos. Eles são descritos por Debord como “desvios de direção espontâneos” (DEBORD apud JACQUES, 2003, p.23). Não fica evidente, pela literatura situacionista, se as plaques tournantes também são representadas por essas setas, pelos recortes em fotocópia das ruas, ou mesmo se aparecem realmente de forma gráfica nesses mapas. Entretanto, sabe-se que elas são importantes para a elaboração afetiva e organização espacial dos mesmos. A produção desse tipo de mapa era incentivada pelo grupo como uma maneira de especular sobre os aspectos relativos as circunstancias subjetivas cidade. Ao associarmos esses mapas ao conceito de diagrama esbarramos novamente no campo fenomenológico: “do ponto de vista da fenomenologia ou da ciência cognitiva, os diagramas têm grande embasamento óptico porque sugerem as formas em que as conexões são realizadas dentro do um campo visual” (KNOESPEL, 2002, p. 11, tradução nossa). Os situacionistas tiveram essa percepção precisamente por conta das suas contraposições aos modos de vida não-perceptivos, que é tônica do paradigma fenomenológico. Não à toa, as primeiras elucubrações acerca das possibilidades de

80 uma cartografia psicogeográfica surgem ainda nos textos de crítica urbana, no período embrionário do movimento, quando Debord ainda participava da Internacional Letrista. A confecção de mapas psicogeográficos e até simulações, como a equação – mal fundada ou completamente arbitrária – estabelecida entre duas representações topográficas, podem ajudar a esclarecer certos deslocamentos de aspecto não gratuito, mas totalmente insubmisso às solicitações habituais (DEBORD, 1955).

Outro elemento importante em relação aos mapas enquanto resultados de deriva é a noção de que eles também devem traduzir a relação do corpo na rua. A noção de percurso, ou seja, do corpo em movimento também pode estar presente enquanto formas de diagramação. “[...] os diagramas podem marcar uma maneira de seguir a linguagem do corpo, e ainda mais, uma maneira de seguir a linguagem para dentro da experiência espacial do corpo” (KNOESPEL, 2002, p.12, tradução nossa). Um exemplo disso é o mapa de Khatib referente ao seu percurso realizado na área próxima ao Mercado de Les Halles.

Figura 31. Percurso de deriva produzido para o relato de Les Halles. Abdelhafid Khatib, 1958.

Essas experiências sensoriais traduzidas em mapas, diagramas, esboços, também podem ser abordadas sobre um viés um pouco menos filosófico e mais relativo a psique humana. Um dos recursos utilizados para esse tipo de análise das experiências do mundo pelo homem, no campo da psicologia, é chamado de cartografia sentimental ou afetiva.

81 Paisagens psicossociais também são cartografáveis. A cartografia, nesse caso, acompanha e se faz ao mesmo tempo que o desmanchamento de certos mundos – sua perda de sentido – e a formação de outros: mundos que se criam para expressar afetos contemporâneos, em relação aos quais os universos vigentes tornaram-se obsoletos (ROLNIK, 2014, p. 23).

A cartografia enquanto objeto de estudo da psicologia não se equivale a cartografia tradicional que representa medidas gráficas, mas sim a um estado de ordenamento de ideias e experiências por parte dos seres humanos. O cartógrafo, nesse sentido é o personagem que imerge nas estruturas psicossociais com o intuito de esclarece-las. A tarefa do cartógrafo, segundo Rolnik (2014, p. 23) é a de “dar língua para afetos que pedem passagem”. Pode-se traçar, portanto, um paralelo muito claro entre a figura do cartógrafo da psicologia e do psicogeógrafo situacionista. O psicogeógrafo de acordo com as definições da IS (1958) é o “indivíduo que pesquisa e transmite as realidades psicogeográficas”, ou seja, o estudo do meio geográfico e dos elementos que agem sobre o “comportamento afetivo dos indivíduos”. A similaridade referida se agudiza quando Rolnik (2014, p. 66) argumenta que o que um sujeito cartógrafo deseja “é mergulhar na geografia dos afetos e, ao mesmo tempo, inventar pontes para fazer sua travessia: pontes de linguagem”. É interessante tratar ainda que, na avaliação de Rolnik, pouco importa quais os domínios da vida social que o cartógrafo pode tomar como objeto de estudo. “O que importa é que ele esteja atento às estratégias do desejo em qualquer fenômeno da existência humana que se propõe perscrutar” (ROLNIK, 2014, p. 65). Assim sendo, é sensato argumentar que o psicogeógrafo é uma ramificação do cartógrafo da psicologia, um cartógrafo urbano. Se esse cartografo urbano, ou psicogeógrafo, opera seus experimentos no ambiento da cidade, ele necessita, impreterivelmente, despender atenção ao comportamento do seu corpo no ambiente urbano. A esse corpo sensível, capaz de apreender afetividades e projeções da cartografia é dado o nome de corpo vibrátil (ROLNIK, 2014). Esse corpo é responsável por uma tarefa complexa, a de compreender os movimentos desejantes dos aspectos sociais e naturais. No caso do psicogeógrafo, a constituição de corpo vibrátil serve para a uma maior tomada de consciência das razões e do próprio movimento do seu percurso na cidade.

82 Aliada a esta noção do corpo vibrátil, existe a reflexão sobre o caráter interventivo de uma experiência a nível cartográfico, a noção de que uma avaliação compassiva de um ambiente, incorpora também, de forma inequívoca, a intervenção neste próprio ambiente. “Com o conceito de transversalidade, Guattari prepara a definição do método cartográfico segundo o qual o trabalho da análise é a um só tempo o de descrever, intervir e criar efeitos-subjetividade (PASSOS; BARROS, 2009, p. 17, grifo nosso). Algumas experimentações lastreadas por esse conceito de cartografia sentimental e de corpo vibrátil interventivo já estão sendo realizadas no âmbito urbano. O Programa de Pós-graduação de Arquitetura e Urbanismo da UFBA é um dos incentivadores desses experimentos. Num artigo publicado pela revista Redobra, editada pelo PPGAU-UFBA foi realizado um experimento que procurou expressar através de um diagrama essa relação de análise-participação do cartógrafo na cidade.

Figura 32. “Diagrama Movimento como ferramenta: construção de narrativas cartográficas” (SCHVARSBERG, 2012).

83 Mais do que mapear os percursos, procurou-se cartografar ações, modos de usar o espaço no tempo oportuno. A sobreposição de variados dispositivos de registro da experiência, do vídeo à memória do corpo, constrói uma espécie de mapa de procedimentos ou operações de sujeitos ambulantes, mas também do próprio cartógrafo (SCHVARSBERG, 2012, p. 161).

O trabalho de Schvarsberg além de abarcar as questões relativas ao do diagrama quanto da cartografia sentimental demonstra que o estudo dessas relações pode auxiliar no aprimoramento e ampliação da visão sobre as intervenções experienciais situacionistas. Em conjunto com as considerações de fenomenologia, de percepção atreladas as hipóteses situacionistas, esses aprimoramentos configuram uma base teórica que contribuirão para uma melhor adequação e processo de investigação dos experimentos pretendidos pela presente pesquisa. 3.2 Aspectos Práticos Depois de apresentados os argumentos da construção teórica serão objetivos de análise, a partir de agora, os elementos práticos de desenvolvimento da presente investigação. A escolha desses parâmetros práticos foi baseada em estudos sobre metodologia e chegou à seguinte conclusão: A investigação será baseada na documentação direta, por meio de pesquisa de campo de caráter experimental, e de proeminência qualitativa. A documentação direta constitui-se, em geral, “no levantamento de dados no próprio local onde os fenômenos ocorrem. Esses dados podem ser obtidos de duas maneiras: através da pesquisa de campo ou da pesquisa de laboratório” (MARCONI; LAKATOS, 2003, p. 186). Tendo em vista que o local cujo fenômenos serão explorados pela deriva psicogeográfica será o centro do Recife pode-se estabelecer, portanto, que a investigação vigente será uma pesquisa de campo. 3.2.1. Pesquisa de Campo Consiste

na

observação

de

fatos

e

fenômenos

tal

como

ocorrem

espontaneamente, na coleta de dados a eles referentes e no registro de variáveis que se presume relevantes, para analisá-los. (TRUJILLO apud MARCONI, LAKATOS, 2003, p. 186).

84 A pesquisa de campo foi, por conseguinte, a modalidade escolhida para esta etapa de investigação prática do trabalho por ser inerente aos métodos situacionistas, não apenas pela sua possibilidade de verificação de fatos e fenômenos urbanos, como, também, pelo caráter de avaliação das hipóteses de unidades de ambiência e as plaques tournantes levantadas no contexto desse campo, por exemplo. Ainda segundo Marconi e Lakatos (2003), a pesquisa de campo consiste de três fases. A primeira fase seria a da realização de uma pesquisa bibliográfica sobre o tema em questão. Pode-se considerar, assim, que esta fase já foi amplamente discutida na presente pesquisa, tanto nos dois primeiros capítulos que apresentam e discutem os conceitos principais, quanto no início desse capítulo, dadas as discussões acerca dos métodos. A segunda fase se constitui da explicação sobre as técnicas empregadas na pesquisa. Embora a deriva e a psicogeografia sejam conceitos amplos, e de caráter especulativo abrangente, para fins desta pesquisa serão consideradas as técnicas de investigação da pesquisa de campo. Esta adaptação não constitui um reducionismo, mas um emparelhamento de conceitos para uma abordagem de pesquisa mais eficaz. Além disso, para além do seu posicionamento enquanto técnica, os métodos situacionistas serão também objeto de estudo da pesquisa, por serem eles os elementos aos quais recaí o foco e os questionamentos de toda a investigação. Na terceira e última fase de estruturação de uma pesquisa de campo torna-se necessário “estabelecer tanto as técnicas de registro desses dados como as técnicas que serão utilizadas em sua análise posterior” (MARCONI; LAKATOS, 2003, p. 186). Pautado nessa consideração, pode-se confirmar que o registro e a avalição do uso de técnicas situacionistas só podem ser pensados sob um ponto de vista qualitativo. A pesquisa qualitativa gera em torno de sua existência grande discussões acerca do seu caráter cientifico. Segundo Moreira (2002, p. 44) “a pesquisa qualitativa abdica total ou quase totalmente das abordagens matemáticas no tratamento dos dados, trabalhando preferencialmente com as palavras oral e escrita, com sons, imagens, símbolos, etc.”. E, por conta disso, provoca embates entre modos de avalição de tendência positivista e os de tendência interpretacionista (MOREIRA, 2002). Nesse sentido, deve-se ponderar que numa pesquisa baseada em preceitos situacionistas não há sentido em considerar registros e considerações matemáticas

85 ou quantitativas, mas uma abordagem cujas interpretações tenham ênfase no caráter processual e na reflexão. O tema do pesquisador enquanto participante e influenciador da mesma também se configura como um assunto a ser ponderado nesse quesito. A este tipo de procedimento dá-se o nome de pesquisa-ação. A pesquisa-ação não se dissocia da pesquisa qualitativa, ela se comporta como um acessório desta. E, de acordo com Günther (2006, p. 6), a pesquisa-ação “independe da técnica, podendo ser utilizada com experimento”, o que configura mais um ponto de convergência com os processos situacionistas. Tendo em vista estas questões levantadas sobre a pesquisa-ação, confirma-se que a utilização de um modo eficaz dos métodos situacionistas depende de um certo grau de imersão na teoria, o uso dos conhecimentos da aplicação destes métodos por parte de um pesquisador-ativo, nesse caso, torna-se indispensável. Assim sendo, a pesquisa qualitativa se mostra ainda mais adequada às intenções deste trabalho, por seu caráter tolerante em relação ao posicionamento do pesquisador e da pesquisa. Uma primeira distinção entre a pesquisa qualitativa e a pesquisa quantitativa refere-se ao fato de que na pesquisa qualitativa há aceitação explícita da influência de crenças e valores sobre a teoria, sobre a escolha de tópicos de pesquisa, sobre o método e sobre a interpretação de resultados. (...) Além da influência de valores no processo de pesquisa, há de se constatar um envolvimento emocional do pesquisador com o seu tema de investigação. A aceitação de tal envolvimento caracterizaria a pesquisa qualitativa. Já a intenção de controlá-lo, ou sua negação, caracterizariam a pesquisa quantitativa (GÜNTHER, 2006).

Outro ponto, e talvez o mais importante, em relação à pesquisa qualitativa diz respeito aos meios de representação e avaliação da investigação. Nesse sentido Günther (2006, p.7) pondera dois aspectos importantes. O primeiro afirma que “os meios de representação de dados de qualquer pesquisa são intimamente ligados às técnicas de coleta dos mesmos”. O segundo sugere que um dos modos de avaliação da pesquisa qualitativa pode ser a análise fenomenológica (GÜNTHER, 2006, p.7), afirmação que também se concatena com as discussões relativas a metodologia da pesquisa. Deste modo, pode-se argumentar que o modo de pesquisa cujas maneiras

86 de representação e avaliação são realizadas de acordo com a ênfase qualitativa é o modo mais adequado aos propósitos da pesquisa vigente. 3.2.2. Objeto, Objetivos e Etapas Como já argumentado no corpo desta dissertação os objetos de análise da pesquisa serão as técnicas situacionistas da deriva e psicogeografia. Esta escolha visa classifica-las de acordo com o seu grau de eficácia, sob uma perspectiva qualitativa, em relação a psicogeografia enquanto instrumento de apreensão de aspectos afetivos da cidade, a deriva enquanto método de passagens por ambiências e contraponto a um modo de circulação automatizada nas cidades, e a verificação das hipóteses de unidades de ambiência e plaques tournantes, além de uma possível ampliação dessas proposições levantadas sobre a cidade, em virtude da aplicação desses métodos. A reunião desses ajuizamentos pode ser resumida numa única finalidade, que se configura, portanto, como o objetivo geral desta pesquisa: analisar os processos e resultados da aplicação da deriva e da psicogeografia, métodos provenientes da Internacional Situacionista, no centro expandido do Recife. A partir destes aspectos chegamos aos objetivos específicos, que têm a finalidade instrumental de resolver etapas particulares do processo, contribuindo assim para a complementação geral da pesquisa. São quatro os objetivos específicos desta pesquisa, sendo o primeiro: 1. Explicitar as principais características dos métodos da deriva e da psicogeografia de acordo com os objetivos da Internacional Situacionista. O primeiro objetivo específico foi, deste modo, contemplado nos dois primeiros capítulos desta dissertação, onde foram apresentados os preceitos e as especificidades dos métodos sob a luz das teorias situacionistas. Sobram, portanto, três objetivos, que tiveram sua estruturação baseada nas discussões de metodologia apresentadas no presente capítulo. São estes:

87 2. Planejar a aplicação dos métodos com a delimitação geográfica e instrumental, utilizando exercícios piloto como parâmetro. 3. Aplicar os métodos situacionistas enquanto instrumentos de investigação experimental do centro expandido do Recife. 4. Analisar os resultados da aplicação, tendo em vista às pressuposições qualitativas de julgamento dos registros e processos. A resolução do segundo objetivo específico será tratada ainda neste capítulo, tendo em vista o caráter metodológico de estruturação de experimentos auxiliares, como os pilotos e os problemas levantados relativos a delimitação de um campo de pesquisa. Todavia, os dois últimos objetivos serão abordados nos capítulos seguintes, cujos fins serão o experimento dos métodos e suas conclusões. 3.2.3. Sítio de Aplicação O campo espacial da deriva é mais exato ou vago de acordo com o objetivo dessa atividade. (...) Em qualquer caso, o campo espacial é antes de tudo função das bases de partida constituídas, para os sujeitos isolados, por seu domicílio, e, para os grupos, pelos pontos de reunião escolhidos. (DEBORD, 1956).

Com base nessa passagem, na necessidade de se derivar em centros urbanos, e ainda em avaliações sobre o contexto urbano-geográfico da cidade do Recife, chega-se à conclusão do centro expandido do Recife como melhor a alternativa ao espaço de aplicação das derivas e circunspecções psicogeográficas propostas. O centro expandido do Recife é denominado por pesquisadores (ARAÚJO, 2012) e técnicos (BARROS, 2013) como sendo um local, a partir do bairro do Recife, onde se registra a maior aglomeração de transeuntes devido ao dinamismo das atividades que ali se desenvolvem. Os bairros do Recife Antigo, da Boa Vista, de Santo Antônio e São José são palco de edifícios modernos inseridos entre casarios e sobrados envelhecidos, que além de oferecerem um aspecto de variedade à cidade, contribuem para uma configuração esteticamente plural e uma disposição geográfica

88 de ambiências distintas, com becos, largos, grandes avenidas e ampla alternância entre cheios e vazios. Além disso, a área também comporta uma imensa diversidade social, com múltiplos personagens, como vendedores ambulantes, trabalhadores formais, artistas de rua, entre outros cidadãos comuns à centralidade metropolitana. Ainda com relação à arquitetura e o urbanismo pode-se destacar a vitalidade urbana, principalmente no período diurno; a mistura de usos dos edifícios que abrigam, por vezes, ao mesmo tempo comércio, serviços e escritórios de trabalho; e ainda, a concentração de espaços públicos e edifícios de valor histórico para a cidade. Para fins desta pesquisa, portanto, a delimitação do Centro Expandido equivalerá à Região Político Administrativa 1 (RPA1), demarcada pela Prefeitura da Cidade do Recife, e que tem o seu centro composto majoritariamente pelos bairros citados anteriormente.

Figura 33. Imagem aérea de parte do centro do Recife.

89

Figura 34. Mapa dos bairros referentes a RPA-1, PCR, 2001.

3.3. Confecção de Pesquisa-piloto Haja vista o caráter experimental e fenomenológico da pesquisa, uma das formas de contribuir para uma execução eficaz dos experimentos é testá-los de maneira previa a acertar, por exemplo, que acessórios levar para pesquisa de campo, quais os melhores dias e horário para a execução das técnicas, entre outros aspectos próprios de uma experiência direta da cidade. Para tanto, fica estabelecido o uso das pesquisas-piloto como etapa metodológica de pesquisa. A pesquisa-piloto tem, como uma das principais funções, testar o instrumento de coleta de dados. A pesquisa-piloto evidenciará ainda: ambiguidade das questões, existência de perguntas supérfluas, adequação ou não da ordem de apresentação das questões, se são muito numerosas ou, ao contrário, necessitam ser complementadas etc. Uma vez constatadas as falhas, reformula-se o instrumento, conservando, modificando, ampliando, desdobrando ou alterando itens; explicitando melhor algumas questões ou modificando a redação de outras (MARCONI; LAKATOS, 2003, p. 228).

90

As pesquisas-piloto ou pré-testes têm, portanto, uma função fundamental de adequação dos objetivos para uma maior eficácia na aplicação dos métodos. Elas servem como balizadores para possíveis equívocos ou parâmetros desnecessários que tenham sido incluídos na fase teórica da metodologia, onde poucas coisas de fato foram testadas. Demonstra-se em seguida, portanto, a descrição e análise dos seis pilotos realizados para a pesquisa em vigor. 3.3.1 Piloto 01 A primeira pesquisa piloto constituiu-se de uma deriva realizada pelo próprio pesquisador no mês de janeiro. A intenção principal era constatar alguns fatores como o seu tempo médio de duração, a possibilidade de registros e as possíveis complicações relativas ao horário, clima e movimento na cidade. O horário escolhido foi o da tarde, por volta de uma hora. A Av. Agamenon Magalhães foi pensada como local de início por estar situada às margens do sítio de aplicação. A lógica do trajeto seria, portanto, sair das bordas da área de pesquisa no sentido do seu centro. Alguns dos acessórios levados pelo pesquisador foram: um smartfone apto a fotografar e pesquisar dados via internet; um mapa do centro do Recife para registros analógicos sobre percurso ou fenômenos geográficos; e um caderno para anotações em escrito. Talvez por conta da recente imersão de leitura do Esboço de Descrição Psicogeográfica de Les Halles, o pesquisador tenha sido impelido a registrar a deriva em forma de notas, que posteriormente se transformaram num relato psicogeográfico ilustrado por algumas poucas fotografias, devido à dedicação às anotações. Segue, portanto, trechos do relato38 realizado durante a deriva, seguido por algumas fotografias e registros: A Rua João Fernandes Vieira tem uma ambiência muito particular, apesar de ser um ambiente de trabalho, com escritórios, repartições, entre outras coisas. A sombra das árvores e atmosfera contribuem para uma sensação de relaxamento (MONTE, 2015).

38

Para relato completo ver Apêndice A.

91

Figura 35. Ilustração da Rua João Fernandes Vieira. Foto do autor.

O contraste da Rua José Mariano em relação ao bairro dos Coelhos em suas costas é incrível. Pode-se perceber a vida de fato, típica das periferias da cidade em meio a brechas que aparecem num cenário de armazéns e comércio pesado, de onde são tiradas matérias primas para construções da sociedade atual, que nada tem de construtivas. Um conselho aos transeuntes da José Mariano é espiar, e quem sabe adentrar à vida real que se revela entre as brechas (MONTE, 2015).

Figura 36. Exemplo de registros da deriva. Documento do autor.

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Figura 37. Mapa de ilustração do percurso da deriva. Documento do autor.

A duração completa dessa experiência foi de aproximadamente quatro horas, e apesar de ter gerado alguns resultados estéticos interessantes é preciso levar em conta a dificuldade de se construir um relato em plano estado de deriva. A parada em pontos estratégicos para tomada de notas dispende tempo que poderia ser gasto num mergulho maior na própria experiência e levantamento de hipóteses, e menos na descrição de ambiências. A experiência desse piloto também foi importante para a constatação de que o horário da tarde em certos pontos é prejudicial, por conta da incidência do sol, mas que, mesmo assim, deve existir interesse em derivar de dia, por conta da grande profusão de fenômenos e acontecimentos possíveis próprios de uma cidade no seu período diurno. Além disso, os relatos e mapeamentos também se confirmaram como elementos de estímulo à verificação das hipóteses de plaque tournantes e unidades de ambiência.

93 3.3.2 Piloto 02 A pesquisa-piloto de número dois foi realizada em trio. Os membros desse trio foram compostos pelo autor da pesquisa e mais dois pesquisadores-participantes: Matheus Mota e Rodrigo Cm. O horário de início da deriva foi estabelecido pelo grupo como sendo o das nove da manhã, escolhido principalmente pela disponibilidade de tempo dos participantes. O local determinado para início da deriva foi o entorno da UNICAP (Universidade Católica de Pernambuco), pelo grande movimento de pessoas e aspecto agregador do lugar. Por conta do atraso de um do pesquisador Rodrigo Cm, a deriva começou com apenas os outros dois participantes. O trajeto teve início na Rua Bernardo Guimarães, também conhecida como rua do lazer da UNICAP, e seguiu por uma rua perpendicular à Rua do Príncipe, no sentido da Av. Conde da Boa Vista. Nesse trecho, devido ao surgimento de um elemento inesperado, a deriva tomou um rumo baseado nos preceitos do jogo situacionista. A dupla iniciante da deriva resolveu seguir uma pessoa na rua. Segue o relato39 de descrição da situação: Dobramos no sentido da Conde da Boa Vista e, no meio de explicações sobre a Internacional Situacionista, Matheus me alerta sobre um transeunte: – Tá ligado nesse velho? – É Daniel Santiago (falamos em uníssono). Vidrado, então, nas possibilidades de uma deriva convenço Matheus a segui-lo (por um momento achamos que ele iria visitar Bruscky). Mas Daniel só estava a caminho do Céu e Terra, alguma loja de homeopatia ou coisa parecida. Resolvemos parar de segui-lo e de seguir pessoas em geral (MONTE, 2015).

O sentimento de jogo da deriva foi esquecido e desarticulado também por conta do calor excessivo do sol. Mesmo antes de chegar a Av. Conde da Boa Vista a dupla se abrigou num shopping no intuito de amenizar os efeitos do calor. Ao encontrar o terceiro participante, ainda no ambiente do shopping, o grupo, em conversa sobre os passos da deriva, decide por um trajeto que se dedica a explorar ainda mais o bairro da Boa Vista. A escolha desse trajeto acaba por influenciar o reconhecimento de dois perfis de ambiências. Na primeira as afetividades se relacionaram à arquitetura da Rua José de Alencar, principalmente a dos edifícios modernistas e dos casarões

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Para relato completo ver Apêndice B.

94 presentes na rua, cujo envelhecimento foi considerado pelo trio como esteticamente atraente.

Figura 38. Edifício na Rua José de Alencar. Foto do autor.

Figura 39. Casarão na Rua José de Alencar. Fonte: Google Maps.

No segundo perfil de ambiências, o aspecto de abandono, porém de vida oculta presente em algumas ruas foi a tônica de reconhecimento de atmosferas. O casario para alugar na Rua Visconde de Goiana e o espaço de assistência técnica de máquinas de costura, da Rua das Ninfas, servem para ilustrar esse sentimento. Em ambos os casos as ambiências das ruas traduzem movimentos atmosfericamente camuflados, como um rastro de fatos e momentos vividos da cidade.

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Figuras 40 e 41. Rodrigo e Matheus no casario; Assistência de máquinas de costura. Fotos: Luiz do Monte e Matheus Mota.

Um outro aspecto interessante desta deriva foi o registro do percurso realizado com auxílio de um aplicativo de GPS para smartfone. O aplicativo chamado Map My Walk permite o registro georreferenciado de caminhadas na cidade. Com isso foi possível elaborar um mapa que representasse o percurso afetivo de caminho da deriva sem grandes preocupações com anotações analógicas.

Figura 42. Exemplo de registro do Map my Walk. Arquivo do autor.

96 A pesquisa-piloto de número dois durou aproximadamente três horas e se configurou como uma deriva onde foram testadas a inclusão do jogo enquanto possibilidades estéticas, a breve exploração de algumas ambiências e o uso do relato escrito como um dos instrumentos de registro. E, por fim, o uso de recursos digitais no registro dos percursos e ações do trajeto. 3.3.3 Piloto 03 Para a terceira deriva-piloto foi novamente montado um grupo de três participantes, entretanto, novamente por conta do atraso de um deles deriva se iniciou em dupla. A dupla de início foi formada pelo próprio autor da pesquisa e o pesquisador-participante João Pessoa que se encontraram por volta das nove horas da manhã. O local escolhido para o encontro foi a Praça Marco Zero do Recife, que na avaliação dos participantes, funciona como um local que remete ao conceito de plaque tournante, por ser um ponto de referência e ampla movimentação na cidade. O início da deriva se deu numa área de ambiências confusas no bairro do Recife Antigo. A área em questão se configura pelas Ruas do Brum, a Rua Bernardo Vieira de Melo e suas ruas perpendiculares. Nesse local, a pluralidade de aspectos estéticos causou um tipo desordem no olhar dos pesquisadores. As diferenças estéticas entre edifícios institucionais e áreas de moradia e vivência natural da rua concedem à atmosfera do lugar uma ambiguidade classificada pela dupla como interessante. Como, por exemplo, o contraste entre os silos graneleiros e o bar da Nalva, ponto característico da comunidade do Pilar.

Figuras 43 e 44. Silos de armazenamento e Bar da Nalva. Fotos do autor.

97 Por conta de sua imprecisão atmosférica, os contrastes dessa unidade de ambiência foram associados com uma unidade semelhante pertencente a Rua José Mariano (ver apêndice A), o que acabou por gerar uma relação gráfica improvisada no mapa relativo à deriva.

Figura 45. Relação entre unidades de ambiência. Desenho do autor.

Após a chegada do terceiro membro, a pesquisadora-participante Bruna Ferrer, a deriva acaba por tomar um rumo diferente no aspecto teórico, entretanto semelhante no que se refere ao percurso. Ainda pelo entorno da Rua do Brum e imediações da Praça do Arsenal o grupo tem a ideia de iniciar experiências concernentes ao conceito de jogo situacionista. Por conta do calor e sol excessivo das horas próximas ao meiodia o grupo teve a ideia de empreender uma caminhada apenas na parte sombreadas das ruas e calçadas. Essa experiência acabou se desdobrando em outras brincadeiras, como o percurso apenas sobre pedras de cor escura, o percurso seguindo apenas os trilhos a antigos dos bondes, entre outros. Alguns desses jogos foram registrados não apenas em fotografia como também em vídeos40, via smartfones, ampliando desta maneira, o leque de possibilidades de registro das ações em deriva.

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Vídeos e outros registros dos pilotos e experimentos disponíveis no blog: cargocollective.com/recifedeandada

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Figuras 46 e 47. Frames dos vídeos do percurso das sombras e das pedras. Arquivo do autor.

Depois dessa incursão ao jogo situacionista realizada pelo grupo, houve um retorno à deriva enquanto recurso de passagem rápida, e os participantes rumaram em direção ao lado oposto da ilha do Recife Antigo. Nesse novo sítio, cuja ambiência é formada pela Rua da Moeda, Rua Tomazina, Rua Dona Maria César, e adjacências, foi diagnosticada uma ambiência de atmosfera amena. Esta ambiência foi classificada pelo grupo como uma ambiência de ruínas afáveis. Onde de fato existem prédios abandonados, mas que por aspectos estéticos e afetuosos transmitem um sentimento de nostalgia e tranquilidade aos passantes, talvez por se postarem de maneira marginal, porém admirável, frente aos edifícios e os transeuntes da área.

Figuras 48 e 49. Ruínas do Recife antigo Fotos: Luiz Monte e João Pessoa.

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Figura 50. Registro da deriva pelo Map my Walk. Arquivo do autor.

A pesquisa-piloto de número também teve duração aproximada de três horas. Nela foram usados os mesmos recursos da segunda pesquisa, como a compreensão do jogo enquanto possibilidade lúdico-construtiva da deriva, o uso de fotografias e vídeos do Map my Walk no registro dos percursos e ações. E ainda, a relação entre unidades de ambiências afastadas pela geografia, desta vez relacionadas por meio de um esboço psicogeográfico no mapa da cidade. 3.3.4 Piloto 04 A quarta pesquisa foi realizada em dupla composta pelo autor da pesquisa e pela pesquisadora-participante Bruna Ferrer. A deriva iniciou seu percurso no Marco Zero, no bairro do Recife antigo, às nove da manhã, pelas mesmas razões da terceira pesquisa, e teve seu percurso caracterizado por aspectos interessantes. O primeiro foi a investigação, por intermédio de contemplação e conversa com outros transeuntes e trabalhadores da região em relação à história de alguns dos espaços e edifícios antigos da região. Essa verificação balizou o reconhecimento de algumas ambiências típicas do bairro como, por exemplo, a Rua da Guia e a Rua do Apolo, que possuem edifícios que costumavam abrigar diferentes serviços dos atuais, e que mesmo tendo mudado de função conservam a aura de suas funções passadas. Como o Ed. Cristina

100 Tavares na Rua da Guia, onde hoje funciona um edifício de escritórios e um antigo armazém na Rua do Apolo onde atualmente existe um estacionamento. O outro aspecto interessante do trajeto, foi a influência dos sons como elementos de desvio do percurso. Em vários momentos da deriva a dupla foi capturada por elementos sonoros próprios do cotidiano da cidade. O primeiro elemento sonoro foram as palmas em um edifício da Rua da Guia, onde acontecia algum tipo de terapia corporal coletiva. Esse desvio de rota fez, inclusive, com que a dupla entrasse no edifício e conversasse com o recepcionista e se inteirasse dos serviços oferecidos no lugar. Outro elemento sonoro que influenciou no andamento da dupla foi a passagem de um protesto de funcionários do transporte público enquanto os pesquisadores cruzavam a Av. Martins de Barros. Ao escutar as palavras de ordem dos manifestantes com megafones a dupla refreou seu rumo e tomou o sentido da avenida, acompanhando e filmando41 parte da realização do protesto. Uma constatação dos pesquisadores em relação ao protesto foi a mudança efêmera na ambiência da rua. A existência de um acontecimento de força maior numa cidade, como um protesto ou parada, tem a capacidade de alterar de forma momentânea as relações estéticas e sociais de uma ambiência. As mudanças das conversas entre os cidadãos, a alteração de visão em perspectiva dos elementos do ambiente, por conta de possibilidade de se andar pelo asfalto, entre outros aspectos, confere um caráter alterador de ambiências a esses acontecimentos facilitando, inclusive, o surgimento de elementos lúdicos.

Figura 51. Frame de vídeo de gravação do protesto na Av. Martins de Barros. Arquivo do autor.

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Vídeos e outros registros dos pilotos e experimentos disponíveis no blog: cargocollective.com/recifedeandada

101 Após o protesto, a deambulação empreendida pela dupla continuou no sentido dos bairros de Santo Antônio e São José, principalmente nas ruas de movimento comercial. A questão lúdica e efêmera do período do carnaval foi um elemento de forte atração para essa escolha. Nesta caminhada pelo centro comercial os pesquisadores fizeram uso do aplicativo para smartfone Instragram como recurso de registro. Além da possibilidade de tratamento das fotografias o Instagram permite referenciá-las geograficamente. Diferentemente do Map my Walk, o aplicativo não faz o registro do percurso do usuário, mas possibilita a marcação exata dos pontos onde foram realizadasm, o que abre a possibilidade para a construção de um mapa afetivo baseado em fotografias de derivas

Figura 52. Exemplo de mapa elaborado no Instagram. Arquivo do autor.

O uso do Instagram também incentivou a ampliação do registro fotográfico da deriva. A quantidade de fotos realizadas neste piloto foi consideravelmente maior que nos anteriores, o que acabou gerando uma historiografia de pequenos trechos e ambiências do trajeto por intermédio de imagens.

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Figuras 53, 54, 55 e 56. Imagens da ambiência dos arredores do Mercado de São José. Fotos do autor.

Nas ruas próximas ao Mercado de São José, a dupla diagnosticou uma ambiência classificada como alegre. A profusão de cores, a multiplicidade de fenômenos e o perfil dos transeuntes foi o que levou os pesquisadores a essa conclusão. Além disso, outra influência de elemento sonoro acabou por influenciar o trajeto no bairro de São José. Em determinado momento, os pesquisadores seguiram um carrinho de venda acessórios culinários ao ouvirem por intermédio do sistema de som um aviso de que nele se vendia a “famosa cuscuzeira peito-de-moça”. Esse fato contribuiu ainda mais para a classificação dessa ambiência como descontraída. Esta pesquisa-piloto também foi importante para o reconhecimento de que a deriva é capaz de alterar a noção de tempo de seus participantes. A dupla participante deste quarto piloto se percebeu, em dado momento, escapando da lógica de

103 necessidade de compartimentação do tempo para realização de tarefas cotidianas, e concordaram em relação ao sentimento de liberdade para experimentar o tempo da deriva de acordo com suas vontades plenas. Outro fato interessante deste percurso foi a passagem por um edifício em ruínas, por conta de um incêndio, situado na Rua Direita. A experiência de sentir-se impelido a entrar num espaço em ruínas42, mesmo sob olhares atentos dos transeuntes, foi constatada e conceituada pela dupla como mais um elemento típico do sentimento de jogo presente na deriva. Sentimento ao qual Guy Debord se refere na própria Teoria da Deriva: Assim, o modo de vida pouco coerente, e até certas brincadeiras consideradas duvidosas, que sempre foram muito apreciadas por nosso grupo – como, por exemplo, entrar de noite em prédios de demolição, (...) – são decorrentes de um sentimento mais geral que corresponde ao sentimento de deriva (DEBORD, 1957).

Figura 57. Interior do edifício em ruínas da Rua Direita. Foto do autor.

Essa pesquisa-piloto, por conta da quantidade de elementos interessantes, acabou sendo uma das experiências mais longas, tendo a duração aproximada de seis horas. Ela se mostrou importante pela inclusão de novos aspectos de alteração 42

Vídeos da ruína e outros registros dos pilotos e experimentos disponíveis no blog: cargocollective.com/recifedeandada

104 de percurso, como os elementos sonoros da cidade; pelo uso de um novo recurso de registro e mapeamento dos fenômenos, o Instagram; e pela constatação de alteração da noção de tempo e do sentimento de jogo ocasionados pela deriva. Por fim, a pesquisa também teve seu percurso georreferenciado pelo aplicativo Map my Walk, que demonstrou o quanto o percurso se focou nas imediações dos bairros de Santo Antônio e São José.

Figura 58. Registro da quarta pesquisa piloto em mapa. Arquivo do autor.

3.3.5 Piloto 05 Na quinta pesquisa-piloto o autor da pesquisa e os pesquisadores-participantes Bruna Ferrer e João Pessoa se reuniram com outros participantes que se propuseram a caminhar pela cidade por ocasião do exercício de uma disciplina da Pós-Graduação em Design da UFPE. O local de encontro do grupo foi a padaria Duque de Caxias, sugerido pela pesquisadora-participante Bruna Ferrer, por se tratar de um local de memória afetiva do centro da cidade, estando a padaria situada no térreo do Arranhacéu da Pracinha, prédio simbólico situado na Praça da Independência, no bairro de Santo Antônio. Os participantes iniciaram o percurso por volta das duas da tarde, por conta da disponibilidade de horário dos membros. Os rumos da deriva também foram

105 majoritariamente guiados pela pesquisadora-participante Bruna Ferrer, muito embora outros participantes e situações tenham interferido no caminho. Durante a pesquisa houve novamente a tendência atrativa de caminhar pelas ruas de atmosfera comercial, como a Rua Duque de Caxias, a Rua do Livramento e a Rua Direita. Nesta deriva foi adotada, pelos membros, uma estratégia diferente de pesquisa: a condição de caminhar olhando para cima. Essa condição se mostrou interessante pela sua equivalência com o caráter da deriva de projetar olhares não habituais sobre a cidade. O “olhar para cima” despertou conversas entre os participantes e fotografias de edifícios considerados pelo grupo como interessantes, como dois edifícios da Rua Duque de Caxias, um de estética art déco e outro que continha um deslocamento diferente em sua fachada, habitada pelos característicos pombos do centro. Além desses, também foram foco da atenção do grupo um quarto construído bem no alto de um sobrado, similar a um campanário, e o Ed. Coelho, situado na Rua Imperatriz.

Figuras 59, 60, 61 e 62. Registro dos edifícios resultados do “olhar para cima”. Fotos do autor.

106 A condição de olhar para os fenômenos e elementos do alto da rua pode ser vista também como recurso da deriva e mais um artifício próximo do conceito de jogo situacionista. A espontaneidade dos acontecimentos pertinentes a esse ato auxilia nessa suposição. A possibilidade de possíveis tropeços no trajeto, devido a irregularidade dos pisos do centro, e ainda, a atitude dos transeuntes e trabalhadores de acompanhar o olhar dos pesquisadores, torna o “olhar para cima” um elemento lúdico-performático nos trajetos da cidade. Outro elemento importante desta pesquisa-piloto foi o uso de mais um aplicativo de registro de imagens, o Snapchat. O Snapchat permite a realização de comentários na própria fotografia, logo após o seu registro. Com essa possibilidade, a relação entre a impressão sobre determinada ambiência ou atmosfera da fotografia se torna ainda mais estreita. Durante esse quinto piloto, por exemplo, foram realizadas fotografias cuja tônica, por vezes subjetiva da imagem, pôde ser registrada em textos adjacentes à própria imagem, como ilustram as imagens a seguir:

Figuras 63 e 64. Registros das ambiências da Rua Direita e da praça do Pirulito. Fotos do autor.

107 Na imagem referente à Rua Direita há uma tentativa de descrição da própria rua como conformadora de uma ambiência, por sua característica funcional de compra de materiais próprios de projetos artísticos e pela sua atmosfera de cor e movimento. Na imagem da Praça da Restauração, comumente chamada de Praça do Pirulito, por conta do obelisco, foram identificadas pelos participantes, e registradas via Snapchat, três ambiências. A primeira ambiência é referente a própria Praça, pelo seu aspecto calmo e sombreado, a segunda é conformada pela Rua do Jardim e seu movimento típico de comércio. E, por último, uma terceira ambiência ao longe, é categorizada pelo fluxo intenso dos automóveis subindo e descendo o viaduto das Cinco Pontas. Além do registro via Snapchat, mais uma vez foi utilizado o rastreamento pelo aplicativo Map my Walk, o que identificou a tendência do percurso pelas ruas comerciais dos bairros de Santo Antônio e São José. E ainda a atração gerada também pela Rua da Imperatriz por sua característica de possuir edifícios interessantes de serem contemplados pelo recurso do “olhar para cima”, fato indicado pela pesquisadora-participante Bruna Ferrer.

Figura 65. Registro do percurso da pesquisa-piloto 05. Arquivo do autor.

108 A pesquisa-piloto de número cinco foi encerrada por volta das seis da noite, tendo durado aproximadamente quatro horas. Ela se consolidou como mais uma pesquisa de tendência a grande quantidade registros fotográficos, não apenas por influência dos aplicativos de smartfone, mas também pela atenção concentrada em elementos visuais, como a visão do alto dos edifícios e o reconhecimento de ambiências por seus elementos visíveis. Além disso, a pesquisa foi importante pela introdução do uso do aplicativo Snapchat, que facilita o registro afetivo por meio de fotos, e ainda, pela recorrência do uso do Map my Walk para anotação do percurso. 3.3.6 Piloto 06 Para esta pesquisa-piloto foi composto mais uma vez um trio de participantes: o autor da pesquisa e os pesquisadores-participantes Augusto Ferrer e Bruno Cardim. O horário de início da deriva, previsto pelo grupo, foi o horário da manhã com saída por volta das nove horas, em função da opinião dos mesmos de que neste horário a cidade demonstra de forma mais intensa a sua vitalidade. A maior disponibilidade de horário dos pesquisadores-participantes dessa pesquisa em relação aos membros das outras contribuiu para a extensão do tempo de percurso, o que, por sua vez, colaborou para uma deriva ainda mais completa. A deriva teve início em frente ao Shopping Boa Vista, após os participantes avaliarem o local como um dos principais pontos de encontro da cidade, por sua característica de centralidade em relação a todo território do sítio de aplicação das pesquisas, e ainda, pela sua proximidade com o conceito de plaque tournante psicogeográfica, igualmente avaliado pelo trio. O trajeto seguiu por entre as ruas de trás do edifício comercial, situadas mais ao sul do bairro. O fator que caracterizou o diagnóstico de uma unidade de ambiência nessa área foi o lodo, a pátina, e a vegetação incrustada em paredes, elementos peculiares do envelhecimento de alguns edifícios. A ambiência gerada por esses elementos agregados aos edifícios antigos foi reconhecida na Rua da Soledade, na Rua Manoel Borba e na Rua Rosário da Boa Vista, e foi classificada pelo grupo como uma ambiência em estado de descuido, porém de atmosfera atraente ao exercício de deriva.

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Figuras 66, 67 e 68. Imagens do percurso da pesquisa-piloto 06. Arquivo do autor.

Ainda no bairro da Boa Vista, o grupo caminhou até mais ao sul do bairro, em direção ao rio, e identificou outra unidade de ambiência, dessa vez conformada por um pátio sombreado e ventilado, delimitado pelos edifícios e algumas barracas de lanche da Rua Bulhões Marquês. Mais à frente na deriva, outra ambiência foi reconhecida pelo trio. A atmosfera bucólica, própria do pátio da Faculdade de Direito do Recife, aliada à sua fácil e instintiva ligação com o parque de Treze de Maio, de ambiência semelhante, conformou tal classificação. Os participantes caminharam por ambos os “parques” e classificaram-nos como espaços de unidade campestre, inseridos numa malha urbana. Além dessas duas ambiências no bairro da Boa Vista, outra região, dessa vez no bairro de Santo Antônio, foi classificada como uma unidade relacionada com as ambiências anteriores. A Praça Dezessete, igualmente conhecida como a “Praça dos Pombos Rosas”, também foi qualificada pelo grupo como dona de uma ambiência amena em relação ao seu entorno movimentado. A inter-relação entre estas e outras ambiências foi exercitada pelo grupo em um mapa de unidades de ambiências, baseado nos preceitos situacionistas do recorte cartográfico de lotes e ruas, do encurtamento de suas distâncias pela indicação de setas vermelhas e da inclusão de alguns registros fotográficos.

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Figura 69. Mapa de unidades de ambiência. Autores: Augusto Ferrer, Bruno Cardim e Luiz Monte.

Além do registro de unidades de ambiência, a cartografia também foi utilizada pelo grupo como uma forma de registrar o percurso da deriva. O registro realizado pelo Map my Walk serviu como base para a demarcação do passeio completo do trio, que evidenciou uma maior concentração de percurso nos bairros da Boa Vista e de Santo Antônio.

Figura 70. Mapa de percurso da pesquisa-piloto 06. Autores: Augusto Ferrer, Bruno Cardim e Luiz Monte.

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A partir da experiência da confecção desses mapas, e de um nivelamento de consciência do grupo sobre os aspectos principais de uma deriva, o trio chegou a levantar algumas hipóteses relativas ao trajeto. A primeira hipótese é concernente aos becos enquanto elementos de atração e de passagem rápida entre ambiências distintas. A passagem do grupo por alguns becos e vielas, principalmente os do bairro da Boa Vista, durante a caminhada suscitou esta possível relação entre os becos e os elementos de desvio e atração afetiva presentes nas derivas. A segunda hipótese diz respeito às ruínas, e aos prédios abandonados ou envelhecidos. A impressão do grupo sobre este tipo de edifícios é a de que eles funcionam como um dispositivo dúbio, gerando sentimentos que remetem ao incômodo pela falta de cuidado na manutenção dos edifícios, mas que ao mesmo tempo atraem o olhar por uma sensação de vivência antiga e histórias escondidas.

Figuras 71 e 72. Beco da Igreja do Divino Espírito Santo e antigo depósito da Singer. Fotos do autor.

Deste modo, a sexta e última pesquisa-piloto tornou-se uma investigação que conseguiu identificar e relacionar ambiências por intermédio de cartografias afetivas. Inaugurou o registro do percurso na forma de mapa elaborado pelos próprios pesquisadores. E, finalmente, levantou novas hipóteses sobre elementos da cidade, que podem ser desenvolvidas nos experimentos previstos para a pesquisa geral.

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3.3.7. Considerações Sobre os Pilotos Tendo em vista que pesquisa-pilotos ou pré-testes servem para avaliar a pertinência dos instrumentos e acessórios de pesquisa, serão descritas aqui algumas considerações sobre os resultados das pesquisas-piloto. A manutenção de aspectos considerados positivos e a mudança de resoluções sobre as premissas de pesquisa têm intuito de tornar a aplicação dos próximos experimentos contundente e eficaz. Finalmente, o pré-teste permite também a obtenção de uma estimativa sobre os futuros resultados, podendo, inclusive, alterar hipóteses, modificar variáveis e a relação entre elas. Dessa forma, haverá maior segurança e precisão para a execução da pesquisa (MARCONI; LAKATOS, 2003, p. 228).

Um dos pontos a serem discutidos diz respeito ao número de participantes da deriva. Embora a deriva possa ser executada de modo individual, a experiência adquirida com os pilotos demonstra que a técnica realizada em modo coletivo, com participantes dispostos e abertos ao experimento torna a investigação ainda mais produtiva. Esse fato é, inclusive, corroborado por um dos trechos da Teoria da Deriva: “(...) tudo indica que a distribuição mais proveitosa será a que consiste em vários grupinhos de duas ou três pessoas, com idêntico nível de consciência, cujas observações serão confrontadas e levarão a conclusões objetivas” (DEBORD, 1957). Outra questão abordada nas experiências-piloto e que também tem importância para a elaboração dos experimentos é o tempo de duração e enfrentamento do clima da deriva. Apesar das derivas estarem planejadas para o centro do Recife, cidade de clima tropical, úmido e de forte insolação, grande parte dos eventos interessantes das pesquisa-piloto aconteceram em horários onde o sol é presente, por exemplo, das nove da manhã às seis da tarde. É interessante para os experimentos que eles possam ocorrer em horários onde os fenômenos e elementos da cidade estejam acontecendo de maneira plena. Desse modo, as derivas no Recife podem ocorrer durante parte do dia, ou mesmo durante todo dia até o período noturno, desde que se tomem as devidas proteções contra os raios do sol. A única ressalva em relação ao momento da deriva diz respeito

113 à madrugada, justamente pela ausência da plenitude dos fenômenos da cidade nesse período. “(...) convém lembram que as horas da madrugada são em geral impróprias à deriva” (DEBORD, 1957). Pelo fato da maioria das pesquisas-piloto terem sido realizadas no período diurno, abre-se, portanto, a possibilidade para que os experimentos possam adentrar o início da noite, e talvez, durar por mais de um dia. “(...) certas derivas de intensidade suficiente prolongaram-se por dois ou três dias, e até mais” (DEBORD, 1957). Entretanto, ressalta-se o fato de que a maioria dos participantes das pesquisas-piloto considera o período diurno como o mais propício às caminhadas. Outro fato relevante para o planejamento de derivas é a questão do jogo enquanto elemento de distração e contribuição para o aspecto lúdico de uma caminhada psicogeográfica. O jogo, ilustrado em algumas situações das pesquisaspiloto funcionou como um elemento de contraposição à vida corriqueira, ou seja, como um artifício que auxilia a lógica da deriva de projetar um olhar e uma condição diferentes da vivência ordinária das cidades. Nesse sentido, o recurso do jogo fica estabelecido como um potencial e importante instrumento para os experimentos. Os aplicativos são mais um recurso que também se tornaram importantes a partir das pesquisas-piloto. Contudo, além da evidente contribuição do Map my Walk, do Instagram e do Snapchat para o registro das derivas, é interessante pensar na utilização desviante das características desse aplicativos. Por exemplo, o Map my Walk, aplicativo criado com o intuito de informar trajetos, perda de calorias e distâncias para os corredores teve sua função alterada para o mapeamento de derivas experimentais. O Instagram, cuja função prioritária é o compartilhamento instantâneo de imagens entre amigos, sofreu uma perversão dessa serventia e foi utilizado nas derivas como instrumento de mapeamento afetivo. E ainda, o Snapchat, aplicativo inventado para o envio rápido de mensagens que se auto eliminam em curto tempo, foi utilizado como um instrumento de fotografias que traduziam sensações de ambiências. Essas pequenas corrupções dos aplicativos podem ser relacionadas com o conceito de détournement situacionista, e contribuem ainda mais para o entendimento da deriva enquanto um modo de comportamento antiespetacular.

114 Por fim, faz-se necessário a ponderação sobre os percursos e uma reavaliação do campo experimental das derivas. Muito embora o Recife Antigo, o bairro de Santo Amaro e outros bairros circunvizinhos possuam suas especificidades e ambiências, pode-se notar pelos percursos das pesquisas-piloto uma maior profusão de fenômenos nos bairros da Boa Vista e de Santo Antônio. Sendo assim, toma-se como objetivo principal dos experimentos uma análise mais profunda desses dois bairros, podendo-se estender o trajeto em casos de necessidades especiais guiadas pelo contexto da deriva. Assim sendo, podemos considerar que a análise dos pilotos, além de levantar novas possibilidades de recursos e hipóteses sobre o centro do Recife, contribuiu de maneira categórica com reflexões que auxiliarão na execução dos experimentos, no intuito de realiza-los de uma maneira contundente e razoavelmente controlada.

115 4 EXPERIMENTAÇÃO E ANÁLISE

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116 A primeira parte deste capítulo visa explicitar sobre quais condições e segundo quais procedimentos os experimentos serão praticados e analisados. Em segundo lugar, o capítulo visa relatar a aplicação dos experimentos, explicitando suas particularidades de prática e registro. E por fim, traçar uma análise dessa aplicação, organizando as reflexões e conclusões tendo sempre em vista o objetivo geral da pesquisa de avaliar os métodos situacionistas de apreensão urbana. 4.1 Parâmetros de Aplicação A partir das considerações realizadas acerca das pesquisas-piloto, alguns parâmetros de pesquisa foram estabelecidos para a aplicação dos experimentos. O primeiro diz respeito ao número de experimentos. Os experimentos se limitarão ao número de três derivas, nas quais o tempo de execução pode variar de acordo com suas necessidades de apreensão de elementos da cidade. Cada experimento pode durar mais de um dia, de acordo com a resolução dos pesquisadores, e se utilizar também de horas da noite caso esses pesquisadores avaliem a necessidade em virtude do alcance do objetivo ou verificação das hipóteses de unidades de ambiência e plaques tournantes. A limitação em três experimentos visa reduzir número de amostragens para que a análise se torne mais detalhada em relação à pesquisa de campo. O número ímpar tem o intuito de desempatar possíveis padrões que possam vir a serem cogitados auxiliando, portanto, nas conclusões sobre as apreensões dos fenômenos. O segundo parâmetro se refere aos participantes do experimento. As derivas realizadas com mais de duas pessoas foram avaliadas como as de melhor eficácia não apenas em relação a apreensão dos elementos da cidade, como em relação ao enriquecimento das avaliações sobre as ambiências e possíveis decisões de percurso. Fica estabelecido, por conseguinte, que os experimentos serão realizados com a presença de três pesquisadores-participantes, sendo eles: o autor da pesquisa e os pesquisadores-participantes Augusto Ferrer e Bruno Cardim, membros da última pesquisa-piloto. Essa escolha se deu em fator das disponibilidades de horário dos pesquisadores, além de seus apropriados níveis de conhecimento referentes ao objetivo geral da pesquisa.

117 O terceiro parâmetro define o horário de aplicação das derivas. A preponderância do horário de início das pesquisas-piloto se deu no período diurno, e o intervalo onde ocorreram a maior parte das pesquisas foi das nove da manhã às cinco da tarde. Esse espaço de tempo foi avaliado pela maioria dos pesquisadores como o de melhor e mais espontânea apreensão dos elementos e contextos da cidade, em virtude da naturalidade dos aspectos vitais da condição de centralidade urbana, como a plenitude do comércio, do trânsito de pessoas, entre outros fatores. Entretanto, tendo em vista a pouca exploração de derivas à noite para contraposição desse argumento, fica estabelecido que o início dos experimentos se dará pela manhã, com a possibilidade de expansão para noite, ou até mesmo para mais de um dia de experiência a depender do julgamento dos pesquisadores. O quarto parâmetro estabelecido visa confirmar o uso dos aplicativos como instrumentos auxiliares à técnica de pesquisa. O Map my Walk será novamente utilizado para o mapeamento dos percursos da deriva, o Instagram também figurará como instrumento de auxílio no registro e mapeamento fotográfico, e o Snapchat continua com sua característica de registro fotográfico com inserções verbais. O quinto e último parâmetro estabelecido, ou melhor, redefinido, trata do campo experiencial da deriva. Ao avaliar a tendência dos percursos nas pesquisas-piloto realizadas no centro expendido do Recife, chega-se à conclusão de que alguns bairros geram maior interesse e condições para realização de derivas. É provável que o interesse por essa área seja produto das escolhas dos lugares de início das derivas, além da personalidade e estado de espírito dos pesquisadores. O que, por sua vez, explicita o caráter de peculiaridade das derivas, posto que direcionamento e a percepção de elementos acontecimentos se dá em função do tipo de olhar dos membros dessas derivas. A nova área fica estabelecida como sendo o bairro da Boa Vista, limitado a leste pela Av. Agamenon Magalhães, a norte pela Av. Mario Melo e ao sul pelas ruas Padre Venâncio e Estado de Israel, assim como todo o bairro de Santo Antônio e parte do bairro de São José até aproximadamente o Forte das Cinco Pontas, como ilustra o seguinte mapa.

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Figura 73. Ilustração do campo experimental da pesquisa. Desenho do autor.

É provável que o interesse por essa área seja produto das escolhas dos lugares de início das derivas, além da personalidade e estado de espírito dos pesquisadores. O que, por sua vez, explicita o caráter de peculiaridade das derivas, posto que direcionamento e a percepção de elementos acontecimentos se dá em função do tipo de olhar dos membros dessas derivas. Não necessariamente classificado como parâmetro para aplicação dos experimentos, mas como recurso grande importância para a experiência de deriva, está a inserção do jogo enquanto elemento de potencialização do caráter lúdico da deriva, como no caso do “olhar para cima” e do passeio pela sombra, apresentados nas pesquisas-piloto. Por fim, é de interesse da pesquisa, igualmente, que a reunião desses parâmetros aplicados ao exercício da deriva resulte em registros de caráter diagramático e cartográfico, que por sua vez serão avaliados, assim como os procedimentos, de forma qualitativa. Essas especificações visam consolidar os aspectos descritos nas ponderações teóricas e metodológicas de forma a orientar os experimentos que serão realizados.

119 4.2 Experimentos 4.2.1 Primeiro Experimento O primeiro exercício de deriva reuniu o trio de pesquisadores e teve seu início em frente ao Shopping Boa Vista no horário combinado das nove da manhã. A escolha do lugar se deu pela mesma razão da pesquisa-piloto de número seis. Por conta da pluralidade de acessos, derivações possíveis, e grande movimento de transeuntes o grupo, mais uma vez, considerou que o local se aproxima do conceito de plaque tournante psicogeográfica. Além disso, a centralidade estratégica em relação a área de estudo permite que se tenha uma visão centrifuga do campo de estudo, ampliando as possibilidades de caminhos a seguir. O grupo decidiu por caminhar pela Av. Conde da Boa Vista no sentido oeste, mesmo sentido da Av. Agamenon Magalhães. Essa decisão se deu com vista do reconhecimento de uma área pouco explorada nas pesquisas-piloto. Esse trajeto acabou por direcionar alguns aspectos da deriva, o primeiro aspecto se relacionou com a existência do beco lateral à URB/Recife, que liga a Av. Conde da Boa Vista à Av. Oliveira Lima, para onde os pesquisadores foram atraídos e realizaram novamente a reflexão sobre o caráter dos becos enquanto elementos de atração no percurso da deriva e possíveis túneis de aceleração de transição entre distintas ambiências. No caso desse beco, em particular, a mudança de atmosfera se dá em relação a mudança da ambiência comercial e movimentada das calçadas da Av. Conde da Boa Vista para um conjunto de elementos que configuram uma ambiência amena, conformados pela Rua do Riachuelo, parte da Rua do Príncipe e a Rua do Sossego. A entrada, por parte do trio, nessa nova ambiência despertou o segundo aspecto relevante do início da deriva: a da pátina sobre edifícios envelhecidos enquanto elementos geradores de atmosferas bucólicas e remotas. A pátina, ou qualquer dos elementos referentes a ação das intempéries em edificações, como o lodo ou a vegetação, foram interpretados, tal qual nas pesquisaspiloto, como elementos conformadores de um tipo particular de espaço. Nesses espaços a interpretação afetiva se relaciona a sentimentos de tranquilidade, e sobretudo, a emoções nostálgicas, referentes a saudade de um passado não vivido.

120 O trio, como uma maneira de caracterização formal, decidiu nomear tais espaços de ambiências nostálgicas. Ao tratar da dimensão imaterial da pátina, Zancheti e outros autores (2008, p. 9) se baseiam em Bourdieu (1989) e De Certau (1994) ao afirmarem que esta percepção está vinculada as práticas sociais e aos princípios historicamente construídos das cidades, concluindo que: A percepção da pátina se dá, nessa dimensão, pela manutenção das práticas sociais antigas relacionadas a um lugar, tais como: procissões, blocos de carnaval, vendedores ambulantes, pessoas sentadas nas calçadas e disposição de vasos nas janelas, marcantes nas cidades brasileiras (ZANCHETI, 2008, p.9).

Nesse contexto, pode-se afirmar que a classificação da pátina como elemento influenciador de ambiências nostálgicas tem seu sentido baseado na dimensão imaterial à qual ela remete. Segundo considerações dos pesquisadores, existência da pátina parece denunciar a existência de acontecimentos, movimentos de uma cidade previamente viva, camuflada pelo tempo.

Figuras 74 e 75. O beco lateral à URB/Recife e um edifício envelhecido na Rua do Príncipe. Fotos do autor.

121 Além da pátina das edificações antigas, outro fator que ampliou a caracterização do caráter bucólico da ambiência nas ruas citadas, principalmente na Rua do Sossego, foi a presença da sombra das árvores. A adição das árvores nas ruas de edifícios envelhecidos reforça a sensação de ambiente bucólico, pela característica campestre das vegetações e pela sua capacidade de sombrear amenizar a temperatura dos ambientes.

Figura 76. Pátina em casa abandonada na Rua do Sossego. Foto do autor.

Figura 77. Ambiência da Rua Frei Miguelinho, perpendicular à Rua do Sossego. Foto do autor.

122 A deriva teve sua continuidade ainda pela região norte do bairro da Boa Vista, e os elementos de atração e comentários deixaram de ser a pátina e as ambiências amenas e passaram a ser alguns edifícios e casas modernistas. As casas conjugadas da Rua Bispo Cardoso Ayres, de aparências pré-modernas e o Ed. Apollo XXI, cuja imponência remete, verdadeiramente, a um foguete espacial, se configuram como elementos de destaque na ambiência limítrofe do bairro.

Figuras 78 e 79. Casas proto-modernas e Ed. Apollo XXI. Fotos do autor.

Após essa incursão pela parte norte do bairro, o trio desvia a trajetória no sentido de retorno à Av. Conde da Boa Vista. Entretanto, antes de chegar na avenida de fato os pesquisadores descobriram, num dos boxes do térreo do Ed. Walfrido Antunes, antigas máquinas de fliperama ainda em funcionamento. A parada para uma rápida jogada, relembrando memórias afetivas de infância serviu como elemento amplificador do conteúdo lúdico da deriva.

Figura 80. Uso dos fliperamas na galeria do Ed. Walfrido Antunes. Foto do autor.

123

Ao chegar à Av. Conde da Boa Vista os pesquisadores se depararam novamente com a presença da pátina em edifícios antigos. Devido a escala dos edifícios na cidade e sua inserção em uma ambiência de agitação, comércio e serviços, os pesquisadores se inclinaram a classificar a presença da pátina da Av. Conde da Boa Vista como diferente das anteriores. Contudo, ao analisar a carga imagética apresentada pela perspectiva dos edifícios, o trio concluiu que apesar da diferente apresentação visual, os prédios da avenida também comunicam de forma subjetiva as antigas práticas e movimentos sociais da cidade.

Figuras 81 e 82. E. Fotos do autor.

Depois de atravessar a avenida, o trajeto seguiu em direção à parte sul do bairro da Boa Vista. O caráter de diagnóstico de unidades de ambiências nostálgicas continuou presente no trio, pincipalmente ao adentrarem nas ruas entre a Praça Maciel Pinheiro o pátio de Santa Cruz, como a Rua da Matriz, a Rua Velha e a Rua da Santa Cruz, dentre outras também situadas ao sul do bairro.

124 Nessa ambiência, a pátina não apenas evidencia o grau de envelhecimento dos edifícios e dos espaços, como também seu abandono e em muitos casos, sua ruína. Essa atmosfera também se apresenta como uma versão diferente de ambiência nostálgica, apresentando forte elementos de degradação, que quando confrontados com a memória de momentos vividos no passado acabam por gerar um sentimento de consternação, dadas as atuais condições dos espaços. Um exemplo disso é o edifício abandonado onde funcionou, nos anos 1950, o atelier coletivo de Abelardo da Hora e ainda um casario em ruínas, situado na rua de nome devidamente apropriado à ambiência, a Rua Velha.

Figuras 83 e 84. Edifício abandonado - antigo atelier de Abelardo da Hora e ruína na rua Velha. Fotos do autor.

A continuidade da deriva se deu ainda mais ao sul do bairro da Boa Vista. O trio seguiu caminhando pela Rua São Gonçalo e pela Rua dos Coelhos, quando novamente o elemento do jogo situacionista desviou o trajeto. A simples, porém incomum, indicação da rua dos Prazeres numa placa enferrujada foi a responsável por esse desvio e fez com que o trio adentrasse imediatamente à rua ao interpretarem o conteúdo da placa como uma metáfora para os divertimentos da deriva. Esse desvio acabou por transportar o grupo para um conjunto de ruas onde existiam outros elementos de ambiências nostálgicas. Uma antiga casa na rua Jornalista Edmundo Bitencourt e um casarão abandonado na Rua Barão de São Borja remeteram ao grupo a mesma sensação experienciada nas ambiências adjuntas ao Pátio de Santa Cruz. A reincidência dessa caracterização, por parte do trio de pesquisa, foi responsável por confirmar a procura pela pátina e pelo envelhecimento como a tendência principal do experimento.

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Figura 85. Placa de indicação da Rua dos Prazeres. Foto do autor.

Figuras 86 e 87. Casas na Rua Edmundo Bitencourt e na Rua Barão de São Borja. Fotos do autor.

Após esse longo percurso pela parte sul do bairro da Boa Vista e pela proximidade das cinco horas da tarde o trio decide por uma caminhada até o bairro de Santo Antônio, com o propósito de se transferir de uma área de pouca movimentação de pessoas, para uma área de grande animação. Além isso, o trio também visava a passagem pela ponte da Boa Vista para a contemplação do rio Capibaribe e da própria beleza da ponte.

126 Por conta do cansaço inerente à já extensa jornada o trajeto se deu de forma lenta e com paradas extensas para conversas e descansos à sombra. E, apesar do reconhecimento da pátina e da vegetação incrustada num edifício, cuja visada se deu a partir da Rua Frei Caneca, o trio estendeu ainda mais o percurso até um bar no Pátio de São Pedro, onde iniciaram uma reflexão sobre as ambiências nostálgicas e assistiram ao início da noite no bairro. As considerações sobre as ambiências nostálgicas no Pátio de São Pedro, foram discutidas levando em conta os aspectos cartográficos da cidade. Debruçados sobre o mapa do Recife, os pesquisadores se deram conta de que essas ambiências tomam grande parte do campo experimental das derivas, e existe uma grande possibilidade de elaboração de mapas de inter-relações entre esses espaços. A confecção de um mapa43 de relações de ambiência foi iniciada durante essa conversa e posteriormente reorganizada em conjunto com os outros dois experimentos.

Figuras 88 e 89. Edifício visto da Rua Frei Caneca e Pátio de São Pedro. Fotos do autor.

A deriva continuou pela parte norte do bairro de Santo Antônio durante o início da noite. A chegada da noite no centro do Recife coincide exatamente com o término do horário comercial de trabalho, o que acaba por gerar uma mudança brusca no ritmo das ambiências da cidade. O esvaziamento rápido de alguns espaços acaba por ampliar a atmosfera bucólica desses lugares, como no caso da Av. Guararapes, que durante todo período diurno abriga um enorme movimento de pedestres e que a noite 43

Para apreciação do mapa de inter-relações de ambiências nostálgicas ver apêndice G.

127 se torna gradativamente mais vazia. Nesses espaços vazios, a marca da pátina dos edifícios modernos e calçadas se confunde com a sombra gerada pelas luzes, trazendo à tona novamente o sentimento de nostalgia atrelado ao de degradação e angústia pelo abandono noturno desses espaços.

Figura 90. Galerias da Av. Guararapes no início da noite. Foto do autor.

Outro elemento diagnosticado pelo trio com capacidade de alterar a percepção dos espaços à noite foi a iluminação pública. A falta de iluminação pública em certos locais combinada com a existência em outros, como nas luzes dos postes, dos prédios públicos e das igrejas, gera um contraste de luz e sombra próprios do período noturno daquele espaço. Além disso, também é possível perceber o surgimento de novos elementos, como os letreiros iluminados, em placas ou mesmo em neon, que adicionados ao jogo de sombras remetem a uma atmosfera própria dos filmes noir44. Essas características podem ser percebidas, por exemplo, no espaço da Av. Dantas Barreto.

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Film noir - expressão francesa referente ao subgênero de filme policial popular nos Estados Unidos, entre 1939 e 1950.

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Figuras 91 e 92. Ed. Igarassu e Igreja Matriz de Santo Antônio, Av. Dantas Barreto. Fotos do autor.

Apesar das considerações sobre os aspectos noturnos da deriva, este primeiro experimento não se estendeu durante muito tempo à noite. O cansaço corporal e intelectual dos pesquisadores influenciou o grupo a encerrar o trajeto ainda nas primeiras horas da noite. Entretanto, o grupo classificou o período e o tempo do experimento como positivos, dadas as avaliações e resultados obtidos com os trajetos percorridos durante o dia e a tarde. Para efeito de registro da deriva os pesquisadores fizeram uso, novamente, do aplicativo Map my Walk. Todavia, apesar da eficácia de georreferenciamento do Map my Walk, algumas informações sobre nome de ruas ou locais visitados são omitidas pela representação do mapa realizada pelo aplicativo. Como um aprimoramento de registro do trajeto da deriva, os pesquisadores confeccionaram um mapa de percurso45, com a inserção da nomenclatura dos espaços, edificações e outros elementos importantes citados nesta análise. O primeiro experimento acabou despontando, majoritariamente, como um processo investigação de ambiências classificadas como nostálgicas. As grandes marcas dessas ambiências foram a pátina e outros elementos que denunciam o envelhecimento de edifícios, além de outros elementos relativos a uma memória afetiva e coletiva da cidade, capazes de comunicar sentimentos saudosos e de pesar por esses ambientes.

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Para apreciação do mapa de percurso do experimento 01 ver Apêndice C.

129 4.2.2 Segundo Experimento Assim como o primeiro, o segundo experimento teve início na Av. Conde da Boa Vista na altura do Shopping Boa Vista, por volta das dez da manhã. Por conta da experiência obtida no beco da URB durante o primeiro experimento se viu inclinado, logo no início do trajeto, a transpor um dos becos do bairro da Boa Vista, nesse caso, o beco da Fome. Os pesquisadores analisaram a passagem pelo beco como uma experiência diferenciada no processo de deriva, e partir disso, levantaram a hipótese de que os becos se configuram como túneis de potencialização da experiência corporal de deriva, funcionando como um elemento de aceleração, ou seja, de rápida transição entre ambiências.

Figuras 93 e 94. Imagens do beco da fome. Fotos do autor.

A troca de ambiências catalisada pelo beco da Fome se dá entre a ambiência da Rua do Hospício, cujos aspectos principais são o comercio ambulante e as calçadas malcuidadas, e a Rua Sete de Setembro, onde o posicionamento da sombra dos prédios, e do desenho da rua em cul-de-sac configuram um pequeno espaço semelhante a um largo.

130

Após a experiência do beco e de um desvio pela parte norte do bairro, o trio rumou em direção ao outro lado da Av. Conde da Boa Vista, e passou a explorar as ruas laterais e por trás do Cinema São Luiz. Essa área acabou se mostrando, sob a ótica dos pesquisadores, um espaço de ambiências de variações significantes e atraentes. A primeira ambiência pode ser delimitada pelas Ruas Sebastião Lins e Clube Náutico Capibaribe. Em ambas a presença da pátina nos edifícios antigos remete a sensação bucólica das ambiências nostálgicas, além disso, existe por entre dois prédios, uma ligação entre as duas ruas, que acaba por ampliar a unidade atmosférica entre elas.

Figuras 95 e 96. Ligação entre as Ruas Sebastião Lins e Clube Náutico Capibaribe. Fotos do autor.

Muito próximo a esta ambiência, no fim da Rua Clube Náutico Capibaribe e por trás do Ed. Novo Recife, está situada a Praça Machado de Assis. Apesar de não funcionar propriamente como uma praça, e ter grande parte de seu terreno ocupado por carros estacionado, a configuração espacial e atmosférica da Praça Machado de Assis foi classificada pelo grupo como uma ambiência-pátio. Pela sua conformação reclusa, sombreada e arborizada a praça foi classificada pelo trio como um elemento atrativo e possibilitador de um estado de suspensão, ou seja, de separação momentânea do movimento urbano.

131

Figura 97. Imagem da praça Machado de Assis. Foto do autor.

O transeunte que adentra a Praça Machado de Assis tem acesso, por duas entradas, ao beco do Fotógrafo que perpassa o térreo de dois edifícios, o Ed. Novo Recife e o Ed. Tabira. Dada a hipótese levantada em relação aos becos, o grupo classificou o lugar como mais um espaço de potencial aceleração do processo de deriva, tornando a passagem por esses becos um ato de rápida transição entre diferentes atmosferas. Além da hipótese dos becos, por sua configuração labiríntica e de corredor de edifício, o ambiente do beco do Fotógrafo se mostrou um elemento de outras possibilidades para a deriva. Na exploração do beco, o trio se deparou com a escada principal do Ed. Novo Recife, que dá acesso ao terraço do edifício. Esse terraço foi classificado pelo grupo como mais uma das ambiências nostálgicas, não apenas por se tratar de um lugar envelhecido, como também pela possibilidade de vislumbre de uma paisagem da cidade formada por edifícios marcados pelo tempo, que acabaram por contribuir para a conformação da ambiência.

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Figuras 98, 99, 100 e 101. Imagem do terraço do Ed. Novo Recife; vista da paisagem e dos prédios do entorno. Fotos do autor.

Após a investigação do beco do Fotógrafo, os pesquisadores seguiram em direção ao bairro de Santo Antônio, utilizando um elemento de atração, de ambiência específica e classificada pelo grupo como uma possível plaque tournante psicogeográfica, a ponte da Boa Vista. A ponte, onde há grande movimento de pedestres e ambulantes característicos da vida no centro da cidade, foi considerada, pelos pesquisadores, um artefato de ligação, ponto de encontro e elemento lúdico entre as ambiências da Rua da Imperatriz e da Rua Nova. Esses fatos, além de aproximarem a ponte ao conceito de plaque tournante, evidenciam que ela se constitui como uma ambiência particular na malha urbana no Recife.

133 Atravessada a ponte da Boa Vista, o trio adentra o bairro de Santo Antônio pela Rua Frei Caneca, segue pela Rua da Palma. Quase ao fim da extensão da rua, o grupo descobre a existência de um beco que tem início na própria Rua da Palma, atravessa a Rua Vinte e Quatro de Maio e desemboca na Av. Dantas Barreto. Segundo avaliação do trio, os aspectos desse beco condizem exatamente com os elementos levantados durante a passagem pelo beco da Fome e do Fotógrafo. Intitulado pelos pesquisadores como beco do Ferro-Velho, pela quantidade de objetos descartados, o recinto funciona como um atalho que parte de um setor desocupado e pouco comercial da Rua da Palma e desemboca na amplitude comercial e espacial da Av. Dantas Barreto, permitindo ao passante uma conexão quase direta ao setor central do camelódromo que percorre a avenida.

Figura 102. Passagem pelo beco do Ferro-Velho. Foto do autor.

Depois da experiência desse beco, o trio se deteve durante algum tempo a explorar a ambiência do camelódromo, passeando por suas lojas comerciais e de serviço. O trio avaliou a ambiente do camelódromo como um espaço mais um ponto atrativo dentro da cidade, por ser um espaço sombreado e pelo fato da grande quantidade de lojas e elementos expostos conformarem um ambiente de ampla variedade imagética. Entretanto, o elemento que atraiu os pesquisadores durante a

134 passagem pelo camelódromo foi a existência de mais um beco, vislumbrando entre dois pontos comerciais na calçada da Av. Dantas Barreto. A Travessa dos Martírios é outro grande exemplo de um elemento de rápida ligação entre duas ambiências conveniente ao processo de deriva. A passagem pela travessa parte da ambiência agitada das margens do camelódromo e transporta o transeunte até a lateral da Igreja do Terço, na Rua das Águas Verdes. A partir desse ponto, um breve desvio à direita revela a entrada da igreja de frente ao pátio do Terço, onde a atmosfera apesar de comercial, possui uma amplitude espacial e remete a sentimentos bucólicos associados a perspectiva da igreja secular.

Figuras 103 e 104. Imagens do início e do fim da travessa do Martírios. Fotos do autor.

Posteriormente a passagem pelo pátio do Terço, os pesquisadores rumaram em direção ao setor leste do bairro, por entre as ruas próximas ao Mercado de São José, passando pela Praça da Restauração, a “Praça do Pirulito’. As ambiências descritas nas pesquisas-piloto sobre a praça e o entorno do mercado foram novamente constatadas pelo grupo. Enquanto a praça se apresenta como um local calmo e sombreado, de fuga momentânea do movimento do comércio, as cores referentes ao comercio da Rua das Calçadas, as diversas tonalidades das frutas

135 expostas na Praça Dom Vital, os múltiplos sons e elementos do espaço do mercado caracterizam seu entorno como um local de atmosfera avivada e efusiva. Ainda próximo ao entorno do mercado, seguindo pela Rua da Praia, o trio é novamente atraído pela travessia de uma viela. O beco do Marroquim, que liga o Cais de Santa Rita a Rua da Palma é, talvez, o beco mais lúdico da cidade do Recife. O posicionamento das lanchonetes, as barracas de serviços, e principalmente, a exposição da grande variedade de tecidos à venda nas laterais do beco conformam uma perspectiva que se descortina aos poucos durante o trajeto de quem passa. PO Beco do Marroquim foi classificado pelo trio como que um elemento cujo caráter de ampliação da experiência de deriva é ainda maior que o dos outros becos, pois além de funcionar como um portal de passagem rápida entre ambiências diferentes, ele agrega durante a passagem uma experiência estética relativa a beleza dos tecidos à venda.

Figuras 105 e 106. Imagens do beco do Marroquim. Fotos do autor.

A exploração do beco do Marroquim levou os pesquisadores de volta à Rua da Praia, de onde seguiram no sentido norte do bairro de Santo Antônio, passando pela Praça Dezessete e pela Praça da Independência até chegarem à Rua da Roda, um dos acessos à Praça do Sebo. Os pesquisadores chegaram à Praça do Sebo já pelo

136 fim da tarde e optaram por descansar sentados à uma mesa e avaliar alguns pontos da deriva. O aspecto principal levantado nesse momento foi referente à própria ambiência da Praça do Sebo. O trio classificou o espaço da praça como semelhante às ambiências da Praça Machado de Assis, a Praça da Restauração, e ainda a outros espaços cujo desenho urbano é conformado pelos limites dos edifícios em volta, configurando espaços semelhantes a pátios, ou mesmo claustros, geralmente sombreados e propícios a uma parada duradoura. Segundo os pesquisadores, esse tipo de ambiente tem a capacidade de dilatar o tempo da deriva, causando um efeito momentâneo de cessação das ambiências ao redor.

Figuras 107 e 108. Ambiência da praça do Sebo ao anoitecer e à noite. Fotos do autor.

O segundo experimento foi, portanto, encerrado na praça do Sebo, por volta das cinco e meia da tarde, onde foram ponderados os aspetos apreendidos no trajeto. Trajeto este que também contou com o mapeamento feito pelo aplicativo Map my Walk. E, assim como no primeiro experimento, o aplicativo de georreferenciamento foi utilizado para a elaboração de um mapa46 do itinerário percorrido. A deriva teve duração aproximada de sete horas e se configurou pelo descobrimento de algumas ambiências, semelhantes a pátios, cuja a impressão afetiva é de quietude e interrupção do ritmo agitado da cidade. Mas se consolidou, sobretudo, como uma investigação da hipótese dos becos enquanto túneis de aceleração do processo de passagem por ambiências.

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Para apreciação do mapa de percurso do experimento 02 ver Apêndice D.

137 4.2.3 Terceiro Experimento A terceira deriva partiu de um encontro dos pesquisadores na Av. Conde da Boa Vista, na esquina com a Rua Gervársio Pires, próximo ao ponto de encontro dos outros experimentos. Entretanto, diferentemente das anteriores, esse experimento teve início por volta das duas da tarde, por conta da intenção dos participantes de estende-lo ainda mais à noite. O trio de pesquisadores seguiu pela rua no sentido norte do bairro, dobrando a esquerda na Rua do Riachuelo. Na passagem pela rua do Riachuelo os pesquisadores constataram novamente a ocorrência da ambiência nostálgica, principalmente na altura em que a Rua do Riachuelo se encontra com a rua o Sossego. Exatamente nessa esquina existe um casarão onde hoje funcionam cursos profissionalizantes, mas que já abrigou a antiga Escola Normal Pinto Junior, fundada em 1882. Os aspectos estéticos do casarão, como a presença da pátina, o desgaste da pintura da fachada, o envelhecimento das esquadrias e a queda de parte do reboco dialogam com os elementos de envelhecimento dos casarios, sobrados e arvores antigas do entorno, acomodando ainda mais o ambiente bucólico. A junção desses elementos configura, portanto, a característica prenunciada das ambiências nostálgicas: a sensação de movimentos antigos da cidade que pairam disfarçados na atmosfera de suas ruas.

Figura 110. Antiga Escola Normal Pinto Junior. Foto do autor.

138 Ainda durante o percurso pela Rua do Riachuelo, o trio se vê atraído pela indumentária lúdica de uma carroça de material reciclável decorada com bandeiras e outros artefatos coloridos, como uma sombrinha de frevo e uma bandeira do Brasil. A obra espontânea do carroceiro foi associada pelos pesquisadores como semelhante a organicidade dos parangolés e estudos visuais de Hélio Oiticica47. O reconhecimento e registro visual da carroça também foi considerado pelo grupo como um processo inerente as derivas, pela capacidade que a técnica tem de transformar o olhar objetificados e usual do transeunte, permitindo-lhe a percepção de informações estéticas que se encontram no próprio dia-a-dia das cidades.

Figura 110. Carroça de materiais recicláveis na Rua do Riachuelo. Foto do autor.

Depois da caminhada pela Rua do Riachuelo, o trio desviou o trajeto para o setor ainda mais a norte no bairro da Boa Vista, seguindo pela Rua Bispo Cardoso Ayres e dobrando à esquerda na Rua Bernardo Guimarães. A Rua Bernardo Guimaraes, além de sombreada pela presença das árvores, possui a particularidade em relação ao trecho situado entre os diferentes blocos da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP), nesse trecho a rua recebe a alcunha de “Rua do Lazer”, por conta da significativa quantidade pessoas, na maioria universitários, circulando ou

47

Hélio Oiticica (1937 – 1980), pintor, escultor, artista plástico e performer carioca.

139 reunidos em conversas nas mesas pertencentes às barracas laterais da rua, onde funcionam a venda de lanches, revistas e apetrechos diversos. Nessa rua, os pesquisadores reconheceram, mais uma vez, a já relatada atmosfera de suspenção urbana, um tipo ambiente diferenciado que promove uma sensação de separação dos processos cotidianos e, por conseguinte, um tipo de reclusão num recinto cujo ritmo difere do compasso habitual do resto da cidade. Como uma maneira de formalizar o registro, o trio decidiu por nomear esse tipo de ambiência como ambiências-pátio, dado que em sua maioria, esses espaços são formados por recintos circundados por edifícios ou elementos de desenho urbano que lhes atribuem um caráter de lugar mais reservado. Assim como as ambiências nostálgicas as ambiências-pátio também foram representadas em um mapa48 com referências a elementos dos três experimentos.

Figuras 111 e 112. Ambiência da Rua Bernardo Guimarães e pátio interno da UNICAP. Fotos do autor.

Decorrido o percurso pela “Rua do Lazer”, o trio decide por regressar no sentido da Av. Conde da Boa Vista. A escolha por esse percurso levou os pesquisadores a passar pela Rua Nunes Machado. Nessa rua, os membros da deriva observaram uma dicotomia de ambiências significante. A única parede restante da antiga fábrica da Fratelli Vita representa a resistência de uma ambiência nostálgica em forma de ruína, coberta por pátina e ainda por uma extensiva vegetação incrustada. Entretanto, exatamente durante a passagem pelo local, os pesquisadores constataram a inevitável efemeridade dessa ambiência. Logo atrás da parede envelhecida, ouvia-se

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Para apreciação do mapa de inter-relação de ambiências-pátio ver apêndice H.

140 o bate estaca do novo empreendimento que em pouco tempo repaginará toda a atmosfera local. Além do registro fotográfico, também foi realizado pelo trio um registro em vídeo49 desse contraste de ambiências.

Figuras 113 e 114. Imagem da parede da antiga Fratelli Vita; Frame do vídeo do bate-estaca. Foto e arquivo do autor.

Saindo da Rua Nunes Machado, os pesquisadores continuaram o trajeto em direção a Av. Conde da Boa Vista. Depois de uma parada extensa por conta da chuva em frente ao edifício Módulo, o trio continuou o percurso ao longo da avenida no sentido leste, em direção do bairro de Santo Antônio. Nesse percurso os pesquisadores investigaram o último trecho da Av. Conde da Boa Vista, a partir dos edifícios Pirapama e Suape até as esquinas do Recife Plaza e do Cinema São Luiz. Pela perspectiva e aparência envelhecida dos edifícios, esse intervalo foi classificado pelo trio como mais um espaço de ambiência nostálgica, tendo esse efeito ampliado pelo cair da tarde e o consequente realce da pátina e dos elementos de sombra.

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Vídeos e outros registros dos pilotos e experimentos disponíveis no blog: cargocollective.com/recifedeandada

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Figuras 115 e 116. Edifícios do último trecho da Av. Conde da Boa Vista. Fotos do autor.

Mesmo com a chegada da noite os pesquisadores continuaram o percurso e adentraram no lado sul do bairro da Boa Vista pela Rua da Aurora, indo até a Rua da Imperatriz. Da rua da Imperatriz o trio seguiu em direção à Rua Bulhões Marquês com a intenção de investigar novamente sua ambiência. A Rua Bulhões de Marquês tem uma configuração semelhante a uma travessa na parte mais próxima da rua do Imperador, setor exclusivo para o trânsito de pedestres. Aproximadamente em seu ponto médio a rua se descortina num pequeno largo conformado pelas esquinas curvadas de dois edifícios que a margeiam. Tanto de dia como à noite o espaço do largo é tomado por carros estacionados, enquanto a esquina da parte reservada aos pedestres é ocupada por barracas com comércio de bebida, refeições e cadeiras de plástico. Apesar dos carros criarem um obstáculo visual ao largo, o espaço das barracas e a árvore presente no centro da rua conformam uma atmosfera classificada pelos pesquisadores como exemplo das ambiências-pátio.

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Figuras 117 e 118. Registro da ambiência da Rua Bulhões Marquês. Fotos do autor.

Após a investigação desse espaço no bairro da Boa Vista, o grupo seguiu em direção ao bairro de Santo Antônio, por conta disso os participantes se viram novamente impelidos a passar pela Ponte da Boa Vista. A iluminação da ponte à noite, e a grande movimentação de entrada e saída dos transeuntes ao finalizarem seus expedientes e afazeres ampliam, respectivamente, o caráter lúdico da estrutura e a afinidade do espaço com o conceito de plaque tournante psicogeográfica.

Figura 119. Ponte da Boa Vista. Foto do autor.

143 Ao desembarcar da experiência da ponte no bairro de Santo Antônio, o trio decidiu por seguir primeiramente pela Rua Nova, depois pela Rua das Flores até a chegada na avenida Dantas Barreto. Desse ponto os pesquisadores decidiram traçar um percurso pelas ruas comerciais até o cerne do São José, como forma de reavaliar as ambiências próximas ao mercado no período da noite. A partir daí o trio seguiu pela Rua do Fogo, por parte da Av. Nossa Sra. do Carmo, pelo pátio do Livramento e pela Rua da Penha até finalmente alcançar a praça do mercado. Depois de percorrerem esse longo percurso os pesquisadores constataram que o exercício da deriva durante o período noturno no bairro de São José, mesmo que nas primeiras horas da noite, torna-se pouco proveitoso por conta da brusca mudança dos elementos conformadores das ambiências. Por volta das seis e trinta da noite praticamente todos os locais comerciais são fechados, encerrando assim o movimento de pessoas, a exposição das mercadorias, as particularidades sonoras, entre outros aspectos importantes para a caracterização de ambiências. Durante essa caminhada pelas ruas comerciais à noite os pesquisadores efetuaram registros em foto e vídeo50, buscando capturar essa atmosfera de encerramento das atividades.

Figuras 120 e 121. Ruas do entorno do Mercado de São José à noite. Fotos do autor.

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Vídeos e outros registros dos pilotos e experimentos disponíveis no blog: cargocollective.com/recifedeandada

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Figuras 122 e 123. Pátio do Livramento e Beco do Marroquim à noite. Fotos do autor.

A partir dessa constatação sobre o bairro de São José, os pesquisadores rumaram pelo Cais de Santa Rita e pela Av. Martins de Barros no intuito de alcançar a parte norte do bairro de Santo Antônio. Durante o trajeto, o trio se deparou com a praça Dezessete, objeto de avaliações do trio ainda durante as pesquisas-piloto. Por seu caráter semelhante aos espaços amenos de ambientes como a praça Machado de Assim e a praça do Sebo, pela sua iluminação noturna e atmosfera tranquila, os pesquisadores decidiram classificar a Praça Dezessete como mais uma ambiênciapátio na cidade, muito embora, uma das particularidades desse tipo de ambiência não esteja representada nela: a conformação espacial de reclusão, típica dos pátios.

Figura 124. Registro da Praça Dezessete. Foto do autor.

145 Prosseguindo com a deriva, o trio retomou o rumo em direção ao setor norte do bairro de Santo Antônio, passando pela Rua do Imperador, pela praça do Sebo, pelo entorno do Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães (MAMAM), e ainda por parte da Av. Conde da Boa Vista, encerrando a deriva, por volta das oito e meia da noite, com uma reunião numa das lanchonetes da avenida. Nessa reunião de encerramento da deriva, o grupo ponderou aspectos referentes à experiência noturna do experimento. O trio constatou que, embora as derivas à noite tornem-se pouco proveitosas no bairro de São José, na parte norte do bairro de Santo Antônio e no bairro da Boa Vista é possível encontrar pontos de readequação e reanimação das ambiências à vida noturna. Torna-se oportuno, portanto, citar alguns exemplos dessa readequação de espaços da cidade: o significante registro do trio em relação a um grupo de senhores que jogavam dominó na Rua do Imperador, por volta das oito horas, mesmo com o encerramento de expediente dos comércios e serviços; a transformação da praça do Sebo, de um local de comércio literário e restaurantes para um ambiente de boemia e encontros casuais; e ainda, a adaptação da Rua da União num ponto de comércio ambulante para a venda de lanches e bebidas para os trabalhadores que encerram o expediente apenas às dez horas.

Figura 125. Registro de movimentação noturna na Rua do Imperador. Foto do autor.

146 O último experimento teve uma duração aproximada de seis horas e se mostrou uma deriva cujo carácter principal foi o de reconhecimento das ambiências nostálgicas e das ambiências-pátio, conceituadas durante os dois primeiros experimentos. Algumas dessas ambiências foram citadas, inclusive, nas pesquisas-piloto e exigiram essa nova investigação para a constatação de elementos importantes. A classificação dessas ambiências não pretende defini-las como idênticas, mas criar uma aproximação atmosférica entre elas, facilitando assim as suas inter-relações afetivas e cartográfica, sem deixar de levar em conta as devidas particularidades dos espaços. Além dessa categorização de ambiências, o experimento também se ateve à possível descoberta ou invenção de elementos lúdicos durante o percurso, como a carroça da Rua do Riachuelo, e à uma rápida e parcial investigação dos aspetos relativos ao exercício noturno da deriva. Assim como nos outros, o terceiro experimento também contou com o mapeamento via Map my Walk. E, com o intuito de preservar o padrão de registro dos experimentos, também foi confeccionado pelos pesquisadores um mapa51 de percurso da deriva baseado no registro efetuado pelo Map my Walk e com a introdução de legendas indicativas dos locais e conjunturas visitadas. 4.2.4 Conclusões e Mapas Resultantes A realização dos três experimentos, como havia sido previsto na etapa metodológica configura, portanto, o objetivo principal do trabalho de avaliação das técnicas situacionistas da deriva e da psicogeografia. Durante os três experimentos, os pesquisadores puderam exercitar o reconhecimento de duas hipóteses situacionistas atreladas ao exercício das técnicas: o reconhecimento das unidades de ambiência, e a observação de espaços semelhantes ao conceito de plaque tournante psicogeográfica. O conceito de plaque tournante foi reconhecido de maneira aproximada, durante a execução dos experimentos, nos espaços do Shopping Boa Vista e da ponte da Boa Vista enquanto que, durante as pesquisas-piloto, as referências relativas ao conceito foram a praça da Igreja da Soledade e a Praça do Marco Zero. Entretanto, as conclusões sobre a constatação da hipótese das plaques tournantes não obtiveram 51

Para apreciação do mapa de percurso do experimento 03 ver Apêndice E.

147 resultados expressivos por conta, majoritariamente, da incerteza dos pesquisadores na classificação desses lugares. Essa incerteza decorre de falta de solidificação conceitual em relação a hipótese. O que se justifica, em parte, pela falta de precisão na descrição do conceito nos textos situacionistas, em específico a Teoria da Deriva e o Esboço de Descrição Psicogeográfica do Les Halles de Paris. Deste modo, para fins de conclusão dos experimentos, considera-se que a hipótese continua como uma formulação insuficientemente testada, necessitando ser investigada de forma mais profunda em possíveis novas pesquisas, com vistas a obtenção de melhores resultados. Com relação ao reconhecimento de unidades de ambiências, pode-se considerar justamente o contrário. O processo de caracterização dessas unidades foi basicamente a tônica principal dos experimentos e resultou na demarcação de dois tipos de ambiências: as ambiências-nostálgicas e as ambiências-pátio. As ambiências-nostálgicas foram definidas por espaços em que a presença de edifícios antigos ou mesmo modernos, cobertos pela pátina ou outros elementos que caracterizam envelhecimento, é percebida como uma atmosfera em que ainda podem ser intuídos movimentos e práticas sociais próprios das épocas passadas. No caso das ambiências-pátio as áreas foram delimitadas de acordo com sua atmosfera de acomodação urbana. Elas se distinguem por espaços onde o tempo da deriva é compreendido de maneira mais lenta, cuja ação principal se torna o estar e não o percorrer, e onde os edifícios ao redor potencializam essa sensação de reclusão. É perceptível que a caracterização das ambiências foi influenciada, em grande parte, por uma predileção dos elementos arquitetônicos e pela ênfase em aspectos físicos da cidade. O fato de dois pesquisadores-participantes serem arquitetos e um cineasta contribuiu para esse fato. Entretanto, é possível notar que apesar do destaque para aspectos físicos, existiu por parte destes mesmos pesquisadores, uma tentativa de apreensão das subjetividades, não só em relação as unidades de ambiência, como na percepção de possíveis elementos de passatempo e divertimento, incorporando conceito de jogo situacionista aos trajetos de deriva. A inclusão do jogo como elemento natural nas deambulações vai além do aspecto lúdico e se configura também como uma ação de contestação. O fato de estarem sempre abertos a mudanças inesperadas de trajeto ou de olhar, muitas vezes pelo simples fato de obedecerem a um sinal, uma placa, ou alguma conjuntura

148 repentina da cidade, foram estratégias de perpetuação do jogo utilizadas pelos participantes como um instrumento de quebra da monotonia do andar objetivo, como um enfrentamento às condições habituais de caminhar pela cidade com fins demasiadamente traçados, e sem a possibilidade da abertura aos movimentos naturais e desejantes do trajeto. Nesse sentido, os pesquisadores também chegaram a conclusão da alteração de tempo e de percepção relativa ao processo de deriva. Durante a experiência da deriva as percepções em relação à cidade ganham um ritmo mais lento, e principalmente, se distanciam da lógica habitual da circulação relativa apenas a realização de objetivos previamente estabelecidos. Essa alteração do olhar no participante da deriva torna-se essencial para o reconhecimento dos elementos lúdicos, ambiências e outros elementos difíceis de apreender no dia-a-dia. No que concerne ao exercício da deriva durante à noite, os pesquisadores chegaram à conclusão de que as adaptações noturnas podem ser capazes de gerar novos tipos de ambiências, de experiência lúdica e ainda, novas hipóteses sobre a cidade. Esse novo perfil da cidade durante a noite e a madrugada se mostra em grande parte diferente do período diurno, o que necessitaria, portanto, um tipo de estudo mais aprimorado para a obtenção de conclusões mais efetivas. Tendo em vista que os três experimentos foram executados em grande parte entre às nove da manhã e às cinco da tarde, uma análise realizada ainda nesta pesquisa sobre o período noturno torna-se insuficiente. Um outro elemento importante do processo de deriva foi o levantamento, por parte dos pesquisadores, da hipótese dos becos enquanto túneis de potencialização da experiência de deriva. Essa hipótese emana principalmente da experiência direta da passagem em alguns dos principais becos dos bairros da Boa Vista e de Santo Antônio. Para uma melhor compressão dessa formulação, faz-se necessário a análise de um dos fragmentos do documento Teoria da Deriva, de Guy Debord, onde o autor trata das margens fronteiriças das ambiências: As diferentes unidades de atmosfera e de moradia não são hoje muito nítidas, e sim cercadas de margens fronteiriças mais ou menos extensas. A mudança mais geral, que a deriva leva a propor, é a diminuição constante dessas margens fronteiriças, até sua completa supressão (DEBORD, 1957).

149 O trânsito através dos becos do centro Recife, foi analisado pelos pesquisadores como uma experiência que consegue exercer um radical estreitamento das margens fronteiriças conceituadas por Debord. Pode-se afirmar, por conseguinte, que a travessia pelos becos é uma maneira de esborrar de forma brusca as bordas de ambiência da cidade, abreviando, de tal modo, a circulação pelas distintas percepções e impactos da paisagem, dos sons e de outros elementos próprios da metrópole. Para um melhor esclarecimento e aprofundamento dos ajuizamentos sobre as questões relatadas, os pesquisadores confeccionaram sete mapas, utilizando como base a cartografia da cidade e interferindo graficamente de modo a ilustrar de maneira física essas ponderações. Os três primeiros mapas representam os mapas de percursos equivalentes respectivamente aos trajetos dos experimentos. Esses mapas tiveram como base para elaboração os mapas georreferenciado registrados pelo aplicativo Map my Walk, e podem ser consultados nos apêndices C, D e E desta dissertação. O quarto mapa corresponde ao mapa de ilustração da hipótese dos becos, nele estão marcadas as localizações dos becos, com suas correspondentes entradas e saídas, além de uma inserção visual da experiência de ultrapassem dessas extensões. O mapa de ilustração da hipótese dos becos pode ser consultado em sua totalidade no apêndice F deste documento. O quinto e o sexto mapa procuram traduzir a inter-relação entre as unidades de ambiências descritas nos experimentos. O trio procurou conectar os lugares relatados nas derivas, aproximando suas extensões com componentes gráficos e fotográficos, tomando partido dos recursos visuais utilizados nos mapas situacionistas (como as setas de ligação e recortes do mapa da cidade), adicionando a eles registros imagéticos das ambiências. As setas procuram representar a proximidade das ambiências com relação as suas atmosferas, independentemente de sua localização geográfica. Além disso, também almejam traduzir a tendência de percurso entre uma ambiência e outra, baseando-se nas sequências dos trajetos realizados pelos pesquisadores. O recorte dado às fotografias busca potencializar a tradução imagética do ambiente retratado, enquanto que o posicionamento delas no mapa tem a intenção de representar a

150 atmosfera das ambiências que estão imediatamente próximas a elas. Esses dois mapas correspondem aos apêndices G e H no final do documento. O sétimo e último mapa tem a responsabilidade de transmitir graficamente a variedade de elementos lúdicos que rementem às situações associadas ao jogo situacionista. Nele foram representados sons, objetos e situações num mescla de fotografias e pequenas inserções textuais. Ele procura se distanciar do olhar com ênfase nos dados físicos e representar os momentos e componentes mais subjetivos dos experimentos. Intitulado de mapa de ilustração de elementos de jogo, ele corresponde ao apêndice I desta dissertação.

Figuras 126 e 127. Exemplos dos mapas disponíveis nos apêndices F e G. Arquivo do autor.

Figuras 128 e 129. Exemplos dos mapas disponíveis nos apêndices H e I. Arquivo do autor.

151 Além dos sete mapas elaborados, os pesquisadores criaram uma conta no aplicativo Instagram, destinada exclusivamente ao registro das fotos das derivas e intitulada de Deriva Recife. A criação desse perfil foi pensada como uma forma de organizar as imagens dos três experimentos em suas respectivas localizações geográfica, além de torna-las disponíveis para acesso on-line. O resultado da submissão das fotos durante os dias de experimento encontra-se disponível no endereço eletrônico: https://instagram.com/derivarecife.

Figura 130. Captura de tela do site do derivarecife. Arquivo do autor.

As considerações sobre o método fenomenológico, a elaboração de diagramas e o conceito de cartográfica afetiva serviram como base para o balizamento tanto da pesquisa efetuada em campo, como elaboração dos mapas de hipótese dos becos e de inter-relação de ambiências. Deste modo, a prática dos experimentos foi importante, não apenas pela sua investigação empírica da cidade, como também para o exercício de confecção e diagramação estética das cartografias.

152 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

5

153 Os capítulos apresentados nessa dissertação correspondem, como já demonstrado, a um planejamento que teve como objetivo traçar um panorama histórico sobre o desenvolvimento da Internacional Situacionista, discutir de modo detalhado as técnicas escolhidas para a pesquisa: deriva e psicogeografia, construir um planejamento metodológico de experimentação e executar a aplicação dos métodos procurando extrair as possíveis contribuições para o estudo das cidades contemporâneas. Sobre esse planejamento serão tecidos, de maneira gradativa, alguns comentários que possuem o intuito de encerrar possíveis lacunas de compreensão, aprimorar a discussão da pesquisa e expor de forma geral as contribuições do trabalho. Com relação ao primeiro capítulo, onde são expostas as críticas situacionistas ao funcionalismo do urbanismo modernista, uma questão pode ser destacada. Muito embora as censuras situacionistas residam sobre o excesso de planejamento e racionalização dos urbanistas modernos, as próprias teorias situacionistas também exigiam, em parte, uma racionalização em suas aplicações. A deriva, a psicogeografia, a situação construída, e outras tantas proposições possuíam definições estritamente objetivas e grande parte dos textos do movimento apresentam argumentos bastante radicais, o que acaba por prejudicar, em alguns momentos, diálogos com teorias e conjecturas afins. A excessiva objetividade em relação aos métodos pode ser observada no episódio, já citado, do afastamento de Constant por conta do projeto Nova Babilônia. Enquanto o artista argumentava que Nova Babilônia representava a realização arquitetônica do urbanismo unitário (CONSTANT, 1959), o restante dos situacionistas, principalmente Debord, afirmavam que representar o urbanismo unitário de forma edificada seria uma atitude cerceadora (SADLER, 1999). Essa afirmação, por parte de Debord, pode ser considerada contraditória tendo em vista que o mesmo, no último trecho da Teoria da Deriva, abre a possibilidade de maneira entusiasmada para a realização de derivas dentro de construções de apartamentos. “Até na arquitetura, o gosto pela deriva leva a preconizar todo tipo de novas formas do labirinto, que as modernas possibilidades de construção favorecem” (DEBORD, 1956). É possível afirmar, deste modo, que o posicionamento teórico e prático do movimento situacionista tem, em certa medida, aspectos que podem ser considerados equivocados.

154 O segundo capítulo têm início com uma análise histórica relativa aos primeiros indícios de exercício da psicogeografia. Esse resgate se mostra importante, pois demonstra que o conceito de psicogeografia, mesmo tendo sido elaborado pelos situacionistas, remonta a experimentações realizadas desde o século XVIII. Nessa parte do capítulo também são relatadas as primeiras tentativas de levar a arte para o campo das cidades, principalmente por parte dos movimentos dadá e surrealista. Toda essa análise histórica se faz relevante, pois insere as técnicas da psicogeografia e da deriva num contexto histórico de experimentações urbanas e demonstra que, apesar da originalidade dos conceitos situacionistas, ambas as técnicas são produtos de um desenvolvimento e amadurecimento do processo histórico da arte na sociedade. A partir daí são expostos de modo detalhado os conceitos da deriva e da psicogeografia. Além de uma descrição sobre o caráter situacionista, das hipóteses e dos possíveis resultados da aplicação das técnicas, o texto procura definir o grau de relação entre elas, esclarecendo a função principal de cada uma. Sobre essa questão concluiu-se que a deriva se apresenta como um desdobramento prático da psicogeografia. A deriva seria uma apropriação do espaço urbano através do caminhar, enquanto a psicogeografia estudava o ambiente urbano utilizando-se da deriva como instrumento prático (JACQUES, 2003, p. 22). Ainda no segundo capítulo é exposta uma reflexão sobre a afinidade situacionista com o conceito de jogo. Esse conceito, ligado à condição do homo ludens, é analisado como um dos elementos principais que levaram à concepção situacionista da cidade enquanto labirinto, uma construção ideológica que encarava a cidade como um elemento de possibilidades lúdicas. A discussão é desdobrada com a exposição de ações situacionistas de relevância em relação ao conceito de labirinto e a aplicação da deriva e da psicogeografia. O capítulo ainda conta com uma análise da literatura e de ações contemporâneas influenciadas pela teoria situacionista, salientando o impacto positivo dessa revisitação de conceitos para o campo da arte contemporânea e para a pesquisa vigente. Os aspectos teóricos e metodológicos em relação ao modo de aplicação das técnicas situacionistas no Recife foram abordados ao longo no terceiro capítulo. Nele é realizada uma análise dos pormenores relativos às duas hipóteses levantadas pelos situacionistas advindas da aplicação da deriva: as unidades de ambiência e as

155 plaques tournantes. Aliado a essa análise são introduzidos aspectos do campo da filosofia, com foco nos estudos de fenomenologia; da psicologia, com relação ao conceito de cartografia; e ainda, uma avaliação sobre a relevância do estudo de diagramas. Algumas conclusões foram obtidas a partir dessa associação de disciplinas, como, por exemplo, o uso dos diagramas enquanto um importante instrumento de apreensão do corpo na cidade, e a relação de aproximação entre os conceitos de cartógrafo e psicogeógrafo, sendo o primeiro produto do campo da psicologia, e o segundo referente a alcunha do sujeito que se propõe à psicogeografia. Após essas considerações, o capítulo se dedica a apresentação dos aspectos práticos da dissertação. São apresentadas reflexões que delimitam o trabalho, a partir de seus principais objetivos, em uma pesquisa de campo de caráter experimental. Além disso, a delimitação do sítio de aplicação torna-se importante, dada a condição da escolha de um centro metropolitano para aplicação das técnicas. Por fim, o exercício dos pilotos se revela como uma parte essencial da pesquisa, pela sua propriedade de ajustar os aspectos relativos à aplicação dos métodos para que as experimentações se tornassem mais proveitosas. A aplicação e análise de três experimentos, realizada no último capítulo, teve como resultado algumas reflexões relativas às hipóteses situacionistas, ao caráter contemporâneo do experimento, e foi responsável pela geração de documentos fotográficos e cartográficos, frutos diretos do exercício da deriva e da psicogeografia. Apesar da proposta inicial de análise de todo o centro expandido, as três derivas detiveram-se, prioritariamente, nos bairros da Boa Vista, de Santo Antônio e em parte do bairro de São José. Essa delimitação se deu de forma espontânea, e elucida a grande probabilidade dessa área ser a mais interessante, dentro do contexto do centro do Recife, para o exercício da deriva. A utilização de elementos tecnológicos, mais precisamente o uso de aplicativos de smartphone, como instrumentos de auxílio na apreensão dos efeitos psicogeográficos foi de grande importância para os experimentos. O uso dos aplicativos Map my Walk, Snapchat e Instagram contribuiu para uma ampliação das possibilidades de registro e interação virtual das derivas, e ainda, como relatado na conclusão sobre os pilotos, pode ser encarado como um artificio de revisitação do conceito de jogo situacionista, haja vista que os mesmos tiveram suas funções principais desviadas em virtude do objetivo das derivas.

156 Outro fator importante sobre a aplicação das derivas foi a averiguação das hipóteses situacionistas. As suposições referentes ao reconhecimento de unidades de ambiências foram corroboradas pelo trio de pesquisadores. Os participantes exercitaram o reconhecimento dessas unidades em vários setores da área explorada e detectaram a presença recorrente de dois tipos de ambiências: as denominadas ambiências-pátio e ambiências nostálgicas. Esses dois tipos de ambiência foram analisados durante os três experimentos de forma gradual e espontânea, e acabaram por se manifestar como elementos que funcionavam ao mesmo tempo como espaços reconhecidos e espaços norteadores de trajetórias. Em relação a hipótese das plaques tournantes os pesquisadores obtiveram diferentes conclusões. Apesar de reconhecerem espaços com potencialidades similares ao conceito, os três experimentos realizados não foram suficientes para que os participantes qualificassem com propriedade essas áreas de acordo com o conceito. Uma afirmação veemente e uma reflexão detalhada sobre a existência de plaques tournantes psicogeográficas necessitaria, portanto, de um exercício ainda mais continuo e aprofundado das técnicas situacionistas. Para além da averiguação das hipóteses, a experiência das três derivas acabou por suscitar o levantamento de uma proposição por parte dos próprios pesquisadores. Levantada e analisada durante os experimentos no quarto capítulo, não apenas em modo textual, como em formato de mapa, a hipótese dos becos enquanto túneis de potencialização da experiência de deriva se apresenta como uma importante contribuição contemporânea, de caráter especulativo, e com grandes possibilidades de desdobramento para pesquisas futuras. Aliado a essa conceituação dos becos como elementos de ampliação da deriva, os pesquisadores, ainda no quarto capítulo, reconheceram que a própria experiência da deriva possui um tempo particular, como um momento de suspenção em relação à circulação habitual e objetiva da cidade. De acordo com esse preceito, as derivas teriam a capacidade de apresentar uma nova relação de espaço-tempo ao transeunte, desvinculando-o momentaneamente de processos corriqueiros e, por vezes, alienantes da sua própria vida, como o trabalho, o trânsito de automóveis, entre outros. Essa particularidade da deriva também chegou a ser especulada pelos situacionistas, o que torna, portanto, essa apreciação dos pesquisadores mais uma conclusão de conteúdo alinhado aos preceitos do movimento.

157 Com relação ao contexto geral da pesquisa, pode-se acrescentar algumas outras ponderações. Devido ao desenvolvimento das tecnologias, a aplicação das derivas no contexto contemporâneo sofre um tipo de ampliação, não apenas de recursos (tal qual os aplicativos utilizados nos experimentos), como em relação ao seu caráter cognitivo. As derivas tornam-se diferentes nos dias atuais por atuarem num espaço onde as relações sociais, culturais e temporais já foram submetidas e se relacionam de forma intima com os aspectos atuais das redes de comunicação, velocidade de informação, e outros elementos implementados pela rápida evolução tecnológica das últimas décadas. O reconhecimento dessa nova atmosfera contemporânea faz com que a deriva atualizada se manifeste como uma técnica dicotômica. Se por um lado ela lança mão do uso das tecnologias como um recurso de aprimoramento da sua aplicação e de seus registros, por outro lado ela tem um dever político e desviante. Desde o fim da IS aos dias atuais, a submissão às questões ditas espetaculares pelos situacionistas e ao sistema capitalista teve o seu caráter apenas reorganizado. As relações sociais mediadas por imagens (DEBORD, 1997) deixaram de se apresentar majoritariamente através do veículo televisivo e ganharam status de rede com o advento da internet. O dever político e desviante da deriva contemporânea é, portanto, o de combater a lógica de massificação e alienação que continuam predominantes,

mesmo

com

as

transformações

da

lógica

acelerada

da

contemporaneidade. Nesse sentido, um grande viés de contraposição das derivas em relação a esse contexto espetacular contemporâneo se revela na sua capacidade de criação de um tempo particular, pensado pelos situacionistas e reconhecido pelos pesquisadores dos experimentos aqui apresentados. Esse tempo particular funciona, portanto, como uma oposição lenta aos velozes processos contemporâneos, e é igualmente comentado por Paola Jacques como uma herança da figura do flanêur para o desenvolvimento do errante urbano: O errante urbano seria como um homem lento voluntário, intencional, consciente de sua lentidão, [...]. Essa lentidão também pode ser vista como uma crítica ou denúncia da aceleração contemporânea, da pressa que impossibilita a apreensão e reflexão mais vagarosa (JACQUES, 2014, p. 294-295).

158 Assim sendo, podem ser expostas mais algumas conclusões sobre a pesquisa vigente. A de que as técnicas situacionistas da deriva e da psicogeografia são efetivamente capazes, através do seu exercício, de promover um olhar sobre as cidades separado das premissas do espetáculo. E ainda, que a força desse desvinculamento se encontra no exercício de imersão no tempo particular das técnicas situacionistas, e em seus objetivos primordiais de apreensão dos aspectos conscientemente planejados ou não. Por fim, deve-se argumentar que a aplicação da deriva e da psicogeografia em uma cidade contemporânea é um exercício de extrema complexidade. As contribuições expostas nesse trabalho demonstram a enorme possibilidade de desdobramentos teóricos referentes a essa revisitação. Além disso, apesar de ter tentado ampliar ao máximo as suas análises a respeito do objetivo traçado, essa pesquisa se propõe a ser compreendia como uma pequena parte e um instrumento facilitador de um conjunto de outras muitas e possíveis novas investigações.

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167 APÊNDICES

Ap

168 APÊNDICE A – Relato de descrição psicogeográfica – Pesquisa-piloto 01 A Rua João Fernandes Vieira tem uma ambiência muito particular, apesar de ser um ambiente de trabalho, com escritórios, repartições, entre outras coisas. A sombra das árvores e atmosfera contribuem para uma sensação de relaxamento. A palavra da Rua da Soledade é fluxo, gente indo e vindo a todo tempo: sentese aqui a vivência de fato da cidade, e há de se considerar a praça de frente da Igreja uma possível plaque tournante. As ruas Barão de São Borja e Manoel Borba apesar de paralelas têm ambiências completamente distintas. Enquanto na primeira sente-se a calma que me lembra a rua da minha vó. Na segunda a automatização dos carros e os pedestres preocupados configuram um aspecto de – deixe-nos trabalhar! O contraste da Rua José Mariano em relação ao bairro dos Coelhos em suas costas é incrível. Pode-se perceber a vida de fato, típica das periferias da cidade em meio a brechas que aparecem num cenário de armazéns e comércio pesado, de onde são tiradas matérias primas para construções da sociedade atual, que nada tem de construtivas. Um conselho aos transeuntes da José Mariano é espiar, e quem sabe adentrar à vida real que se revela entre as brechas. A Rua Tobias Barreto é o comércio em pelo do Recife. Talvez eu não tivesse me agradado tanto dela, não fosse a barraquinha de drops com o símbolo do Santa Cruz. Por fim, o cansaço bate na praça do Diário. Outro ponto de várias possibilidades. Uma plaque tournante que acredito alterar percursos até de quem não se propõem à deriva. Apesar do sol já ter baixado, o cansaço da andada e o fato de estar próximo à Av. Guararapes me corrompe a ir embora.

Autor: Luiz do Monte

169 APÊNDICE B – Breve relato psicogeográfico – Pesquisa-piloto 02 A deriva começou só comigo e com Matheus, tendo em vista que Rodrigo se atrasou. Eu e Matheus começamos por um caminho que nos apetece, a Rua do lazer. Açaí e suco de tangerina foram os combustíveis da primeira arrancada. Passamos pela Rua do Sossego, ou não passamos, a atmosfera parecia a mesma. Dobramos no sentido da Conde da Boa Vista e, no meio de explicações sobre a Internacional Situacionista, Matheus me alerta sobre um transeunte: – Tá ligado nesse velho? – É Daniel Santiago (falamos em uníssono). Vidrado, então, nas possibilidades de uma deriva convenço Matheus a segui-lo (por um momento achamos que ele iria visitar Bruscky). Mas Daniel só estava a caminho do Céu e Terra, alguma loja de homeopatia ou coisa parecida. Resolvemos parar de segui-lo e de seguir pessoas em geral. Rumamos no sentido do Shopping Boa Vista sem conseguir evitar alguns sacos de lixo na calçada onde estávamos. Nos abrigamos na marquise da entrada do shopping, por conta do calor, fomos até o outro lado dele e finalmente encontramos Rodrigo.

Autor: Luiz do Monte

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