DESAFIANDO O EQUILÍBRIO NAS RELAÇÕES E VIVÊNCIAS DO/NO TRABALHO: estudo de caso sobre a prevalência e manutenção de saúde mental

May 24, 2017 | Autor: R. Periódico dos ... | Categoria: Saúde Mental, Administração, Cultura Organizacional, Estrategias, Psicologia
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DESAFIANDO O EQUILÍBRIO NAS RELAÇÕES E VIVÊNCIAS DO/NO TRABALHO: estudo de caso sobre a prevalência e manutenção de saúde mental Rafaella Cristina Campos 1 Ismael Pereira de Siqueira 2 Tayriane Mayre Silva 3 Resumo Objetiva-se neste artigo identificar, descrever e analisar as estratégias que, de acordo com os funcionários, são determinantes para prevalência e manutenção de saúde mental no trabalho. A metodologia deste artigo é qualitativa através de estudo de caso, coleta de dados por meio de questionários abertos e análise reflexiva analítica4. Com base na teoria de carga psíquica (LE GUILLANT, 1954) e suas três vias de manifestação, define-se quatro estratégias de prevalência e manutenção de saúde mental: formação de consciência coletiva, interiorização da cultura organizacional, autonomia e imediatismo. A saúde mental não está somente na flexibilidade da organização, nem tanto somente na adaptação do sujeito, mas sim, na soma destes dois fatores. Palavras-Chave: Saúde Mental; Estratégias; Cultura Organizacional.

CHALLENGING THE BALANCE IN RELATIONS AND EXPERIENCES OF / AT WORK: case study of the prevalence and maintenance of mental health Abstract This work aimed to identify, describe and analyze the strategies that, according to the employees, are determinant to the prevalence and maintenance of mental health at work. The methodology chosen for this research is qualitative, by study case method, data collected by open questionnaires and reflective analytical analysis. Using the bases of the psycho charge theory (LE GUILLANT, 1954) and it´s 3(three) ways of demonstration, it´s defined 4(four) strategies that determinants the prevalence and the maintenance of mental health at work, which are: group consciousness, internalization of the company´s culture, autonomy and immediacy. 1

Professora Efetiva da Faculdade Presbiteriana Gammon – FAGAMMON; Doutoranda em Administração na Universidade Federal de Lavras – UFLA. (Contato: [email protected]). 2 Professor Efetivo do Centro Universitário de Lavras – UNILAVRAS; Doutorando em Educação Especial na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. (Contato: [email protected]). 3 Estudante de Graduação em Administração na Faculdade Presbiteriana Gammon – FAGAMMON. (Contato: [email protected]). 4 Os autores agradecem ao médico do trabalho Marcelo Campos, que contribuiu para a construção deste artigo e para a formação pessoal e profissional da primeira autora.

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The mental health is not only about the company´s flexibility, nor the subject’s adaptation, it is about the mix and balance of both events. Keywords: Mental Health; Strategies; Organizational Culture. INTRODUÇÃO Nos tempos atuais, a importância do exercício da atividade remunerada é tamanha que se pode definir um indivíduo de acordo com o trabalho que ele executa. O trabalho transmite não só o valor de “ganha-pão”, mas também, se não principalmente, o status social deste trabalhador, que assume características próprias tais como: vocabulário, vestimenta e comportamentos. O trabalho ocupa espaço vital na representação pessoal e social. O desempenho dentro dos negócios é primordial para permitir o bem estar deste trabalhador nos fatores sociais adjacentes ao trabalho. O casamento, a relação entre pais e filhos, a relação com a sociedade e com os demais familiares; tudo está relacionado com o trabalho (ANZIEU, 1993). Ou seja, a crença de que trabalho e a vida pessoal são vivenciados em separado e que não afetam um ao outro, é um mito, até porque o trabalho faz parte da vida de qualquer pessoa. Num mundo capitalista, fracasso no trabalho é fracasso na vida. Tudo que afeta o funcionário, transmite-se às pessoas que estão em seu círculo de relacionamentos dentro e fora do ambiente de trabalho. Com a incorporação astronômica de máquinas nas empresas, os funcionários precisam competir não só entre os seus iguais, mas também contra as engenhosidades da contemporaneidade que vem para gerar mais lucro e menos despesas para a empresa. E é nesta busca pelo equilíbrio entre competitividade, satisfação e colocação no mercado e no trabalho, que se manifesta a saúde mental do trabalhador. A saúde mental dentro do trabalho está diretamente ligada a dois ambientes: o físico, correspondente às condições espaciais disponíveis para o trabalhador tais como iluminação, calor e barulho (estudo da ergonomia); e o ambiente que transmite o que foi denominado por carga psíquica (psicodinâmica), correspondente a resultante das tensões emitidas pela representatividade social do cargo correspondente ao trabalhador e por todas as outras pessoas envolvidas neste ambiente através de gestos interativos com o próprio trabalho que giram em torno da relação afetiva com o mesmo. No trabalho, relação entre o bem estar na ergonomia e a satisfação da psicodinâmica é que vão permitir saúde mental do trabalhador (BLEGER et al, 1991). Nota-se então que, apesar de haver importância na compreensão da estrutura 79

organizacional que promove ou não, a relação de saúde e/ou doença mental no trabalho, a construção intrínseca do funcionário com o ambiente e com o trabalho, que independente da cultura da empresa, mas sim, das suas percepções individuais, também é salutar. É neste contexto de compreensão internalizada do trabalhado que perguntamos: como enfrentar as adversidades do trabalho, que são inerentes ao controle individual, e mesmo assim, ter prevalência de saúde mental? O objetivo principal deste artigo é identificar, descrever e analisar as estratégias que, de acordo com os funcionários, são determinantes para prevalência e manutenção de saúde mental no trabalho. O objetivo específico consiste em analisar a relação dos funcionários com o trabalho que permite a prevalência, manutenção e estratégias de saúde mental no trabalho. Justifica-se a execução da pesquisa com base na sua contribuição para o estado da arte e prática, que busca discutir as relações individuais e esforços particulares dos trabalhadores no trabalho, buscando a prevalência e manutenção de saúde mental, tentando compreender tais fenômenos sem relação direta com as estruturas organizacionais de gestão dos funcionários. Esta pesquisa é relevante porque a saúde mental no trabalho é uma discussão atual e de certa forma pouco discutida nos parâmetros regionais e brasileiros, o referencial em pesquisa de campo na área é maciçamente francês. Esta pesquisa pretende não só descrever as estratégias de manutenção de saúde mental, mas também descrever estas estratégias no contexto brasileiro sócio cultural que influencia diretamente nas relações de trabalho e com o trabalho. Para responder aos objetivos da pesquisa, a estrutura deste artigo está fixada na seguinte sequência: o primeiro item é a contextualização do tema através da introdução; após há construção do referencial teórico subdivido em dois tópicos que buscam discutir a relação do homem com o trabalho e as formas de manifestação, prevalência e manutenção de saúde mental no trabalho. O quarto item consiste na descrição metodológica que irá guiar a pesquisa empírica, seguida das análises e discussões dos dados captados, finalizando com a conclusão. 1

REFERENCIAL TEÓRICO Uma das críticas que este trabalho pretende compor é o apontamento da necessidade de

abordar a saúde mental no trabalho não só como parte da responsabilização da organização, mas também como dinâmica tácita nas relações entre os colaboradores e com o trabalho cotidiano. Sendo assim, tanto o referencial teórico quanto as análises são embasadas em pressupostos teórico-metodológicos de grownded theory, ou seja, autores e pensadores que V.10, nº1, jan./abr. 2017.

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propulsionaram pesquisas e perspectivas na área. No ponto de vista dos autores, esta recapitulação se faz necessária, uma vez que parte da defasagem da compreensão cotidiana e nas pesquisas que abordam a saúde mental é a marginalidade e superficialidade dada ao tema e na recapitulação dos autores principais. Sendo assim, segue abaixo a construção do referencial teórico. 1.1 A DINÂMICA NO/DO TRABALHO: PSICOPATOLOGIA, ERGONOMIA E PSICODINÂMICA. Desde a Revolução Industrial na Inglaterra, iniciada em meados do século XVIII, é relatada de forma patológica a relação entre funcionários, chefia e máquinas. Num período de autoritarismo e quebra do sistema feudal, os trabalhadores das primeiras fábricas não tinham qualquer protecionismo. Os trabalhadores executavam suas tarefas em condições insalubres, em horários escravocratas e recebiam minimamente pelo seu esforço. Desde já havia o discurso ameaçador da oferta e procura. Por mais que o trabalho fosse forçado a estas condições insalubres de trabalho, havia pessoas desempregadas dispostas a assumir o posto do empregado sem fraquejar. Todos estes eventos eram imutáveis e permanentes na época porque o significado e sentido do trabalho no ponto de vista dos funcionários era irrelevante, no ponto de vista organizacional, para as suas estruturas internas e relações comerciais (LE GUILLANT, 1954). Neste período histórico, as indústrias eram inevitavelmente causadoras de adoecimento físico e mental porque funcionavam como asilos, colocando pessoas para trabalhar sem qualquer respaldo de inclusão e/ou exclusão. Não havia triagem, não havia separação de setores, os ambientes e as condições de trabalho eram precários obrigando os indivíduos a se sujeitarem a condições extremistas. No século XVIII não havia outro recurso que gerasse renda aos trabalhadores, o sistema feudal havia decaído e o valor do trabalho rural estava subestimado (LE GUILLANT, 1954). Depois de décadas trabalhando sem qualquer perspectiva ou garantia de futuro, os trabalhadores ingleses formaram as trade unions, o primeiro sistema sindicalista do trabalhador. Até então a preocupação principal era com a saúde física, o sofrimento psíquico era ligado à preocupação com as condições físicas do trabalho, mas nos anos de 1950 o enfoque mudou. Isto ocorreu porque as relações sociais ficavam cada vez mais estreitas e a representação do trabalho na vida das pessoas passou a tomar dimensões cada vez mais subjetivas. Com o início da globalização e com o acesso a mídia e informações cada vez mais dispersas e acessíveis, a 81

visibilidade do sujeito por meio do trabalho ficou valorizada. O trabalho não mais significava somente uma ocupação, mas sim uma identificação deste trabalhador no meio social (MERLO, 2002). Com maior valorização dos aspectos sociais e representativos do trabalho, a valorização e visibilidade dos trabalhadores também crescia. Uma vez que o trabalho assumiu colocação primordial na vida dos trabalhadores, ele também ficou submisso às relações humanas dentro e fora de seu campo, ou seja, o trabalho ficou imerso nas emoções e reatividade do ser humano sendo passível de satisfação e/ou de sofrimento (RODRIGUES, ÁLVARO e RONDINA, 2006). Afirma-se que: [...] durante os anos 50, realizou as primeiras observações sistemáticas que lhe permitiram estabelecer relações entre trabalho e Psicopatologia, mesclando a compreensão de saúde e doença mental e física de uma pessoa no contexto do trabalho. (MERLO, 2002, p.130).

Foi a partir dos anos de 1980 que se inicia a investigação não só dos fatores que geravam sofrimento no trabalho, mas também, quais eram as causas deste evento e quais eram as estratégias que os funcionários usavam para conseguir lidar com isso. Forma-se o modelo de Dejours (1994), que traduz a (co)existência de três fatores que promovem o sofrimento no trabalho, são eles: a) o homem sofre com o trabalho porque normalmente se frustra com as expectativas iniciais sobre ele mesmo; b) o homem é obrigado a acompanhar a revolução tecnológica, sendo a todo momento ameaçado não só pelos seus iguais, mas também, se não principalmente, pelas máquinas que trabalham mais rápido e ganham menos; c) o medo, que percorre todo o ideário do trabalhador, desde o medo de perder o emprego, até o medo de ser ridicularizado ou humilhado. Para Merlo (2002, p. 132): “[...] outra característica importante é que a Psicodinâmica do trabalho visa coletividade de trabalho e não aos indivíduos isoladamente”. Assim a empresa funciona como um organismo em constante adaptação e mudança exigindo que todos os funcionários acompanhem esse dinamismo A ambição se estendeu dentro de todas as organizações propiciando as relações de sigilo, formação de guetos e desconfiança mútua. Esses foram os fatores que começaram a fazer com que os sentimentos de stress e angústia deixassem de ser exclusivamente recursos de sobrevivência dentro da organização para também se converterem em medo dentro da mesma. O medo é o responsável pelas relações patológicas entre o funcionário e o trabalho. O que se percebe até então é uma evolução na compreensão do trabalho, mas regressão no sentido das V.10, nº1, jan./abr. 2017.

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relações. Ou seja, passa-se da ergonomia que compreendia somente os fatores ambientais e formas de processos, chegando na psicodinâmica que compreende as interações entre organizações e trabalhadores. Mas se antes o ambiente era insalubre, agora as relações veladas promovem paranoia e histeria em sua completude. Se avançou nos estudos, as relações continuam patológicas com relação ao trabalho (ANZIEU, 1991). Uma vez que as características individuais dos funcionários começaram a intervir nas relações com o trabalho, transformou ao mesmo tempo o vínculo que se estabelecia entre atividade, empresa e trabalhador. Numa época em que a discussão sobre saúde mental ainda era escassa, a solução que as corporações acharam era padronizar o modo de produção e conduta de seus colaboradores (doutrina taylorista), possibilitando controle dos mesmos (CODO, TAMAYO e BORGES-ANDRADE, 2008). É mediante este contexto que se elabora as primeiras críticas contra a doutrina do trabalho como processo formal e condução padronizada: [...] assim impede-se a conquista da identidade no trabalho, a qual ocorre precisamente, no espaço entre trabalho prescrito e trabalho real. Se o funcionário é impedido de imprimir nas relações e processos de trabalho sua identidade pessoal, é impossível que qualquer gestão promova bem estar, desta forma, saúde mental no trabalho ainda se é discussão, e não realidade. (BLEGER et al, 1993, p.53).

A psicodinâmica do trabalho envolve fatores muito específicos para estabelecer o bemestar entre o trabalhador e o trabalho executado. Esses fatores são: ética entre os trabalhadores – principalmente entre os que estão em faixas hierárquicas diferentes –; a constante atenção reforçadora do chefe perante o trabalho e esforço dos seus subordinados; reconhecimento do mérito entre os colegas e entre a chefia e seus subordinados; estabelecimento de um ambiente que transmite aquilo que o trabalho deve render (tranqüilidade, energia); e, fornecimento de auxílio extra não só para os funcionários, mas também para as pessoas que dependem dele (seja com remuneração de uma forma alternativa) (DEJOURS, 1987). Percebe-se com a evolução da compreensão das relações, sentido e significado do trabalho através das teorias de psicopatologia, ergonomia e psicodinâmica (citadas em ordem cronológica de estudo) faz com que as empresas tenham um respaldo que permita a compreensão das expectativas do funcionário para melhor promover seu bem estar. Mas bem estar, apesar de ser promovido pela empresa, é intrínseco à saúde mental, mas não são similares. Por vezes a gestão pode optar ou não em promover condições que permitam a prevalência e manifestação de satisfação e bem estar dos funcionários (lembrando que a cerne das empresas e prevalecer com lucro nos processos), mas a saúde mental é uma relação individual e 83

internalizada de cada trabalhador, correlata à forma de gestão, mas não exclusivamente dependente da mesma. 1.2 DISCUSSÕES SOBRE PREVALÊNCIA E ESTRATÉGIAS DE MANUTENÇÃO DE SAÚDE MENTAL NO TRABALHO. Saúde mental, dentro de fora do trabalho, são compostos de variáveis comuns e correlatas. Tendo em vista que o trabalho faz parte da vida de qualquer indivíduo, sendo uma atividade remunerada ou não, tudo que compõe a saúde mental do trabalhador fora da empresa também a compõe dentro da empresa. Mas saúde mental é diferente de satisfação no trabalho (bem estar), isto porque a relação de satisfação e/ou insatisfação é dicotômica e estável, ou seja, ou você está bem ou não está com relação ao trabalho. Já a saúde mental é instável e intrínseca nas relações internas e externas ao indivíduo, isso porque saúde mental pode estar presente com satisfação e/ou insatisfação no trabalho. O que garante a saúde não é a ausência de percalços, mas sim, a forma salubre de lidar com estes (DEJOURS, DESSORS e DESRLAUX, 1993). É necessário compreender que não basta identificar que o trabalhador ‘está’ saudável mentalmente, ele precisa ‘permanecer’, e isto são esforços distintos e exaustivos. Os fatores que promovem saúde mental estão na vida social, em toda a sua amplitude, então são fatores incontroláveis, porque dependem de interação, de atitudes externas que vão além da internalização e compreensão individual. Ter saúde mental no trabalho depende muito mais das formas de enfrentamento (ou coping) utilizadas pelo trabalhador, do que pela tentativa de controle ambiental, tanto organizacional quanto individual. (HELOANI e CAPITÃO, 2003, p.72).

Todas as interações estabelecidas entre o trabalhador e o trabalho estão diretamente ligadas a dois eventos: aos conscientes, que são as relações explicitas de todos os vetores responsáveis pela execução do trabalho; e aos eventos inconscientes, que são estabelecidos na subjetividade de cada empregado fazendo com que ele se relacione diferencialmente a indivíduos de representatividade empresarial e pessoalmente distintos. A junção destes eventos culmina na formação da carga psíquica, que é a relação velada dos valores instaurados e dos internalizados, e é esta carga psíquica que rege as relações de/com trabalho e a saúde mental dentro do mesmo (DEJOURS, DESSORS e DESRLAUX, 1993). Submetidos a excitações vindas tanto do exterior quanto do interior o trabalhador retém energia. A excitação quando se acumula, torna-se a origem de uma tensão psíquica, popularmente chamada de tensão nervosa. Essa tensão é chamada carga psíquica. (DEJOURS, DESSORS e DESRLAUX, 1993, p. 102).

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A carga psíquica é responsável pela saúde mental do trabalhador; a forma com que cada sujeito a absorve, lida e expõe é que faz com que sua relação com o seu trabalho seja saudável ou patológica. A carga psíquica tem três vias distintas de descarga, sendo cada uma delas expressa de acordo com os traços de personalidade. São elas: a via psíquica, relacionada com a expansão ou acumulação de afetos no comportamento pessoal; via motora, caracterizada pelo estímulo a maneiras alternativas de execução do trabalho e a via de escape e/ou também chamada de via visceral, que transparece realizar suas necessidades orgânicas com facilidade e frequência (LE GUILLANT, 1956). Percebe-se então que entre o homem e a tarefa fixa-se a carga psíquica para permitir a prevalência e manutenção da saúde mental do trabalhador. Para cada via da carga psíquica há condutas generalizadas para que a saúde mental seja presente, sendo estes: a) o trabalhador deve ser excitado ao constante desejo de melhoria. Mas não focando somente aquilo que a empresa espera, como também, e principalmente, o benefício profissional que isso lhe trará; b) o trabalhador não chega para trabalhar como uma máquina nova todos os dias. Para que ele seja capaz de render o que lhe é exigido, é preciso estimular sua criatividade para fazer as mesmas tarefas de maneiras diferentes para suportar a repetição; e c) dependendo da estrutura da personalidade do trabalhador, ele escolhe aquele recurso que melhor lhe compete e isso deve ser respeitado pela empresa na hora de colocá-lo em um cargo específico. Desta forma, evitase perda de tempo da empresa e frustração pessoal e profissional do empregado. A saúde mental no trabalho é um equilíbrio delicado entre: pressão, angústia, stress e sofrimento (DEJOURS, DESSORS e DESRLAUX, 1993). Nota-se que para prevalecer e manter a saúde mental é necessário que o funcionário, por intermédio individual desenvolva estratégias de enfrentamento para os fatores ambientais desafiantes, permitindo então a internalização da saúde mental. Chamam-se de estratégias defensivas qualquer recurso que o trabalhador lança mão para conseguir suportar a carga psíquica dentro do ambiente de trabalho, mantendo ao máximo seu conforto pessoal, sem prejudicar sua interação com a organização e com seu vínculo social fora dela. A primeira vítima do sistema não é o aparelho psíquico; mas sim, o corpo dócil e disciplinado, entregue às dificuldades inerentes à atividade laborativa; e, dessa forma, projeta-se um corpo sem defesa, explorado e fragilizado pela privação do seu protetor natural, que é o aparelho mental. De 1914 a 1968, a luta pela sobrevivência operária dá lugar à luta pela saúde do corpo e da mente. (RODRIGUES, ÁLVARO e RONDINA, 2006, p.32).

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As estratégias de manutenção de saúde mental têm como objetivo estabelecer condutas, tanto individuais quanto coletivas, de sobrevivência no ambiente de trabalho. É necessário que os funcionários se movimentem em direção ao enfrentamento das situações tanto esperadas quanto adversas, fazendo com que sua integração aos valores simbólicos e condutas da empresa seja, para ele e para o grupo, um “rito” de transição entre o sofrimento e a saúde mental.

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METODOLOGIA DE PESQUISA

2.1 A NATUREZA DA PESQUISA O objetivo principal deste artigo é identificar, descrever e analisar os fatores que, de acordo com os funcionários, são determinantes para prevalência de saúde mental no trabalho. Para tanto, opta-se pela natureza qualitativa de pesquisa, que visa a discussão e compreensão assimilativa do fenômeno estudado, sendo desnecessária qualquer relação numérica nos processos de captação e análise dos dados (MINAYO, 2004). A base metodológica selecionada a partir das ramificações qualitativas é o estudo de caso. Tal metodologia visa o estudo focal de um fenômeno que pode ser considerado amplo em diversas realidades sócio culturais. O estudo de caso traça padrões no delineamento amostral, permitindo replicação e ampliação de estudos futuros com base no atual, mas os dados iniciais não são estatisticamente probabilísticos (MINAYO, 2004). Para a realização do estudo de caso foi selecionada uma empresa privada, do segmento de logística ferroviária, localizada no sul do estado de Minas Gerais. Tal empresa foi selecionada por ter reconhecimento nacional e internacional em seus processos gerenciais e produtivos, além de ter cultura arraigada na sociedade local, ou seja, uma empresa cobiçada de egresso. 2.2 CARACTERIZAÇÃO DOS RESPONDENTES DA PESQUISA Para responder à pesquisa, foram selecionados os profissionais do setor administrativo, porque ocupam status de alta responsabilidade e reconhecimento dentro de uma empresa, já que estão diretamente interligados a qualquer outro setor dentro da mesma. Todos os funcionários do setor responderam à pesquisa de forma voluntária, totalizando 31 (trinta e um) V.10, nº1, jan./abr. 2017.

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indivíduos. Todos os funcionários assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido (T.C.L.E.) garantindo sigilo de identidade pessoal e profissional, bem como a identidade da empresa. Para traçar a caracterização dos respondentes, os indicadores de idade e tempo na empresa foram utilizados. Itens estes que inicialmente são descritivos, mas que posteriormente auxiliam nas análises dos dados, sendo indicativos (na literatura levantada para compor este trabalho) presentes na construção, prevalência, manutenção e de saúde mental (DEJOURS, 1992). Segue abaixo a descrição da amostra pesquisada. Tabela 1 - Caracterização dos Respondentes de Acordo com Idade. Idade da Amostra (Intervalo em 5 anos) De 20 anos a 25 anos De 26 anos a 30 anos De 31 anos a 35 anos De 36 anos a 40 anos De 41 anos a 45 anos De 46 anos a 50 anos De 51 anos a 55 anos TOTAL

Número de Indivíduos (Números Absolutos) 10 indivíduos 7 indivíduos 2 indivíduos 2 indivíduos 3 indivíduos 6 indivíduos 1 indivíduo 31 indivíduos

Fonte: Dados da Pesquisa.

A idade dos voluntários está compreendida entre 22 (vinte e dois) anos a 53 (cinquenta e três) anos, mostrando que tanto a empresa quanto o setor não há diferença para a contratação e permanência do funcionário mediante a idade. Tabela 2 - Caracterização Tempo de Prestação de Serviços na Área Administrativa. Tempo na Função Atual (Intervalo em 5 anos) Até 5 anos De 6 anos a 10 anos De 11 anos a 15 anos De 16 anos a 20 anos De 21 anos a 25 anos De 26 anos a 30 anos De 31 anos a 35 anos TOTAL

Número de Indivíduos (Números Absolutos) 17 indivíduos 3 indivíduos 1 indivíduo 1 indivíduo 4 indivíduos 3 indivíduos 2 indivíduos 31 indivíduos

Fonte: Dados da Pesquisa.

Os dados mostram que quanto maior a idade cronológica, maior é o tempo de serviço 87

prestado à empresa, indicando baixa rotatividade entre setores e outras instituições. As tabelas indicam que a concentração de indivíduos é antagônica, uma vez que os mais novos na empresa e os veteranos estão em maior número do que os funcionários em transição, demonstrando possível política de estabilidade de carreira. Essa característica é um fator de possível inclinação para saúde mental. Será indicado nas reflexões sobre os dados encontrados fragmentos dos posicionamentos dos indivíduos mediante os questionamentos acerca da temática deste artigo, para efeito didático, todos os 31 respondentes foram ranqueados, aleatoriamente, com um número de registro de 1 a 31, e serão designados como ‘respondentes’ nos fragmentos selecionados para demonstrar os fenômenos averiguados. 2.3 COLETA E ANÁLISE DOS DADOS Para coleta de dados da pesquisa, foi aplicado um questionário aberto com 22 (vinte e duas) perguntas elaboradas pelos pesquisadores. Não foi cronometrado o tempo dos respondentes, os mesmo poderiam averiguar suas dúvidas e respondiam de forma discursiva suas impressões mediante as perguntas. As perguntas do questionário aberto estão descriminadas e descritas ao longo das análises discutidas com base na compreensão de saúde mental, por meio da teoria de carga psíquica e de suas três vias (psíquica, motora e de escape/visceral). A análise de dados passou pelo processo qualitativo de verificação descritiva reflexiva, que consiste na incorporação de significado e intencionalidade do sujeito mediante abordagens referentes à sociedade, relações interpessoais, atos e construções humanas históricas. A pesquisa qualitativa não se preocupa exclusivamente com os dados coletados, mas também, se não principalmente, com o processo global no qual a pesquisa foi realizada. Esse tipo de abordagem permite estudar os fenômenos que envolvem os seres humanos e suas relações sociais, estabelecido em diversos ambientes. No processo de análise de dados utilizou-se da análise de conteúdo que se caracteriza como uma técnica de investigação para descrever objetivamente dados qualitativos de uma pesquisa agrupando-os em categorias determinadas pelos pesquisadores (MINAYO, 2004). Com base na descrição metodológica, segue abaixo as análises dos dados.

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REFLEXÃO E DISCUSSÃO DOS DADOS: ESTRATÉGIAS DE PREVALÊNCIA E MANUTENÇÃO DE SAÚDE MENTAL.

3.1 A VIA PSÍQUICA: ANÁLISE DAS RELAÇÕES EMOCIONAIS NO/COM O TRABALHO. A via psíquica está relacionada com a expansão ou acumulação de afetos no comportamento pessoal, ou seja, consiste na introjeção das estruturas organizacionais em detrimento das crenças e valores pessoais acumulados pela vivência cotidiana dentro e fora do ambiente de trabalho (LE GUILLANT, 1956). De acordo com a coleta de dados, nota-se que os indicadores referentes à construção da via psíquica dos funcionários respondentes são três, sendo eles: primeiro, o estado físico e mental antes do início da jornada de trabalho; segundo, o estado físico e mental ao encerrar a jornada de trabalho; e terceiro, as relações humanas dentro da empresa (chefia e colegas de trabalho). Para o primeiro indicador, os funcionários quando questionados “Qual é seu estado físico e emocional antes de iniciar a jornada de trabalho?”, tem-se que dos 31(trinta e um) respondentes, 27 (vinte e sete) dizem estar em boas condições (“disposto”, “tranquilo”, “bem”), e 4(quatro) dizem estar em más condições (“apreensivo”, “preocupado”, “cansado”). Me sinto muito calmo e tranqüilo antes de iniciar meu trabalho. Eu fico assim porque sei que tenho atividades para fazer e muitas, mas sei também que apesar das dificuldades tenho meus colegas para me dar suporte. Quando a gente começa aqui é difícil, dá pra assustar com tanta coisa pra fazer, mas depois a gente aprende o nosso ritmo e o ritmo dos colegas, aí o trabalho rende. (Respondente 2).

Nota-se de acordo com o relato acima que as condições físicas e emocionais antes do trabalho não são diretamente ligadas à ausência de conflitos dentro do trabalho. Para que haja condições positivas para início da jornada de trabalho é salutar o enfrentamento individual das adversidades, mesmo que de forma subliminar e velada. A negação das adversidades não é o caminho para saúde mental do trabalho, as formas de enfrentamento que na verdade o fazem (GLINA et al, 2001). Percebe-se que há correlação entre as más condições físicas e emocionais prevalecentes antes do início da jornada e o tempo de prestação de serviço para a empresa. Todos os quatro respondentes algum tipo de “despreparo” ou “mal estar” físico e mental antes iniciar a jornada de trabalho estão na empresa e naquele setor a menos de um ano. 89

Pouco tempo de trabalho. Além de ter que mostrar serviço, fica nervoso pra saber se está fazendo tudo certo, não conhecemos os colegas direito, ficamos sem jeito de pedir ajuda, mesmo que seja oferecida. Se não pegar o ritmo dos prazos há desorientação para começar e terminar rápido e certo. Muitas vezes ninguém fala às claras que tem essa ameaça dos prazos e datas, mas se todos se apertam para dar certo, que é novo tem que acompanhar o ritmo de quem tem mais experiência. (Respondente 19).

Com este discurso pode-se inferir que as más condições emocionais e físicas são causadas como parte do processo de integração na equipe e no trabalho. Uma vez que não há conhecimento pleno da atividade e do ambiente, há desconforto para atender as demandas tanto da empresa (prazos, rotinas) quanto a pessoal (de ser reconhecido como bom funcionário). As formas de enfrentamento nem sempre são visíveis e entram em atrito com o ambiente. A adaptabilidade também é uma forma de enfrentamento. A integração nos processos e com a equipe de trabalho estão arraigadas na cultura organizacional e são necessárias para a sobrevivência do funcionário e conquista de posicionamento além do cargo. A presença de características que informam acomodação do funcionário (boas condições físicas e mentais) comprova que o enfrentamento ocorre, mas não é visível porque já está internalizado, já quando há características que demonstram instabilidade (más condições físicas e mentais) isto não necessariamente quer dizer doença no trabalho, mas sim, busca pela conformidade e encaixe nos vínculos no/com o trabalho (ZANELLI, 2010). Percebe-se que uma das estratégias de manutenção de saúde mental está ligada ao alto limiar de cobrança tanto organizacional (velado) quanto pessoal (explícito). Ou seja, há alto investimento emocional e físico para interiorizar as regras, condutas, características do ambiente e do trabalho em si, o que desencadeia boas condições físicas e emocionais prévias ao início do trabalho, se os funcionários já se adaptaram à rotina organizacional, e más condições físicas e mentais se os funcionários buscam se adaptar numa nova (para eles) rotina organizacional. Ressalta-se que como qualquer fator humano, as condições físicas emocionais sendo boas e/ou más podem alterar no decorrer do dia de trabalho, por fatores inumeráveis. Tem dias mesmo que ninguém está de bom humor antes do trabalho, mas todas as vezes que isso acontece é porque algo vai fugir da rotina no dia, como uma reunião, que sempre tem! Mas no começo, qualquer um que entra aqui precisa aprender disciplina pessoal e coletiva, senão o trabalho não sai! É difícil e claro não é legal. Mas depois quando se passa por essa dificuldade é tão bom perceber que é possível fazer as atividades e chegar, mesmo com cobrança, em outro dia de trabalho. (Respondente 24).

Essa transitoriedade é necessária. A saúde mental no trabalho está ligada à busca de equilíbrio nas condições do/no trabalho e nas habilidades pessoais de adaptação e acomodação. A saúde mental direciona-se à busca e conquista parcial e cíclica de estabilidade. Ou seja, mais V.10, nº1, jan./abr. 2017.

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importante do que estar saudável no trabalho é buscar a permanência deste estado, a partir de estratégias de enfrentamento e na conscientização de que as quebras de rotina e de condições externas que promovam a saúde mental não são controláveis, mas contornáveis (DANIELLOU et al, 2001). Quando se inicia as análises do segundo indicador, os funcionários quando questionados “Qual é seu estado físico e emocional ao término da jornada de trabalho?”, tem-se que 28(vinte e oito) respondentes indicam que estão em boas condições (“bem”, “satisfeito”), e três respondem que estão em más condições (“cansado”, “desgastado”, “insatisfeito”). O cansaço que a gente está acostumado a sentir também é muito bom, sensação de dever cumprido. Quando tem reuniões, conferências, algo que não é da rotina é que a gente fica mais cansado, mas nada que precise de remédio depois entende?! (Respondente 31).

Este relato ilustra a definição de saúde mental que não consiste em total exclusão de fatores divergentes, mas sim, da capacidade de enfrentamento pessoal mediante o desenvolvimento de estratégias que permitam acomodação das relações adversas ao trabalho (DANIELLOU et al, 2001). As possibilidades de enfrentamento que o funcionário dispõe não são necessariamente de confronto. Destaca-se que a negação, que consiste no não enfrentamento, é ocasionadora de doença no trabalho. Mas ao mesmo tempo, as formas de enfrentamento são dependentes da cultura organizacional, que vai delimitar a mobilidade do funcionário mediante suas rotinas e condutas (SCHEIN, 2001). Há condições em que mesmo que o funcionário opte por determinada conduta, a cultura organizacional não a permite. Absorver a cultura organizacional é uma questão de permanência e sobrevivência na empresa e nas relações coletivas, tanto com os colegas de trabalho quanto com a chefia. Para compreender tal evento pergunta-se aos respondentes “Qual é a sua relação com os seus superiores na cadeia hierárquica desta empresa?”, 25(vinte e cinco) respondentes indicaram que a relação é de igualdade, ou seja, mesmo que há superioridade hierárquica, para que as demandas sejam atendidas num quadro de funcionários reduzido e com o supervisor imediato ausente na sede da empresa, é necessário que relação seja mútua. Já seis respondentes relatam que entram em contato com o supervisor imediato somente quando estritamente necessário, então a relação é eficaz, mas sem conotação subjetiva. Aqui é evidente as relações permeáveis pela cultura organizacional, que nesta empresa, faz com que os supervisores estejam ausentes na sede da empresa, mas faz com que as relações entre estes e seus supervisionados seja constante e em pé de igualdade. Uma vez que os 91

superiores dos funcionários não ficam na mesma localidade, isto promove a privação de inúmeros causadores de mal estar coletivo e individual, que podem proporcionar mal estar no trabalho, como por exemplo, a sensação de paranoia por constante vigília do processo e não dos resultados (SCHEIN, 2001). A falta de monitoramento constante permite busca de autonomia (dentro das características organizacionais) tanto na realização dos processos de trabalho, quanto no alcance dos resultados e também na estruturação de estratégias de enfrentamento (CODO, TAMAYO e BORGES-ANDRADE, 2008). Isto faz com que as relações entre os colegas de trabalho sejam estabelecidas por necessidade e por oportunidade. Quando questionados “Como você caracteriza a sua relação com os demais colegas de trabalho?”, todos os 31(trinta e um) respondentes indicaram que é uma relação de co-dependência. Como nossos chefes não ficam aqui e o que importa para todos eles é o resultado, o caminho para alcançar o resultado é irrelevante. Então, dependemos um do outro para atingir isto. Na dúvida nos falamos e é até mais interessante para nossos chefes que não supervisionam só a gente aqui. Se para eles chega o resultado eles ficam satisfeitos, se nós nos comunicamos aqui dentro, mesmo sem saber, ajudamos uns aos outros. Não é que há somente amizade, mas há dependência mesmo, se todos nós estamos na mesma página, melhor para todo mundo. (Respondente 5).

Conclui-se parcialmente neste item que as relações emocionais e físicas com/no trabalho que compõe a via psíquica dos funcionários são manifestas através da estratégia de enfrentamento (explícita e/ou implícita) de formação de consciência coletiva e interiorização da cultura organizacional. Há consciência coletiva que faz com que, mediante a cultura organizacional, as condutas e resultados do setor administrativo sejam marcadas por alta performance através de confronto. Para a referida empresa, tais eventos são favoráveis na retenção de funcionários do setor e eficácia nos processos através de comunicação eficiente e constante, ocasionando baixo turn over e absenteísmo. De acordo com a caracterização dos respondentes percebe-se também que a cultura organizacional rege o setor administrativo numa mescla de funcionários mais experientes com iniciantes, ocasionando, mesmo que não intencionalmente, em sua cultura, estratégias de equilíbrio de experiências e condutas para que haja prevalência e manutenção de saúde mental no trabalho. 3.2 A VIA MOTORA: ANÁLISE DAS CONDUTAS NA REALIZAÇÃO COTIDIANA DO TRABALHO. A via motora, um dos componentes da carga psíquica, é caracterizada pelo estímulo a 92

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maneiras alternativas de execução do trabalho, ou seja, são as formas de alcançar os resultados e metas estabelecidos através trabalho real em detrimento da transcrição prescrito (LE GUILLANT, 1956). De acordo com a coleta de dados, nota-se que os indicadores referentes à construção da via motora dos funcionários respondentes são duas, sendo eles: primeiro, a relação com as demandas cotidianas do trabalho; e segundo, a troca de influências entre a vida social e o trabalho. Ao questionar “De forma geral, qual é a relação/sensação que a empresa e que o trabalho cotidiano lhe transmite?”, 30(trinta) respondentes indicaram que estão satisfeitos, e 1(um) está insatisfeito. Não são todos os todos os dias que falamos que está tudo bem, que estamos satisfeitos, mas pensando no dia a dia, estou satisfeito. Acho que com relação com o que eu faço e as condições que a empresa me dá está tudo certo, compatível. (Respondente 11).

Todas as formas de trabalho passam por dois momentos, o mecânico, que é a execução da atividade que permite pouca ou nenhuma mobilidade ou mudança, e o momento crítico, que consiste na reflexão pessoal e individual, a partir de influências e da cultura organizacional, visando melhoria do processo e garantia do resultado, apesar das prescrições iniciais. Quando há presença destes dois momentos, há maior possibilidade de existir a satisfação do funcionário (SCHEIN, 2001). A partir do relato nota-se que não se pode garantir satisfação todos os dias em todos os processos do trabalho, mas que a adaptabilidade permitida pela cultura e formas de gestão da empresa, faz com que haja satisfação em maior parte do tempo e dos processos. Desta forma, acomodam-se tanto as exigências do trabalho cotidiano, quando a energia a ser investida nestas atividades. Fenômeno corroborado quando se questiona “Para você, o que influencia mais: a vida no trabalho, ou o trabalho na vida?”, onde todos os 31(trinta e um) respondentes dizem que não há como colocar a vida à parte do trabalho ou vice-versa. O que eu faço e quanto eu recebo permite que eu freqüente determinados lugares, compre determinados produtos. Quando começamos a trabalhar aqui vemos que servimos não a uma empresa, mas sim, a um império que tem suas regras próprias nos colocando num patamar muito diferente na sociedade que é muito difícil de abrir mão. O dia a dia às vezes cansa, na hora pensamos em largar tudo, mas os benefícios de estar aqui são inquestionáveis, então preferimos ficar aqui e não sair ou ir para outro lugar. (Respondente 13).

Aderir à cultura organizacional também é uma forma de estratégia de manutenção de 93

saúde mental. Se há união entre os objetivos da empresa e os objetivos pessoais do funcionário, um proverá as necessidades básicas do outro. Relata-se que a importância do trabalho na vida é extrema e vital, tanto para sobrevivência financeira quanto destaque social, mas ainda dizem que há expressividade por meio do trabalho nas realizações pessoais e na prevalência de saúde mental. Quem não trabalha fica doente mais fácil você do que nós que aguentamos o rojão. Muitas vezes nós não engolimos o sapo, engolimos o brejo inteiro. (Respondente 5).

Com base nas análises de conduta perante a execução do trabalho, define-se que há outra estratégia de manutenção de saúde mental utilizada pelos funcionários: a autonomia. Evento este permitido pela cultura organizacional e pelas formas de gestão, a autonomia faz com que a ausência de supervisão direta seja uma aliada, tanto no alcance de resultados quando no cumprimento dos processos. Além disso, nota-se que a dicotomia entre vida social e vida no trabalho é inexistente. Esta forma intrínseca das relações de vida pessoal de vida no trabalho faz com que a empresa exerça seu marketing (interno e externo) de forma sutil e eficaz, onde se identifica uma pessoa pelas características da empresa que ela trabalha e vice-versa. Esta relação de identidade promove espontaneamente a empresa privando-a de processos seletivos constantes, porque há retenção, e contenção de gastos na área de publicidade e propaganda, já que o mesmo é mais feito através do “boca a boca”. 3.3 A VIA DE ESCAPE (VISCERAL): ANÁLISE DAS CONDIÇÕES GERAIS DE SAÚDE MENTAL MANIFESTAS NOS CORPO E COMPORTAMENTO. Define-se a via de escape e/ou também chamada de via visceral, pela necessidade realizar suas necessidades orgânicas com facilidade e frequência, a fim de manifestar no corpo os desejos, anseios, conquistas e enfrentamentos do aparelho psíquico (LE GUILLANT, 1956). A partir da coleta dos dados, constata-se que para compreensão da via de escape, são necessárias as análises de dois fatores, sendo eles: primeiro, as condições de saúde geral (física e mental, para averiguação de outras condições prévias) e segundo, relação entre o funcionário e a gerência no manejo de adversidades (pré-definido pela cultura e estrutura organizacional). No processo seletivo para o setor administrativo, não há discriminação se o candidato apresentar doenças mentais e/ou físicas, relacionadas ao trabalho, prévias à contratação, isto porque as atividades do setor são salubres. Sendo assim, é marca da cultura da empresa V.10, nº1, jan./abr. 2017.

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promover a qualidade de vida no trabalho (Q.V.T.), garantindo a partir da contratação, condições individuais para execução do trabalho. Faço tratamento psicológico porque quando fico em casa muito tempo sem conversar com alguém começo a pensar na minha vida, em tudo que passei e não consigo ficar feliz durante muito tempo. A minha família é uma bagunça, pra você ter uma ideia há pouco tempo que conheci um dos meus irmãos. (Respondente 15).

O relato acima ilustra a função trabalho e da empresa, além da subsistência. A qualidade de vida no trabalho é uma questão cultura e da estrutura da empresa, em seu cerne ela opta por disponibilizar saúde para seus funcionários, seja por meio de benefícios e/ou de condutas explícitas e veladas. Por vezes, o trabalho tem a função social de propor reconhecimento, se as relações externas a ele não promoveu isto ao funcionário (ZANELLI, 2010). Por vezes, questiona-se profissionais de vários segmentos o porquê da permanência no cargo, na empresa, no setor, se há condições que não o satisfazem. Com base nas análises deste artigo, pode-se inferir que a permanência, além de ser um objetivo organizacional, é também, uma questão de qualidade de vida para o trabalhador, que tem maior desempenho com a sensação de segurança e estabilidade, mesmo que estes sejam fatores pouco assegurados no ramo de empresas privadas. Seguindo o objetivo de qualidade de vida no trabalho, ressalta-se que quanto mais explícitas e óbvias forem as relações e expectativas, melhor é o desempenho e interesse do funcionário, que concentra suas energias e esforços na tarefa em mãos, e não na especulação. Todos os recursos que a empresa pode dispor para evitar comportamentos de paranoia, ruminação e insegurança, são válidos na prevalência e na manutenção de saúde mental (MILANESI et al, 2000). Cobrança e imprevistos acontecem em qualquer lugar, não é específico da nossa profissão nem da nossa empresa, nós não podemos fazer controlar isso. Então para mim, passar pela rotina de trabalho é inevitável, se eu não posso controlar e se nem meus superiores podem fazer o mesmo então não é stress não, é rotina do mesmo jeito, até os imprevistos são rotina. (Respondente 18).

Isso é que é ter qualidade de vida não é não? É a gente deparar com a dificuldade e mesmo assim ser capaz de processar e resolver. Quem não fica satisfeito depois de muito sofrimento, conseguir realizar o que foi proposto? Acho que resolver tudo na hora é o melhor, esperar para ver não existe aqui. (Respondente 3).

Estes relatos mostram que o entendimento de qualidade de vida está atrelado à capacidade de passar pela situação de conflito e resolvê-la, apesar das sensações de angústia e 95

ansiedade e da meta demandada pela organização, quando há resolução das atividades e eventualmente dos contratempos, há satisfação no trabalho. Pode-se inferir que a resolução instantânea de contra tempos, aliada às condições de disposição da empresa para estabelecer qualidade de vida no trabalho, fazem com que os funcionários conduzam mais uma estratégia de manutenção de saúde mental utilizada: o imediatismo. Em contrapartida, a empresa oferece condições de prevalência de saúde mental, uma vez que os funcionários utilizem destas condições não só para benefício próprio, mas também, para melhora nas rotinas de processos. CONCLUSÃO O objetivo principal deste artigo foi identificar, descrever e analisar as estratégias que, de acordo com os funcionários, são determinantes para prevalência e manutenção de saúde mental no trabalho. Com base na secção dos três tópicos de discussão e análise de dados podese definir que as estratégias de manutenção de saúde mental são de enfrentamento e não de negação, definindo-se quatro, sendo elas: primeira, formação de consciência coletiva; segunda, interiorização da cultura organizacional; terceira, autonomia e quarta, imediatismo. Ressalta-se que com base na pesquisa e no levantamento de bibliografia pertinente ao tema, a manutenção da saúde mental é um fenômeno cíclico, ou seja, está presente, mas em constante (re)construção. É importante destacar que toda e qualquer estratégia de enfrentamento é desenvolvida individualmente pelo funcionário, mas regida pela cultura e estrutura organizacional, visando equilíbrio pessoal e coletivo. Desde a revisão de literatura é possível perceber que saúde e patologia no trabalho estão sempre presentes no ambiente organizacional, o que previne o trabalhador de adoecer na organização é sua habilidade, seja ela individual ou coletiva, de absorver os constructos da empresa e agregá-los, a fim de se estabelecer uma dinâmica que permita identificação daquilo que lhe é demandado, e imprimir em seu nicho suas características próprias. Para haver prevalência e manutenção de saúde mental, não basta a organização prover de benefícios para os funcionários, mas sim, buscar em seus colaboradores aspectos compatíveis com a empresa e vice-versa. Ou seja, saúde mental não está somente na flexibilidade da organização, nem tanto somente na adaptação do sujeito, mas sim, na soma destes dois fatores. Junto com o público diverso que atende as necessidades da empresa e do setor administrativo, vêm também as diferentes crenças, hábitos e costumes que muitas vezes podem entrar em detrimento do convívio harmonioso no ambiente. É com base nesta diferença que V.10, nº1, jan./abr. 2017.

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surgem as estratégias de enfrentamento para conseguir manejar a diferença individual em grupo. Conviver e trabalhar em grupo consiste na obrigação de ceder e compartilhar espaço com outro, nessa dinâmica é que surgem os recursos, tanto do sujeito quanto da coletividade, para lidar com o cotidiano e com as surpresas do dia a dia. Os funcionários se integram tão bem que a responsabilização e os benefícios são igualmente recebidos e divididos prevalecendo o bem estar coletivo. Desta forma, segundo os próprios funcionários, a carga de responsabilidade e demanda mantém um padrão igualmente dividido entre todos, permitindo não só distribuição da encomenda do trabalho, mas também a sobrevivência de todos na organização uma vez que é reconhecido pela gerência que o grupo todo se manteve naquela tarefa específica. Pode-se concluir que as estratégias de manutenção de saúde mental estão presentes para estabelecer o bem estar individual e coletivo dos funcionários que, por mais que esteja num ambiente que aparentemente vise o bem estar deles, hostiliza e incuba os hábitos e valores pessoais, demandando investimento afetivo intenso no trabalho. A saúde mental está totalmente ligada a uma dinâmica estabelecida pela cultura organizacional e a identidade de seus colaboradores. Isto porque, mediante a análise de dados acima, é possível ver que apesar de sempre ocorrer certa anulação da representação pessoal do funcionário, há também a necessidade da empresa de trazer à tona desta mesma pessoa, as características que são compatíveis à organização. Saúde mental não está somente na flexibilidade da organização, nem tanto somente na adaptação do sujeito, mas sim, na soma destes dois fatores. Na coleta de dados é notório este sentido; para haver saúde mental há abdicações tanto da empresa para reter o bom trabalhador, quanto para o trabalhador que vê na empresa benefícios maior que seu desligamento dela. Para haver ocorrência de saúde mental, não basta a organização prover de benefícios para os funcionários, mas sim, buscar em seus colaboradores aspectos compatíveis com a empresa, e estes mesmos funcionários fazerem o caminho inverso, procurando na empresa constructos e hábitos que são seus. Também neste contexto a pesquisa mostrou que há uma disparidade entre o trabalho real e o trabalho demandado da gestão. Uma vez que há exigência de resultados não de processos, os colaboradores optam por caminhos muitas vezes alternativos para resolver os problemas. Isto porque os funcionários revelaram que há uma distância física entre os funcionários do setor e seus superiores imediatos, permitindo a autonomia na resolução de problemas e questões cotidianas. Por estarem diariamente ligados no ritmo da empresa submetidos à realidade operacional sem supervisão direta, os próprios funcionários, tanto individualmente quanto coletivamente, desenvolveram suas próprias estratégias de lidar com as questões cotidianas. 97

Este artigo discute as estratégias de prevalência e manutenção de saúde mental, sugerese para pesquisas futuras uma pesquisa de maior amplitude de respondentes e setores pesquisados para que seja de valia tanto para a empresa, que pode replicar suas táticas em outros setores ou polos, quanto para os funcionários, que terão acesso aos recursos que outros colegas de trabalho usam para estar saudáveis no trabalho.

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Sofrimento

Psíquico

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