Desafios e caminhos para a mudança curricular em Odontologia

June 4, 2017 | Autor: Vera Lúcia Garcia | Categoria: Dentistry, Curriculum
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Desafios e caminhos para a mudança curricular em Odontologia João Luiz Silveira/Vera Lúcia Garcia Instituição onde o projeto foi implantado: Curso de Odontologia da Universidade Regional de Blumenau (Furb)

CONTEXTO DO PROJETO E SUAS METAS: No Brasil, a formação em Odontologia apresenta desafios comuns aos das demais profissões da saúde, destacando-se historicamente uma preponderante valorização do modelo liberal da profissão com superespecialização, reduzido foco sobre a dimensão social do processo saúde-doença e também dos princípios, diretrizes e concepção do processo de trabalho no Sistema Único de Saúde (SUS). Além dessas características comuns, o ensino de Odontologia apresenta uma história específica que determina, em parte, um grave quadro de saúde bucal da população, marcado por: superconcentração de dentistas nos centros urbanos, gerando esgotamento do mercado liberal e pouco acesso a serviços no interior; foco na doença, com alta prevalência de sequelas como o edentulismo; exclusão social de acesso a serviços odontológicos principalmente entre adultos e idosos que não podem custear seu tratamento. Como estratégia para reverter este quadro de saúde pública, no âmbito da atenção, o Ministério da Saúde publicou, em 2004, a Política Nacional de Saúde Bucal, e, no âmbito da educação superior, regulada pelo Ministério da Educação (MEC), foram publicadas as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) para os cursos da área da saúde a partir do ano 2000, tendo sido as DCN de Odontologia publicadas em 2001. As DCN constituem normas gerais com especificidade para cada curso. Consideram

estratégica a formação para o SUS, para melhorar o perfil epidemiológico. Transcorridos mais de 15 anos de sua publicação, as mudanças curriculares ainda constituem um grande desafio, marcado por conflitos de interesses entre os sujeitos e instituições implicados nesse processo, sejam estes estudantes, professores, gestores das instituições de ensino superior (IES) ou do governo. Este conflito se estende ao âmbito da sociedade, envolvendo corporações profissionais, associações de ensino, instituições de prestação de serviços e a população usuária dos serviços de saúde. Nesse contexto, importa conhecer o que os sujeitos pensam sobre a formação, além de informar e sensibilizar sobre as necessidades de mudança curricular, considerando os aspectos legal, pedagógico e social da educação como política de Estado no Brasil. O presente projeto apresenta um processo de mudança curricular realizado no curso de Odontologia da Universidade Regional de Blumenau (Furb), instituição pública legalmente constituída como autarquia municipal. O curso iniciou a primeira turma em 1998, recebeu credenciamento em 2002 e até o ano de 2010 ainda não havia concluído a elaboração e aprovação do seu Projeto Pedagógico de Curso (PPC). Acompanhando a tendência dos demais cursos no Brasil, a trajetória de discussão do PPC foi marcada por falta de consenso, conflitos e grande resistência à mudança da matriz curricular por parte de estudantes e professores, com pouco envolvimento no processo de discussão. A ausência de um PPC confi-

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gurava uma irregularidade do curso, e a matriz curricular em execução não atendia a vários requisitos previstos nas DCN para os cursos de Odontologia. A meta do presente projeto foi conduzir um processo de discussão, de forma participativa, para aprovar um PPC em 2011 que atendesse às DCN. Em busca de subsídios teóricos e metodológicos para responder a este desafio, o coordenador do curso submeteu o projeto ao Programa de Desenvolvimento Docente para Educadores das Profissões da Saúde por ocasião da chamada para o edital da Foundation for Advancement of International Medical Education and Research (Faimer-Brazil). As questões que impulsionaram o projeto foram: Que metodologias poderiam viabilizar e consolidar a mudança curricular? Que sujeitos deveriam estar implicados no processo? Quais as formas de melhorar a participação para a mudança curricular? Que referenciais e estratégias poderiam dar suporte às discussões e dirimir o conflito? Buscava-se atender às demandas legais e tendências pedagógicas do ensino de Odontologia no Brasil.

DESCREVA O QUE FOI FEITO: Para sensibilizar e informar, ampliando a participação da comunidade acadêmica na elaboração do projeto de mudança curricular, foram efetivadas as seguintes ações: (i) busca de apoio da gestão superior ao projeto, tendo sido obtido o financiamento das passagens aéreas para o coordenador participar do programa Faimer e o apoio de uma pedagoga da Pró-Reitoria de Ensino de Graduação (Proen) para participar efetivamente do projeto; (ii) realização de oficinas com os estudantes, em todas as turmas do curso, sobre DCN de Odontologia; (iii) oferta de cursos aos docentes no Programa de Formação Docente, abordando temáticas relacionadas ao ensino e ao currículo; (iv) abertura de um fórum sobre Ensino na Saúde para os cursos de graduação do CCS; (d) participação de convidado externo na Semana Acadêmica de Odontologia, sobre a temática da mudança curricular; (v) realização de grupos focais com estudantes em todas as turmas e reuniões com as equipes de docentes por disciplina para conhecer suas representações sobre o tema do ensino odontológico; (vi) inclusão e envolvimento dos membros do Núcleo Docente Estruturante (NDE) em todas as fases do projeto de mudança curricular; (vii) captação de recursos financeiros e bolsas no

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edital Propet-Saúde da Secretaria de Gestão e do Trabalho na Saúde (SGTES) para apoiar as ações previstas e ampliar a participação de estudantes, docentes e preceptores do SUS na mudança curricular e fortalecer a integração ensino-serviço; (viii) nomeação de dois estudantes por turma e membros do Centro Acadêmico de Odontologia (CAO) para compor uma comissão de currículo para a elaboração do projeto. Os dados coletados foram sistematizados e discutidos continuamente com os participantes em reuniões do departamento de Odontologia, do NDE e com a gestão superior. Destaca-se o processo de integração ensino-serviço, envolvendo a universidade (Furb) e a Secretaria Municipal de Saúde de Blumenau (Semus), fundamental para qualificar a formação e a atenção no serviço, resultando na ampliação da presença de estudantes de Odontologia nos cenários de prática do SUS em atividades de estágio, pesquisa e extensão.O maior desafio para a implantação de mudanças curriculares é a participação efetiva dos estudantes e docentes, considerando que o currículo prescrito só será efetivado se estes sujeitos acreditarem nos princípios que o norteiam. Pode-se assumir que houve avanço nessa participação se considerarmos que antes do projeto as discussões sobre mudança curricular se limitavam ao colegiado de curso com no máximo nove estudantes nomeados para participar daquela instância. Entretanto, na prática, registrava uma média de faltas superior a 60%, limitando-se a uma participação de quatro alunos. Quanto aos docentes, também havia uma participação extremamente reduzida, que não alcançava 20% e não incluía todas as disciplinas. O processo de discussão se limitava à definição de distribuição de carga horária para disciplinas, não aprofundando as questões relevantes da tendência de mudança e dos aspectos legais da formação odontológica. Este processo era totalmente ineficaz, pois, quando as deliberações do colegiado chegavam às reuniões de departamento para votação, não havia consenso, nem possibilidade de avançar para as instâncias superiores. Com a implantação do projeto descrito, ampliou-se para 85% o alcance da participação dos estudantes, seja nas oficinas em salas de aula ou nos grupos focais; entre os docentes, houve a participação de cinco das seis equipes de disciplinas do ciclo profissionalizante, com indicação de um docente representante para participar das discussões como integrante da comissão de elaboração do PPC e com possibilidade de participação

das equipes nas reuniões. A distribuição de tarefas específicas para os membros da comissão após leitura de material sobre a temática da mudança curricular e definição de metas objetivas teve efeito positivo, alcançando resultados que eram paulatinamente levados para discussão no grupo ampliado como propostas a serem aprovadas sobre temas concretos, defendidos de forma embasada nos referenciais estudados pela equipe. Pode-se considerar que o PPC aprovado, resultado do presente projeto, atendeu de forma satisfatória aos requisitos legais das DCN e possibilitou o desenvolvimento de uma cultura sobre ensino odontológico. Entretanto, em termos de concepção curricular, cabe destacar que o PPC implantado ainda se caracteriza como um currículo “tradicional”, organizado majoritariamente por disciplinas isoladas, com algumas iniciativas de integração de disciplinas clínicas, prevalecendo a abordagem de conteúdos teóricos, em certos casos com excessivo aprofundamento de conteúdos especializados. As disciplinas do “ciclo básico” permaneceram isoladas das “disciplinas profissionalizantes”. Na dimensão didático-pedagógica, não foi possível generalizar ou intensificar o uso de metodologias ativas, que permaneceram como iniciativas isoladas, sendo realizadas por alguns docentes em suas disciplinas. A aula teórica com audiovisual, focada em conteúdos, permanece como a forma predominante de ensino, caracterizado como ensino “tradicional”. Outro desafio se refere à implantação de um sistema permanente de avaliação do PPC e formação continuada sobre ensino odontológico, de forma abrangente e participativa, cujos resultados devem alimentar um processo de mudança contínuo, considerando a percepção dos sujeitos envolvidos sobre o processo de ensino-aprendizagem, o desempenho e efetividade da aprendizagem e a inserção dos egressos no mercado de trabalho. Esta concepção reforça o PPC como um meio e não um fim, capaz de impulsionar mudanças embasadas e legitimadas no processo de ensino-aprendizagem de forma a atender às tendências da educação na área da saúde, considerando seu papel social e as políticas de Estado que as determinam.

IMPACTO: Como resultado do projeto aplicado, o PPC do curso de Odontologia foi aprovado por unanimidade no colegiado

do curso e no Conselho Superior de Ensino e Pesquisa (Cepe), resolvendo, dessa forma, a situação de irregularidade do curso de Odontologia e trazendo mudanças concretas para atender às DCN, a saber: (i) inclusão da obrigatoriedade do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) para todos os estudantes do curso, qualificando seu perfil acadêmico; (ii) integralização do curso em cinco anos, em atendimento ao requisito legal para cursos com 4 mil horas; (iii) ampliação da integração de conteúdos e práticas com a criação de mais uma disciplina clínica integrando conhecimentos (Clínica Odontológica I), colaborando para a formação de um profissional generalista; (iv) antecipação das práticas para as fases iniciais do curso, com maior inserção dos estudantes no SUS sob a forma de estágios por nível de complexidade; (v) qualificação e intensificação da integração ensino-serviço. Pode-se observar, no processo descrito, uma relativa ampliação da participação de estudantes e docentes nas discussões sobre o currículo, considerando que, nos processos anteriores de discussão da mudança curricular, a participação de estudantes se limitava a poucos representantes membros do colegiado de curso. No âmbito acadêmico, como fruto deste projeto, destaca-se a publicação de um artigo original em periódico indexado sobre a representação dos estudantes a respeito de sua formação profissional e apresentação de trabalho por estudantes de Odontologia na Reunião Anual da Associação Brasileira de Ensino Odontológico (Abeno). A integração ensino-serviço com o SUS foi fortalecida com a ampliação e qualificação das atividades de estágio, pesquisa e extensão, conforme o resultado de pesquisa aplicada a este processo, na qual os estudantes envolvidos revelaram o SUS como relevante cenário de aprendizagem profissional, considerado um potencial mercado de trabalho.

QUAL É A SITUAÇÃO ATUAL DO SEU PROJETO? O PPC está implantado, sendo necessário estabelecer e fortalecer o processo de avaliação curricular de forma participativa e sistemática. Permanece a vontade política da instituição, com possibilidade de avanços. Uma estratégia tem sido incentivar projetos para o fortalecimento de uma linha de pesquisa sobre educação odontológica e ensino na saúde no Centro de Ciências da Saúde (CCS).

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Os grupos Pró-PET-Saúde e o Mestrado Profissional em Saúde Coletiva têm dado suporte a esta iniciativa. Outra estratégia será a consolidação do Fórum de Ensino do CCS como espaço contínuo para a discussão da formação em saúde, incluindo os demais oito cursos e constituindo um canal permanente de participação da comunidade acadêmica para as mudanças curriculares. Pretende-se avaliar as experiências e ampliar iniciativas de integração de disciplinas, de conteúdos curriculares e das iniciativas de metodologias ativas que estão ocorrendo.

POR QUE ESTE É UM PROJETO QUE FUNCIONOU? Pode-se atribuir o sucesso ao fato de o PPC ter avançado em todas as instâncias institucionais, culminando com a sua aprovação por unanimidade no Cepe, especialmente se considerarmos que as diversas experiências anteriores falharam em dez anos de tentativas. No âmbito institucional, podemos considerar como fatores determinantes a obtenção do apoio institucional da gestão, combinado com maior participação de docentes e discentes no processo, de forma a informar e sensibilizar a comunidade acadêmica para a importância do projeto, considerando que o PPC é um documento fundamental nos processos de avaliação institucional realizados pelo MEC para a renovação do credenciamento do curso de Odontologia. Outro fator preponderante para o sucesso do projeto foi a participação do coordenador no Faimer, destacando a pertinência e relevância dos conteúdos acessados, a metodologia presencial e a distância. Mesmo após a conclusão do curso, o apoio continuado, representado pelo acesso a uma comunidade virtual extremamente ativa, constituída por uma rede de experts, possibilitou um aprimoramento contínuo e a aplicação de conhecimentos e práticas, em atendimento às demandas específicas do projeto.

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