Desafios para o patrimônio mundial, de Neil Silberman

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Neil A. Silberman Aline Carvalho Pedro Paulo Funari Patrícia Mariuzzo (Orgs.)

Conselho Editorial Profa. Dra. Andrea Domingues Prof. Dr. Antônio Carlos Giuliani Prof. Dr. Antonio Cesar Galhardi Profa. Dra. Benedita Cássia Sant’anna Prof. Dr. Carlos Bauer Profa. Dra. Cristianne Famer Rocha Prof. Dr. Eraldo Leme Batista Prof. Dr. Fábio Régio Bento Prof. Dr. José Ricardo Caetano Costa

Prof. Dr. Luiz Fernando Gomes Profa. Dra. Magali Rosa de Sant’Anna Prof. Dr. Marco Morel Profa. Dra. Milena Fernandes Oliveira Prof. Dr. Ricardo André Ferreira Martins Prof. Dr. Romualdo Dias Prof. Dr. Sérgio Nunes de Jesus Profa. Dra. Thelma Lessa Prof. Dr. Victor Hugo Veppo Burgardt

©2016 Neil A. Silberman; Aline Carvalho; Pedro Paulo Funari; Patricia Mariuzzo (Orgs.) Direitos desta edição adquiridos pela Paco Editorial. Nenhuma parte desta obra pode ser apropriada e estocada em sistema de banco de dados ou processo similar, em qualquer forma ou meio, seja eletrônico, de fotocópia, gravação, etc., sem a permissão da editora e/ou autor.

S5822 Silberman, Neil A; Carvalho, Aline; Funari, Pedro Paulo Desafios para o Patrimônio Mundial: em busca de novas práticas/Neil A. Silberman. Jundiaí, Paco Editorial: 2016. 104 p. Inclui bibliografia. ISBN: 978-85-8148-995-7 1. Patrimônio Público 2. Patrimônio Cultural 3. Arqueologia 4. História. I. Silberman, Neil A. II. Carvalho, Aline. III. Funari, Pedro Paulo. CDD: 930.1 Índices para catálogo sistemático: Arqueologia Patrimônio Histórico IMPRESSO NO BRASIL PRINTED IN BRAZIL Foi feito Depósito Legal

Av. Carlos Salles Block, 658 Ed. Altos do Anhangabaú, 2º Andar, Sala 21 Anhangabaú - Jundiaí-SP - 13208-100 11 4521-6315 | 2449-0740 [email protected]

930.1 720

SUMÁRIO Apresentação

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Neil Silberman e a arqueologia contemporânea

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Capítulo 1 A interpretação do patrimônio como discurso público: rumo a um novo paradigma

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Capítulo 2 Interpretação do patrimônio e direitos humanos: documentando a diversidade, expressando a identidade ou estabelecendo princípios universais?

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Capítulo 3 Patrimônio sustentável: interpretação da arqueologia pública e comércio do passado

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Capítulo 4 Processo, não produto: a Carta Ename do Icomos (2008) e a gestão do patrimônio

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Capítulo 5 Quem deve cuidar dos mortos? Equilibrando direitos religiosos e responsabilidades cívicas

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APRESENTAÇÃO Pensar os patrimônios, em suas múltiplas categorias e significações, é um grande desafio do tempo presente que ultrapassa as barreiras disciplinares ou mesmo acadêmicas. Se, em séculos passados, o patrimônio era percebido quase que exclusivamente como materialidade que evocava o poder de um determinado passado e de grupos sociais específicos, hoje, podemos encontrar discussões bastante ampliadas sobre as escolhas patrimoniais e suas pertinências para tempos e espaços singulares. Os debates atuais acerca do patrimônio abrem-se em reflexões sobre suas construções (não apenas relativas às escolhas técnicas, mas também acerca dos significados que lhes são agregados no passado, presente e, possivelmente, no futuro), no tocante à sua relevância para o desenvolvimento local sustentável, em relação à sua vinculação aos Direitos Humanos, entre inúmeros outros recortes. Podemos afirmar, portanto, que as questões patrimoniais não dizem mais respeito apenas aos acadêmicos e técnicos, mas, que podem ser abertas às diferentes comunidades com interesses bastante diversificados. Acreditamos que debater o patrimônio, neste contexto mais amplo, também é discutir como nós gostaríamos de nos representar e o que esperamos com essas representações. Trata-se, portanto, de uma construção fluida de nossas memórias que entrelaçam tempos indissociáveis e nos indicam pontos de reflexões acerca de nós mesmos e das relações coletivas que construímos. Defendendo a ampliação dos debates acerca do patrimônio, apresentamos esta obra que reúne cinco textos do arqueólogo e historiador norte-americano Neil Asher Silberman; intelectual de expressiva relevância internacional e que tem se dedicado a investigar a construção das políticas públicas patrimoniais, a interpretação pública do patrimônio, e, claro, as relações entre a Arqueologia, História e sociedade. Docente do Departamento de 5

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Antropologia da Universidade de Massachusetts (Amherst), Silberman foi responsável pela organização do Center for Heritage and Society; referência nos estudos de Arqueologia Pública, História Pública, Patrimônio e Sociedade. Atualmente, é vinculado ao Comitê Científico Internacional do ICOMOS: uma organização civil, ligada à UNESCO, voltada ao aconselhamento sobre os tombamentos de bens candidatos a receber o título de Patrimônio Cultural da Humanidade. Com grande experiência na criação de projetos e gestão do patrimônio internacional junto às comunidades locais, Silbeman foi premiado com uma bolsa Guggenheim (1991), é editor da revista Archaeology, e membro do conselho editorial dos periódicos International Journal of Cultural Property, Heritage Management, e Near Eastern Archaeology. Entre os inúmeros livros, capítulos de livros e artigos publicados ou escritos por Silberman, podemos citar: David and Solomon: In Search of the Bible’s Sacred Kings and the Roots of the Western (escrito em coautoria com o professor Israel Finkelstein – publicado em 2006); Invisible America: Uncovering Our Hidden Past (escrito em coautoria com o professor Mark P. Leone – publicado em 1995) e “Post-Colonial, Neo-Imperial, or a Little Bit of Both?” – “Reflections on Museums in Lebanon” (Near Eastern Archaeology, v. 73, n. 2-3, 198-201, 2010). Os textos de Silberman que selecionamos para esta edição foram publicados originalmente em inglês. A escolha e a tradução desses textos foram realizadas ao longo de 2012; ano em que Silberman esteve na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), do Fundo de Apoio ao Ensino, à Pesquisa, à Extensão (FAEPEX – Unicamp), do Programa de Pós-Graduação em História (IFCH/Unicamp) e do Laboratório de Arqueologia Pública Paulo Duarte (LAP/NEPAM/Unicamp). O período em que Silberman esteve na Unicamp foi marcado por uma série de palestras, discussões de projetos e reuniões que não apenas refletiram nas pesquisas que estavam sendo desen6

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volvidas ali, como também instauraram uma longa parceria entre pesquisadores do LAP/Unicamp e o grupo de pesquisa de Silberman. Um dos resultados dessa parceria é a presente publicação. Aqui o leitor poderá encontrar as reflexões produzidas por Silberman acerca das conservadoras interpretações do patrimônio (unidirecionais) e as relações destas com o turismo (capítulo 1), no tocante ao papel da interpretação pública do patrimônio e as relações entre essas interpretações e a consolidação dos Direitos Humanos (capítulo 2); sobre a proposta de construção de um patrimônio sustentável e a necessidade de uma interpretação e ação da arqueologia pública (em especial, no tocante ao comércio do passado – capítulo 3); referente às questões específicas da gestão do patrimônio e as propostas da Unesco (capítulo 4), e, por fim, sobre disputas de memórias, patrimônios e conflitos internacionais (capítulo 5). Cada capítulo foi traduzido por um estudante de graduação ou pós-graduação que esteve envolvido com a vinda de Silberman; sempre com a supervisão e com a revisão dos organizadores da obra. Em cada capítulo está indicado o nome do tradutor e o local da publicação original do texto. Aproveitamos essa apresentação para agradecer aos estudantes que estiveram bastante comprometidos com o trabalho de tradução e com as discussões propostas por Silberman em sua estada no Brasil. Na tradução dos capítulos, respeitamos a estrutura original dos textos, por isso alguns não são acompanhados de bibliografia. Para concluir, indicamos que os leitores encontrarão nesta obra textos provocativos e bastante reflexivos sobre as questões patrimoniais no cenário internacional. Sem dúvida alguma, acreditamos que essas narrativas podem formar outras bases para pensarmos nosso contexto nacional e local e, deste modo, contribuir para um ampliar dos debates acerca do patrimônio. Desejamos a todos uma excelente leitura. Aline Carvalho

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NEIL SILBERMAN E A ARQUEOLOGIA CONTEMPORÂNEA A Arqueologia, como todas as ciências e mesmo atividades humanas, depende também de indivíduos, não tanto, nem apenas, por suas qualidades intelectuais, mas por seu caráter, por sua capacidade de formação e inspiração e por sua transparência. Neil Silberman pode ser considerado, sob esses e outros aspectos, um caso notável. Comecemos por sua formação acadêmica. Nascido em Boston em 1950, estudou em uma instituição metodista única, a Wesleyan University, notabilizada pelas artes liberais, com graduação em estudos religiosos, onde já pôde ter contato não apenas com as tradições cristã e judaica, mas também de outros horizontes, como o islamismo, assim como de outras confissões não ocidentais ou monoteístas. Após sua graduação, em 1974, seguiu os estudos na Universidade Hebraica de Jerusalém, Israel, no Instituto de Arqueologia, entre 1974 e 1976. Silberman destacou-se, desde cedo, por sua erudição e abertura de horizontes incomuns, tal como demonstrado pelo seu domínio, em tudo excepcional, do hebraico e do árabe. Desde a tenra juventude, não deixou de aceitar os desafios da diversidade cultural, estudioso dos contatos interétnicos e culturais. Essa abertura de horizontes levou-o, desde cedo e de maneira reiterada, à experiência internacional e cosmopolita, com atuação continuada em instituições em diversos países e continentes. Da mesma forma, suas atenções estiveram não apenas na Arqueologia, mas em temas como a propriedade intelectual, os museus e o patrimônio e os usos do passado. Diversos de seus livros tornaram-se best-sellers acadêmicos em muitos idiomas, muitos deles escritos em parceria, outra característica desse grande intelectual: sua abertura para a cooperação, alguns deles traduzidos para o português, como A mensagem e o reino: como Jesus

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e Paulo deram início a uma revolução e transformaram o mundo antigo e A Bíblia não tinha razão, entre outros. A parceria com a Unicamp vem de longa data, em particular quando da reconstituição do International Journal of Cultural Property, no início deste século, e está fundada no compartilhamento de valores, perspectivas e abordagens. Para além da erudição, do cosmopolitismo, da cooperação internacional, está a formação de quadros qualificados, a adoção de uma perspectiva a um só tempo crítica como fundamentada. A Arqueologia Pública, fundada na interação com as pessoas, implica tanto interagir como fazer com que o conhecimento possa servir não para reforçar estereótipos e lugares comuns, mas para contribuir para a liberação. Os usos do passado não são neutros e podem servir para os fins mais opressores, se não houver espírito crítico e aberto à experiência única do aprendizado. Neil Silberman, sempre abrindo portas, inspira gerações de estudiosos e este volume será um brinde a todos os que dele souberem tirar proveito. Pedro Paulo A. Funari

Referências

HORSLEY, Richard A; SILBERMAN, Neil Asher. A Mensagem e o Reino: como Jesus e Paulo deram início a uma revolução e transformaram o Mundo Antigo. São Paulo: Loyola, 2000. [The Message and the Kingdom: Jesus, Paul, and the politics of earliest Christianity. Putnam, 1997; paperback edition: Fortress Press, 2002.] FINKELSTEIN, Israel; SILBERMAN, Neil Asher. A Bíblia não tinha razão. São Paulo: Girafa, 2003. [The Bible unearthed: Archaeology’s new vision of Ancient Israel and the origins of its sacred texts, with Professor Israel Finkelstein. The Free Press, 2001; paperback edition: Touchstone Books, 2002. Translations: French, German, Dutch, Spanish, Portuguese, Italian, Czech, Polish, Hungarian, Hebrew, Korean.] 10

CAPÍTULO 1

A INTERPRETAÇÃO DO PATRIMÔNIO COMO DISCURSO PÚBLICO: RUMO A UM NOVO PARADIGMA1 A interpretação do patrimônio – a constelação de técnicas de comunicação que tentam transmitir o valor público, a importância e o significado de um patrimônio, objeto ou tradição – é fundamental para compreender as características mais amplas do próprio patrimônio. De fato, a prática de interpretação do patrimônio, em sua definição mais ampla2, data de pelo menos quatro mil anos (Dewar, 2000). Desde o tempo do diário das viagens de exílio do egípcio Sinuhe, no século XX a.C., pela Terra de Retenu (Baines, 1982); passando pelo, por vezes duvidoso, século V a.C. de Heródoto, que registra as maravilhas do Oriente Médio antigo (Thomas, 2002); ou pelo guia de viagem de Pausânias sobre os santuários gregos do Século Segundo d.C. (Alcock e Cherry, 2001); aos guias peregrinos da Idade Média (Moerman, 1997; Oster-rieth, 1989), até os roteiros e palestras dos tutores do Grand Tour do Iluminismo (John, 1985), um conjunto mutante de intérpretes e guias têm continuado a prática de explicar e refletir a importância de monumentos históricos e paisagens ao 1. Traduzido por Rubia Gaissler, doutora em Ambiente e Sociedade pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais (NEPAM), Universidade de Campinas – Unicamp. Originalmente publicado em: Understanding Heritage. Ed. Albert, Marie-Theres / Bernecker, Roland / Rudolff, Britta. Berlin: DeGruyter, 2013, p. 21-33. Disponível em: . 2. Como definido na Carta de Interpretação e Apresentação de Sítios Patrimoniais Culturais (ICIP, 2008, p. 3): “toda a gama de atividades potenciais destinadas a aumentar a consciência pública e o entendimento do sítio patrimonial cultural. Estas podem incluir publicações impressas e eletrônicas, palestras públicas, instalações on-site e off-site diretamente relacionadas, programas educacionais, treinamento, e avaliação do processo interpretativo em si”.

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redor do mundo. No século dezenove, com as primeiras ondas de turismo de massa, o papel dos guias-intérpretes se tornou mais especializado e profissional (Erik, 1985). Vinculados ou não a um sítio específico (e eventualmente treinados e licenciados por governos nacionais), servindo como acompanhantes e intérpretes para um grupo ao longo de um itinerário completo de atrações patrimoniais, estes profissionais foram reconhecidos como fontes oficiais de informação, juntamente com outras mídias oficiais, como mapas, placas direcionais, os Baedekers e Blue Guides (Koshar, 1998). Entretanto, qualquer que tenha sido a forma na qual a interpretação foi transmitida para o turista ou público leitor – confiável, falsa ou enfadonha – era primariamente uma forma de monólogo, que servia para levar informações unidirecionalmente, do guia para a audiência. O clássico trabalho moderno sobre as técnicas desta profissão, Interpreting Our Heritage, de Freeman Tilden, funcionário do National Park Service3 tem sido, desde sua primeira publicação, em 1957, a mais importante fonte da filosofia da interpretação do patrimônio, tanto cultural quanto natural em conectá-lo ao visitante4. Ter criatividade e talento, atiçar a imaginação e direcionar a audiência eram pontos centrais. Mais tarde, seguidores de Tilden expandiram o número de princípios (Beck e Cable, 1998), mas o objetivo do discurso instrumental emocional do 3. N.T.: Criada em 1916, o National Park Service é uma agência federal norte-americana responsável pela gestão de todos os parques, monumentos históricos e áreas de conservação dos Estados Unidos. 4. Os princípios interpretativos de Tilden (1957) se resumem às seguintes propostas. 1) Qualquer interpretação que não se relacione de alguma forma com o que está sendo mostrado ou descrito com a personalidade ou experiência do visitante será estéril; 2) Informação, como tal, não é interpretação; 3) Interpretação é a revelação baseada na informação. Elas são coisas completamente distintas. 4) Contudo, toda interpretação inclui informação. 5) A interpretação é uma arte, que combina muitas artes, sejam os materiais apresentados científicos, históricos, ou arquitetônicos. 6) Qualquer arte é ensinável em algum grau.

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intérprete para os ouvintes permaneceu o mesmo. Era a comunicação não somente da informação, mas também de uma ordem ética na qual a conservação do patrimônio se tornava o fim de uma corrente comportamental presumidamente inevitável (Ham, 2007a). “Através da interpretação, entendimento; através do entendimento, apreciação; através da apreciação, proteção” era a frase mais citada de Tilden (1957, p. 38), que serviu como um lema orientador da indústria interpretativa e da profissão que se disseminou em todo o mundo. Na sua essência, este viés da interpretação do patrimônio é mais metodológico do que teórico; é um método de comunicação cara-a-cara no qual o conteúdo da interpretação é menos importante que a habilidade com a qual ela é transmitida. A facticidade é talvez seu único elemento normativo; a apreciação do valor de um sítio, de sua autenticidade e importância eram os efeitos pretendidos. No entanto, como notado por David Uzzell (1998), esta visão tradicional da interpretação do patrimônio assume, inquestionavelmente, que a audiência esteja aberta a ser persuadida. Entende-se, nesta visão, que, se feita com entusiasmo e simplicidade, a interpretação terá alcançado seu objetivo. A audiência é diferenciada somente no nível dos indivíduos, cuja “personalidade e experiência” são os alvos do apelo relacional direto da interpretação. O conteúdo epistêmico da interpretação – sua visão da “verdade” histórica – é visto relativamente como ausente de problemas, derivado das perspectivas factuais de historiadores, arquitetos e arqueólogos. No entanto, a técnica de influenciar o público patrimonial para responder emotivamente às informações de base científica bem como à ação, se assemelha as técnicas de saúde pública, de campanhas ambientais e publicitárias (Ham e Weiler, 2003). A interpretação é vista como uma ação projetada para promover a apreciação pública sobre a importância do patrimônio, sua vulnerabilidade e a necessidade de sua conservação, como realizada pelos representantes oficiais do poder local ou do Estado. Mas, cada vez mais, o patrimônio não 13

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é visto como uma fonte indiferenciada, tampouco seus representantes são encarados como guardiões imparciais desse patrimônio compartilhado (Tunbridge e Ashworth, 1996). Em casos de disputas patrimoniais em zonas de combate étnico ou de rivalidade entre estados, uma concepção Tildeniana do “patrimônio” como um bem puro, que pode ser interpretado de modo não problemático para aumentar o apoio do público para a conservação, vai de encontro a conflitos aparentemente irreconciliáveis sobre qual patrimônio é importante ou significativo e como ele deveria ser interpretado. Os seis princípios interpretativos de Tilden não conseguem resolver adequadamente o desafio de interpretar perspectivas conflitantes. Entre os muitos exemplos que poderiam ser citados estão a história contestada de Jerusalém (Silberman, 2001), as controvérsias políticas sobre as tumbas de Kasubi, em Uganda (Kigongo e Reid, 2007), a destruição dos Budas de Bamiyan (Colwell-Chanthaphonh, 2003), as afinidades culturais e a importância territorial do templo de Preah Vihear, na divisa entre Tailândia e Camboja (Meyer, 2009) ou o conflito entre hindus e muçulmanos a respeito da primazia religiosa em Ayodhya, na Índia (Bernbeck e Pollock, 1996). Esses são apenas os exemplos mais famosos de conflito interpretativo, pois em nossa era de place branding5, políticas de identidade, disputas territoriais e economias baseadas no turismo, o controle de sítios e objetos patrimoniais se tornou um pomo da discórdia entre regiões, localidades, comunidades diaspóricas e Estados-Nação em todo o mundo. Questões de renovação urbana, gentrificação, desapropriação demográfica, reivindicações de soberania para a repatriação de relíquias saqueadas – e de modo ainda mais delicado – o controle de restos humanos encontrados em sítios arqueológicos, todos apresentam desafios ainda mais complexos para as 5. N.T.: place branding é uma recente área do marketing cujo objetivo é a construção e divulgação de localidades como marcas. Nesta visão: cidades, regiões ou países são tratados como empresas, gerenciados para atrair investimentos, turistas, eventos, etc.

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ideias convencionais de conservação e para a possibilidade de um método “universal” de interpretação que irá mobilizar o apoio necessário para que esta aconteça (Silberman e Ruggles, 2007). Como este capítulo6 irá sugerir, a mudança de valor social, econômico e simbólico do patrimônio exige um novo paradigma teórico para substituir, ou talvez colocar em um novo contexto os conceitos de Tilden há tempo acalentados. De fato, como sugere Uzzell, a interpretação do patrimônio “está presa em um ciclo onde o como se tornou mais importante que o porquê” (1998, p. 12). A resposta para o “porquê”, acredito, se encontra na função social mais ampla da interpretação do patrimônio – não meramente como um meio eficaz de comunicação, mas como uma reflexão mais profunda dos direitos e do papel apropriado do público leigo na formação de uma visão, sempre em evolução, do passado.

1. Do monólogo à participação pública

Textos e roteiros cuidadosamente preparados são onipresentes na interpretação do patrimônio – abarcando desde painéis informativos muito simples, passando pela narração vívida de histórias, interpretação de personagens, vídeos em centros de visitantes, rotas interpretativas cuidadosamente planejadas, até ambientes virtuais elaborados (e caros). Ainda que a mídia interpretativa em uso em diversos sítios possa diferir dramaticamente em complexidade e sofisticação, o processo que a maioria delas incorpora é consistente com a abordagem tradicional, em formato de monólogo: uma apresentação unidirecional de informações cuidadosamente selecionadas e dispostas, a partir de uma fonte profissional, feita para ser aceita pelo público como oficial. Um interesse particular tem surgido para analisar o impacto cognitivo de vários programas de interpretação (e.g. Ham, 2007b). Através de questionários, entrevistas e testes concebidos para me6. Publicado originalmente em: Understanding Heritage – Perspectives in Heritage Studie. Albert, Marie-Theres; Bernecker, Roland; Rudolff, Britta De Gruyter (eds.). 2013, p. 21-34.

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