Descolonizar para educar: É possível?

July 15, 2017 | Autor: Mariane Del Carmen | Categoria: Educação, Descolonización, Epistemologias Descoloniais, Descolonizar El Saber, Práticas Docentes
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Mesa 3- Diálogos Sur-sur: pedagogías descolonizadoras DESCOLONIZAR PARA EDUCAR: É POSSÍVEL? Mariane Del Carmen da Costa Diaz - Mestre em educação – UFRRJ/ Professora do Colégio Pedro-II/RJ / Tutora a distância de Prática de Ensino – I CEDERJ/UFRRJ [email protected] Resumo: O presente trabalho tem como mote a reflexão acerca do universo educacional fomentando a indagação da possibilidade de uma descolonização da educação a partir de uma ótica latino-americana à luz da “tomada de consciência latino-americana” (Leopoldo Zea). A partir de algumas experiências durante a trajetória enquanto professora e pesquisadora, algumas reflexões e, sobretudo, algumas falas dos estudantes do 1º ao 5º ano do ensino fundamental de uma escola federal localizada no subúrbio da cidade do Rio de Janeiro/RJ fomentaram o questionamento sobre a colonialidade do poder (Quijano, 2006 a, 2006 b). A escola (e a nossa sociedade brasileira, latinoamericana) é machista, racista, eurocêntrica e excludente. É possível vislumbrarmos uma educação descolonizadora? É possível vislumbrarmos nossas práticas docentes com a perspectiva de descolonizar a educação? A partir de algumas falas como “Você precisa gastar mais dinheiro no seu cabelo” (fala do aluno do 3º ano do ensino fundamental para sua colega de turma, com o objetivo de ofendê-la), “Isso não é coisa de menina.” (aluno do 1° ano do Ensino Fundamental referindo-se a garrafinha de futebol de sua colega de turma), “Nada que é brasileiro presta! Filme, música, literatura... Eu quero é conhecer as Viagens de Gulliver, a história de Hércules...” (aluno do 5º ano quando trabalhávamos a anti-herói com a história de Lampião e Maria Bonita), “Porque na África só tem pobreza.” (aluno do 3º ano em momento de discussão antes de iniciarmos a leitura de uma história africana) objetivamos ratificar a emergência de pensarmos outras pedagogias a partir de nossa realidade latinoamericana. Vislumbramos uma educação descolonizadora. Palavras-chave: educação, descolonização, práticas docentes

Então, o nosso primeiro problema para quem vive no Sul é que as teorias estão fora do lugar: não se ajustam realmente a nossas realidades sociais. Boaventura de Sousa Santos Introdução:

O que consiste o ato de educar na contemporaneidade? A emergência por novos horizontes, ou melhor, outros horizontes, consistem na “reflexão filosófica” ou como afirma Flicknger (1998), para além do esclarecimento dos impasses ou a “cegueira teórica na prática educacional”. Urge a necessidade de uma tomada de consciência por uma postura refletida. O que seria, porém, essa tomada de consciência que o autor destaca? O que seria, porém, em nossa realidade brasileira, latino-americana essa tomada de consciência? O que seria, para nós, professores essa tomada de consciência? O comportamento reflete do que nos obrigue a dar-nos conta dos pressupostos e das implicações determinantes (ou, que são determinadas do perfil profissional do educador). Quão cruel é (conosco e para com nossas crianças, nossos alunos) permanecermos pautados por uma lógica eurocêntrica, etnocêntrica e colonialista. Uma lógica européia, com padrões e estéticas etnocêntricas, machista, racista, e, consequentemente colonialista e excludente. Quão cruel é, para nós, professores com um mínimo de sensibilidade, tais agressões imperceptíveis e diluídas no nosso fazer pedagógico cotidiano. Nas nossas práticas diárias. Freire (2000, p. 44) clama “Por uma nova sociedade, que, sendo sujeito de si mesma, tivesse no homem e no povo, sujeitos de sua História. Opção por uma sociedade parcialmente independente ou opção por uma sociedade que se „descolonizasse‟ cada vez mais”. É necessário conhecer nossa história (e contextualizo nossa história brasileira, latino-americana, na condição de colonizada, explorada e saqueada como afirma Eduardo Galeano). Como afirma Bruckmann (2011): A produção e reprodução da vida material dos povos e a elaboração de seus imaginários estão dominados pela ideia de que a civilização ocidental é o único modelo civilizatório do planeta, e que todas as demais civilizações- sem importar seu nível de elaboração e complexidade, seu grau de desenvolvimento ou suas contribuições à humanidade – são consideradas apenas culturas

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atrasadas frente ao modelo imposto (BRUCKMANN, 2011, p. 215) Devemos (re) conhecer a partir de nossas dores, nossas feridas ainda latentes, nossas “veias abertas” a projeção para a tomada da conscientização, proposta por Flicknger e vislumbrar uma “filosofia da libertação” almejada pelo filósofo mexicano Leopoldo Zea. A necessidade de uma filosofia da libertação, ou seja, o poder transformador do pensamento sobre a realidade. Em outros termos, numa circunstância histórica dependente pode surgir uma filosofia da libertação capaz de superar esta mesma dependência característica da circunstância histórica. Não se pode excluir a priori que uma nova atitude filosófica ibero-americana venha a ensejar uma nova práxis da superação da dependência. (ZEA, 2005, p. 23) Outro filósofo reafirma a necessidade da memória, e de não deixar-nos esquecer as feridas que permanecem abertas, mas, querem-se ocultar, de nosso passado... “O desejo de libertar-se do passado justifica-se (...) o passado de que se quer escapar ainda permanece muito vivo.” (ADORNO, T. 1995, p. 29). Podemos dialogar ainda com a que Lobo & Santos (2012 p. 11) afirmam, “a emancipação é um processo que se dá de dentro para fora e depende da vontade de cada um tem de ser livre” Theodor Adorno, em seu ensaio “Educação após Auschwitz” afirma que: Mas a pouco consciência existente em relação a essa exigência e as questões que ela levanta provam que a monstruosidade não calou fundo nas pessoas, sintoma da persistência da possibilidade de que se repita no que depender do estado de consciência e inconsciência das pessoas.(ADORNO, 1995, p. 119) Adorno afirma ainda que: Quando falo de educação após Auschwitz, refiro-me a duas questões: primeiro, à educação infantil, sobretudo na primeira infância; e, além disto, ao esclarecimento geral, que produz um clima intelectual, cultural e social que não permite tal repetição; portanto um clima em que os motivos que conduziram ao horror tornem-se de algum modo conscientes. (ADORNO, 1995, p. 123) A partir de algumas falas e situações vivenciadas no universo escolar dediqueime a pensar na possibilidade da descolonização da educação. A partir da minha experiência, advindas da pesquisa do mestrado em educação realizada em consonância

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com atores indígenas pude “experienciar” e conhecer outras formas de produção de conhecimento e educação. Carlos Rodrigues Brandão utiliza “educações” para destacar as inúmeras possibilidades educativas. A educação para e pelos sentidos, a educação estética, a educação indígena, a educação do campo, educação quilombola, educação ambiental ... A interseção que gera o presente artigo é a repercussão ou o eco (para utilizar a metáfora Benjaminiana) das falas dos alunos do 1º segmento do Ensino Fundamental com o - cruel - modelo dominante. O espanto, como afirma Jorge Luis Borges, é o que me moveu e me instigou a pensar outras possibilidades educacionais que não nos anule enquanto sujeitos (estéticos, éticos, históricos, sensíveis) que leve em consideração o nosso lugar, o nosso espaço e as nossas aspirações e desejos. As falas reprodutoras de um modelo dominante que anula, exclui, agride, oprime o outro, cerceando a sua liberdade enquanto sujeito dotado de direitos (entre eles, o ser diferente) estimulou o questionamento direcionado para a descolonização da educação tomando como mote teórico o que Aníbal Quijano denomina de “colonialismo do poder”. Tomando a exemplo a experiência boliviana retratada por Remberto Linera (2012) em “Discursos des/colonizadores sobre „desarrolo‟ y educacion: analises de la ley educativa „Avelino Siñani – Elizardo Perez” , a constituição de um Estado Plurinacional que “apresenta-se como projeto político que questiona profundamente a visão homogeinizante do Estado-nação e com ele, a tradição política ocidental na América Latina” (BRUCHMANN, M. 2011, p. 219). Na experiência boliviana, Larrea (2012) afirma que entre as perguntas substantivas no debate latino-americano são “Que desenvolvimento e que tipo de educação construímos no contexto da crise estrutural do capitalismo e da modernidade? É possível construir „outro desenvolvimento‟ para descolonizar a economia, a política, a cultura, a sociedade e a educação?” (LINERA, R. 2012, p. 13) Aníbal Quijano (2006) destaca os principais produtos da experiência colonial. São eles: (a) a “racionalização” das relações entre colonizadores e colonizados, ou seja, naturalizar as relações sociais de dominação produzidas pela conquista; (b) a configuração de um novo sistema de exploração que articula em uma única estrutura conjunta todas as formas históricas de controle do trabalho ou exploração; (c) o eurocentrismo como o novo modo de produção e controle da subjetividade; (d) o estabelecimento de um novo sistema de controle da autoridade coletiva. 4

Quijano (2006) destaca ainda que: A colonialidade do poder implica que toda a parte da população não-branca não pode consolidar-se em sua cidadania, sem originar enormes e graves conflitos sociais. Em certos países como Brasil, Equador ou Guatemala ou em certas zonas de Bolívia, México ou Peru, essa é, exatamente, a raiz do que para a fauna dominante talvez apareça todavia apenas como um novo problema indígena, mas que na verdade, como se verá imediatamente, tem inaugurado um novo período histórico e o primeiro termo para o padrão de poder em que está implicado. (QUIJANO, A. 2006, p. 63) O que se pretende destacar nessa pesquisa é a possibilidade de outras educações, outras formas de educar e se educar. Como afirma Bruckmann (2011) e Linera (2012), existem outros modos de produção e relação do/com espaço, sociedade e natureza. Existe a relação do “bem viver”. Na visão indígena, o homem deve „criar a mãe-terra e se deixar criar por ela‟. Esta relação profunda entre o homem e a terra como fonte de vida se contrapôs radicalmente à visão do colonizador que via a terra como objeto de posse, espaço de exploração e extração de metas e pedras preciosa; ou seja, objeto de depredação. (BRUCKMANN, M. 2006, p. 219) Faz-se necessário libertarmo-nos do eurocentrismo como visão de mundo e como estrutura de conhecimento. E como afirma Mônica Bruckmann (2006, p. 220), “faz-se necessário reelaborar a nossa história e recuperar a nossa memória coletiva, bem como o legado civilizatório, para construirmos nossos próprios modelos de desenvolvimento e projetos de visões de futuro)”. Leandro Machado e Roberta Lobo afirmam que: Nesse momento de perplexidade generalizada em que a perspectiva de futuro restringe à garantia da sobrevivência diária – diante da fome, das epidemias, dos desastres naturais, da guerra convencional ou dos inúmeros contextos da guerra civil espalhados pelo planeta – na selva de pedra das cidades e que a imagem do passado parece desaparecer paulatinamente da nossa memória, surge a necessidade de refletirmos sobre nossas experiências históricas, sobretudo as que vivemos até aqui, com o sentido de ressignificar o passado, utilizando todo o seu material explosivo como agente catalisador das nossas experiências no tempo presente, ampliando com isso o nosso horizonte histórico diante das possibilidades de um futuro diferente. (LOBO & SANTOS, 2012, p. 13)

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Valdo Barcelos (2010 a, 2010 b) para além da descolonização da educação, destaca o movimento antropofágico pós Semana de Arte Moderna de 1922 para uma associação entre a antropofagia e a educação. O autor defende ainda uma “nãopedagogia” não no sentido de negar a pedagogia mas, por compreender que as práticas e lógicas vigentes não dão conta da(s) necessidade(s) educacionais. Barcelos afirma ainda que: As sociedades latino-americanas precisam encontrar seus próprios caminhos políticos. Mais que isso, há que inventar sua própria ideia de sociedade, tomando como ponto de partida suas diferentes formas de viver e morrer, suas formas de produzir e consumir, suas relações de trabalho e lazer. Enfim, é essa uma tarefa que está a exigir, além de todo um processo de conhecimento histórico sobre o continente latinoamericano, uma grande capacidade de imaginação criadora, coisa que não falta às sociedades deste continente, embora essa capacidade tenha sido por longos períodos desconsiderada pelas elites que exerceram os poderes político e econômico. (BARCELOS, V & FLEURI, R. . 2010 b, p. 272) Miguel Arroyo (2007) apresenta trajetórias e experiências de professores e alunos que dão sinais que a escola e a educação que temos hoje já não dão conta do direito à educação. Que direito é esse? Destinados a quem? Com quais objetivos? Arroyo (2007, p. 11) afirma que “Teríamos de rever nossas imagens profissionais. Redefinir imaginários dos alunos exige redefinir imaginários da docência e da Pedagogia. Uma tarefa inadiável diante da infância e da adolescência quebrada pela barbárie da sociedade.” Podemos dialogar tal afirmação de Miguel Arroyo (2007) com o que Barcelos (2010 a) reafirma a partir de Paulo Freire: Que dialogue com elas, sem, contudo, abrir mão de suas origens, sua cultura, suas experiências, enfim, seus saberes e fazeres. Em outras palavras: que proceda a devida devoração cultural do estranho, do novo, do diferente, para, a partir dessa devoração criar, inventar, aquilo que nos interessa. Que nos faz feliz. (BARCELOS, V. 2010 a, p. 57) Arroyo (2007) afirma ainda que a parte da população que é excluída pelo modo e forma de educação (escolar) conhecem bem a negação de seus direitos: As trajetórias escolares dos educandos(as) revelam que o direito à educação é também uma construção paciente, sofrida deles mesmos. Os movimentos sociais sabem disso. Alguém outorgou os seus direitos às mulheres, aos povos indígenas, aos

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povos do campo, aos negros, aos trabalhadores, inclusive aos trabalhadores da educação? (ARROYO, M. 2007, p. 111) E destaca ainda que: Nos relatos de suas vidas, os alunos e as alunas demonstram que à escola levam muitas interrogações não apenas sobre o sentido do estudo, mas sobre os sentidos ou sem-sentidos de sua vida e seu estar no mundo. As precárias condições em que reproduzem as suas existências, os preconceitos sociais e racistas que padecem os instigam a interrogar-se e a duvidar das explicações que lhes são dadas, a sair à procura de uma compreensão da sua realidade e da realidade social, cultural com que se defrontam. O direito à educação e ao conhecimento inclui o direito a saber o que significa, hoje, estar no mundo como crianças, adolescentes, jovens. Não apenas estar no mundo como adultos. (ARROYO, M. 2007, p.114) Pensar a descolonização da educação é antes de tudo pensar a educação e as nossas práticas pedagógicas enquanto professores. A motivação e o interesse pela questão afloraram durante minha pesquisa de campo referente ao mestrado em educação, no qual visitei algumas terras indígenas no Rio Grande do Sul e Curitiba, e conversei com alguns professores indígenas dos povos Kaingang e Guarani. Após dois anos e meio imersa nas outras questões que permeiam a educação (escolar) indígena e tendo uma aproximação com os estudantes da Licenciatura em Educação do Campo (LEC) da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), o ranço de nossa história colonial e colonialidade do poder e os fantasmas da América Latina (Quijano, 2006 a, 2006 b) ficaram cada vez mais evidentes. A primeira aproximação com a temática indígena surgiu na graduação, quando participei de projetos de iniciação a pesquisa para trabalhar com a omissão do Estado e o silenciamento desses atores1. O segundo passo foi reconhecer na minha trajetória a marca do preconceito do estrangeiro (sendo meu pai um imigrante peruano) e tendo vivenciado durante toda a minha trajetória de vida a marca da exploração, do “olhar torto” e do deboche por ter algumas marcas visíveis dessa diferença. Os indígenas, no entanto, são “instrangeiro”, termo utilizado por Cristóvão Buarque (2002) para denominar os excluídos de suas próprias sociedades. 1

Bolsista PIBIC/CNPq/UFRRJ atuando nos projetos: EDUCAÇÃO E VIOLÊNCIA INSTITUÍDA EM ALDEIAS GUARANI NO SUL FLUMINENSE: MEMÓRIAS DE OMISSÕES GOVERNAMENTAIS E AUSÊNCIAS DE POLÍTICAS PÚBLICAS EM EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO (2009 - 2010) e Educação escolar indígena: entre memórias e narrações Mbyá Guarani em Angra dos Reis (2010)

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“Porque esse não é o mundo Kaingang. Esse é o mundo do branco”. Essa significativa fala de um professor Kaingang, durante minha pesquisa de campo no mestrado, me fez pensar até que ponto a educação escolar que temos hoje, de modo geral, em nossa sociedade é o nosso mundo e atende as nossas expectativas. Ou melhor, até que ponto essa nossa escola é de nós, “brancos”, latino-americanos. Não seria esta, a lógica e a escola do colonizador? Enquanto professora da educação básica, pude perceber o quanto vivemos numa sociedade ainda colonizada (e colonizadora). Como nossa escola reproduz, mesmo que inconsequentemente (ou, perigosamente disfarçadamente) práticas de um modelo e de uma realidade que não nos pertence. A emergência de vivermos a partir de nossas histórias, nossas realidades, nossos anseios. Salvo exceções, nossas escolas e currículos (como afirma Nilda Lino Gomes, 2012) são machistas, eurocêntricos e excludentes. Pensar a possibilidade de uma educação descolonizadora é, como nos convida Walter Benjamin (1994) com a metáfora do Anjo voltado com os olhos para trás a olhar para a nossa história, compreendê-la e a partir daí buscar práticas que realmente atendam as nossas demandas e aos nossos anseios. Pensar a descolonização da educação nos emerge a pensar no negro, no índio, no camponês, no trabalhador, nos estrangeiros e, acima de tudo, nos “instrageiros”. Pensar a descolonização da educação é compreender a nossa sociedade, a nossa formação enquanto brasileiros, enquanto povos latino-americanos; é pensar em nossa formação humana, compreendermo-nos enquanto cidadãos, e como clamou Mercedes Sosa: “que vivir uma cultura diferente”.

O passado é mudo? Ou continuamos sendo surdos? Eduardo Galeano

O Brasil, como propagado erroneamente nos meios de comunicação e nos livros de histórias, não foi “descoberto”. O Brasil foi saqueado, usurpado, aniquilado, explorado, sucateado e assim foi em toda a América Latina, como Galeano (2010) revela em As veias abertas da América Latina. A relação entre os nativos (indígenas) e os colonizadores não foi amistosa, foi uma relação conflituosa que permanece até os dias de hoje no que tange as lutas pelas (suas) terras e pelos seus direitos. Perdemos; outros ganharam. Mas aqueles que ganharam só puderam ganhar perdemos: a história do subdesenvolvimento da América Latina integra, como já foi dito, a história do

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desenvolvimento do capitalismo mundial. (GALEANO, 2010, p. 18-19) Reconhecer o colonialismo até então impregnado nessa relação é o primeiro passo para sua superação e para a emancipação social, como destaca Boaventura de Sousa Santos (2007). “Que história nos é contada e com a qual nos identificamos enquanto brasileiros? Que silêncios nos acompanham ao longo dessa história?” (ORLANDI, 1990, p. 19). Como o silêncio divide, significativamente, o que se conta e o que não se conta, produzindo assim uma configuração para a brasilidade? Esta é, aliás, uma das formas eficazes da prática da violência simbólica, no confronto das relações de força, no jogo de poder que sustenta efeitos de sentido: o silenciamento que a acompanha. (ORLANDI, 1990, p. 19). “Os docentes são chamados para nos ensinar a salvar o mundo. E se o mundo está assim, deve ser por culpa deles.” (GENTILI, 2008, p. 11). Pablo Gentili ironiza o “posto” ocupado/imposto pelos professores de Superman e Mulher Maravilha. A partir da ironia, porém, podemos refletir até que ponto nós, professores, temos a incumbência de “salvar o mundo”, ou melhor, (re) pensar as nossas práticas. Amparados pela filosofia da educação, compreendemos que: A filosofia da educação cabe a tarefa de tornar transparente para os próprios atores, a dependência de seu agir e de suas convicções teóricas, em relação ao contexto de seu mundo objetivo, que, longe de ser apenas determinado por eles, orienta sua própria vida profissional. (FLICKNGER, 1998, p. 4) Entendemos ainda que “A filosofia assumiria, neste caso, a função de providenciar as ferramentas intelectuais capazes de quebrar o domínio de uma racionalidade meramente instrumental” (FLICKNGER, 1998, p. 2-3). Algumas falas de alunos do 1º ao 5º ano do ensino fundamental levaram-me a alguns questionamentos (de minha prática pedagógica enquanto professora e educadora). Dediquei-me a anotar algumas delas. Confesso que algumas foram tão marcantes que ecoam em minha mente sorrateiramente, sem pedir licença. Entendo essa mensagem como um estímulo para não esquecer a minha função e o meu comprometimento para com a formação humana e emancipatória de meus alunos. Freire destaca que: Educação que, desvestida da roupagem alienada e alienante, seja uma força de mudança e de libertação. A opção, por isso, 9

teria de ser também, entre uma „educação‟ para a „domesticação‟, para a alienação, e uma educação para a liberdade. „Educação‟ para o homem-objeto ou educação para o homem-sujeito. (FREIRE, 2000, p. 44). É como Miguel Arroyo (2007, p. 19) questiona: “Diante do incômodo e malestar de mestres e alunos resta algo capaz de inspirar nosso pensar e fazer profissional?”

Falas que ecoam e o mundo do lado de cá...

Não nos move o amor, mas o espanto. J. L. Borges A fim de ratificar a argumentação para vislumbrar a emergência da descolonização da educação, explicito nesse momento alguns discursos em diferentes momentos dos alunos do 1º ao 5º ano do 1º segmento do Ensino Fundamental do Colégio Pedro II, Realengo, Rio de Janeiro/RJ. A disciplina em questão é literatura. Notem que estamos falando de crianças de idade entre 6 a 12 anos que não são desprovidas de pensamentos e opiniões, mas

que de certo modo reproduzem

(cruelmente) discursos, falas, modos e pensamentos que já estão impregnados em nosso pensar, agir e em nossa sociedade. “Você precisa gastar mais dinheiro no seu cabelo”. (fala do aluno do 3º ano do ensino fundamental para sua colega de turma, com o objetivo de ofendê-la) “Isso não é coisa de menina.” (aluno do 1° ano do Ensino Fundamental referindo-se a garrafinha de futebol de sua colega de turma) “Nada que é brasileiro presta! Filme, música, literatura... Eu quero é conhecer as Viagens de Gulliver, a história de Hércules...” (aluno do 5º ano quando trabalhávamos a anti-herói com a história de Lampião e Maria Bonita) “Eu sou Joana e adoro meu cabelo. #Soquenão” (desenho pejorativo que circulava na sala com a charge de uma aluna negra – 5º ano) “Porque é índio é canibal!” (aluna do 3º ano em uma conversa antes de iniciarmos a leitura de uma história indígena) “Porque na África só tem pobreza.” (aluno do 3º ano em momento de discussão antes de iniciarmos a leitura de uma história africana)

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“Eu queria ter o cabelo igual ao dele pra fazer isso „óh‟ (abaixando a cabeça e passando a mão simulando um „jogar de cabelo‟) (aluno do 1º ano referindo-se ao cabelo liso de seu colega de turma) Algumas situações também compõem esse “leque-reflexivo” de situações cotidianas e práticas escolares... Desenhos dos personagens negros, com traços europeizados são muito comuns. A exemplo de Obax (personagem do livro Obax, de Rogério de Andrade), uma personagem negra de uma história africana que foi desenhada por inúmeros alunos com a cor de pele clara, ou o mais conhecido giz “cor de pele”. Dificuldade em reconhecer no outro a beleza (o que é o belo? O que é a estética?). Padrões eurocêntricos inclusive, nas falas dos professores. Dificuldade em se reconhecer como negro e por isso, representação a partir de ilustrações com os padrões de beleza eurocêntricos, olhos verdes ou azuis, cabelos lisos e pele branca. Um dos trabalhos mais marcantes e com falas mais expressivas para a urgência de descolonizar a educação (o currículo e nossas mentes...) ocorreu com o 2º ano do ensino fundamental. O conteúdo programático do 2º ano na literatura é sobre os contos de fadas e após uma enxurrada de princesas brancas, loiras, olhos claros, cabelos lisos (com exceção de Tiana, negra e Branca de Neve, cabelos negros como ébano) solicitamos que os alunos se fizessem como reis e rainhas de seu próprio conto de fadas. Antes da atividade conversamos sobre outros reis e rainhas e mostramos algumas imagens de reis e rainhas diferentes das que eles estavam habituados. Desastre! Ao projetar algumas imagens de reis e rainhas africanos, mostrar algumas fotos de indígenas, como uma foto do indígena Raoni em Paris, instantaneamente surgiram os comentários: “Por que ele tem cara de macaco?” “Ele parece animal!” “Tia, que coisa horrorosa!” “Tia, parece mais a „noiva do Chuck‟”.

Última situação... Aluno 1: “Eu sou o Kiriku!” Aluno 2: “Não, eu é que sou o Kiriku!!!” 11

Aluno 3: “Quem é o único pretinho da sala? Então quem é o verdadeiro Kiriku? (com passinhos de dança e gabando-se) Eu sou o Kiriku (ênfase na fala utilizando um tom de voz diferente)!” Kiriku e a feiticeira é um longa-metragem de animação franco-belga, dirigido por Michel Ocelot (1998) que foi trabalhado com uma turma do 3º ano do Ensino Fundamental. Kiriku é uma criança africana superdotada, um recém-nascido que tenta solucionar os problemas de sua aldeia e, depois de muitas aventuras e confusões consegue um final feliz para o seu povo. No final do filme, com um sorriso largo de satisfação um aluno negro debocha “Quem é o único pretinho aqui da sala?! Então quem é o verdadeiro Kirikou?!”. Muitos alunos desejaram ser o Kiriku (mesmo com todos os estereótipos de uma criança africana) e esse desejo pelo o que até então, não é o modelo, o padrão, ratificou ainda mais a possibilidade de uma educação descolonizadora. Eis aí, a necessidade e a urgência de enquanto professores tomarmos consciência por uma postura refletida e assim, possibilitar a existência e o surgimento de outras educações! Como poetiza Manoel de Barros: Repetir repetir – até ficar diferente. Repetir é um dom do estilo.

Em 2014 completamos 11 anos da lei nº 10.639/03 e 6 anos da lei nº 11.645/08, leis que tornam obrigatório o ensino da(s) história(s) e cultura(s) afro-brasileira e indígenas nas instituições de ensino fundamental e médio,

oficiais

e privadas.

Compreendemos, porém, que tais leis não nos garante um ensino “menos colonizado” ou menos racista, machista, e excludente se, enquanto professores não nos despirmos de certos ranços. Precisamos tomarmos consciência de nossas práticas mesmo quando, afirmamos que por exemplo, trabalhamos os conteúdos obrigatórios na lei em abril e em novembro, por exemplo. De tal forma, apenas ratificamos e assinamos embaixo tal postura, como se a cultura afro-brasileira e indígena de nada mais valesse senão comemorações e atividade pontuais. Lúcia Hardt afirma que: Até agora fomos domesticados e cuidados por um monstro que diz nos proteger. (...) A sabedoria é uma mulher e nos quer ver como guerreiros e não submissos. Somos camelos carregando a palavra e o conceito do outro, outro meio asno que carrega o

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que interessa visando a dirigir e a criar consciências. É preciso ser um pouco louco para enfrentar estes asnos e toda loucura tem um quê de razão. (2013 a, p. 269) Por fim, deixo uma bela poesia que é cantada por Mercedes Sosa paa a nossa reflexão latino-amercana... Salgo a caminar Por la cintura cósmica del sur Piso en la región Más vegetal del tiempo y de la luz Siento al caminar Toda la piel de América en mi piel Y anda en mi sangre un río Que libera en mi voz Su caudal. Sol de alto Perú Rostro Bolivia, estaño y soledad Un verde Brasil besa a mi Chile Cobre y mineral Subo desde el sur Hacia la entraña América y total Pura raíz de un grito Destinado a crecer Y a estallar. Todas las voces, todas Todas las manos, todas Toda la sangre puede Ser canción en el viento. ¡Canta conmigo, canta Hermano americano Libera tu esperanza Con un grito en la voz! (Canción com todos – Mercedes Sosa) Utilizando as palavras de Lúcia Hardt (2013 a, p. 271: “E essa experiência pode ajudar o campo da educação a compreender o sujeito como uma totalidade sensível, racional, previsível e tantas vezes imprevisível”. Acreditamos que a pesquisa etnográfica dialoga com essa experiência e poderemos assim, pensar o sujeito não como um objeto que recebe depósitos (informações), mas pensar na totalidade, nos sujeitos sensíveis e como afirma Arroyo (2007, p. 115) “reconhecer que carregam para as salas

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de aula vivências pessoais e grupais dos grandes dramas humanos e que se interrogam por seus significados afeta a concepção de currículos e de conhecimento escolar, afeta nossas competências e tratos do conhecimento”. Na aula magna de 2014 do Colégio Pedro II/RJ, o Prof. Drº Kabenguele Munanga (USP) afirmou que “só a educação tem o poder de transformar os monstros (que nossa sociedade constrói) em outros sujeitos”. Acrescento que esses novos e outros sujeitos poderão ser formados a partir de uma educação anti-racista, anti-homofóbica, anti-machista, ou seja, que respeite as diferenças ideológicas. Que caminhemos em busca de tal educação transformadora...

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