Desconhecimento Ocidental ou a Recusa da Diversidade Epistémica

Share Embed


Descrição do Produto

Desconhecimento Ocidental ou a Recusa da Diversidade Episte mica 1

Nas últimas décadas, existe uma crescente reflexão, em vários ramos do conhecimento, sobre outras formas de se ser e estar no Mundo, que diferem das conceções eurocêntricas ou ditas ocidentais. Surge uma crítica crescente, quanto à persistência em abordar e interpretar epistemologicamente o saber e o Mundo, tendo como ponto de partida a mesma perspetiva, a do Norte ou Ocidente. Consideramos que este alinhamento epistemológico, apenas favorece a parcialidade e o desconhecimento, tornando até incompreensível grande parte da realidade planetária. Sustentadas em fundamentos, discriminatórios e redutores, afirmam-se ideias de hierarquia de saberes, sociedades consideradas superiores e outras inferiores, segregação, imposição da monocultura, assimilação. Todavia, trata-se apenas de uma posição teórica e metodológica, fundamentada numa ontologia, epistemologia, ética e pensamento únicos e universais. Nada que corresponda à realidade, pois a experiência social demonstra, sempre, a produção e reprodução de conhecimento a partir de mundividências diversas. Neste ensaio, procuramos fazer uma análise e, quando possível, reconhecer, epistemologias diversas do mundo. Pontos de partida, para outras alternativas, que chocam com o exclusivismo epistémico do Norte, e que simultaneamente nos abrem caminho para outras soluções de conhecimento, outras epistemologias, outras cosmologias, outras soluções políticas e económicas, outra ciência, a multiculturalidade e a interculturalidade e algumas perspetivas de Boaventura de Sousa Santos. No fundo, questionar uma macro narrativa eurocêntrica, que não admite, se quer, a possibilidade da alternativa.

Algumas Perspetivas de Boaventura Sousa Santos

Vários autores concebem perspetivas críticas sobre as epistemologias dominantes, vamos referir apenas algumas particularidades do pensamento de Boaventura de Sousa Santos.

1

Autor: Filipe Teixeira Portela, aluno do programa Doutoral em Relações Interculturais, Universidade Aberta, 2015.

1

A construção da epistemologia ocidental prevalecente, assenta nas necessidades de dominação capitalista e colonial, que Boaventura Sousa Santos designa por “pensamento abismal”. Na sua opinião, o pensamento ocidental moderno (abismal), consiste num sistema de distinções visíveis e invisíveis. As invisíveis constituem o fundamento das visíveis e são estabelecidas através de linhas radicais que dividem a realidade social em dois universos, o universo «deste lado da linha» e o universo «do outro lado da linha» (Santos, 2010, p 29).

Nesta distinção abismal, na sua perspetiva, evidencia-se uma proposição: o que está para lá da divisão, ”do outro lado da linha”, desaparece como realidade. Identificamos, portanto, uma crítica severa à realidade diferente, por parte da conceção da realidade epistemológica dominante, em que o não existir “significa não existir em nenhuma forma relevante de compreender o ser” (Ibidem). No fundo, a conceção dominante, não admite a copresença de outras realidades diferentes, elimina alternativas. Estes dois universos, resultado da divisão entre linhas, o existente e o inexistente, são observáveis, para Boaventura de Sousa Santos, no conhecimento moderno e no direito moderno. No conhecimento, a conceção epistemológica dominante, é que à ciência pertence “o monopólio da distinção universal entre o verdadeiro e o falso”. Contudo, em certas circunstâncias, a ciência demonstra dificuldade em reconhecer questões de conhecimentos mais alternativos, como a teologia, filosofia, estética, poesia, entre outros, carateriza-os por inexistentes, não são um conhecimento real (Abordaremos com mais pormenor esta questão adiante). Quanto ao direito moderno, “deste lado da linha”, existe o legal e o ilegal de acordo com o direito oficial nacional e internacional. Em termos epistemológicos, o legal e o ilegal são as únicas duas formas relevantes de existir o direito e, por essa razão, a distinção entre as duas é uma distinção universal.(…) Assim, a linha abismal invisível que separa o reino do direito do não direito fundamenta a dicotomia visível entre o legal e o ilegal que organiza, neste lado da linha, o reino do direito (Idem, p. 32).

Esta conceção elimina e produz a inexistência, de qualquer outra realidade que não assente nesta linha dominante, como aquela que se encontra “no outro lado da linha”. Esta noção, que gerou discussão sobretudo a partir do século XVI em diante, nos países da Europa, acerca dos territórios do Novo Mundo, parte da ideia de que o colonial é um estado de natureza em que não existiam instituições nem sociedade civil, por serem diferentes da linha dominante. Tratava-se de um local de crenças e comportamentos incompreensíveis, que não representam qualquer tipo 2

de conhecimentos, não compreendiam o legal e o ilegal. Apenas representam práticas mágicas e de idolatria, uma negação da natureza humana. Com base no ideário legal e ilegal universalista, os próprios humanistas conceberam refinadas conceções da humanidade, para chegarem à conclusão de que, por exemplo, os índios eram sub-humanos, “Têm alma os índios? – era a questão” (Idem, p. 34). Com base nestas conceções legais abismais, não encontraram qualquer tipo de pressão que evitasse a apropriação e violência nestes novos territórios, conduzindo à destruição física, material, cultural e humana. Boaventura Sousa Santos, pegando nesta ideia, sustenta que na atualidade, existem os mesmos pressupostos colonialistas em vários sítios do planeta, a negação do outro lado da linha, sempre que conveniente. A imposição hegemónica de princípios e práticas ocidentais ou dominantes, significa que hoje como no passado, a civilidade legal e política neste lado da linha se assume sobre uma completa incivilidade no outro lado da linha. Guantánamo é hoje uma das mais grotescas manifestações do pensamento legal abismal, a criação do outro lado da linha como uma não área em termos políticos e legais, como uma base impensável para o governo da lei, dos direitos humanos, e da democracia. Mas seria um erro considerar isto excecional. Existem muitos outros Guantánamos, desde o Iraque até à Palestina e Darfur. Mais que isso, existem milhões de Guantánamos nas discriminações sexuais e raciais, na esfera pública e privada, nas zonas selvagens das megacidades, nos guetos, nas fábricas de exploração, nas prisões, nas novas formas de escravidão (…) (Idem, pp. 36-37).

Esta divisão, de “linhas abismais”, tem sofrido alterações nos últimos 60 anos, que se observam, particularmente, nas lutas anticoloniais, nos processos de independência e autodeterminação dos povos, nas lutas raciais. Todavia, também diferentes manifestações coloniais se têm evidenciado no Norte civilizado, desde os anos 70/80 até à atualidade. Segundo o autor, a aparente regulação/emancipação dos povos dos anos 60, continua, na verdade, a seguir a tendência inversa da lógica capitalista ocidental, de apropriação/violência. Hoje, é possível identificar, nitidamente, três formas novas de subalternidade, de retorno do colonial: terroristas, trabalhadores migrantes indocumentados e refugiados. Na perspetiva do autor, “de diferentes modos, cada uma destas formas traz com ela a linha abismal que define a exclusão radical e a não existência legal” (Idem, p. 39). Visto assim, diremos que é uma espécie sui generis de existência inexistente, que traduz uma total incoerência epistemológica do Ocidente. Esta realidade, porém, possui uma novidade: enquanto o período colonial clássico não ocorria nas sociedades metropolitanas (a não ser de forma consentida, como a escravidão), esta nova forma colonial penetra nos próprios espaços territoriais do colonizador. Duas das metáforas mais significativas desta

3

realidade, para Boaventura de Sousa Santos, são a ideia de “combatente inimigo ilegal” e o muro de segregação de Israel, na Palestina. Em todo o caso, a tendência mais evidente, a pretexto das três novas formas de subalternidade no Ocidente, referidas no parágrafo anterior, reside na propalação dominante (iniciada pelos EUA), do ideal da suspensão de conteúdos civis, políticos, económicos e sociais, relacionados com direitos e garantias constitucionais essenciais, como fundamentais para manter as conceções epistemológicas ocidentais, mas colocando de parte possibilidades alternativas. Testemunhamos uma nova forma de Estado, o Estado de exceção, parece que a modernidade ocidental só se pode expandir globalmente na medida em que viola todos os princípios sobre os quais historicamente tem fundamentado o paradigma regulação/emancipação neste lado da linha. Os direitos humanos são assim violados com o objetivo de serem defendidos, a democracia é destruída para salvaguardar a democracia, a vida é eliminada para preservar a vida. Linhas abismais estão a ser traçadas num sentido literal e metafórico (Idem, p. 41).

Estes são apenas alguns dos argumentos que Boaventura Sousa Santos refere, para demonstrar contradições e limitações das epistemologias do Norte.

Crí tica ao Ca none da Cie ncia

O paradigma que prevalece na ciência moderna teve inicialmente origem na revolução científica do século XVI, desenvolvendo-se depois nos séculos XVIII e XIX, como uma racionalidade essencialmente quantitativa. A partir deste último período, estabeleceu-se um modelo de racionalidade científica que, apesar de admitir diversidade interna, postula claramente duas formas de conhecimento, o racional, ligado à cientificidade, e um conhecimento irracional (não científico), associado ao conhecimento das ciências sociais e humanas e ao conhecimento do senso comum. Visto assim, é possível reconhecer-se uma ideia de totalitarismo ou dominância por parte das ditas ciências naturais ou exatas, pois não reconhecem qualquer validade científica a conhecimentos que não se fundem nos seus princípios epistemológicos e nas suas regras metodológicas. Este paradigma assenta numa epistemologia que produz uma distinção entre a natureza e o humano. Quanto à natureza, assenta na premissa de que esta é eterna e imbuída de reversibilidade. De modo que, através dos estudos dos seus mecanismos, é possível fazer demonstrações que possibilitam positivar leis irrefutáveis. A Natureza e os seus mistérios são sempre reveláveis, e a ciência deve

4

atuar com um sentido utilitarista, de forma a ser possível dominar e controlar a natureza. Só a observação e a experimentação clarificam o nosso conhecimento acerca dela, e a matemática é o único instrumento apropriado a utilizar como referência e modelo científico. Deste modo, a ciência é compreendida apenas numa perspetiva do saber, o saber como manipular (Schulze & Jesuino, 2008). A predominância deste cânone, quanto ao modo de construir ciência e saberes, evidencia várias problemáticas criticistas. Edgar Morin, por exemplo, critica a ideia de um conhecimento simplificante, irredutível a leis gerais, negando-se a complexidade e a interseção de saberes. Refuta a ideia metodológica cartesiana de dividir o objeto de estudo, em tantas partes quanto possíveis, como forma adequada de análise. Propõe exatamente o contrário, para a sua teoria da complexidade, a complexidade é um desafio ao conhecimento, não uma solução. Quando dizemos «é complexo», confessamos a nossa incapacidade para dar uma descrição ou uma explicação simples, clara, precisa. Sentimos que aspetos diferentes, também contraditórios, estão ligados, mas sem que possamos dar conta. (…) Direi antes de mais que o complexo é o que não se pode reduzir a uma descrição clara, a uma ideia simples, tão pouco a uma lei simples (Morin, 2009, pp. 139-140).

A visão histórica da quantificação da ciência contrapõe-se a uma outra forma de conceber o conhecimento e saberes, uma outra ciência que pode ser construída, e que não refuta aquilo que não é quantificável. Perceber o mundo ultrapassa a quantificação e a postulação de leis universais, passando antes por um entendimento metafísico da realidade. A cientificidade visa a criação de reflexões que explicam racionalmente a realidade, para isso deve partir da experiência, porém deve ultrapassá-la, de modo a que possa chegar a realidades que a transcendam. Só assim é possível entender a realidade local e global, conhecer a variedade de “relações possíveis do mundo e as suas partes, como por exemplo fazem as cosmologias e teologias” (Guba, Lincoln, & others, 1994, p. 107). Na investigação científica, o que é relevante não é a quantificação em si mesma, mas as questões de partida que se relacionam com a ontologia, epistemologia e metodologia. Para Guba e Lincoln (1994), a questão ontológica pode traduzir-se da seguinte maneira: “Qual é a forma e natureza da realidade e, portanto, o que é que se pode saber sobre isso?” (p. 108). A questão epistemológica, segundo os mesmos autores, é a seguinte: “Qual é a natureza da relação entre o conhecido ou o pretensamente conhecido, e aquilo que posso conhecer” (Ibidem). E, a questão metodológica é: “Como pode o inquiridor (pretensamente) fazer para encontrar o que quer, ou que acredita poder conhecer” (Ibidem).

5

Por outro lado, é muito mais significativa a utilidade da ciência, encarada como uma ciência aberta, que permita “encontrarmos formas de superar a separação entre aqueles que «sabem conhecer os factos» e aqueles que são menos competentes e só têm opiniões”(Schulze & Jesuino, 2008, p.28). Esta pode ser uma forma de evitar a marginalização. Uma marginalização, ainda que de âmbito diferente, está associada ao cânone dominante do conhecimento científico, que coloca de parte a mulher e o conhecimento feminino. O que parte da crítica, relativa ao paradigma dominante da construção da ciência, parece defender, “é uma preocupação em se unir cada vez mais os polos que tradicionalmente se mantinham separados na realização de uma ciência mais tradicional. Dentre eles se destacam os polos observador x observado e ciência x realidade social (…)” (Idem, p.29). Esta crítica assenta na ideia de que o mundo científico não pode ser concebido separando-se da realidade social. Porque toda a ciência é “resultado de uma série de operações que ocorrem no domínio social” (Ibidem). Acresce uma outra crítica ao paradigma dominante ocidental, que se refere à ciência, como o único e verdadeiro saber. A refutação deste pensamento não nos parece difícil, pois a ciência é uma ideia muito menos extensa, que a ideia de conhecimento. O conhecimento é muito mais amplo, porque abrange uma ecologia de saberes, de tal ordem diversos, que é quase inesgotável, sobre a experiência do mundo. Existem numerosas epistemologias do conhecimento a nível planetário, e todas são não só racionais como legítimas, porque todas são criação humana. A pluralidade de conhecimentos está muito além do conhecimento científico, e como o transcende, isto implica renunciar a qualquer epistemologia geral. Ao largo do mundo, não só há muitas formas diversas de conhecimento da matéria, da sociedade, da vida e do espirito, como também muitos e mui diversos conceitos que contam como conhecimento, e de critérios que podem ser usados para os validar (Santos, 2010, p. 50).

Por fim, porque o que referimos influencia a forma de pensar, e porque rebatemos as ideias essencialista que propõem como seu objeto de análise as essências dos seres e não os seres existentes, preferimos antes admitir a ideia do Outro, que não significa subalternidade ou menoridade, mas apenas diferença. Citamos, a propósito das diferentes formas de pensar, o sociólogo francês Touraine (2010), referindo-se a um outro seu conterrâneo, Foucault, Comecei por evocar a via que o discurso interpretativo dominante tentou impor ao esconder ou ao condenar as outras formas de pensamento. Felizmente, esse discurso nunca ocupou todo o terreno. É mesmo surpreendente a diversidade e a riqueza das correntes de pensamento que lhe resistiram, para não mencionar os pensamentos que lhe continuam estranhos. Mas o que ainda não encontramos, é

6

um pensamento que derrube esse discurso interpretativo dominante dando lugar central à ideia de sujeito que ele queria raivosamente eliminar (Touraine, 2010, p. 96).

Na nossa perspetiva, a solução passa por se caminhar antes para uma ecologia de saberes, que permite um desenvolvimento social diferente da atual tendência dominante, e possibilita repensar a relação da ciência, do conhecimento e da vida quotidiana. Para esse fim, é fundamental ponderar o conhecimento científico, não como algo que vem de outro planeta, que nos transcende e é inquestionável, mas inversamente, reconhecer que é criação humana, e que por isso se deve sujeitar a ideias criticistas, para que seja possível seguir um caminho construtivista da ciência.

Outras Formas de Compreender a Natureza

A conceção e domínio da natureza, por parte do Ocidente, desde há vários séculos, assenta nos ideais do seu modelo civilizacional, que procura impor planetariamente. Atualmente pode dizer-se, grosso modo, que se trata de um sistema maioritariamente capitalista e neoliberal. Postula um princípio desigual para o mundo, que se baseia na premissa duvidosa de que a divisão do trabalho e exploração da natureza se relacionam, por um lado, com um conjunto de países especializados e desenvolvidos que se dedicam à produção industrial (o Norte), enquanto outros, menos avançados e subalternos, se dedicam à extração de recursos naturais para alimentar a produção industrial dos primeiros. Este pensamento sustenta-se numa epistemologia da coisificação da Natureza, como se fosse possível isolar o humano daquela. Visto deste modo, a Natureza é entendida como um modo de apropriação, utilização e usufruto. É uma conceção antropocêntrica. Ignora o Homem em si mesmo, como não fazendo parte daquela, e desvaloriza a importância e qualidade das espécies, ecossistemas e biodiversidade, relevantes para a sua própria sobrevivência. Todavia, valoriza a conceção instrumentalista da natureza, e até, nas últimas décadas, vincula a natureza à racionalidade económica global, em que o que é relevante é conceber a natureza como um valor económico. A este respeito, refere Paredes (2014) “mais polémico é inclusivamente o qualificativo outorgado à natureza como capital natural, cunhado por instituições financeiras multilaterais como o Banco Mundial”(Paredes, 2014, p. 52). Contudo, esta epistemologia antropocêntrica ocidental, que segrega, baseada na coisificação da natureza, como se o Homem fosse um ser à parte 7

daquela, não é a única possibilidade. Existem epistemologias alternativas, igualmente válidas, milenares, noutros lugares como em África, Ásia e América Latina. São sociedades e culturas que assentam numa conceção epistémica diferente, que abordam o natural e o humano como uma unidade, assente numa perspetiva holística da vida. Pessoa, sociedade e natureza são inseparáveis. Existe uma atitude de complementaridade, relacionação, reciprocidade e proporcionalidade. A este respeito, refere Mia Couto, do mesmo modo, a ideia de «meio ambiente» pressupõe que nós, humanos, estamos no centro e as coisas moram à nossa volta. Na realidade, as coisas não nos rodeiam, nós formamos com elas o mesmo mundo, somos coisas e gente habitando um indivisível corpo. Esta diversidade de pensamento sugere que talvez seja necessário assaltar um último reduto de racismo que é a arrogância de um único saber e a incapacidade de estar disponível para filosofias que chegam das nações empobrecidas (Mia, 2011, p. 19).

A perspetiva do Ocidente leva-nos a refletir num outro problema. E a nível social, será que existem duas realidades diferentes, natureza e a socialização não se relacionam, ou estão integradas? Parece-nos que a epistemologia dominante, que separa a natureza e o humano, não dá uma resposta satisfatória a esta problemática, porque parte da ideia de separação e coisificação da natureza, e dessa forma, menoriza a importância da natureza para as relações sociais. Porém, hoje, faz muito mais sentido uma perspetiva ou visão integracionista de sociedade e natureza. E são precisamente outras epistemologias, diferentes das ocidentais, de geografias diversas da europeia, que nas suas cosmologias e teologias sempre postularam esta unicidade entre humano, natureza e relações sociais. Os problemas ambientais das últimas décadas, a sua defesa e a preocupação com o planeta, as questões sociais que daí decorrem, parecem demonstrar que por exemplo epistemologias ameríndias que aos olhos dos ocidentais de séculos passados, demonstravam um estado de não civilidade, eram considerados sub-humanos, na verdade representam a realidade de um modo bem mais avançado que os juízos de valor dos colonizadores não conseguiam compreender. Na atualidade, a conceção tipicamente capitalista e neoliberal, que compreende a Natureza como parte integrante do humano, opõe-se a muitas conceções epistemológicas, de outras culturas e sociedades, que fazem uma abordagem inversa, o humano, como todas as outras espécies, a que pertencem à Natureza. Este ponto de partida é de tal modo importante, que a aparente insignificância da diferença nos passa muitas vezes despercebida. Contudo aquela, determina modos diferentes de compreender o direito, a estética e a arte, a cosmologia, a teologia, a história e as relações de parentesco, no fundo, determina diferentes formas de estar no mundo.

8

Um outro problema, consequência da epistemologia dominante sobre a Natureza, são os conflitos, adjacentes aos impactos diferenciados das atividades de extração e exploração económica, sobre a natureza e populações. Os impactos e consequências fazem-se sentir com maior significado, nas zonas de extração dos recursos naturais, e nas regiões limítrofes, colocando em causa não só os valores materiais e meios de subsistência, como a extinção de valores simbólicos e ordenadores dessas sociedades e culturas. No reverso, outras culturas e sociedades, normalmente geograficamente mais distantes, beneficiam economicamente e socialmente da exploração desses recursos e populações. Deste modo, com frequência, o deterioramento das condições de vida das populações e culturas onde são explorados os recursos naturais corresponde um efeito contrário, nas populações e culturas que delas beneficiam, existindo aqui uma característica tipicamente colonizadora. Paredes (2014) designa esta problemática, como “conflitos ecológico-distributivos”, que não são só económicos, “afetam de maneira fundamental aquelas populações cuja vida depende diretamente da natureza, a setores que suportam práticas de discriminação e racismo e, em definitivo, àqueles que menos poder económico e político detêm” (p. 47).

As Tecnologias de Informaçao e Globalizaçao

As tecnologias, juntamente com a ciência, são cada vez mais relevantes no quotidiano, já que desempenham um importante papel na estrutura das nossas relações pessoais e profissionais, proporcionando novas possibilidades, mas também novas dificuldades. Ambas nos oferecem outros modos de compreender a realidade, assentes sobretudo num pensamento racional. Não obstante, esta forma de racionalidade pode impossibilitar outros modos alternativos de nos pensarmos a nós próprios, e o modo como valorizamos o mundo que nos rodeia. Do exposto, podemos identificar um problema geral: que de certo modo, o Homem tanto pode ganhar como perder, face a esta nova realidade. O mundo, atualmente, molda-se por um crescente conflito entre o global e o local, dois universos diferentes sobre a identidade. Castells (2010) refere que “a revolução das tecnologias de informação e a reestruturação do capitalismo introduziram uma nova forma de sociedade, a sociedade em rede” (p. XXIX), que se caracteriza pela globalização das atividades económicas; pela forma de organização em rede; pela individualização, instabilidade e flexibilidade no emprego; por uma cultura da realidade virtual interligada e diversificada; pela alteração dos fundamentos materiais da vida em que o espaço e o tempo passam a ter novas

9

conceções (um espaço de fluxos e um tempo atemporal). Esta nova realidade desafia simultaneamente o cosmopolitismo e a ruralidade, o colonizador e o colonizado, o dominador e o subalterno. O acesso à informação e a facilidade de comunicação permitem, simultaneamente, o conhecimento da singularidade cultural e o conhecimento da cultura global. Mas esta realidade não tem que significar necessariamente hegemonia de movimentos sociais, culturais, do saber ou até políticos. Na opinião de alguns pensadores, tem-se manifestado uma tendência inversa, uma ideia de multiculturalidade. Refere Castells, a propósito do seu livro A Era da Informação: Economia, Sociedade e Cultura - O Poder da Identidade, Há nesta obra uma deliberada obsessão pelo multiculturalismo, por analisar o planeta considerando as suas diversas manifestações sociais e políticas. Tal abordagem deriva da minha visão de que o processo de globalização tecnoeconómica que tem vindo a condicionar o nosso mundo está a ser contestado e será, em última análise, transformado, a partir de uma multiplicidade de fatores, de acordo com diferentes culturas, histórias e geografias (Idem, p. XXI).

Para nós, esta ideia significa também que se manterá a diversidade epistemológica de se ser e estar no mundo, e que a subalternidade e dominância continuarão a existir. Mas acrescentamos ainda que as epistemologias do Norte, que dominam, afinal lidam mal com a nova realidade das tecnologias da informação e economia global. No Ocidente, a crise económica e a subsequente crise social, transformam-se também em crise política (inclusive territorial). Mas, apesar de tudo isto, o Ocidente insiste na não alternativa, considerando apenas o seu modelo epistemológico do mundo. Caso que nos parece evidente, ainda que o pouco tempo decorrido possa precipitar as nossas conclusões, é a persistência da não alternativa epistemológica para a Europa resolver os seus próprios problemas, receosa de transgredir algum princípio capitalista e neoliberal em que assenta. No último quinquénio, as soluções encontradas para os seus problemas, demonstram que afinal os resultados das medidas, conduziram a uma realidade pior que o estado da realidade, no seu ponto de partida. A História diz-nos que o Ocidente sempre teve dificuldade em compreender os seus erros e ambiguidades, só encontrou alternativa no colapso. Foi assim na primeira guerra mundial, na crise económica de 1929, na segunda guerra mundial e na descolonização territorial de África. A evolução das últimas duas décadas, influenciada em particular pelas tecnologias e globalização, pode sucintamente ser descrita da seguinte forma: a divisão entre Estados e nações, entre a política de representação e a política de intervenção, desorganiza a unidade de medida política sobre a qual a democracia liberal foi construída e exercida nos dois últimos séculos. A privatização de empresas públicas e a queda do Estado-Providência, embora tenha aliviado a sociedade de parte do seu fardo burocrático, piora as condições de vida da maioria

10

dos cidadãos, rompe o contrato social histórico entre capital, trabalho e Estado e usurpa grande parte da rede de segurança social, a trave-mestra da legitimidade do governo, na visão do senso comum. Dividido pela internacionalização da produção e das finanças, incapaz de se adaptar às redes entre empresas e à individualização do trabalho, questionado pelo feminizar do emprego, o movimento operário perde a sua força como fonte básica de coesão social e de representação dos trabalhadores (Castells, 2007, p.499).

A intenção desta citação não é a revelação de novas ideias políticas, mas sim compreender que outras geografias planetárias, com culturas e sociedades baseadas em epistemologias diferentes das do Norte, conseguem conviver melhor com as alterações produzidas pelas tecnologias da informação e globalização. Existem alternativas, que não têm obrigatoriamente que ser as epistemologias do Norte, existem outras, as epistemologias do Sul.

Uma Epistemologia Ocidental Para o Racismo

O tema que abordamos neste subtítulo é controverso e sujeita-se a grandes objeções. O que nos propomos é identificar uma epistemologia racista associada ao Ocidente. Tanto ao longo da Historia, como na atualidade, não nos parece haver dúvidas sobre a sua existência. A dificuldade reside antes em argumentar que esta é a única região de racismo, ou que, esta conceção civilizacional foi e é portadora de um estigma racista, enquanto outras não o foram e não o são. Mas não é esta a nossa discussão. A nosso ver, julgamos que se trata de um problema geral, planetário. Vamos restringir-nos às conceções e emanações racistas do Ocidente. Consideramos, para a nossa análise, um conceito alargado de racismo. Desde logo, para se compreender o racismo, é necessário acreditar na existência de raças, enquanto distinção física que altera o significado social e biológico de se ser humano. Só partindo desta premissa, fica compreensível que alguém, racista, possa acreditar que certos indivíduos se encontrem numa posição de inferioridade, e outros se encontrem numa posição de superioridade em múltiplos aspetos. Esta interpretação do humano, pode ser individualizada ou grupal. Num outro sentido, para além do biológico, é também entendido que o racismo é muitas vezes institucional, estendendo-se pelas estruturas sociais, sendo até sistemático. Visto assim, o racismo pode existir nos sistemas políticos, nas escolas, na polícia, na saúde, e em muitas outras circunstâncias. Por fim, argumentamos também que existe uma outra forma de racismo no Ocidente, que tem sido designado por alguns especialistas, como racismo cultural. Na base desta última afirmação, encontra-se a ideia de que as diferenças culturais são a razão para a exclusão de certos indivíduos 11

ou grupos, da restante sociedade. Os fundamentos são vários e podem ser entendidos de forma isolada ou cumulativa, tais como a religião, a língua, a origem, a própria forma de se vestirem, entre muitas outras formas possíveis. Resumindo, entendemos o racismo, neste texto, de forma alargada, que engloba o racismo biológico, o racismo institucional e o racismo cultural. O surgimento da epistemologia racista dominante, de origem ocidental, assenta, segundo Giddens (2008), em três principais razões: Uma reside no facto de a oposição entre o branco e o negro, enquanto símbolos culturais, se encontrar profundamente enraizada na cultura europeia. O branco está associado à pureza e o preto ao mal (nada há de natural neste simbolismo; em outras culturas, sucede exatamente o contrário). Antes da população do Ocidente entrar em contato permanente com os negros, já o preto era símbolo de significados negativos. (…) A sensação de existir uma diferença radical entre brancos e negros, aliada ao «paganismo» dos Africanos – desconhecimento do Cristianismo – levou muitos europeus a olhar os nativos com desprezo e medo. (…) Um segundo fator importante que influenciou o racismo moderno foi pura e simplesmente a invenção e difusão do próprio conceito de raça. (…) Uma terceira razão para o surgimento do racismo moderno reside nas relações de exploração que os Europeus estabeleceram com as populações não brancas. O comércio de escravos não poderia ter existido se a maioria dos Europeus não acreditasse que os negros pertenciam a uma raça inferior, talvez mesmo subhumana. O racismo ajudou a justificar a dominação colonial sobre os povos não europeus (…)” (p. 255)

Esta epistemologia do Norte, quanto ao racismo, persiste na atualidade, consubstanciando-se no reconhecimento desigual da diferença, que culminam em formas preconceituosas e de racismo. A perceção dominante é que o racismo se corporifica como um problema do outro, e portanto distante de nós (ocidentais), mas ele está presente dentro das nossas fronteiras, numa periodicidade diária. Ele apresenta-se de forma ou parece-nos ser mais subtil e indireto. Todavia, continuamos a considerar que, a defesa e imposição dos nossos valores individuais e coletivos, ocidentais, devem prevalecer para os membros de grupos minoritários, que vivam nos nossos territórios. Assim como também, procuramos igualmente implementá-los (muitas vezes impô-los) nos seus territórios. É uma espécie de certeza imperial, que nos arroga o direito de exigir que o resto do Mundo se governe pelas nossas conceções económicas, políticas, legais, sociais, religiosas e cosmológicas. Mas em contradição, continuamos também a considerar a nossa civilização formalmente democrática e legalmente antirracista.

12

Nota Final: Colonial

O que pretendemos evidenciar neste pequeno ensaio é a ideia de que a chamada epistemologia do Norte ou Ocidental continua a propor uma visão do mundo, e de nele se ser, que limita a realidade planetária. Na atualidade, a insistência em impor as suas conceções para todas as geografias, surge como um déjà vu de realidades de séculos passados, que encaminham o Ocidente para o desconhecimento, para a recusa de que existem outras alternativas, para eminentes conflitos culturais que descambam em guerras. Refere Mignolo, no seu trabalho La Colonialidad: La Cara Oculta de la Modernidad, que existem quatro âmbitos em que se evidencia, hoje, a ideia colonial “ocultos por uma máscara de retórica de modernidade constante e cambiante, isto é, de salvação, progresso, desenvolvimento e felicidade” (p. 49): a gestão e controlo de subjetividades; a gestão e controlo da autoridade; a gestão e o controlo da economia; a gestão e o controlo do conhecimento. São, na sua opinião, as principais conceções imperialistas sobre a realidade. Em contra corrente à posição dominante, subscrevemos um pensamento pós-colonial, que coloca o seu enfoque no reconhecimento de que o colonialismo existe, e que não é apenas uma realidade económica e política, mas sobretudo profundamente epistémica, procurando desse modo legitimar o poder e superioridade dessas posições, em detrimento de epistemologias alternativas, as chamadas epistemologias do Sul. Esta suposta legitimação cria disparidades que se podem compreender perfeitamente na dicotomia colonizador/colonizado, “que se torna realidade objetiva em leis e regulamentos, instituições, programas educativos e científicos, assim como na linguagem” (Paredes, 2014, p. 48). Contudo, esta postura de recusa da diversidade epistemológica de se ser e estar no mundo, estabelece um caminho que conflui para um só lugar, o desconhecimento, a negação da diferença e a recusa de alternativas. Como refere Mia Couto (2011), “o que advogo é um homem plural, munido de um idioma plural. Ao lado de uma língua que nos faça ser mundo, deve coexistir uma outra que nos faça sair do mundo. De um lado, um idioma que nos crie raiz e lugar. Do outro, um idioma que nos faça ser asa e viagem” (pp. 20-21).

13

Bibliografia

Castells, M. (2007). A Era da Informação: Economia, Sociedade e Cultura - O Poder da Identidade (2ª Edição, Vols. 1-3, Vol. 2). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. Erramuspe, J. B. (2014). La Enseñanza de la Metodologia de la Investigación en la Universidad. Implicancias de la Mirada Descolonizadora. Desafios Aos Estudos PósColoniais, 70–115. Giddens, A. (2008). Sociologia (6ª edição). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. Grix, J. (2002). Introducing students to the generic terminology of social research. Politics,

22(3),

175–186.

Disponível

em:

http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/1467-9256.00173/full. Consultado em 24 de Fevereiro de 2015. Guba, E. G., Lincoln, Y. S., & others. (1994). Competing paradigms in qualitative research. Handbook

of

Qualitative

Research,

2(163-194).

Disponível

em:

http://www.gdufs.biz/10-guba_lincoln_94.pdf. Consultado em 24 de Fevereiro de 2015. Lincoln, Y. S., & Guba, E. G. (2000). Paradigms Controversies, Contradictions, and Emerging Confluences. In Hanbook of Qualitative Research (Norman K. Denzin, pp. 163–188). London: Sage Publications. Martínez, D. O. (2013). Intellectual Biography, Empirical Sociology and Normative Political Theory: An Interview with Tariq Modood. Journal of Intercultural Studies, 34(6),

729–741.

Disponível

em:

http://www.tandfonline.com/doi/full/10.1080/07256868.2013.846894. Consultado em 24 de Fevereiro de 2015. Mia, C. (2011). E se Obama fosse africano? E outras intervenções. São Paulo: Companhia das Letras. Mignolo, W. D. (n.d.). La Colonialidad: La Cara Oculta de la Modernidad. Disponível em: http://www.macba.cat/PDFs/walter_mignolo_modernologies_cas.pdf. Consultado em 24 de Fevereiro de 2015. Morin, E. (2009). O Meu Caminho. Lisboa: Instituto Piaget.

14

Paredes, M. M. (2014). Naturaleza, culturas y territorios: lecturas paralelas entre la ecología política y el pensamiento poscolonial. Desafios Aos Estudos Pós-Coloniais, 44.

Dispon+ivel

em:

http://www.ces.uc.pt/publicacoes/cescontexto/ficheiros/cescontexto_debates_v.p df#page=44. Consultado em 24 de Fevereiro de 2015. Santos, B. de S. (1987). Um Discurso Sobre as Ciências. Porto: Edições Afrontamento. Santos, B. de S. (2010). Descolonizar El Saber, Reinventar El Poder. Montevideo: Ediciones

Trilce.

Disponível

em:

http://www.boaventuradesousasantos.pt/media/Descolonizar%20el%20saber_final %20-%20C%C3%B3pia.pdf. Consultado em 25 de Fevereiro de 2015. Schulze, C. M. do N., & Jesuino, J. C. (2008). Representações Sociais, Ciência e Tecnologia. Lisboa: Instituto Piaget. Touraine, A. (2010). Pensa de Outro Modo. Lisboa: Instituto Piaget. Viveros de Castro, E. (2002). Perspectivismo e multinaturalismo na América Indígena. E. Viveiros de Castro. A Inconstância Da Alma Selvagem. São Paulo: Cosac Naify, 345– 400.

Disponível

em:

http://www.oquenosfazpensar.com/adm/uploads/artigo/perspectivismo_e_multipl uralismo_na_america_indigena/n18EduardoViveiros.pdf. Consultado em 24 de Fevereiro de 2015.

15

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.