DESCONSTRUÇÃO: UM OUTRO NOME DA JUSTIÇA

May 28, 2017 | Autor: Marco Scapini | Categoria: Direito, Filosofía, Justiça, Desconstrução
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DESCONSTRUÇÃO: UM OUTRO NOME DA JUSTIÇA Marco Antonio de Abreu Scapini1

A escrita do presente texto tem uma singularidade marcante em mim, tendo em vista o convite realizado por Salo de Carvalho para que este texto faça parte de um livro em homenagem ao Amilton Bueno de Carvalho, o que implica na minha necessidade de fazer uma espécie de introdução afetiva ao texto propriamente dito. Os nossos laços são por demais fortes como o próprio Amilton Bueno de Carvalho, ao escrever o prefácio do livro do meu pai, demonstra com magnífica sutileza2. Nós (Salo e eu) acabamos por compartilhar a amizade de nossos pais, uma espécie de herança que ambos nos deixaram, mas não apenas a amizade. Compartilhamos uma certa ideologia e um louco desejo por justiça. E aqui caberiam alguns questionamentos: é possível herdar uma amizade? Como receber algo absolutamente singular? Como compartilhar algo próprio do outro? Para Derrida, o herdeiro precisa responder a uma dupla injunção, a uma designação contraditória, “é preciso primeiro saber e saber reafirmar o que vem ‘antes de nós’, e que portanto recebemos antes mesmo de escolhê-lo, e nos comportar sob este aspecto como sujeito livre”3. Neste “é preciso”, está inscrita uma certa aporia da própria possibilidade de reafirmação do que é herdado, pois segundo Derrida “é preciso fazer de tudo para se apropriar de um passado que sabemos no fundo permanecer inapropriável”4. Trata-se, pois, de pensar a própria vida, ou, talvez, o próprio da vida. Independente de que âmbito for não temos como escolher a herança, ela nos chega, vem antes de nós. O que nos faz livre é decidir sobre mantê-la viva ou não, ou seja, decidir justamente sobre a reafirmação da herança. E a decisão impede qualquer passividade, pois é preciso fazer de tudo. Para Derrida reafirmar significa não apenas aceitar a herança, mas também relançá-la de outra maneira e mantê-la viva. Não escolhê-la (pois o que caracteriza a herança é primeiramente que não é escolhida, sendo que ela nos elege violentamente) mas 1

Doutorando em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Mestre em Ciências Criminais (PUCRS). Especialista em Ciências Penais (PUCRS). 2 SCAPINI, Marco Antonio Bandeira. Prática de Execução das penas privativas de liberdade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. 3 DERRIDA, Jacques; ROUDINESCO, Elisabeth. De que amanhã: diálogo. Trad. André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004, p. 12. 4 Idem. op. cit. p. 12. 1

escolher preservá-la viva”5. Assim, confesso todo o meu esforço, aqui, neste instante, em relançar e manter viva uma radical irresignação frente à injustiça – legado maior e compartilhado por esta amizade . Em seu Direito Alternativo – teoria e prática, Amilton Bueno de Carvalho confessa sentir nojo e revolta da injustiça, ao mesmo tempo, deixa explícito que seu olhar não é neutro e que não crê em teoria “pura”6. Tenho profunda admiração por este que, enquanto juiz, confessou o seu total desconforto em aplicar a lei tendo o assombro da possibilidade da injustiça em cada decisão. Ao invés de silenciar, Amilton se expõe sem medo de dizer os motivos da sua luta – por um direito alternativo – e assim tem sido.

Trata-se de um

movimento com o “compromisso com a radicalidade democrática”7. Em tempos de uma suposta imparcialidade (que muita vezes significa apenas a indiferença a dor do outro), cuja maquinação e burocratização do mundo são expressões, expor-se e dizer em nome de quê ou de quem se está a agir são gestos fundamentais que demonstram um compromisso ético sem limites. Com esta breve introdução, deixamos claro que o texto que se seguirá mantém seu endereçamento permanente para estas duas questões referidas por Amilton Bueno de Carvalho – a justiça e a radicalidade democrática – com vistas ao novo e a desconstrução do status quo. Para tanto, nossa análise é desdobrada desde as concepções de Justiça e de desconstrução de Jacques Derrida. Por tudo isso, gostaria que este texto estivesse à altura não somente de uma homenagem ao Amilton Bueno de Carvalho, mas também a sua amizade com Marco Antonio Bandeira Scapini.

(***)

5

Idem. op. cit. p. 12. CARVALHO, Amilton Bueno de. Direito Alternativo – teoria e prática. Porto Alegre: Síntese, 1998, p. 16. 7 Idem. op. cit. p. 55. 6

2

Longe de ser uma técnica metódica, um procedimento possível ou necessário, expondo a lei de um programa e aplicando regras, isto é, desdobrando possibilidades, a “desconstrução” foi frequentemente definida como a própria experiência da possibilidade (impossível) do impossível, do mais impossível, condição que divide com o dom, o “sim” e o “vem”, a decisão, o testemunho, o segredo etc. E talvez a morte. (...) A possibilidade do impossível, do “mais impossível”, que enquanto tal também é impossível (“mais impossível que o impossível”), marca uma interrupção absoluta no regime do possível que, apesar disso, permanece, se assim podemos dizer, no lugar 8.

O presente texto pretende apresentar, de forma introdutória, uma im-possível relação entre desconstrução, justiça e democracia por vir, desde as concepções de Jacques Derrida. Desta maneira, expõem-se alguns questionamentos políticos como tarefa da desconstrução por assim dizer. Nesse sentido, Derrida afirma que “si es que hay una articulación posible entre desconstrucción y política, ella debe implicar una reelaboración radical del concepto de política, tal como por general circula”9. Tal relação, pressupondo uma articulação possível, é que nos dará as dobras para uma reelaboração radical do conceito de política, mais precisamente para o próprio conceito de democracia. Mas poderá a desconstrução propor algo por vir à democracia? Este questionamento é o assombro do presente texto e, ao mesmo tempo, devemos responder estrategicamente de forma positiva. No entanto, esta resposta não implica nenhuma garantia, pois nossa resposta se dá como aposta ao por vir. Derrida afirma o seguinte: Se a estratégia se garantisse a si própria, se o seu cálculo fosse seguro, não se trataria de estratégia. A estratégia implica sempre a aposta, isto é, um certo modo de confiar no não-saber, no incalculável: calcula-se porque há um incalculável, calcula-se onde não se sabe, quando não se consegue predeterminar. Portanto, a aposta estratégica consiste sempre no tomar uma decisão ou, mais paradoxalmente ainda, no render-se a uma decisão, no tomar decisões que não se podem justificar completamente. A decisão de apostar é-o justamente porque não se sabe se, afinal, o pari stratégique será justo, ou o melhor. Há aposta estratégica porque o contexto não é totalmente determinável: existe, mas não é possível analisá-lo em termos exaustivos, é aberto porque advém, porque há por vir 10.

Se fosse possível um cálculo desde uma estratégia que garantisse o que ainda não está aí presente, não teríamos por vir. Há uma singularidade no por vir que impede a clausura de um tempo determinado. O assombro do incalculável está sempre presente impossibilitando 8

DERRIDA, Jacques. Salvo o nome. Trad. Nícia Adan Bonatti. Campinas: Papirus, 1995, pp. 19-20. Idem. Política y amistad. Entrevistas con Michael Sprinter sobre Marx y Althusser. 1ª Ed. Trad. Heber Cardoso. Buenos Aires: Nueva Visión, 2012, p. 57. 10 Idem. Tenho o gosto do segredo. In: O gosto do segredo. Trad. Miguel Serras Pereira. Lisboa: Fim de século, 2006 , p. 28. 3 9

qualquer chance a alguma predeterminação. Para que haja uma espécie de irrupção no tempo, é preciso apostar. O cálculo, portanto, só pode ser incalculável. Trata-se, pois, para Derrida “uma espécie de cálculo no incalculável, e a intempestividade é um tipo de tempestividade em vias de formação”11. A exigência da justiça faz com que se desafie todo o presente, tudo aquilo que é. Como citamos em epígrafe, a desconstrução está longe se ser uma técnica metódica ou qualquer espécie de procedimento ou programa. A desconstrução, justamente, por expor a lei de um programa e desdobrando possibilidades foi, nas palavras de Derrida, frequentemente definida como a experiência da possibilidade – impossível – do impossível. A experiência do mais impossível, ou seja, aquilo que excede o próprio do impossível. No estilo aporético de Derrida, coloca-se como questão, nesse momento, o limite do possível. Em outras palavras, o limite do cálculo, do programa, da técnica, do método, o que sugere, portanto, um questionamento da lei sem limites. Assim, se a desconstrução pode ser a experiência do mais impossível, ela marca uma interrupção absoluta na lógica ou no regime do possível. Todavia, mesmo marcando esta irrupção no regime do possível, tal regime permanece no lugar. A marca da irrupção, portanto, no regime do possível como possibilidade da experiência do mais impossível, que definiu por assim dizer a desconstrução, se dá, justamente, porque esta não faz outra coisa que endereçar-se à justiça. Nas palavras de Ricardo Timm de Souza: “justiça para além de suas metáforas, na crueza de seu processamento e na improbabilidade de sua síntese”12 . A radicalidade da justiça, a qual se endereça a desconstrução, impede ou im-possibilita qualquer tentativa de síntese do seu sentido. Em outras palavras, a justiça não se confunde com seu conceito. Para Derrida, a justiça é: Uma relação com o incondicionado que, uma vez considerado o conjunto das condições dadas, dá testemunho daquilo que não se deixa encerrar num contexto. Obviamente, nesta relação com o incondicionado, com a justiça estão em jogo a vida e a morte”13.

A radicalidade da justiça implica em assumir todos os riscos, colocando em questão as condições dadas.

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DERRIDA, Jacques. Tenho o gosto do segredo. In: O gosto do segredo. Trad. Miguel Serras Pereira. Lisboa: Fim de século, 2006 , p. 31. 12 SOUZA, Ricardo Timm de. Razões plurais: itinerários da racionalidade no séc. XX: Adorno, Bergson, Derrida, Levinas, Rosenzweig. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004, p. 143. 13 DERRIDA, Jacques. Tenho o gosto do segredo. In: O gosto do segredo. Trad. Miguel Serras Pereira. Lisboa: Fim de século, 2006 , p. 32 4

Nesse sentido, a justiça é o núcleo indesconstruível da desconstrução. Ao contrário do direito, que para Derrida é, justamente, essencialmente desconstruível por definição. Assim diz Derrida:

Na estrutura que assim descrevo, o direito é essencialmente desconstruível, ou porque ele é fundado, isto é construído sobre camadas textuais interpretáveis e transformáveis (e esta é a história do direito, a possível e necessária transformação, por vezes a melhora do direito), ou porque seu fundamento último, por definição, não é fundado. Que o direito seja desconstruível, não é uma infelicidade. Pode-se mesmo encontrar nisso a chance política de todo progresso histórico 14.

A estrutura descrita por Derrida, portanto, em Força de Lei, expõe a condição essencialmente desconstruível do direito, desde a análise de sua fundação, que por definição última não é fundado, pois, de fato a fundação do direito se dá por um golpe de força, por uma força de lei que funda a si mesmo. Assim, citando os ensaios de Montaigne, Derrida questiona as leis e sua relação com a justiça. A obediência à lei se dá, tão somente, por sua autoridade. O que há é a concessão de um crédito onde repousa a autoridade da lei. Para Derrida “esse ato de fé não é um fundamento ontológico ou racional”15. A autoridade das leis repousa, portanto, no seu fundamento místico. Nesse sentido, o ato inaugural de fazer a lei consiste num golpe de força, numa violência por assim dizer performativa. Não há nada anterior, nem mesmo um discurso que possa exercer um papel de metalinguagem. Segundo Derrida “o discurso encontra ali seu limite: em seu próprio poder performativo. (...) Há um silêncio murado na estrutura violenta do ato fundador”16. Diante desta estrutura da justiça como direito, que podemos encontrar a chance política para a democracia, ou melhor, para o por vir da democracia. Podemos desde esta estrutura ter a chance de ir além. A possibilidade da desconstrução, portanto, passa por esta estrutura desconstruível do direito. Por ser fundado sobre camadas textuais interpretáveis e transformáveis o direito assegura a própria chance da desconstrução. Assim assinala Derrida “a justiça nela mesma, se algo como tal existe, fora ou para além do direito, não é descontruível. Assim como a desconstrução ela mesma, se algo como tal existe. A desconstrução é a justiça”17. O exercício da desconstrução, então, ocorre no intervalo destas 14

DERRIDA, Jacques. Força de lei: o fundamento místico da autoridade. Trad. Leyla Perrone-Moysés. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 26. 15 Idem. op. cit. p. 21. 16 DERRIDA, Jacques. Força de lei: o fundamento místico da autoridade. Trad. Leyla Perrone-Moysés. São Paulo: Martins Fontes, 2007p. 25. 17 Idem. op. cit. p. 27. 5

dimensões, ou se quisermos, destes núcleos da desconstrução. Significa dizer que é neste intervalo entre direito e justiça que a desconstrução ocorre. Mas, nas palavras de Derrida, “ela é possível como uma experiência do impossível”18. A possibilidade da desconstrução como impossível, portanto, se dá na medida em que a justiça, ao contrário do direito, é incalculável. Nesse sentido, a travessia da desconstrução, que é também em certo sentido, uma experiência da justiça, exige uma experiência aporética. A chance política para o progresso histórico do direito e, nesse sentido, da democracia, passa também por esta experiência da aporia. Senão, o direito, na sua própria fundação já estaria pronto, ou melhor, acabado. Tudo já estaria calculado e programado se a justiça fosse a justiça como direito. Assim, para que esta experiência seja possível é preciso correr todos os riscos de uma travessia ao mais impossível, sem pré-visão. Para Derrida “en el pensamineto, es decir, en todas partes, es necesario correr riesgos. Sin eso, no hay responsabilidad”19. É desde esta experiência aporética que temos a possibilidade a abrir caminhos, de ir além, de transgredir o que está dado para um por vir. Para Derrida, “o que conta é a trajetória, o caminho, a travessia, numa palavra, a experiência”20. A justiça – experiência impossível –, nesse sentido, nos termos expostos por Derrida é “uma vontade, um desejo, uma exigência de justiça cuja estrutura, não fosse uma experiência da aporia, não teria nenhuma chance de ser o que ela é, a saber, apenas um apelo à justiça”21. A desconstrução, portanto, é, de ponta a ponta, um apelo à justiça, carregando o sofrimento de uma ausência de regra segura que permita distinguir direito e justiça22. Assim, desde a desconstrução podemos encontrar a chance para o político, para a transformação política da democracia. O questionamento sobre a fundação, sobre o fazer a lei, implica também num questionamento da democracia. A relação entre direito e justiça, se existe tal relação, também diz respeito a este modelo político. Nesse sentido, o por vir somente terá possibilidade com a desconstrução do direito (do Estado de direito) – o que não significa a destruição do direito -, e, ainda, com a experiência impossível da justiça. Na aposta estratégica que fizemos acima o direito tem papel fundamental. Segundo Derrida “a justiça não é o direito; mas é o que tenta produzir um novo direito. E para produzir precisa de ter em conta o contexto e depois, a um certo momento, de 18

Idem. op. cit. p. 27. DERRIDA, Jacques. Política y amistad. Entrevistas con Michael Sprinter sobre Marx y Althusser. 1ª Ed. Trad. Heber Cardoso. Buenos Aires: Nueva Visión, 2012, p. 59. 20 DERRIDA, Jacques. Outrem é secreto porque é outro. In: Papel-Máquina. Trad. Evandro Nascimento. São Paulo: Estação Liberdade, 2004, p. 332. 21 DERRIDA, Jacques. Força de lei: o fundamento místico da autoridade. Trad. Leyla Perrone-Moysés. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 30. 22 Idem. op. cit. p. 05. 6 19

o transformar radicalmente”23. Trata-se, pois, a cada vez, de produzir um outro direito. A um certo momento o transformar radicalmente significa deixar o lugar ao tempo, pois, a cada vez, o contexto é diferente. A abertura de novos caminhos, ou seja, a abertura de caminhos que excedam o regime do possível, não escapa àquela experiência aporética. Podemos relacionar a aporia com a figura do deserto, lugar onde não há nenhum registro de sinal, apenas pistas inconfiáveis. Para Derrida:

O deserto não seria uma figura paradoxal da aporia? Não há passagem traçada ou certa, não há em todo o caso, estradas, somente pistas que não são vias confiáveis, os caminhos não estão abertos, a menos que a areia ainda não os tenha coberto. Mas a via não é também a condição da decisão ou do acontecimento que consiste em abrir a via, em transpor, portanto, ir além? A transpor a aporia? 24

A chance política do por vir exige o risco decorrente da exposição às vias inconfiáveis. Não há nada seguro. Todavia, é a exposição a estas vias que poderá abrir os caminhos, ou seja, de algum modo, a travessia do deserto é condição para o deslocamento para além do que está dado. Em certo sentido, é a condição do acontecimento. Assim, só podemos entender como deslocamento aquilo que excede a um programa. Nesse sentido, Derrida afirma o seguinte: “Ir aonde é possível ir não seria um deslocamento ou uma decisão; seria o desenvolvimento irresponsável de um programa. A única decisão possível passa pela loucura do indecidível e do impossível: ir aonde (wo, Ort, Wort) é impossível ir”25. O apelo à justiça que faz a desconstrução é também um apelo à responsabilidade sem limites. Ir aonde é possível ir, apenas reforça o controle do já programado. O rigor da desconstrução se dá pelo compromisso com a exigência excessiva da justiça. Desta maneira, diz Derrida: Manter sempre vivo um questionamento sobre a origem, os fundamentos e os limites de nosso aparelho conceitual, teórico ou normativo em torno da justiça é, do ponto de vista de uma desconstrução rigorosa, tudo salvo uma neutralização do interesse pela justiça, uma insensibilidade à justiça. Pelo contrário, é um aumento hiperbólico

23

DERRIDA, Jacques. Tenho o gosto do segredo. In: O gosto do segredo. Trad. Miguel Serras Pereira. Lisboa: Fim de século, 2006 , p. 32 24 DERRIDA, Jacques. Salvo o nome. Trad. Nícia Adan Bonatti. Campinas: Papirus, 1995, p. 34. 25 Idem. Op. cit. p. 42. 7

na exigência de justiça, a sensibilidade a uma espécie de desproporção essencial que deve inscrever nela, o excesso e a inadequação26.

O rigor, portanto, do exercício da desconstrução é tudo, menos uma neutralização do interesse pela justiça e uma insensibilidade à justiça.

Manter sempre vivos os

questionamentos referidos acima, nos faz perceber que há uma promessa de justiça que não se presentifica, que resiste à qualquer tentativa se síntese e que, portanto, não se realiza enquanto tal. Mas que mantém vivo o desejo pelo por vir. Esta promessa de justiça é que constitui aquilo que pretendemos chamar democracia. Para Derrida “o elo originário para com uma promessa fazem de toda democracia uma coisa por-vir. É uma de suas inúmeras aporias”27. Nesse sentido, podemos dizer que há uma promessa de justiça que constitui originalmente a democracia. O que implica dizer que, assim como o conceito de justiça, o conceito de democracia (por vir) não se presentifica. Desta maneira, Derrida afirma o seguinte:

Creo que actualmente no hay democracia. Pero ella no existe nunca en el presente. Es un concepto que lleva consigo una promesa, y en ningún caso es tan determinante como lo es una cosa presente. Cada vez que se afirma que «la democracia existe», puede ser cierto o falso. La democracia no se adecua, no puede adecuarse, en el presente, a su concepto28.

Não se trata da inexistência de democracia, mas da impossibilidade de se presentificar ou de se adequar ao seu conceito. Assim,quando se afirma a democracia existe, isto pode ser tanto certo como falso. Nesse sentido, diz Derrida que: Tenemos un poco de democracia, disponemos de una tradición y una idea de democracia. Cuando afirmo que nunca estuvo presente, actual y adecuadamente, ello no significa que no exista democracia. Hay una tendencia, signos, movimientos que sobresalen o dependen de la democracia. La palabra democracia no cayó del cielo. Tiene un sentido griego, tiene un sentido tomado de la historia, hubo revoluciones lo que en absoluto es poco-, aunque esa palabra, actualmente, no corresponde a una situación plena y adecuada29.

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Idem. Força de lei: o fundamento místico da autoridade. Trad. Leyla Perrone-Moysés. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 37. 27 DERRIDA, Jacques. Outrem é secreto porque é outro. In: Papel-Máquina. Trad. Evandro Nascimento. São Paulo: Estação Liberdade, 2004, p. 335. 28 DERRIDA, Jacques. La democracia como promesa. Jornal de Letras, artes e ideias, 1994, pp. 9-8.. Disponível em: www.jacquesderrida.com.ar/textos/democracia.htm. 29 DERRIDA, Jacques. La democracia como promesa. Jornal de Letras, artes e ideias, 1994, pp. 9-8.. Disponível em: www.jacquesderrida.com.ar/textos/democracia.htm.. 8

A democracia, portanto, está sempre em falta. O que não significa a inexistência da democracia. Somos herdeiros de uma história da democracia, existe uma historicidade nesta palavra, que remete a tendências daquilo que podemos afirmar com o nome democracia. Assim, quando afirmamos que a democracia está em falta não é para desconsiderar o que já se passou, sobretudo dos espectros de pessoas que literalmente deram suas vidas para que tal modelo político pudesse acontecer, mas sim para afirmar a sua insuficiência em relação a esta promessa de justiça. Assim como a desconstrução, a democracia faz um apelo à justiça, o que implica na necessidade desta experiência-impossível que marca o acontecimento aporético e, por assim dizer, o por vir. Segundo Derrida:

O por-vir não significa o distanciamento ou o retardo indefinido, autorizado por alguma ideia reguladora. O por-vir prescreve aqui e agora tarefas inadiáveis, negociações urgentes. Por mais insuficientes que sejam, elas não permitem que se espere. Ser democrata seria agir reconhecendo que nunca vivemos numa sociedade (suficientemente) democrática. O trabalho crítico e mais do que crítico, a tarefa democrática é indispensável à respiração democrática, bem como a toda ideia de responsabilidade...30

Não há, portanto, uma ideia reguladora que autorize um distanciamento ou retardo indefinido daquilo que se chama por por-vir. Por-vir significa a prescrição de tarefas inadiáveis, em que a urgência impede qualquer espera. Além disso, implica reconhecer que nunca vivemos numa sociedade suficientemente democrática. Qualquer ideia de responsabilidade passa pelo trabalho mais que crítico de responder as questões intoleráveis. Para Derrida “o direito mesmo, e a justiça, apenas progrediu trilhando o caminho das questões intoleráveis e ‘intoleradas’. Inconfessáveis31. O assombro destas questões intoleráveis está presente, a cada vez, em que trilhamos uma nova travessia. Além disso, é o excesso da justiça, justamente, que impede qualquer possibilidade de totalização ou de totalitarismo, e desde esse excesso podemos, a cada vez, reelaborar as questões da política, da ética, do direito, da história e da ontologia.

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DERRIDA, Jacques. Outrem é secreto porque é outro. In: Papel-Máquina. Trad. Evandro Nascimento. São Paulo: Estação Liberdade, 2004, p. 335. 31 DERRIDA, Jacques. O perdão, a verdade,a reconciliação: qual gênero. In: Jacques Derrida: Pensar a Desconstrução. NASCIMENTO, Evandro (org.). Trad. Evandro Nascimento. São Paulo, Estação Liberdade, 2005, p. 66. 9

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS

CARVALHO, Amilton Bueno de. Direito Alternativo – teoria e prática. Porto Alegre: Síntese, 1998; DERRIDA, Jacques. Força de lei: o fundamento místico da autoridade. Trad. Leyla PerroneMoysés. São Paulo: Martins Fontes, 2007; _______; La democracia como promesa. Jornal de Letras, artes e ideias, 1994, pp. 9-8.. Disponível em: www.jacquesderrida.com.ar/textos/democracia.htm.; _______; O perdão, a verdade,a reconciliação: qual gênero. In: Jacques Derrida: Pensar a Desconstrução. NASCIMENTO, Evandro (org.). Trad. Evandro Nascimento. São Paulo, Estação Liberdade, 2005; _______; Outrem é secreto porque é outro. In: Papel-Máquina. Trad. Evandro Nascimento. São Paulo: Estação Liberdade, 2004; _______; Política y amistad. Entrevistas con Michael Sprinter sobre Marx y Althusser. 1ª Ed. Trad. Heber Cardoso. Buenos Aires: Nueva Visión, 2012; _______; Tenho o gosto do segredo. In: O gosto do segredo. Trad. Miguel Serras Pereira. Lisboa: Fim de século, 2006; _______; Salvo o nome. Trad. Nícia Adan Bonatti. Campinas: Papirus, 1995, pp. 19-20;

DERRIDA, Jacques; ROUDINESCO, Elisabeth. De que amanhã: diálogo. Trad. André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004; SCAPINI, Marco Antonio Bandeira. Prática de Execução das penas privativas de liberdade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009; SOUZA, Ricardo Timm de. Razões plurais: itinerários da racionalidade no séc. XX: Adorno, Bergson, Derrida, Levinas, Rosenzweig. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004.

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