Desconstruindo Marc Bloch

June 1, 2017 | Autor: Julio Bentivoglio | Categoria: Historiography, Annales school, Teoria da História
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Desconstruindo Marc Bloch (1886-1944) Julio Bentivoglio (DPHIS/PPGHIS/LEHPI – UFES) “Na base do nosso empreendimento está uma espécie de pequena revolução intelectual.” [Carta de Marc Bloch a Lucien Febvre de 20/07/1929]

Introdução. Não é tarefa fácil escrever sobre aquele que é considerado um dos mais importantes historiadores do século XX, objeto de inúmeros estudos, textos biográficos e cuja fortuna crítica é altamente lisonjeira1. Com efeito, pode-se dizer que Marc Bloch sintetiza aquilo que caracteriza não somente um excelente historiador, mas, sobretudo, um grande intelectual: sua obra realiza o esforço de reunir todas as possibilidades criativas, técnicas, de erudição e de crítica documental disponíveis em seu tempo produzindo livros referenciais que se tornaram modelo para seus contemporâneos e herdeiros; sua vida expressou o vivo engajamento político e profissional, tanto na defesa da causa nacional francesa – seja nos fronts de batalha das duas grandes guerras, seja combatendo na Resistência à ocupação nazista – quanto na luta por um novo modelo da História e a criação de uma revista, cujo programa se transformou em um dos paradigmas historiográficos mais influentes no cenário contemporâneo, os Annales. O nome de Marc Bloch está ainda diretamente relacionado a um ponto de inflexão da consciência histórica e da historiografia contemporâneas, constituindo um índice a distinguir uma dada escrita da história que lhe antecede e aquela da qual se tornaria um dos principais expoentes e inspiradores2. O enorme conjunto de bons textos produzidos sobre este que foi um dos fundadores dos Annales exige um exaustivo e minucioso trabalho de crítica das sucessivas e densas camadas interpretativas que constituíram uma verdadeira mitologia em torno de Marc Bloch e de sua obra para se equalizar melhor sua dimensão no horizonte historiográfico de seu tempo e a dimensão de sua herança. Este é o desafio que procura realizar este pequeno estudo, cujas pretensões são modestas: revelar aos leitores que desejam conhecer melhor o autor de obras seminais como A sociedade feudal, Os reis taumaturgos e Apologia da história, uma fisionomia dotada de maior complexidade, que procura compreendê-lo dinâmica e criticamente. Pode-se, com efeito, afirmar que a hagiografia construída em torno do personagem – que evidentemente é notável tal como a de Walter Benjamin (1892-1940), É o que deduz DOSSE, F. O desafio biográfico. Cf. BLOCH, Étienne; CRUZ, Ramirez. Marc Bloch (1886-1944): une biographie impossible. 1 2

por exemplo – acabou, em alguns casos, produzindo uma análise amplificada de sua obra e de efeitos, cujos méritos e realizações são, em certos aspectos, superestimados, querendo enxergar nele virtudes fundadoras ou inovações seminais, quando um exame mais apurado revela a pertença a uma atmosfera de inovação historiográfica preexistente que Bloch absorve, sintetiza e dissemina. Isso não significa, evidentemente, que este estudo ignore os méritos ou realizações alcançados por Bloch, ao contrário, pretende apenas oferecer um contraponto àqueles que desejam se aproximar do pensamento daquele que foi um dos principais historiadores franceses de todos os tempos. As apresentações de Marc Bloch costumam reproduzir uma avaliação semelhante: ele não foi somente autor de obras decisivas sobre a história medieval ou de importantes reflexões sobre o método e o ensino de história; ao lado de Lucien Febvre (1878-1956) ele teria revolucionado a historiografia recente, por meio da criação da Escola dos Annales, cuja herança pode ser sentida ainda hoje na historiografia francesa e mundial3. Bloch e Febvre abriram uma nova seara nos estudos históricos rumo a uma História mais social, global e interdisciplinar, introduzindo uma nova compreensão do tempo e da temporalidade histórica, aperfeiçoando métodos e abordagens e constituindo uma nova matriz disciplinar historiográfica ao lado do marxismo e do historicismo. Foram responsáveis pela criação da revista histórica mais influente do século passado: os Annales.4 Esta imagem duradoura, repetida por diferentes intérpretes confirma, de fato, o lugar destacado da escola dos Annales, constituída em torno da revista homônima e dirigida pelos dois historiadores franceses, que teriam se insurgido contra um determinado modelo de pesquisa e escrita da história atribuída aos historiadores metódicos aglutinados em torno de professores da Sorbonne como Gabriel Monod (1844-1912), Charles-Victor Langlois (1863-1929) e Charles Seignobos (1854-1942). Ela traduz o impacto e o mérito que Bloch e Febvre Embora vários autores questionem a existência de uma escola dada a heterogeneidade do grupo e das pesquisas que realizavam, há concordância em se falar em um movimento Annales, como indica IGGERS, Georg. Historiography in the Twentieth Century; BURKE, Peter. A Escola dos Annales (1929-1989): a Revolução Francesa da Historiografia; DOSSE, F. A história em migalhas dos “Annales” à “Nova História”; REIS, José Carlos. Nouvelle Histoire e o tempo histórico: a contribuição de Febvre, Bloch e Braudel ou ainda MASTROGREGORI, Massi. Il genio ell storico. Le considerazioni sulla storia di Marc Bloch e di Lucien Febvre e la tradizione metodologica francese. 4 Para Le Goff o nascimento dos Annales está diretamente relacionado à criação da revista. LE GOFF, J. A história nova. In: A nova história, p.29. Inicialmente a revista se chamava Annales d'Histoire Économique et Sociale, em 1939 passou a chamarseAnnales d'Histoire Sociale, em 1946 sob a direção de Braudel intitulou-se Annales. Économies, Sociétés, Civilisations e em 1994 alterou-se novamente sua denominação para Annales. Histoire, Sciences Sociales. 3

tiveram na consolidação de novos objetos e abordagens de estudo, introduzindo novas formas de se pensar e escrever a história. Oblitera, contudo, intensas disputas e apropriações praticadas pelos pais fundadores em relação a seus contemporâneos, bem como as fissuras existentes entre os dois em sua condução da revista entre 1929 e 1944. E não considera, por fim, o quanto Bloch e Febvre estavam integrados ao establishment,5 mais do que deseja a maior parte de seus intérpretes, afinal ambos foram apadrinhados pelos metódicos, particularmente pelo grupo de Monod6. Tanto Jacques Revel quanto André Burguière são categóricos ao afirmar que eles não eram outsiders, pois foram, desde cedo, integrados ao teatro historiográfico em espaços e veículos cujas contribuições dividiam com metódicos e positivistas e eram apadrinhados por expoentes dentro e fora da academia, escrevendo tanto para a revista de Monod quanto para a de Henri Berr (18631954)7. Fisionomia de Bloch, ou a canonização biográfica.

Marc Bloch recebeu pelo menos três excelentes textos biográficos, de Carole Fink, de Nicole Barthèlemy e de Olivier Dumoulin. Na primeira obra, um estudo rigoroso e detalhado, descortina-se um personagem singular do qual se busca encontrar uma identidade e simetria, harmonizando o cidadão francês, o soldado e o historiador. A autora aponta que o próprio Bloch reconhecia que sua obra estava sujeita a reações e revisões, mas se colocava como o precursor de uma nova história, gestada a partir da criação de uma revista que seria tomada como modelo por várias outras como a Past and Present (1952) ou o Journal of Social History (1966), cujo triunfo generalizado de sua história social e das mentalidades saldou-se, “quase inevitavelmente, num processo de fragmentação, competição e contestação”8. Mas, a autora esquece-se de que a revista dos Annales reproduzia modelos anteriores, como os da Historische Zeitschrift (1859) ou da Revue Historique (1876). Para Fink Bloch era um judeu assimilado da Terceira República, da Europa ocidental capitalista e imperialista, que passou pela experiência pessoal de duas guerras mundiais, do bolchevismo, do fascismo e do anti-semitismo militante. Tal é a sugestão que surge em RAPHAEL, Lutz. Die Erben von Bloch und Febvre e em RAULFF, Ulrich. Ein Historiker im 20. Jahrhundert: Marc Bloch. 5

Como dão a entender tanto DUMOULIN, Oliver. Marc Bloch quanto DELACROIX, Christian. Le moment de l´histoire-science sociale (des années 1920 aux années 1940. In: DELACROIX, C., GARCIA, P. e DOSSE, F. Les courants historiques em France, p.200s. 7 Sobre Berr ver: SIEGEL, Martin. Henri Berr et la Revue de Sinthèse Historique. In: CARBONELL, CH-O. & LIVET, G. Au berceau des Annales. 8 FINK, Carole. Marc Bloch: uma vida na história, p.343. 6

O seu mundo mental abrangeu centenas de anos e vários continentes, paisagens e idiomas. Era um patriota que amava a França e um cosmopolita convicto que media a história e realizações de seu país em comparação com um mundo mais vasto9.

Olivier Dumoulin, por seu turno, traça um olhar mais crítico sobre Bloch. Segundo este autor, após sua morte trágica ao ser fuzilado pelos nazistas em 1944, teria ocorrido um processo de beatificação sobre ele e sua obra, de modo que raros eram os autores que levantavam críticas ou objeções ao seu legado. Neste ponto acompanha Peter Schöttler10 para o qual o advento da Segunda Guerra Mundial revelou fortes diferenças entre os fundadores dos Annales, fazendo surgir rusgas que seriam apagadas por Febvre após a morte do amigo, ao construir uma mitologia positiva em torno de Bloch, como já se vê em seu artigo Da história ao martírio publicado na revista dos Annales em 1945, no seu curso Honra e Pátria que lecionou na Sorbonne entre 1945-6 – onde leu vários trechos d´A sociedade feudal e no texto Marc Bloch e Estrasburgo: lembranças de uma grande história que publicaria em 194711. Em seu Combates pela história, Febvre dedica um capítulo ao amigo, revelando como se deu o encontro de ambos, em uma das reuniões inaugurais da Universidade de Estrasburgo em outubro de 1920, quando apesar dos 32 anos parecia ter 40. Mas, antes disso Febvre já havia escrito a Henri Berr dizendo ter visto Bloch, confessando: “acredito que nós nos entenderemos muito bem”12. Seus gabinetes eram contíguos e ambos deixavam as portas sempre abertas, de modo que os estudantes “passavam de uma sala a outra”13. Além daqueles dois biógrafos, em estudo recente, Dominique Barthèlemy também oscila entre o tom apologético e o crítico, quando revela: “por admiráveis que sejam, o seu estilo e o seu pensamento permanecem os de um professor da Terceira República”14. No retrato que configura a respeito de Bloch indica que: A preocupação com a erudição, com as discussões críticas, surge notadamente como um dos valores partilhados por todos os historiadores da Terceira República [positivistas ou não]. A organização coletiva do trabalho, orquestrada nos Annales para o campo econômico e social, também é uma palavra de ordem

FINK, Carole. Marc Bloch, p.347. SCHÖTTLER, P. Lucien Febvre: Mythes et histoire. 11 DUMOULIN, Oliver. Marc Bloch, p.113s. 12 Carta de Febre a Bloch, outono de 1919. In: MÜLLER, Bertrand (org). Marc Bloch – Lucien Febvre. Correspondance, v.1, p.XIX. 13 FEBVRE, Lucien. Combats pour l´Histoire, p.393. 14 BARTHÈLEMY, Dominique. Marc Bloch, p.98. 9

10

herdada da geração profissionalização15.

precedente,

a

da

grande

Carole Fink analisa minuciosamente a trajetória biográfica e intelectual de Marc Bloch. Revela que descendia de judeus da França oriental e que seu avô – Marc (1816-1880) – e pai – Gustave (18481923) também foram professores. O primeiro lecionou e dirigiu na Escola Israelita de Estrasburgo, tendo vivido o drama da guerra, da destruição da biblioteca municipal e da ocupação alemã após 1871, quando foi obrigado a lecionar em alemão e teve suas faculdades afetadas16. Gustave Bloch, seu pai, também viveu a experiência do cerco da Guerra Franco-Prussiana e a derrota francesa, foi um renomado professor de História Antiga, tendo lecionado nas Escolas Francesas de Atenas e de Roma, dez anos em Lyon, depois na Escola Normal Superior em 1888 e na Sorbonne a partir de 1894. Discípulo de Fustel de Coulanges (1830-1889), Gustave fazia parte do círculo de judeus assimilados, que, no ambiente liberal e reformista da Terceira República francesa, fez-se dreyfusard17 e membro da Liga dos Direitos do Homem, ao lado de figuras eminentes como o filósofo Henri Bergson (1859-1941). Durante a Primeira Guerra Mundial integrou o comitê da Liga Cívica e representou a Sorbonne na cerimônia de reabertura da Universidade de Estrasburgo, para a qual, seu filho, Marc Bloch, foi nomeado professor. O jovem Marc Bloch acompanhou de perto o drama em torno do caso Dreyfus, que envolvia questões relacionadas com o nacionalismo, o antissemitismo e a divulgação de falsas notícias sobre o episódio, por uma imprensa que jogava com a opinião francesa. O caso Dreyfus o fez perceber como falsas notícias distorcem a verdade dos fatos, algo que se repetiu na Primeira Guerra Mundial18. Segundo Fink isso teria despertado no jovem historiador uma preocupação com as falsificações na história19. Bloch estudou no Liceu Louis-Le-Grand, tendo se formado em instrução clássica (Letras e Filosofia) passou no baccalauréat em 1903, e depois ingressou na Escola Normal Superior, em 1904, mesmo ano em que ela foi anexada à Universidade de Paris (Sorbonne). Naquele momento, a disciplina de História era obrigatória e lecionada por Emile BARTHÈLEMY, Dominique. Marc Bloch, p.102. FINK, Carole. Marc Bloch, p.2. 17 Defensor da causa do capitão Alfred Dreyfus (1859-1935), judeu acusado de traição e condenado injustamente de ter colaborado com os alemães. O Caso Dreyfus ficou famoso por revelar a presença do antissemitismo na sociedade francesa. Ele ficou preso de 1894 a 1906 na Ilha do Diabo na Guiana Francesa, quando sua condenação foi revista pelo Tribunal de Apelação. Auxiliou em sua defesa o historiador Gabriel Monod (1844-1912). 18 Para Bloch, “uma falsa notícia nasce sempre de representações coletivas que preexistem ao seu nascimento. Ela é o espelho, uma consciência coletiva”. BLOCH, M. Écrits de guerre, 1914-1918, p.23. 19 FINK, Carole. Marc Bloch, p.22-3. 15 16

Durkheim (1858-1917). Bloch adquiriu sua licença em 1905, mediante um estudo sobre os termos vassi e vassali nas capitulares de Carlos Magno. No segundo ano passou à orientação de Christian Pfister, um dos diretores da Revue Historique ao lado de Monod, quando obteve seu diploma de estudos superiores com uma pesquisa “sobre a história econômica e social da região sul de Paris”20. Naqueles seus anos de formação os dois jovens foram influenciados por uma série de correntes intelectuais e científicas, algumas contraditórias, outras às quais se sentiam ligados de modo diferente, mas que marcaram seus trabalhos e suas orientações nos Annales. Resumidas a número de três: a escola geográfica de Vidal de La Blache, o movimento criado em torno da Revue de Synthèse por Henri Berr, enfim a sociologia durkheimiana.21

A estas eu acrescentaria a influência dos historiadores metódicos. Em 1905, a maioria dos normalistas era protestante, situação que foi mudando bastante a partir de então com o ingresso de judeus e católicos22. No Collège de France ocorria o inverso: a maioria dos docentes era católica, tal situação teria peso enorme no seu destino acadêmico futuro. Em 1908, Bloch ganhou uma bolsa da Fundação Thiers e foi passar uma temporada de estudos na Alemanha. Foi lá que começou sua pesquisa de conclusão de curso, concluída sob a orientação de Christian Pfister, tratando do desaparecimento da servidão nos arredores de Paris entre os séculos XII e XIII. Nela fez um exaustivo estudo dos registros eclesiásticos disponíveis realizando uma análise detalhada de aspectos sócioeconômicos da manumissão. Ou seja, dedicou-se a estudar transformações da economia rural, sobretudo nas relações senhor-camponês, tema que era bastante estudado na Alemanha, mas pouco na França. Pfister era amigo próximo de Langlois e ambos tinham relações estreitas com Bloch. As inspirações para a tese vieram dos estudos de Karl Bücher (1847-1930), amigo de Jacob Burckhardt (1818-1897) e professor em Leipzig, um dos difusores da estatística e da história econômica na Alemanha e, também, do sociólogo Emile Durkheim (1858-1917). O primeiro, em sua obra, Die Entstehung der Volkwirtschaft (A ascensão da economia nacional) trouxe um novo olhar sobre a análise da economia pré-capitalista. O segundo generalizou o recurso aos estudos comparativos e dirigiu a revista de sociologia que era lida sistematicamente historiadores: a Année Sociologique. Ali se aproximou de temas que o acompanhariam por toda a vida:

20 21 22

FINK, Carole. Marc Bloch, p.27. MÜLLER, Bertrand (org). Marc Bloch – Lucien Febvre, v.1., p.XIV. FINK, Carole. Marc Bloch, p.39.

as formas e práticas de justiça feudal; o fim da antiga escravatura; as primeiras origens do feudalismo; o desenvolvimento dos dízimos; as características da nobreza; o papel do clero na sociedade e na economia; o desenvolvimento do comércio, da moeda e do crédito; a história da sociedade urbana de Roma à Idade Média; e os aspectos sociais e políticos da arte, literatura e arquitetura medievais23.

Esse primeiro trabalho foi publicado na Revue de Synthèse Historique de Henri Berr, em partes, de 1903 a 1913, dentro da coleção intitulada Les régions de la France. Ao concluir a bolsa da Fundação Thiers, em 1912, obteve seu primeiro emprego, no Liceu de Montpellier. Naquele momento começou a interessar-se pela formação do povo e da monarquia francesa. Outra leitura alemã teria motivado-lhe alguma inspiração para esta pesquisa: Die rechtlichen Grundgedanken der franzöischen Königskröning mit besonderer Rücksicht auf die deutschen Verhältnisse (O conceito jurídico de Reino da França com especial referência às particularidades alemãs) de Hans Schreuer (1866-1931), publicada em 191124, em que os ritos de coroação franceses e alemães eram investigados à luz do desenvolvimento do poder real. Bloch leu e discutiu esta obra em Montpellier, cujos apontamentos ficaram guardados em uma pasta institulada Notas sobre os reinados sagrados25. Dela surgiu o interesse de redigir Os reis taumaturgos, de 1924, onde apontou suas divergências com Schreuer em relação ao surgimento e às características da monarquia francesa e introduziu uma abordagem inovadora nos estudos históricos então vigentes, a respeito das representações coletivas, conceito extraído da sociologia durkheimiana. No começo do ano seguinte lecionou também em Amiens26, onde deu a aula sobre o texto que circulou entre os alunos, Crítica histórica e crítica de testemunho, um breve ensaio de metodologia da história, que realiza a tentativa de estabelecer a diferença entre o falso, o provável e o verdadeiro, assunto, diga-se de passagem, que remete à questão da crítica do perspectivismo realizada séculos antes por Johann Martin Chladenius (1710-1759) em seu Algemeine Geschicthswissenchaften de 1752, o qual havia dedicado vários capítulos à discussão do conceito de Sehepunkt (ponto de vista). Devese ainda registrar que o debate sobre os testemunhos havia conhecido enormes avanços na França, em particular na Escola de Chartres desde

FINK, Carole. Marc Bloch, p.43. SCHREUER, Hans. Die rechtlichen Grundgedanken der franzöischen Königskröning mit besonderer Rücksicht auf die deutschen Verhältnisse. 25 Arquivo Nacional Francês, AB XIX, 3845. Apud: FINK, Carole. Marc Bloch, p.87. 26 GURIEVITCH, Aaron. A síntese histórica e a Escola dos Annales, p.40. 23 24

a publicação da obra de Jean Mabilon (1632-1707) De res diplomatica em 1681, como reconhece o próprio Bloch27. Em 1914 Bloch resenhou o livro daquele que no futuro viria a ser seu grande amigo e parceiro, Lucien Febvre, que versava sobre sua terra natal, a Histoire de Franche-Comté. Criticou seu estilo e linguagens exuberantes, sua abordagem superficial durante o medievo e a desconsideração da identidade social na região28. O troco de Febvre viria no futuro, em sua ácida resenha sobre A sociedade feudal. A atmosfera acadêmica francesa passava por um rico momento de transformação, com a emergência de novos campos e abordagens. Com destaque tanto para a sociologia, para a filosofia, quanto para a geografia que, passaram a desenvolver inovadoras propostas que se firmaram no ambiente intelectual. De um lado Comte (1798-1857), Durkheim, François Simiand (1873-1935) e Marcel Mauss (1872-1950) se destacaram nos estudos sociológicos que tiveram forte impacto sobre toda uma geração de historiadores. Bloch e Febvre, igualmente, tiveram como leitura obrigatória o livro de economia política de Simiand. 29 Esse grupo conseguiu desvencilhar-se da forte hegemonia teutônica exercida sobre o campo. Estrasburgo sintetizava esse espírito de renovação do pensamento francês e da influência científica exercida pelos alemães. Naquele momento, Simiand desferiu um ataque mortal à historiografia tradicional, condenando os chamados ídolos dos historiadores (cronológico, individual e político)30. O debate acalorou-se e contou inclusive com intervenções de Gustave Bloch que condenou tanto a contingência na história quanto a existência de uma objetividade absoluta. Para Carole Fink, “Bloch assumiu uma posição intermédia entre Seignobos e Durkheim, objectando contra a ‘falsa’ distinção entre o indivíduo e a sociedade, visto esta ser, simplesmente, um grupo de ‘indivíduos’”31. Ele valorizava o estilo de Coulanges, cuja fotografia ficava sobre a mesa do gabinete de estudos do pai. De outro, Vidal de La Blache (1845-1918) e a nova escola de geografia humana, co-fundador da revista Annales de Géographie, rejeitavam o determinismo geográfico alemão. Por fim, no campo da filosofia, o pensamento do amigo de seu pai, Henri Bergson, inaugurou um forte debate com o positivismo filosófico, propondo categorias de duração, movimento, simultaneidade,

BLOCH, Marc. Apologia da história ou o ofício do historiador, p.90s. Revue de Synthèse Historique, n.28, p.354-6, 1914. 29 DOSSE, François. A história, p.73. 30 SIMIAND, François. Método histórico e ciência social. A estes Bloch introduziria um quarto: o ídolo das fontes. Para ele “um documento é uma testemunha e, como a maior parte das testemunhas, só fala se interrogado. O difícil é elaborar o questionário. É aí que a comparação proporciona a esse perpétuo juiz de instrução que é o historiador um precioso auxílio. BLOCH, M. Para uma história comparada. In: BLOCH, MARC. História e historiadores, p.123. 31 FINK, Carole. Marc Bloch, p.36. 27 28

percepção e memória que teve influência em vários estudiosos e discípulos32. Com o início da Primeira Guerra Mundial, Bloch deixou Paris a 4 de agosto, sendo destacado como sargento no 272º Regimento, 18ª Companhia, 4º Pelotão. Embora tenha passado a maior parte do tempo longe do front viveu alguns momentos de grande risco em Montmédy, em Larzincourt no Marne, nas trincheiras de Gurerie, estando adoentado várias vezes, tendo contraído disenteria e depois tifo, quando hospitalizou-se por mais de 5 meses em 1915. Deslocou-se para Argonne onde permaneceu até 1916. A 14 de dezembro seu destacamento foi transferido para a Argélia, quando percorreu Philippeville, Biskra, Constantine e Argel, tendo regressado à França somente em março de 191733. Em 24 de novembro retornou para sua terra natal, na Alsácia agora libertada em meio a calorosa e patriótica recepção, indo depois para Paris encontrar-se com sua família. Cicatrizes formadoras: a originalidade e seus dilemas. Ou o apagamento da influência germânica em Estrasburgo. A atmosfera em que estudou era favoravelmente reformista, marcada pelo clima de revanchismo devido à derrota para os alemães na Guerra Franco-Prussiana (1870-1), que fez emergir um forte sentimento nacionalista francês. De todo modo, as relações francesas e alemãs na dimensão do pensamento continuavam marcadas por um diálogo constante e uma intensa atração34. Peter Schöttler, historiador do CNRS, alude à existência recalcada de uma clara inspiração alemã 35 e analisa o modo como nos seus períodos formativos Bloch e Febvre dialogaram diretamente com as ciências históricas alemãs. Febvre chega ao ponto de afirmar que era preciso “desaprender dos alemães”, e visitou aquele país em 191836. No caso dos estudos históricos, havia uma disseminação do modelo de seminário nas universidades, com a adoção de um enfoque científico, inspirado na escola rankeana. Esse modelo foi adotado após um processo de reforma capitaneada, sobretudo, por Ernest Lavisse FINK, Carole. Marc Bloch, p.32. FINK, Carole. Marc Bloch, p.80s. 34 A respeito ver RINGER, Fritz. Fields of Knowledge: French Academic Culture in Comparative Perspective, 1890-1920 e também a recente dissertação de mestrado defendida por ROCHA, Sabrina M. Lucien Febvre, Marc Bloch e as ciências históricas alemãs (1928-1944). 32 33

Ver SCHÖTTLER, Peter. “Desappendre de l’Allemagne”: les Annales et l’histoire pendant l’entre deux-guerres. In: CLARK, Stuart (ed.) The Annales critical assessments. 36 SCHÖTTLER, Peter. French and German historians´ Networks: the case of de Early Annales. In: CHARLE, Christophe, SCHRIEWER, Jürgen & WAGNER, Peter (org.). Transnational Intellectual Networks. Forms of Academic Knowledge and the Search for Cultural Identities. 35

(1842-1922) e Gabriel Monod (1844-1912). Curiosamente, ambos vivenciaram temporadas de estudos na Alemanha; o primeiro em Berlim no ano de 1875 – o que marcou sua produção acadêmica com cinco obras dedicadas à história daquele país – e o segundo, após ter sido aluno de Michelet (1798-1874) seguiu para o país vizinho onde foi aluno de Georg Waitz (1813-1886) – um dos pupilos de Leopold von Ranke (1795-1886) – em Göttingen em 1866 e, em seguida, estudou com o próprio Ranke na Universidade de Berlim no ano de 1867. Tais referências demonstram a mudança da orientação dos estudos históricos de uma esfera mais literária e romântica para outra mais cientificamente orientada, nos moldes preconizados por Ernest Renan (1823-1892)37 e por Fustel de Coulanges (1830-1889)38. É com esse espírito – ao mesmo tempo influenciado pelo pensamento alemão, mas sob acentuada afirmação nacionalista – que foi oferecido, entre 1896 e 1897, na Sorbonne o famoso curso de historiografia de Charles Seignobos (que entre 1876 e 1877 fez cursos em Göttingen, Berlim, Munique e Leipzig) e Charles-Victor Langlois, quando se firmaram princípios e técnicas mais rigorosos de pesquisa e de crítica documental históricas que ficariam celebrizadas em seu famoso manual39 cujo modelo foi o Lehrbuch der historischen Methode, publicado em 1889 por Ernst Bernheim (1850-1942). Vale dizer que Bloch foi aluno de Langlois e Seignobos, assim como de Gabriel Monod, que havia fundado a Revue Historique, tendo como modelo a Historische Zeitschrift alemã. Para Michel de Certeau aquele período marca um momento de repolitização da ciência, que não seria um retorno da ideologia à pesquisa, mas, de postura crítica da presença de ideologias no universo científico40. Na análise de André Burguière, a geração de 1870 tinha fascínio pelo pensamento social alemão, ao mesmo tempo em que deplorava, paradoxalmente, seu nacionalismo. Salienta ainda a influência pessoal e intelectual exercida por Henri Berr sobre aquela geração41. A ênfase sobre a história política, muito disseminada pelos alemães, começava a ser combatida até mesmo por Gabriel Monod que em um artigo publicado na Revue Historique defendia uma história que se ocupasse mais do lento desenvolvimento das instituições e das condições econômicas e sociais42. Ao lado dele também estavam Henri Hauser (1866-1946) que introduziu o estudo da história econômica na Sorbonne e Ferdinand Lot (1866-1952) um dos criadores da La Revue Em sua Reforma intelectual e moral de 1871. Ver, seus textos programáticos sobre a história científica em HARTOG, François. O século XIX e a história: o caso Fustel de Coulanges. 39 LANGLOIS, Charles V. & SEIGNOBOS, Victor. Introdução aos estudos históricos. (primeira edição francesa 1898). 40 CERTEAU, Michel de. A operação historiográfica. In: A escrita da história, p.72s. 41 BURGUIÈRE, André. L´École des Annales – une histoire intelectuelle, p.27. 42 Revue Historique, n.61, 1898, p.325. 37 38

d´Histoire des Doctrines Economiques et Sociales (1908), que depois de 1914 passou a se intitular La Revue d´Histoire Economique. Do outro lado do Reno, na Universidade de Leipzig, Karl Lamprecht (1856-1915) vinha defendendo desde o início do século XX uma história total e voltada para as questões sócioculturais, que pudesse englobar a totalidade das ações humanas43. Ele se inseria no famoso debate alemão sobre o método (Methodenstreit) que teve forte repercussão na historiografia francesa na primeira década do século XX44. Seu aluno e discípulo, o belga Henri Pirenne (1862-1935) em seus estudos sobre as cidades e sobre a Bélgica, também escreveria um novo tipo de história seguindo estes pressupostos, mais global e integrava aspectos, culturais, demográficos e econômicos. Pirenne também exerceu forte influência sobre Marc Bloch e sobre os Annales. Forçoso é lembrar que ele também realizou estudos na Alemanha, entre 1883 e 1884, junto à Universidade de Leipzig, assistindo aos seminários de Harry Bresslau (1848-1926), Georg Waitz e Gustav Schmoller (1838-1917). Erudito, apreciador de uma história total, sócioeconômica e comparativa, presidiu o 5º Congresso Internacional de Ciências Históricas em 1923 na cidade de Bruxelas, que havia sido criado em 1898 em Haia e que tinha mais de mil filiados. Apesar de ser um dos editores da Revista Quadrimestral de Economia Alemã, Pirenne impediu a participação de pesquisadores alemães naquele congresso, e, também dos russos, por conta de divergências ideológicas. Foi lá que Bloch estabeleceu vários contatos e falou sobre o caráter sagrado da realeza. A partir de então começou a corresponder-se com vários especialistas estrangeiros. De modo semelhante aos alemães, Bloch aproximou-se das ciências sociais, também entendidas como ciências auxiliares. Especialista em história comparada conseguia enxergar com clareza peculiaridades e aspectos pontuais da sociedade medieval, revendo as aporias do realismo existente nas fontes. Valorizava a pesquisa de arquivo e a erudição, “seu mundo mental abrangeu centenas de anos e vários continentes, paisagens e idiomas”45. Conhecia e lia em grego, latim, espanhol, russo, sueco, inglês e alemão. Seu recurso ao método comparativo inspirava-se, sobretudo, nos trabalhos do amigo Antoine Meillet (1866-1936)46, que inspirou também Henri Sée (1864-1936), mas ele era utilizado frequentemente em muitos artigos da Année Sociologique e na obra de Henri Pirenne. Bloch o considerava uma excelente ferramenta para pesquisa histórica e o defendia para MICHAUD, Francine. Marc Bloch (1886-1944). In: DAILEADER, Philip & WHALEN, Philip (org). New historical writing in twentieth century France, p.78. 44 Ver, especialmente, LAMPRECHT, Karl. What is history? Five lectures on the modern science of history. 45 FINK, Carole. Marc Bloch, p.346. 46 Que segundo ele insistiu vivamente nesse ponto ao estudar as línguas. BLOCH, M. Comparaison. Revue de Synthèse, 49, junho, p.31-39, 1930. 43

distinguir nas sociedades europeias aquilo que fosse genuíno do mais comum. Para ele, o “método comparativo pode muito; considero a sua generalização e o seu aperfeiçoamento uma das necessidades mais prementes que hoje se impõem aos estudos históricos”47. Sua perspectiva era a da compreensão histórica, evitando sistemas gerais como os de Oswald Spengler (1880-1936) ou H. G. Wells (1866-1946), rejeitando o marxismo mais ortodoxo, mantendo, contudo, sua fidelidade a Coulanges e Durkheim. A atração pela história econômica, do mesmo modo, desenvolveu-se no contato com a historiografia alemã. Contudo, seu interesse maior, ou predileção, era o estudo dos sistemas fundiários e da economia rural, campo dominado por historiadores como Georg Hanssen (1904-1944), Georg F. Knapp (1842-1926), August Meitzen (1822-1910) ou Frederick Maitland (18501906). Os caracteres originais da história rural francesa, obra que sintetiza esse interesse, publicam-se em 1931. Com sete capítulos, o primeiro dedicado a elucidar os procedimentos da pesquisa e nos outros as fases de ocupação do solo, os vários tipos de campos, o desenvolvimento do regime feudal, a relação entre senhores e servos, tipos de vida, avanço das técnicas de recuperação e exploração dos solos e os padrões de continuidade entre o passado e o presente. Henri Berr, outra figura exponencial naquele contexto, professor de retórica no Liceu Henri IV e fundador da Revue de Synthèse Historique (1900), já era um ardoroso defensor da interdisciplinaridade e fundador de um fecundo debate sobre os usos da metodologia e a importância da história para os estudos sociais48. Berr também nutria grande interesse e combatia com vigor o pensamento alemão em seu tempo. Não por acaso devotou duas obras para analisar a história e o pensamento germânico49. Nas páginas de sua revista, publicou inúmeros artigos sobre historiadores e teóricos alemães como Karl Lamprecht, Friedrich Meinecke (1862-1954) e Heinrich Rickert (18631936) dentre outros. Tinha boas relações com Lamprecht, que, como ele, era um crítico do ambiente intelectual germânico em seu tempo. Em 1923, Berr criou o Centro Internacional de Síntese, mas, ao contrário de Febvre e Bloch, jamais quis criar uma escola ou disciplinar seguidores à moda de Durkheim50. Sua revista, contudo, seria modelar para Febvre que a considerava o “cavalo de Tróia da nova história”51. É nesse ambiente que se amalgama o pensamento e a consciência histórica de Marc Bloch. Testemunha desse debate e imerso naquela BLOCH, Marc. Para uma história comparada das sociedades europeias. In: História e historiadores, p.119. Este texto é o que ele apresentou em sua comunicação em Oslo. 48 PLUET-DESPATIN, Jacqueline. Introducion. In: BLOCH, M. Écrire La Société féodale. Paris, Imec Éditions, 1992, p.13. 49 BERR, H. Les allemagnes e Le germanisme contre l´esprit française. 50 DOSSE, François. A história em migalhas: dos Annales à nova História, p.45. 51 Apud PLUET-DESPATIN, Jacqueline. Introducion, p.14. 47

atmosfera de inovação, inicialmente ele se preocupa com a cientificidade e a objetividade da história, que poderiam ser alcançadas por meio da crítica documental, acompanhando seus mestres Monod, Langlois e Seignobos. Mas, embora se servisse da sociologia positivista, percebia que certos fenômenos históricos eram mais complexos e escapavam a generalizações mais rígidas. Nesse sentido, alertava para uma dimensão psicossocial – que ligavam o objeto investigado e o historiador – que poderiam receber infinitas interpretações. Precisamente aqui expunha sua cicatriz formadora de origem: a estadia na Alemanha, entre 1908 e 1909, que o fizera aproximar-se da história econômica, dos estudos medievais e do método compreensivo. Aluno em Berlim e depois em Leipzig, Bloch assistiu às aulas de Max Sering (1857-1939) que estudava sistemas fundiários e de preços na Alemanha, Rudolf Kötzschke (1867-1949) especialista em História econômica medieval discípulo de Lamprecht e professor em Leipzig; Adolf von Harnack (1851-1930), teólogo e historiador do cristianismo e da igreja medieval; Rudolf Eberstadt (1856-1922) com pesquisas sobre o desenvolvimento fundiário e habitacional urbano e Karl Bücher (1847-1930) importante historiador econômico e estudioso da imprensa. Foi na Alemanha que conheceu os louros obtidos com a Monumenta Germaniae Historica, que acompanhou o debate em torno da escola de Lamprecht, os desenvolvimentos dos estudos econômicos com a escola de Schmoller e a inovação sociológica com a obra de Max Weber (1864-1920)52. Ali conheceu a maturidade de uma história científica, autônoma e triunfante, cujos expoentes encontravam-se articulados em diferentes centros de ensino ligados a importantes universidades e projetos editoriais que passavam por um processo de grande renovação. Em 1919 Marc Bloch foi convidado a lecionar na reinaugurada Universidade de Estrasburgo como professor assistente de História Medieval53, sua escolha havia sido motivada por seu novo reitor, Christian Pfister. Criada em 1538 pelos protestantes, ela acabava de ser novamente aberta pelos franceses depois do controle alemão de quase meio século, entre 1871 e 1918. Sua biblioteca era a maior acadêmica do mundo, ela seria superada por Harvard somente em 1920. Isso dá a dimensão dos esforços germânicos que inclusive tinham-na batizado de Kaiser Wilhelms-Universität Strassburg, para que fosse um importante centro difusor do pensamento alemão encravado em território anteriormente francês e bem no coração da Europa. Todos os professores alemães foram demitidos, por lá haviam passado nomes como Wilhelm Windelband (1848-1915) entre 1882 e 1912 e Georg Pelo menos é o que creem OEXLE, O. G. Marc Bloch et la critique de la raison historique. In: ATSMA, Hartmut; BURGUÈRE, André (orgs.). Marc Bloch aujourd´hui, p.85 e GURIEVITCH, Aaron. A síntese histórica e a Escola dos Annales, p.57. 53 A Faculdade de Letras e Ciências Humanas, Estrasburgo II, leva hoje o nome de Marc Bloch. 52

Simmel (1858-1918) em 1914. Entre os alunos, mais de 800, muitos não falavam francês, de modo que além de História Medieval, Bloch ensinou também francês elementar. Entre os livros, Bloch percebeu a inexistência de obras de história francesa bem como nenhum livro de Fustel de Coulanges54.Em julho de 1919, regressou a Paris para se casar com Simonne Vidal. Juntos tiveram seis filhos, Alice (1920), Etienne (1921), Louis (1923), Daniel (1926), Jean-Paul (1929) e Suzanne (1930). Em Estrasburgo Bloch substituiu o antigo coordenador do Seminar alemão e passou a dirigir o Instituto de História da Idade Média. Lá encontrou o livro de Johann Joachim Zentgraf (1643-1707) sobre os ritos curativos dos reis franceses, o Tractatus de foederibus sive pactis, quae cum humano genere Deus iniit et de Testamentis divinis de 1706. A universidade criou também um convênio com o Centro de Estudos Germânicos na Universidade de Mainz, onde havia soldados e cidadãos franceses, onde Bloch deu várias aulas e foi examinador convidado para bancas de conclusão de curso. Em Estrasburgo, reinava um clima interdisciplinar e de síntese, no qual todos os professores da Faculdade se encontravam aos sábados para apresentar suas pesquisas e trabalhos, discutindo ainda temas relacionados com literatura, metodologia e teoria. Participaram como convidados desses encontros Gustave Bloch e Henri Pirenne. Eram frequentadores assíduos os estrasburguenses: Febvre, que havia deixado uma cadeira na Universidade de Dijon, Bloch e o amigo Maurice Halbwachs (18771945), dentre outros. Devido a uma dispensa especial oficial do governo para aqueles que tinham lutado na guerra, Bloch defendeu um trabalho sintético para obter o doutorado, cuja banca de seis membros foi presidida por Charles Seignobos, obtendo a nota máxima, très honorable. Ele havia entregue o que chamou de uma segunda edição de um trabalho de 1912 já publicado: Les formes de la rupture de l´hommage dans l´ancien droit féodal, com a inclusão do indicativo de novas fontes e uma discussão abreviada da metodologia empregada. Sua tese principal foi publicada em seguida Rois et serfs, no qual estudou duas cartas de alforria, uma de Luís X, de 1315 e outra de Filipe V, de 1318 em torno das quais tinham sido produzidas várias falsificações históricas. O estilo e o método de Bloch manifestaram-se em Rois et serfs. Não havia narrativa. Em vez disso, como um investigador judicial, Bloch procedia a um exame aos documentos, colocando rigorosas questões (que invariavelmente conduziam a outras) e inserindo ocasionalmente um comentário sucinto a respeito da própria prova55. 54 55

Carta a Ferdinand Lot, 11 de janeiro de 1920. Apud: FINK, Carole. Marc Bloch, p.86. FINK, Carole. Marc Bloch, p.86.

Suas virtudes incluíam o recurso a aspectos jurídicos, sociais, políticos, econômicos e psicológicos a fim de construir uma imagem mais próxima do passado. Destacavam-se suas preocupações sócioeconômicas e o apelo à compreensão (Verstehen) à moda dos alemães. Apreciador da erudição e da crítica era um professor severo, frio, elegante, irônico, cáustico e corrosivo, nos dizeres de alguns exalunos56. Não seria ocioso dizer ainda, que Bloch havia lido Marx e apreciava a obra e a atuação política de Jean Jaurès (1859-1914). Valorizava a síntese, a objetividade e a abertura às novas ideias. “Extremamente orgulhoso de seu cosmopolitismo, Bloch tinha horror pelas compartimentalizações”57 e encorajava seus alunos a aprenderem alemão, cuja historiografia admirava, embora criticasse o germe do nacionalismo excessivo que se ocultava sob a superfície científica de muitos trabalhos. Apesar de alsaciano, Bloch nunca estudou assuntos locais. Enquanto o grupo do reitor Pfister, intitulado jacobino, era mais atuante, Bloch manteve-se ao lado dos non-engagés, afinal, diz: Nós saímos da última guerra desesperadamente cansados e, após quatro anos não só de combates mas de preguiça mental, estávamos mais que ansiosos por voltar aos nossos empregos habituais e por pegar nas ferramentas que estavam enferrujando nas nossas bancadas.58

De qualquer modo, apesar do interesse crescente dos leitores pela vida cotidiana, sobre as condições de vida nas sociedades humanas do passado e do flagelo da guerra que deslocou o interesse para a história dos grupos, sociedades e indivíduos, a história política e nacional não desapareceram. Ambições acadêmicas e máquinas de guerra: será que a história nos enganou? A necessidade de constituir um veículo próprio para disseminar seus estudos e sua compreensão da história leva Bloch e Febvre a criarem sua própria revista de história. A ideia inicial partiu de Lucien Febvre, que manifestou o interesse de criar uma revista internacional de história em 1921. Ele levou essa proposta à Seção de História Econômica no Congresso Internacional de Bruxelas em 192359, quando após um impasse sobre a inclusão ou não dos alemães acabou sendo esquecida60. No começo de 1928, Bloch reviveu a ideia, mas propondo a criação de uma revista nacional de excelência com colaboradores BRUNSCHWIG, Henri. Vingt ans aprés (1964). Souvenirs sur Marc Bloch. In: BLOCH, M. L´histoire, la Guerre, la Résistance, p.1022. 57 FINK, Carole. Marc Bloch, p.98. 58 BLOCH, Marc. A estranha derrota, p.215. 59 MÜLLER, Bertrand (org). Marc Bloch – Lucien Febvre, v.1, p.XXII. 60 Como revela LYON, Brice & LYON, Mary. The birth of Annales History: the letters of Lucien Febvre and Marc Bloch to Henri Pirenne (1921-1935). 56

internacionais. Henri Pirenne havia sido convidado para ser um dos diretores dessa nova revista, mas declinou. Foi então que se empenharam, ao longo do ano de 1928, tocando intensa correspondência. Instalados na Universidade de Estrasburgo, alimentavam o desejo de ocupar uma cadeira de história nas prestigiosas instituições da capital, o Collège de France ou então a Sorbonne. E a revista, bem o sabiam, poderia ser a ferramenta indispensável para isso. No verão de 1928, Bloch foi para o 6º Congresso Internacional de Ciências Históricas, em Oslo, onde anunciou a criação dos Annales de Histoire Economique et Sociale e lá fez os contatos necessários para angariar os primeiros colaboradores e artigos61. No panfleto que levou a esse respeito indicava que o novo periódico seria orientado para os problemas e não para antiquários. Não queremos uma revista de erudição pura e seca, de uma nomenclatura usada de fabricantes de fichas em série, nós queremos uma revista bem informada, que possa se ler e que sustente seu contingente de informações não somente nos especialistas, no sentido estreito do termo, de história “econômica” – mas a todos os historiadores e mais geralmente a todos aqueles que se interessam pela vida intelectual, que se intitulam sociólogos, filósofos, juristas ou economistas.62

A ideia de uma história problema não era nova, já havia sido proposta por historiadores como Lord Acton, na Inglaterra ou Michelet, na França. Ela se opunha à história relato, na qual os acontecimentos eram encadeados numa sequencia causal. Estabeleceram contatos com alguns editores, como Émile Bréhier da Livraria Universitária J. Gamber, Pierre Caron das Edições Rieder, e com E. Schneider, da editora Alcan; este último revela que sua editora já publicava o Journal des Économistes. Depois de negociações com as editoras Alcan e Armand Colin, firmaram contrato com esta última. Os Annales deveriam ser um manual atualizado de combate, escrito em linguagem acessível e para difundir as principais realizações no campo da história econômica e social realizados na França e em outros países. Ambiciosos, antes mesmo de sair o primeiro número da revista, no final de 1928, Febvre e Bloch anunciaram sua candidatura a uma cadeira no Collège de France. Diga-se de passagem, que o desejo de lecionar em Paris era natural. Lá estavam as melhores universidades, alunos, arquivos organizados, atividade cultural, editoras, revistas e bibliotecas. Como a revista ainda não lhes havia auferido certa preeminência no cenário historiográfico francês, embora já tivessem produzido trabalhos com certa repercussão, não deixou de ser uma Vide carta de Bloch a Febvre de 22 de agosto de 1928. In: MÜLLER, Bertrand (org). Marc Bloch – Lucien Febvre, v.1, p.48. 62 Carta de Febvre de 1º de março de 1922. In: The birth of Annales History, p.32. 61

estratégia eficiente de disputa da hegemonia exercida pelos periódicos fundados em Paris. Febvre era oito anos mais velho que Bloch, filho único, estudioso, que havia passado pela Escola Normal Superior pouco antes de sua reforma e incorporação à Sorbonne. Escolheu abraçar a carreira de historiador para rever “a história vista pelos vencidos de 1879”63 e por meio do estímulo de três normaliens: Gustave Bloch, Gabriel Monod e Christian Pfister. Pode-se dizer que suas influências foram o pensamento dos amigos e psicólogos Henri Wallon (1879-1962) e Charles Blondel (1876-1939), do germanista Ernst Tonnelat (18771948), mas também de Vidal de La Blache, Durkheim, Meillet, Lucien Levy-Bruhl (1857-1939), Henri Pirenne e, sobretudo, pelo espírito de síntese de Henri Berr. Admirado pelos pares, professor imaginativo e brilhante criou em Estrasburgo o Instituto de História Moderna. As relações de Febvre com os intelectuais mais velhos e suas qualificações acadêmicas e profissionais eram tão consideráveis quanto as de Bloch em 1928, embora este tivesse o apoio do próprio pai, professor famoso da Sorbonne, e pelo notável Henri Pirenne. Mas, Febvre tinha acabado de publicar um estudo muito comentado sobre Martinho Lutero. Seu perfil humanista e cosmopolita o projetava para além de Estrasburgo. Personalidades semelhantes, ambos eram patriotas e procuravam manter-se longe das disputas políticas. Bloch acabou declinando de sua candidatura ao Collège de France em prol do amigo. Naquele ano, Febvre havia completado 50 anos. Dois anos antes, em 1926, sua candidatura para a cadeira que havia sido de Charles Seignobos foi rejeitada na Sorbonne; em março de 1932 ele também havia tentado sem sucesso. Sua sorte mudou quando o ministro da Educação criou uma nova cadeira de História Moderna no Collège e escolheu Febvre para dirigir a prestigiosa Encyclopèdie Française, onde liderou mais de 300 colaboradores. Assim, Febvre foi escolhido por unanimidade para a cadeira recém-criada. Em carta para Bloch afirma: “agora será a sua vez”. De fato, naquela altura Bloch destacava-se internacionalmente, graças ao reconhecimento da revista dos Annales, tendo recebido a incumbência de escrever um livro sobre a Idade Média para a coleção de Henri Berr na sua coleção Evolução da Humanidade, deu aulas em Gand, em Madri, e na London School of Economics. Em 1933 surgiu uma nova vaga no Collège com a morte do germanista Charles Andler e Bloch passou a escrever cartas para angariar simpatizantes à sua candidatura, mas, naquela conjuntura, sua condição judaica foi um fator que pesou na sua recusa. Neste mesmo ano a artrite deixou suas mãos quase paralisadas e ele teve que ser substituído nas aulas por Charles-Edmond Perrin64. Não foi escolhido. Com a morte de Camille 63 64

Apud: FINK, Carole. Marc Bloch, p.140. MÜLLER, Bertrand (org). Marc Bloch – Lucien Febvre, v.2, p.XIX.

Jullian, nova vaga se abriu em 1934. Febvre que havia levado a revista dos Annales para Paris vinha sendo criticado pelo amigo, que chamou de “muito parisiense”, de muito devotado à sua nau enciclopédica (a Enciclopédia Francesa) e de dar pouca atenção ao periódico65. Durante a campanha, novos reveses surpreenderam Bloch e, por fim a própria suspensão da seleção, devido a cortes orçamentários do governo em virtude da guerra. A crise na relação entre ambos, que havia piorado com a transferência da revista, para Bloch “era, com nossa separação, inevitável, por todo tipo de razões”66. Passam a discordar inclusive do volume dos artigos, alguns longos demais para Febvre, que diz que não poderiam mais “dar lugar a artigos de erudição, que são intermináveis, nós não somos a Revista Belga de Filologia”67; outros vagos demais para Bloch que afirma que deviam aceitar “apenas os [artigos] sérios e instrutivos. Isso que tenho horror, o artigo vago, sobretudo sobre fatos contemporâneos”68. Ainda em 1934, Bloch foi convidado para redigir um texto sobre a economia medieval para a Cambridge Economic History. Em 1935 é aberta uma nova cadeira, a de História do Trabalho de François Simiand, e Bloch se apresenta com mais quatro candidatos. A psicologia acabou triunfando sobre a sua proposta de história comparada das sociedades europeias. Febvre confessou-lhe que o antissemitismo poderia ser o fator que vinha atrapalhando sua escolha69. A relação entre ambos vivia momentos difíceis. Febvre havia inclusive se empenhado na candidatura de Émile Dolléans (1878-1954), algo que Bloch não conseguiu compreender. Ele protesta, inclusive, outras vezes, quando vê Febvre publicar resenhas elogiosas a trabalhos de seus concorrentes70. As relações entre Berr e Febvre também não eram mais as mesmas. Berr organizou para a Biblioteca Nacional uma exposição sobre a Enciclopédia e os enciclopedistas e ali lançou um jornal de natureza enciclopédica que, de certo modo, concorria com o projeto de Febvre: o Science. Colaboradores nos projetos de ambos entre si, a aparição do primeiro número de Science “surpreende desagradavelmente Febvre”, em particular seu subtítulo: A Enciclopédia anual71 que reagiu violentamente, deixando todos os postos de direção que ocupava na Revue e no Centre de Berr, embora tenha revisto tal MÜLLER, Bertrand (org). Marc Bloch – Lucien Febvre, v.2, p.XXVIII. Carta de 22 de janeiro de 1934, MÜLLER, Bertrand (org). Marc Bloch – Lucien Febvre, v.2, p.13. 67 Carta para Bloch de 23 de janeiro de 1935, In: MÜLLER, Bertrand (org). Marc Bloch – Lucien Febvre, v.2, p.204-205. 68 Apud MÜLLER, Bertrand (org). Marc Bloch – Lucien Febvre, v.2 p.XXXI. 69 A recusa do nome de Bloch é, segundo Febvre, atribuída a dimensões institucionais – com as mudanças verificadas no Còllege – e confessionais. Os católicos eram maioria, face aos quatro judeus e aos dois protestantes. 70 MULLER, B., v.2, p.XX. 71 MULLER, B., v.2, p.XXIX. 65 66

decisão depois, falando que se tratara de um gesto impulsivo. Mas, a partir de então suas colaborações se resumiram a meras notas críticas72 nas páginas da revista do antigo amigo e, a partir de 1936, Febvre não publicou mais73. O exaustivo trabalho de seleção, de produção de resenhas e textos para os Annales tomou o tempo de seus diretores principais que voltaram a publicar obras fundamentais anos depois: A sociedade feudal (1939-1940), por Bloch e O problema da descrença ou a religião de Rabelais no século XVI (1942) por Febvre. O grande problema da Revista dos Annales era a difícil captação de assinantes e redução sensível das vendas. A disputa com a Revue Historique era desigual: estes podiam contar com os artigos dos melhores nomes existentes no cenário historiográfico francês Com a morte de François Simiand, Bloch mais uma vez se anima a candidatar-se ao Collège, mas, com a vaga da cadeira de Henri Hauser na Sorbonne, a única cátedra de história econômica que existia, ele resolveu optar pelo caminho mais seguro. Neste ano, 1935, havia morrido Pirenne, que também vinha tendo atritos com Febvre. Isso motivou mudanças na revista, cujo conselho diretor raramente se reunia. Ficava claro que Febvre estava a construir um caminho próprio de preeminência, gerando turbulências com seus antigos colegas e parceiros. Eleito, Bloch seguiu para a Sorbonne em 1936, mesmo ano em que foi criado o Centre Nacional de la Recherche Scientifique (CNRS). Na Sorbonne foi um professor admirado e popular. Seu primeiro curso foi sobre “A paisagem rural e a instituição senhorial na França e na Inglaterra, das origens até o século XIX”74. Criou com Maurice Halbwachs o Instituto de História Econômica e Social. Sua obra idealizada em 1931, sobre o feudalismo, começou finalmente a ganhar corpo. Depois de esboços publicados esparsamente ele pode sintetizálos na esperada A sociedade feudal, com o primeiro volume publicado em 1939 e o segundo em 1940 na prestigiada coleção de Henri Berr. Nela transcendeu os esquematismos jurídicos ou os textos localizados, para realizar uma grande síntese sobre o feudalismo europeu, inclusive tecendo comparações com outros lugares, como o Japão. De certo modo, sua abordagem de uma história global remete à História da Europa redigida por Pirenne na prisão entre 1914 e 191875. Essa obra coroa sua longa e difícil colocação no universo historiográfico de então. As críticas feitas a Berr, categóricas, podem ser vistas na carta que remete a Bloch em 21 de janeiro de 1934: “Berr veio em casa hoje à noite. Ele me irrita, me incomoda, ele se revela mais e mais um intransigente, fechado e incompreensivo e um tipo de messianismo beato sai de seus olhos, que o impede de ver a realidade”. IN: MÜLLER, Bertrand (org). Marc Bloch – Lucien Febvre, v.2, p. XXX. 73 MÜLLER, Bertrand (org). Marc Bloch – Lucien Febvre, v.3, p.XI. 74 BARTHÈLEMY, Dominique. Marc Bloch. In: SALES, Véronique (org.). Os historiadores, p.111. 75 PIRENNE, H. Histoire de la Belgique. Paris: Alcan, 1936. 72

Contudo, A sociedade feudal tem suas restrições, sua Europa era o mundo carolíngio, ignorava praticamente o clero e a burguesia, e sugeria o surgimento do nacionalismo no século XIII. Mas a crítica mais contundente veio do próprio amigo: Febvre reputou o livro como muito esquemático, desprovido de pessoas concretas e com um enfoque estreito de civilização. Antes mesmo da publicação do segundo volume, Bloch teve que regressar ao exército, juntando-se a milhares de reservistas para combater a ameaça nazista. Em relação à revista, Febvre se impôs, mudou seu nome, trocou membros do corpo editorial. Naquele momento, 1940, Bloch perguntou a Febvre o que achava de sua possível candidatura à direção da Escola Normal Superior, o amigo respondeu que tinha uma personalidade muito inflexível e que do ponto de vista profissional tal pleito poderia ser compreendido pelos rivais como ambição desmedida. Aponta por fim, o antissemitismo como um obstáculo ao seu pleito. Em 1939 Bloch deu aulas na EHESS, em Bruxelas, em Cambridge e em Estrasburgo. Em meados de agosto viajou à Genebra. Aflito com o futuro dos filhos, que estavam perto de ingressar na faculdade, com a sorte da família, que era judia, ele redigiu A estranha derrota. Obra em três partes, com uma abordagem típica de uma acusação judicial: o depoimento de um vencido, o exame de consciência de um francês e uma avaliação militar e política da derrota. Ali narra também suas experiências na guerra, redigidas “febrilmente de julho a setembro de 1940”76. E indicou o despreparo e a inatividade dos franceses para o conflito. Havia falta de equipamentos, problemas de avaliação e liderança das operações, dificuldades de comunicação com os aliados belgas e ingleses. Em 1939 a revista dos Annales foi reduzida a quatro números e passou a ser publicado pelos próprios diretores, recebendo o título de Annales d´Histoire Sociale. No editorial justificaram a mudança do nome, devido aos direitos do antigo editor, Armand Colin e a tranquilidade sobre a continuação da revista. O pomo da discórdia havia sido o número especial sobre a Alemanha de novembro de 1937. A partir de então “surgiram desacordos graves acerca de determinados artigos e recensões e verificaram-se debates processuais acerca do controle e tomada de decisões”77. Bloch reclamava da falta de reuniões entre os editores e dos atrasos na publicação. A grande divergência, contudo, vinha do fato de que Febvre buscava novos talentos e desejava constituir uma revista mais voltada para a história social, assumindo uma postura mais combativa e política, passando a atacar diretamente o poder representado pela geração de historiadores metódicos em Paris78. Bloch queria uma revista mais econômica, pedia mais BOURDÉ, G., MARTIN, H. As escolas históricas, p.124. FINK, Carole. Marc Bloch, p.163. 78 Como no duro ataque a Charles Seignobos. Un essai d´histoire européenne. Annales d´Histoire Sociale, p.294, 1939. 76 77

“seriedade e inteligência” e menos panfletismo. Com a intensificação da guerra e sua chegada ao território francês Bloch decide se mobilizar novamente e Febvre ficou sozinho na condução dos Annales. Naquele momento a grande ameaça da revista não era somente a indiferença da Sorbonne, mas o afastamento de seus diretores. Detalhe importante a considerar é que nos seus 17 anos de permanência em Estrasburgo, Bloch só concluiu uma orientação de mestrado, realizada pelo americano William Mendel Newman (1902-1977), cujo diário revela uma relação turbulenta, marcada por desentendimentos constantes e várias referências negativas às aulas e à personalidade de seu tutor79. Naquele momento, definiram-se algumas características que marcaram a imagem da Revista dos Annales: predomínio dos artigos em história econômica, praticamente nada sobre biografias, história eclesiástica, política diplomática ou militar, ou de história das ideias. Poucos artigos também sobre história social ou cultural. Era antimarxista, valorizava a interdisciplinaridade, rejeitava o historicismo alemão e todas as formas de determinismo. Segundo Fink, “com recursos e ambições limitados não criou séquitos nem escolas, mas fez irradiar um espírito de abertura próprio”80. Mas isso já existia na Revue de Synthèse, por exemplo. Durante o início das operações de guerra Bloch leu romances policiais, em especial de Agatha Christie, fez duas viagens à Paris, ouviu Bethoven e Mozart, comeu sanduíche em um café e assistiu a alguns filmes81. E confessa: “a ideia dominante dos alemães na condução desta guerra era a velocidade. Nós, pelo contrário, pensávamos em termos de ontem e de anteontem (...) fomos totalmente incapazes de compreender o ritmo acelerado dos tempos”82. Se a defesa da França havia sido uma lástima assim como os pífios contra-ataques, a retirada foi exemplar, embora os ingleses tenham embarcado antes das tropas francesas que abandonaram Dunquerque por último no dia 5 de junho de 1940. Em Rennes, Bloch adotou, em suas próprias palavras, uma “solução de professor”, vestindo-se de civil, hospedando-se em um hotel e evitando ser capturado pelos alemães. A ocupação alemã pôs fim à Terceira República e criou, virtualmente, três Franças: uma exilada com De Gaulle em Londres, outra ocupada e administrada pelos alemães e uma terceira, a zona livre administrada a partir da cidade de Vichy, que se tornou colaboracionista e autoritária. Sobre Bloch o risco de ser judeu. Foi a Vichy obter licença para lecionar, sendo deslocado para ClemontFerrand, onde estava parte da sua antiga Universidade de Estrasburgo 79 80 81 82

FINK, Carole. Marc Bloch, p.173. FINK, Carole. Marc Bloch, p.167. FINK, Carole. Marc Bloch, p.218. BLOCH, Marc. A estranha derrota, p.69.

evacuada. A política antissemita adotou leis excluindo os judeus do serviço público. Para lá levou toda sua família e começou a avaliar as possibilidades de exílio. Com dificuldades obteve uma bolsa da Fundação Rockfeller para lecionar nos Estados Unidos, mas não teria como levar toda a família (mãe, filha e filho de 17 anos não poderia deixar a França), bem como teria dificuldades para obter passaportes. Mas, graças ao reitor Jérome Carcopino (1881-1970), pode se manter empregado, apesar de ser judeu, bem como teve permissão para levar toda a família para os Estados Unidos. Foi duas vezes à Marselha para obter vistos e preparar a viagem. Mas seus recursos não seriam suficientes. Aos 54 anos redigiu seu testamento no ano 1941, pouco depois sua mãe morreu e sua esposa adoeceu. Passou a ler e a lecionar e redigiu o esboço para projetos futuros: uma história da França, outra sobre a moeda francesa, estudos sobre o Império Germânico, sobre os Estados Unidos, um romance policial e uma obra sobre o ofício do historiador83. Para que a revista dos Annales não fosse encerrada pelos nazistas, travou uma enorme discussão com seu amigo, pedindo que interrompesse a publicação. Mas Febvre insistiu em mantê-la e retirou o nome do amigo da direção, que enviou a partir daí somente quatro colaborações sob o pseudônimo de Fougères. Antes Febvre havia sugerido a Bloch que desistisse da sociedade e lhe concedesse a direção exclusiva da revista. No meio de tantas crises, Bloch conseguiu os vistos, mas não viajou. Continuou redigindo seu Apologia da história, teve que ir lecionar em Montpellier e apreensivo com a perseguição aos judeus, resolveu proteger sua família e também seus livros, que chegaram a ser confiscados, com o decreto de liquidação de todos os bens judeus em Paris. No verão de 1942 sintetizou suas notas e apontamentos no livro Estranha derrota. Naquele ano a revista passou a se chamar Mélanges d´Histoire Sociale. As provas da revista ou as indicações dos textos a serem publicados não eram mais comunicadas a Bloch que se queixava ao amigo84. Apologia da história é uma obra nitidamente inspirada na abordagem compreensiva e erudita alemã combinada ao espírito prático e de síntese de Bloch. Buscar as causas, encontrar os nexos, a busca pela imparcialidade, a necessidade da crítica documental, entre outros aspectos, conferiram-lhe um lugar de destaque nos estudos históricos, embora seus méritos sejam bastante modestos. Não há ali, nenhuma novidade. Inclusive seria incorreto pensar que esta obra, e não os textos combativos na revista que dirigia, foi responsável pela fundação da Escola dos Annales. Redigida entre 1941 e 1942 a obra procura discutir o ofício do historiador. Segundo Bloch BLOCH, Étienne. Souvenirs d´um fils. In: BURGUIÈRE, A. ASTMA, p.35. Carta de Marc Bloch a Lucien Febvre de 17 de outubro de 1942. Apud: MÜLLER, B. Marc Bloch – Lucien Febvre , v.3, p.219-24. 83 84

A história não apenas é uma ciência em marcha. É também uma ciência na infância: como todas aquelas que têm por objeto o espírito humano, esse temporão no campo do conhecimento racional. Ou, para dizer melhor, velha sob a forma embrionária da narrativa, de há muito apinhada de ficções, há mais tempo ainda colada aos acontecimentos mais imediatamente apreensíveis, ela permanece, como empreendimento racional de análise, jovem. Tem dificuldades para penetrar, enfim, no subterrâneo dos fatos de superfície, para rejeitar, depois das seduções da lenda ou da retórica, os venenos, atualmente mais perigosos, da rotina erudita e do empirismo, disfarçados de senso comum. Ela ainda não ultrapassou, quanto a alguns dos problemas essenciais de seu método, os primeiros passos85.

Para Otto Oexle, Bloch faz, a seu modo, empresa semelhante à de Dilthey: a crítica da razão histórica, afinal “os fatos históricos são, por essência, fatos psicológicos e as condições sociais, em sua natureza profunda, mentais86. Alude também à influência certamente sofrida de Georg Simmel e de Max Weber, pois ambos remetem os fatos sociais à dinâmicas mentais. A intensificação das perseguições o fez, aos 56 anos, ingressar na Resistência Francesa, entre o fim de 1942 e o início de 1943, com a qual ele havia tido contatos em Montpellier. Adotou o codinome de Nardonne e passou a colaborar com o Le Franc-Tireur, jornal de combate aos nazistas. Na Páscoa de 1943 encontrou-se, pela última vez com o amigo Febvre em Le Souget. Esteve mais seis vezes em Paris para se encontrar com a esposa e filhos. Capturado na Pont de la Boucle, em Lyon no dia 9 de março de 1944, foi preso e submetido a duas sessões de tortura. Depois disso, ficou quase um mês na enfermaria devido a uma pneumonia. Recuperado, sofreu mais dois interrogatórios e foi novamente torturado. Transferido para uma nova cela, em Montluc, no dia 16 de junho de 1944, por volta das nove horas, ele e mais 28 presos foram conduzidos a um caminhão e, em Saint-Didier-de-Formans, de quatro em quatro eram obrigados a descer do caminham, recebiam rajadas de metralhadora e depois tiros na cabeça ou na nuca. Milagrosamente dois sobreviveram, mas não Marc Bloch. Após sua morte, sua esposa, menos de um mês depois faleceria em Lyon. Legado: renovação em que termos?

Poucos professores universitários franceses se sacrificaram pela pátria. Não foi à toa, portanto, que Bloch recebeu várias homenagens de Febvre, de amigos e dos franceses. Sozinho na revista, Febvre também BLOCH, M. Apologia da história, p.47. OEXLE, O. G. Marc Bloch et la critique de la raison historique. In: ATSMA, Hartmut; BURGUÈRE, André (orgs.). Marc Bloch aujourd´hui, p.419. 85 86

ocupou cargos destacados que auxiliaram na consolidação do grupo dos Annales: dirigia a Sexta Seção, os Annales, era presidente da comissão científica do CNRS, vice-presidente da Fundação Nacional de Ciências Científicas, diretor da Enciclopédia Francesa e também da coleção Destinos do Mundo87. Quando Braudel assumiu a direção da revista, empenhou-se em inserir Bloch e Febvre numa aura de inovação do pensamento historiográfico francês, como expoentes do movimento de criação de uma nova História88. Quando deixou, em 1968, a direção da Maison des Sciences de l´Homme e dos Annales, uma nova geração composta, por Jacques Le Goff, André Burguière e Emmanuel Le Roy Ladurie assumiram o periódico e se destacaram no cenário historiográfico, agora mais multifacetado. As ambições dos pais fundadores são abandonadas, da história total, do recurso ao método comparativo, da abordagem social, em função da aproximação com novos campos do saber como a linguística, a hermenêutica, a antropologia e as mentalidades89. A consolidação da revista e a notabilização de Bloch e Febvre coincidiu com o momento em que suas abordagens foram decisivamente preteridas pelos novos annalistes. Embora a obra de Bloch tenha passado por muitas revisões críticas, seu lugar de herói nacional e de modelo para os aspirantes a historiadores é inconteste. Conhecer o conteúdo da correspondência trocada entre Bloch e Febvre e entre estes e Pirenne ou Berr, por exemplo, permite conhecer o clima intelectual que envolveu o surgimento dos Annales. Nas cartas, embora a revista dos Annales não seja o principal motivo, ela é onipresente90. Aliás, a correspondência anterior a 1928 entre os fundadores dos Annales não existe ou não foi preservada. Além dos Annales, Bloch publicava também na Revue Historique e na Le Moyen Âge e Febvre e era do comitê diretor da Revue d´Histoire Moderne (1925), com Febvre publicava regularmente resenhas para a Revue Critique d´Histoire et de Littérature e artigos para a Revue de Synthèse Historique.91 A respeito de seu contributo teórico, Ernst Breisach assinala que, embora expressivos em seus temas e campos e FINK, Carole. Marc Bloch, p.334. Basta ver BRAUDEL, Fernand. “1944-1964: Marc Bloch”, p. 833-834 ou BRAUDEL, Fernand. “Marc Bloch à l‟honneur”, p.91-92. 87 88

Ver, sobretudo DOSSE, François. A história em migalhas, VAINFAS, R. História das mentalidades e história cultural. In: CARDOSO, C.F. & VAINFAS, R. Domínios da história; REVEL, J. Mentalidades: uma particularidade francesa? História de uma noção e de seus usos. In: ——. História e historiografia: ensaios críticos; BURGUIÈRE, A. La notion de mentalité chez Marc Bloch et Lucien Febvre: deux conceptions, deux filiations e CHARTIER, R. História intelectual e história das mentalidades: uma dupla reavaliação. In: ——. História Cultural entre práticas e representações. 89

90 91

MÜLLER, B. Marc Bloch – Lucien Febvre , v.1, p.VII. MÜLLER, B. Marc Bloch – Lucien Febvre, v.1, p.X.

a despeito de seu inabalável revisionismo, Febvre e Bloch não foram particularmente ativos no campo da teoria da história (...) No fim das contas, existem algum ingrediente teórico na historiografia dos Annales, mas poucos livros de teoria.92

Tal constatação não é isolada93. François Dosse já duvidava da revolução historiográfica dos Annales desde os anos 1980. Para ele, o grupo era mais original pela afirmação de um programa do que pelo programa metodológico em si94. André Burguière acompanha tal leitura, valorizando a importância política do grupo, mais que sua originalidade epistemológica (1999). Ele enfatiza a análise do que identifica como sendo um projeto político e um projeto de poder que construiu uma imagem de grupo marginal e polêmico, antidogmático. E reconhece o quanto essa imagem não corresponde à realidade. Muito identificados ao seu tempo, Bloch e Febvre estavam enraizados no cenário historiográfico e mantinham boas relações com a geração que ocupava os espaços mais prestigiados. De qualquer modo, forçoso é reconhecer que Marc Bloch contribuiu decisivamente para o desenvolvimento da erudição nos estudos históricos franceses, aproximando a História das ciências sociais e insistindo na escrita de histórias mais globais que pudesse ainda ampliar o leque de possibilidades dos objetos históricos. Ele traz para o primeiro plano uma abordagem mais sociológica e que valorizava elementos psicossociais das representações coletivas. Para Bloch a história é uma ciência da mudança que elimina, por meio da pesquisa e da crítica documental, os caminhos obscuros da memória para melhor compreender as transformações e os processos de ruptura verificados. Ao contrário de Febvre, Bloch era um mais receptivo às teorizações, ao pensamento abstrato e via com bons olhos o contato mais estreito com a sociologia de Durkheim e Simiand95. Emanuel Le Roy Ladurie vê em Marc Bloch um precursor do estruturalismo. Sua ligação com a sociologia é marcante, aliás, Bloch e seus colegas historiadores liam com entusiasmo a Année Sociologique, revista criada por Emile Durkheim96. O conceito de representações e de consciência coletiva, tão usados por Bloch, vieram de seu mestre Durkheim. Marc Bloch é, portanto, durkheimiano, em todo o processo de pensamento que o conduz, num mesmo movimento, em direção ao social e ao mental (que ele chama antes de ´fatos psicológicos´). Ainda aprecia, além BREISACH, Ernst. Historiography: Ancient, Medieval and Modern, p.345. Basta ver ainda as hesitações de MATROGREGORI, Massimo. Existe uma formulação teórica em Marc Bloch e Lucien Febvre? In: Fernando Antônio NOVAIS & Rogério Forastieri da SILVA. Nova história em perspectiva. 94 DOSSE, François. A história em migalhas, p.45. 95 NOIRIEL , Gérard. Sur la crise de l´histoire, p.345. 96 BARTHÈLEMY, Dominique. Marc Bloch, p.101. 92 93

da Geografia, a Psicologia, a Linguistica de seu amigo Meillet (ela também comparativa).97

Para Jacques Le Goff, em Os reis taumaturgos, Bloch fundou a antropologia histórica98 bem como fez um estudo pioneiro das mentalidades medievais, recorrendo a fontes multidisciplinares e valendo-se de uma abordagem e metodologia únicas. Nela há a influência considerável de Fustel de Coulanges, quando alia erudição, crítica documental e imaginação. Ali se dedicou a fazer o que mais gostava: desconstruir as falsas notícias, afastando-se do positivismo e enveredando pelo universo mental dos grupos sociais. A história idealizada por Bloch deveria orientar-se pela integração de uma história viva e de uma história problema99. O uso do conceito de representações coletivas em Os reis taumaturgos tornou esta obra, para muitos intérpretes, um livro precursor da história das mentalidades, mas o uso das ideias e da chamada consciência coletiva não era novo. Ele já tinha aparecido em estudos de Halbwachs, Charles Blondel, Lucien Febvre e Georges Lefebvre, por exemplo, ou ainda em momentos da obra de Jules Michelet. Interessa o fato de que Bloch analisa o problema da cura das escrófulas por meio da cerimônia de imposição das mãos dos reis da França e da Inglaterra seguindo o mesmo modus operandi do livro sobre As falsas notícias da guerra, ou seja, perseguindo aquilo que entende como sendo um problema de falsificação histórica. Bloch sabia que as falsas notícias tinham sempre origem em representações coletivas. Nessa obra, empenhou-se em demonstrar o brilho enganador dos reis100 e apresentou uma inovadora abordagem política. Em suas palavras Se uma instituição destinada a fins particulares definidos por uma vontade individual está destinada a dominar toda uma nação, também deve ser incorporada nas correntes mais profundas da consciência coletiva. O inverso talvez seja também verdadeiro: para que uma vaga crença se cristalize num rito regular, é de alguma importância que vontades pessoais claramente expressas contribuam para que tome forma101.

Embora tivesse conhecimento do respeito sobre suas obras, Bloch tinha consciência de sua provisoriedade: Se um dia, em virtude de investigações mais profundas, meu esboço caducar inteiramente, estarei certo de que ao contrapor à verdade histórica as minhas propostas equivocadas ainda assim eu terei ajudado a tomar BARTHÈLEMY, Dominique. Marc Bloch, p.101. LE GOFF, Jacques. A nova história, p.46. 99MICHAUD, Francine. Marc Bloch (1886-1944). In: DAILEADER, Philip & WHALEN, Philip (org). New historical writing in twentieth century France, p.81. 100 BARTHÈLEMY, Dominique. Marc Bloch, p.107. 101 BLOCH, Marc. Os Reis Taumaturgos, p.86. 97 98

consciência dessa verdade perfeitamente recompensado.102

e

me

considerarei

Ele via a história como a ciência da mudança e engrossando as fileiras do historicismo defende que ela sabe e ensina que dois eventos nunca se repetem de modo absolutamente igual, pois as condições nunca coincidem exatamente (...) Em suas páginas de pesquisa, as linhas, cujo traçado é ditado pelos fatos do passado, jamais serão retas; ela só encontrará linhas curvas e também serão curvas as que, por extrapolação, ela tentará prolongar na incerteza do tempo103.

José Carlos Reis localiza em Henri Berr a maior parte das conquistas atribuídas aos Annales, a invenção da história problema, interdisciplinar, a aproximação especial com a psicologia, a defesa de novos objetos e campos de investigação, a exigência de uma história total104. Segundo Reis, Berr era apenas um ingênuo “embaixador das ciências humanas”, não tinha um projeto de poder, não visava a centralização institucional das ciências humanas pela história, apenas promovia “controvérsias corteses”105.

Na verdade o próprio Bloch revela essa dívida em carta de 11 de fevereiro de 1943, quando reconhece o quanto ele e os historiadores de seu grupo deviam a profundidade do olhar, da audácia e da amizade de Berr106. A compreensão da centralidade de Henri Berr para a renovação historiográfica e sua importância no cenário intelectual europeu sofreu duro golpe com o desaparecimento de milhares de cartas que o diretor da Revue de Sinthèse preparava para editar107. As desavenças com Febvre também fizeram com que os familiares de Berr destruíssem as missivas entre ambos, conforme revelou Braudel108. Devo confessar, fazendo coro com Dosse, que “todo projeto científico é inseparável de um projeto de poder”109 e nesse sentido, os Annales se aproveitaram de um momento favorável, quando a economia está bloqueada nas faculdades de direito, a escola durkheimiana está dispersa e sempre dividida entre as faculdades de direito e de letras. Quanto à escola geográfica, ela parece ofegante: o lugar estava vago, os Annales o tomaram110. BLOCH, M. Traços característicos da história agrária francesa, p.30. BLOCH, M. A estranha derrota, p.110. 104 REIS, José Carlos. Henri Berr. In: MALERBA, J. Lições de história, p.416. 105 REIS, José Carlos. Henri Berr. In: MALERBA, J. Lições de história, p.420. 106 BLOCH, M. Écrire La Société féodale, p.113. 107 SIEGEL, Martin. Henri Berr et la Revue de Sinthèse Historique. In: CARBONELL, CH-O. & LIVET, G. Au berceau des Annales, p.215. 108 BRAUDEL, F. Personal testimony. Journal of Modern History, p.460. 109 DOSSE, F. A história em migalhas, p.45. 110 DOSSE, F. A história me migalhas, p.46. 102 103

Do ponto de vista político era necessário disputar os espaços com os tributários do historicismo alemão, com a geração de 1870 que ainda resistia nas estruturas de poder com cargos e honras e à emergência de grupos ligados a outros campos, sobretudo a economia e a sociologia. Ler a obra de juventude de Bloch nos coloca diante de um jovem estudante profundamente marcado pela historiografia tradicional. Em seu texto Metodologia histórica de 1906, afirma que a história não tem existência científica e que seu método é descritivo111. Contudo já percebia a necessidade do historiador interpretar os dados recolhidos. Em seu primeiro trabalho, L’Isle-de-France: les pays autour de Paris, de 1913, Bloch realiza uma análise comparativa recorrendo a obras da França, Inglaterra e Alemanha sobre as transformações da economia rural de Paris e seus arredores na natureza e nas formas de servidão, evidenciando sua erudição e atenção as novas abordagens da ciência social. Ali já despontava seu interesse pela Idade Média, algo que patentearia logo depois, em Rois et serfs de 1925, na qual faz um rigoroso estudo analítico de fontes jurídicas, políticas e fiscais, servindo-se do método regressivo e comparativo, estudando os últimos reis Capetos e a emancipação dos servos do domínio real por Luis X e Filipe V. No começo de 1930 ofereceu-se para redigir um livro de metodologia para a editora Gallimard112, com alguns escritos sobre o método histórico que seria intitulado Historiadores em seu ofício.113 Durante o ano de 1940 ele retomou esse projeto, redigindo um trabalho inacabado, Apologia da História ou o ofício do historiador, publicado postumamente, em 1949, por Lucien Febvre. Apesar de suas imperfeições, notadas por Duby e Le Goff, tornou-se uma das obras mais conhecidas de Bloch. Les Rois thaumaturges (1924) e Les Caractères originaux de l’histoire rurale française (1931) são vistos como as contribuições de maior durabilidade de Marc Bloch para a historiografia do início do século XX e XXI, por romper com as abordagens tradicionais existentes, realizando uma análise comparativa que se valia de fontes que remetiam às atitudes mentais introduzindo uma dimensão negligenciada pelos historiadores: a psicologia. Para isso, inspirou-se nos trabalhos de dois colegas da Fundação Thiers, Marcel Granet (1884-1940) e Louis Gernet (1882-1962), que publicaram estudos sobre rituais e mitos chineses e gregos. Mas, Reis taumaturgos sofreu várias críticas, como, por exemplo, desconsiderar Marcel Mauss e sua análise da teoria mágica e dos ritos religiosos, ou ainda da obra de Arnold Van Gennep (1873-1957) sobre os ritos de passagem. Para Peter Burke, 111 112 113

BLOCH, M. história e historiadores, p.16. MICHAUD, Francine. Marc Bloch (1886-1944), p.43. MICHAUD, Francine. Marc Bloch (1886-1944), p.44.

contudo, este livro antecipa a longa duração e o estudo de mentalidades e anuncia o que futuramente seria a antropologia histórica114. O método regressivo, que tem como uma de suas bases a inspiração na psicologia freudiana, é a principal marca de Les Caractères originaux de l’histoire rurale française, cuja investigação parte do presente para interpretar o passado. Esse método pode ser percebido numa expressão cunhada pelo próprio Bloch: explicar o presente pelo passado e explicar o passado pelo presente. Ou ainda fazer uma história ao inverso. Ele não era uma novidade, era utilizado há algum tempo por F. W. Maitland115. Nele Bloch combina ferramentas fundamentais do historiador como a erudição a crítica e a conceitualização. Também aponta a existência de uma mentalidade tipicamente rural ou tradicional, sem contar que se valeu de fontes diversificadas como mapas e até mesmo aerofotografias. Reconhecia o caráter preliminar deste trabalho, embora seus esforços tenham sido reconhecidos por diversos historiadores como Alphons Dopsch (1868-1953)116, Carl Brinkmann (1885-1954) e Gino Luzzatto (1878-1964). Pierre Toubert a considera uma das contribuições mais refinadas de Bloch, com sua síntese inigualável, embora reconheça que provavelmente a melhor obra de Bloch não seja exatamente um livro em particular, mas a Revista dos Annales. Em Caractères Bloch rompeu com “a mitologia conservadora de uma eterna ruralidade francesa, ao mostrar notadamente a importância das transformações agrárias e sociais do fim da Idade Média e do século XVIII”117. Este livro tem forte inspiração no estudo do inglês Frederick Seebohm (1909-1990), de 1883, o The English Village Community Examined in its Relations to the Manorial and Tribal Systems and to the Common or Open Field System of Husbandry. No Que pedir à história, artigo publicado no Bulletin número 34 de janeiro de 1937, Bloch revela suas inspirações mais diretas: Lucien Febvre, Karl Marx, Henri Pirenne, Emile Durkheim, Jules Michelet e arremata citando Fustel de Coulanges, para o qual, a História não é uma “acumulação dos acontecimentos de toda a natureza que se deram no passado”118. Michelet, confessou, era um apaixonado pelas fontes originais que manuseou, procurando recuperar a consciência dos homens do passado, mas se deixava contaminar pelas paixões políticas de seu tempo, ao passo que Coulanges evitava confundir patriotismo e ciência, enfatizando ainda que não era “romântico nem germanista”119. De Coulanges retirou o modo de redigir suas histórias, com poucos BURKE, P. A Escola dos Annales, p.29-30. BURKE, P. A Escola dos Annales, p.35. 116 Alfons Dopsch colaborou na Monumenta Germaniae Historica e ocupou a cadeira que havia sido de Ranke na Universidade de Berlim em 1921. 117 BARTHÈLEMY, Dominique. Marc Bloch, p.110. 118 BLOCH, M. história e historiadores, p.60. 119 BLOCH, M. história e historiadores, p.252. 114 115

retratos individuais, mas uma história em que o homem, longe de estar ausente é revelado pela sensibilidade de suas ideias e de suas instituições. Em relação à sua obra-prima, A sociedade feudal, novos estudos levantaram objeções a muitos aspectos, como sua definição confusa de feudalismo, suas incorreções geográficas, o tratamento insuficiente das instituições jurídicas, o recurso a amplos extratos sociais que oblitera diferenças internas, a excessiva esquematização da civilização feudal. O próprio Febvre o criticou, sentindo falta da humanidade e do homem medieval. Fazendo coro com François-Louis Ganshof, (1895-1980), Paul Ourliac sublinhou o descompasso entre a definição do feudalismo e a própria natureza jurídica e institucional do feudalismo, particularmente na relação soberania e propriedade120. Para o polonês Bronislaw Geremek, contudo, A sociedade feudal representa o êxito de um projeto de história total – cuja inspiração vem de Lamprecht, mas também da síntese de Berr, que alia uma fusão entre a síntese científica e a erudita –, ela é uma contribuição maior da coesão social e das possibilidades da compreensão humana a partir do comportamento social e psicológico. Leo Verriest, Dominique Barthèlemy e Pierre Bonassie criticam a obra por sua larga definição para o estatuto da servidão121. E Élisabeth Magnou-Nortier por sua tentativa de compreender a feudalidade somente através de mecanismos institucionais, dando pouca atenção às relações jurídicas122. Apesar disso há outros momentos problemáticos como a caracterização do feudalismo japonês ou o desejo de encontrar um sistema semelhante na África. De qualquer modo é preciso sublinhar, neste trabalho, o impressionante domínio da erudição e atualidade de Bloch: ele conhecia obras francesas, inglesas e alemãs antigas e contemporâneas. Há outras virtudes, como sua análise do regime senhorial e de vassalagem, por meio do método comparativo, na qual percebeu a existência da vassalagem em níveis inferiores. Como Bloch relacionava problemas econômicos e sociais, fica a questão se conhecia a obra de Max Weber, pois, são sensíveis as aproximações. Leitor de Marx, Bloch não opunha o feudalismo ao capitalismo como o alemão. A sociedade Feudal foi um livro escrito para a Bibliothèque de Synthèse de Henri Berr, através da indicação feita por Lucien Febvre 123. Ela permanece, contudo, presa a padrões etnocêntricos: O esquema comparativo tem certamente o defeito de levar Marc Bloch a tratar as instituições sociais do passado Apud DUMOULIN, Oliver. Marc Bloch, p.69. Apud DUMOULIN, Oliver. Marc Bloch, p.127. 122 MAGNOU-NORTIER, E. Les lois feudales e la société d´aprés Montesquieu e Marc Bloch ou la seigneurie banale reconsidérée. Revue Historique, p.321-60. 123 Ele diz que não conhecia entre os medievalistas de sua geração alguém dotado de um talento daquela envergadura. Apud PLUET-DESPATIN, Jacqueline. Introducion, p.17. 120 121

com ares de superioridade: ele as faz desfilar sob os olhos do leitor, país após país, tema após tema, escolhendo os exemplos e enfatizando o que quer. Isso pode nos parecer hoje artificial ou superficial. Ele se fia, pela força das circunstâncias, em trabalhos de segunda mão, de que desconfia ás vezes, mas nem sempre: assim seus desenvolvimentos sobre a cavalaria e a nobreza, que ele próprio estudou menos que a servidão devem muito a Paul Gulhiermoz”124.

Síntese ambiciosa que vai de 900 a 1300, com uma grande variedade de tópicos, com destaque para os modos de sentir e de pensar e o estudo sobre a memória coletiva; A sociedade feudal é seu trabalho mais durkheimiano ao se ocupar do problema da coesão social125. Não por acaso o último capítulo intitula-se O feudalismo como tipo social. Estima-se que tenham sido vendidos aproximadamente 80 mil exemplares desta até meados de 1994126. Entre os acertos iniciais e a publicação do primeiro volume, a redação levou 15 anos, de 1924 a 1939, sendo que desde 1931 observam-se cartas de Bloch desculpandose pela demora. Bloch confessa seu desejo de fazer um livro de síntese127, tendo insistido para que o título não fosse aquele escolhido por Berr: O regime feudal. Outro ponto a destacar é o fato de que Bloch fazia cortes por amostragens em suas pesquisas empíricas, diferentemente da segunda geração dos Annales, que preferia a abordagem exaustiva e serial. Em todo caso, Bloch se equivoca ao negar a existência da nobreza no que ele chama da primeira idade feudal e a continuidade das grandes famílias. Algo que é duramente criticado por Karl F. Werner128. E não critica o excesso de germanidade para a Alta Idade Média – de meados dos anos 900 até o ano 1000, tampouco a influência da senhoria castelã, na sociedade francesa medieval. Considerações finais: Paris, capital da História no século XX?

Entre 16 e 18 de junho de 1986, por iniciativa de Karl F. Werner, diretor do Instituto Histórico Alemão de Paris, realizou-se um colóquio internacional na Escola Normal Superior, patrocinado pela Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, ocasião em que diferentes especialistas fizeram um balanço da obra de Marc Bloch. Contemplando a obra e as realizações de Marc Bloch e o papel da revista dos Annales constata-se que, se o século XIX foi o século da História, o século XX teria sido o século de uma Nova História, no sentido do embate entre as BARTHÈLEMY, Dominique. Marc Bloch, p.112. BURKE, Peter. Escola dos Annales, p.36. 126 Os direitos do contrato para Bloch foram estipulados da seguinte maneira, 10% sobre os primeiros 5 mil exemplares, 11% de 5 a 10 mil exemplares e 12% acima de 10 mil exemplares. 127 Carta de 29 de agosto de 1924. 128 Apud BARTHÈLEMY, Dominique. Marc Bloch, p.114. 124 125

formas tracionais e o advento de novas formas de investigar, analisar e escrever a história. Tal assertiva serve de advertência para o falso problema, muitas vezes posto, de dizer que a história metódica oitocentista privilegiou a dimensão política e a narrativa, ao passo que a história novecentista teria sido mais analítica e social, pois, efetivamente, não foi este o caso. Provavelmente a tentativa de apresentar um novo Marc Bloch ou ainda o propósito de realizar uma leitura a contrapelo de sua obra, metas que se encontravam em nosso protocolo inicial de intenções, não constituam novidade, nem tenham sido plenamente atingidas. Afinal, é sempre tarefa espinhosa tratar de autores ou obras consagradas já resenhados em análises primorosas. Desse modo, é possível concordar com Peter Burke e dizer que, se não foi o criador das inovações que praticava em sua abordagem, Bloch tem o mérito de utilizá-las de maneira mais efetiva que seus antecessores129. Em relação ao método, foi um apóstolo da comparação, da interdisciplinaridade, do recurso à compreensão e à abordagem regressiva. Para Jacques Le Goff, Bloch teria aberto três campos fecundos para a historiografia contemporânea: a história das mentalidades, a história política renovada e a antropologia histórica130. E escolhido temas inovadores como as representações do poder, a história rural ou a história das técnicas. É inegável que Marc Bloch conferiu um importante legado à disciplina histórica, sendo responsável pelo surgimento e expansão da história social na historiografia francesa e mundial. Forçoso, contudo, é reconhecer que tais inovações não eram exatamente criações originais suas, mas recursos mais sistematicamente utilizados e difundidos por ele, empregados por outros autores, franceses, ingleses e alemães. Não poderia ser diferente, afinal, Bloch tinha uma biblioteca de aproximadamente seis mil volumes e seu cosmopolitismo, marca dos grandes historiadores daquele tempo, contribuiu para que realizasse o difícil diálogo entre tradições historiográficas e de pensamento que estavam em choque. Herdeiro da tradição crítica metódica, Bloch “se impõe como um mediador principal entre a ciência histórica alemã e a história francesa”.131. Era isso que não o impedia de apreciar historiadores, como Fustel de Coulanges, cuja ingenuidade epistemológica foi duramente criticada como uma expressão da velha história científica de caráter historicizante132. De fato, até meados de 1914 o peso desta velha história no pensamento de Bloch é enorme e a ânsia pela objetividade dos fatos históricos parece-lhe real. Otto Oexle fala de uma atmosfera, de um ambiente intelectual que, do ponto de BURKE, Peter. A Escola dos Annales, p.36. LE GOFF, J. La gênese du miracle royal. In: ATSMA, Hartmut; BURGUÈRE, André (orgs.). Marc Bloch aujourd´hui, p.147. 131 DUMOULIN, Oliver. Marc Bloch, p.61. 132 DOSSE, François. A história, p.44. 129 130

vista sociológico o faz oscilar de Durkheim a Weber133. Sua trajetória acadêmica, sempre acolhida pelos antigos mestres da escola metódica, abre a possibilidade de se pensar na permanência e sucessão aos metódicos, com os quais mantiveram vínculos e receberam incentivos, cuja herança relativiza a tão falada ruptura ou vitória sobre a velha história. Ele tinha noção da provisoriedade de suas sínteses, reconhecendo que algo sempre resistiria à análise, mas evitava preencher “as lacunas de seus textos com hipóteses analógicas”134. Para Bloch, “a sociedade não é uma figura geométrica e uma demonstração em história não e uma demonstração de teoremas”135. Ele costumava comparar o historiador a um juiz de instrução, que trabalha com provas no intuito de descobrir a verdade em meio a testemunhos diversos e às vezes contraditórios. Assim, os livros de Bloch são ricos de ideias e hipóteses. Entretanto ele seguia invariavelmente a lei da honestidade que obriga todo o historiador a não lançar quaisquer teses que não possam ser verificadas136.

Para ele, o primeiro dever de um historiador é, como dizia Pirenne fazendo coro aos alemães e a Michelet, interessar-se pela vida. O segundo é refletir sobre o presente, sem o qual é impossível compreender o passado. “São esses mesmos hábitos de crítica, de observação e, espero, de honestidade que tentei aplicar ao estudo dos trágicos acontecimentos nos quais acabei sendo um modesto ator”137. Bloch vivenciou os grandes debates teóricos de seu tempo, o Methodenstreit alemão vivido na querela dos herdeiros de Ranke e os precursores de uma história mais global e social, identificados a Lamprecht, dentre outros, acompanhou a penetração do marxismo nas universidades, conferindo maior atenção a aspectos econômicos e psicossociais. Procurou integrá-los, entusiasmado com a perspectiva da síntese histórica tal como proposta por Berr138. Sua principal virtude foi dotar de historicidade o arsenal metodológico da sociologia durkheimiana, colocando o instrumental desenvolvido neste campo a serviço da história. Mas, quero acreditar que seu maior debate não tenha sido travado exatamente contra o positivismo ou contra o historicismo, dos quais foram apropriados em maior ou menor grau determinados pressupostos epistemológicos (do primeiro a reserva ante OEXLE, O.G. Marc Bloch et la critique de la raison historique. In: BURGUIÈRE, A (org). Marc Bloch aujourd´hui, p.419-32. 134 BARTHÈLEMY, Dominique. Marc Bloch, p.108. 135 BLOCH, Marc. A sociedade feudal, p.371. 136 GURIEVITCH, Aaron. A síntese histórica e a Escola dos Annales, p.61. 137 BLOCH, M. A estranha derrota, p.12. 138 GEREMEK, Bronislaw. Marc Bloch, historien et resistant. In: BLOCH, M. L´histoire, la Guerre, la Résistance, p.1040. 133

a teorização abstrata, do segundo o método compreensivo, o cultivo à erudição, a busca pelos nexos) ou certos objetos de investigação (a história das raízes da pátria e da sociedade), mas contra estudos históricos tradicionais incapazes de produzir o diálogo com a historiografia europeia existente ou de indicar novos caminhos de investigação, mais interdisciplinares, mais afinados com as possibilidades técnicas e intelectuais e que respondessem às inquietações de seu tempo. Nesse sentido Bloch, ao lado de Febvre colocaram Paris no centro do universo historiográfico do século XX.

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