Desde de que o Samba é Samba: reflexões e criações sobre o gênero (p.103-118)

May 24, 2017 | Autor: Paulo Tiné | Categoria: Samba, Música Popular Brasileira, Processos Criativos
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Descrição do Produto

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II Encontro Regional da Associação Brasileira de Etnomusicologia II Colóquio Amazônico de Etnomusicologia

Etnomusicologia na contemporaneidade: Diálogos disciplinares e interdisciplinares

Belém, 22 a 24 de junho de 2016

REALIZAÇÃO

APOIO

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ANAIS

ADRIANA COUCEIRO, LILIAM BARROS COHEN, PAULO MURILO GUERREIRO DO AMARAL, SONIA CHADA (Orgs.)

ISBN 978-85-67528-01-4

Disponível em: http://iienabetnorte.wix.com/iienabetnorte

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ Reitor Carlos Edilson de Almeida Maneschy Vice-Reitor Horácio Schneider Pró-reitora de Ensino de Graduação Maria Lúcia Harada Pró-reitor de Pesquisa e Pós-Graduação Emmanuel Zagury Tourinho Pró-reitor de Extensão Fernando Arthur de Freitas Neves Pró-reitor de Administração Edson Ortiz de Matos Pró-reitora de Planejamento Raquel Trindade Borges Pró-reitor de Relações Internacionais Flávio Augusto Sidrim Nassar Pró-Reitora de Desenvolvimento e Gestão de Pessoal Edilziete Eduardo Pinheiro de Aragão

INSTITUTO DE CIÊNCIAS DA ARTE Diretora Geral Adriana Azulay Diretor Adjunto Joel Cardoso

BIBLIOTECA CENTRAL Coordenadoria de Desenvolvimento de Coleções Nelma Maria da Silva Maia de Lima Coordenadoria de Processamento de Material Informacional Ana Maria Pereira Gomes da Cruz Coordenadoria de Serviços aos Usuários Carmecy Ferreira de Muniz Coordenadoria de Gestão de Produtos Informacionais Albirene de Sousa Aires Coordenadoria de Planejamento e Marketing (Sistema de Bibliotecas - SIBI/UFPA) Hilma Celeste Alves Melo

LABETNO Coordenadoras Líliam Cristina Barros Cohen Sonia Maria Moraes Chada

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO PARÁ Reitor Juarez Antonio Simões Quaresma Vice-Reitor Rubens Cardoso da Silva Pró-Reitora de Pesquisa e Pós-Graduação Hebe Morganne Campos Ribeiro Pró-Reitora de Graduação Ana da Conceição Oliveira Pró-Reitor de Gestão e Planejamento Carlos Capela Pró-Reitora de Extensão Mariane Franco

CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E EDUCAÇÃO Diretor Anderson Madson Oliveira Maia Vice-Diretor Jairo de Jesus Nascimento da Silva

EDITORA DA UEPA Coordenação e Chefia de Edição: Paulo Murilo Guerreiro do Amaral

GEMAM Coordenador Paulo Murilo Guerreiro do Amaral

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COMISSÃO ORGANIZADORA Adriana Couceiro Líliam Barros Cohen Paulo Murilo Guerreiro do Amaral Sonia Chada

COMISSÃO CIENTÍFICA Jorgete Lago José Ruy Henderson Liliam Barros Lívia Negrão Maria José Moraes Paulo Murilo Guerreiro do Amaral Rosa Maria Mota da Silva Sônia Blanco Sonia Chada

ASSISTENTES DE PRODUÇÃO

COORDENAÇÃO Jucélia Estumano Henderson Tainá Maria Magalhães Façanha Alice Alves Anderson Clayton Gonçalves Sandim André W.Louzada D'Albuquerque Bárbara Lobato Batista Dayse Maria Pamplona Puget Ednésio Teixeira Pimentel Canto Edson Santos da Silva Evandro Williams da Cruz Silva Laura Vicunha Paraense Guimarães Natália Lobato da Silva Paulo Roberto da Costa Barra Ricardo Smith Rodrigo Pinto de Macedo Thomas Rafael Alves Teixeira ARTE Josi Mendes EDIÇÃO E REVISÃO Tainá Maria Magalhães Façanha DIAGRAMAÇÃO Tainá Maria Magalhães Façanha

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Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP) Biblioteca Central – UFPA

Encontro Regional da Associação Brasileira de Etnomusicologia (2: 2016 jun. 22-24: Belém, PA) Anais [do] II Encontro Regional da Associação Brasileira de Etnomusicologia [e] II Colóquio Amazônico de Etnomusicologia / Encontro Regional da Associação Brasileira de Etnomusicologia, Colóquio Amazônico de Etnomusicologia. – Belém: LABETNO: GEMAM, 2016. ISBN ISBN 978-85-67528-01-4 1. Etnomusicologia. I. Colóquio Amazônico de Etnomusicologia (2: 2016 jun. 2224: Belém,PA). II. Título.

CDD - 23. ED. 780.89 O conteúdo publicado é de inteira responsabilidade dos respectivos autores.

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Apresentação O Laboratório de Etnomusicologia (LabEtno) da Universidade Federal do Pará e o Grupo de Estudos sobre a Música na Amazônia (GEMAM) da Universidade do Estado do Pará realizaram o II Encontro Regional Norte da Associação Brasileira de Etnomusicologia – ABET e o II Colóquio Amazônico de Etnomusicologia, apoio das Universidades Federal e Estadual do Pará. Os encontros aconteceram no período de 22 a 24 de junho, no Auditório do Programa de Pós-Graduação em Artes da UFPA, com o tema: “Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares", reflexões sobre a Etnomusicologia na contemporaneidade, a disciplinaridade/interdisciplinaridade da área e investigações em seus modi operandi que distinguem, identificam contextos e suas culturas. Conferências, Mesas Redondas, Sessões de Comunicações e Apresentações artísticas foram realizados, envolvendo convidados nacionais e da Amazônia, estudantes, professores, músicos, mestres da cultura popular, constituindo-se em espaços institucionalizados de debates e de socialização de pesquisas na área da Etnomusicologia, mais um passo em direção a consolidação da área na Região Norte do Brasil. Comissão organizadora

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II ENCONTRO REGIONAL NORTE DAASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ETNOMUSICOLOGIA

II COLÓQUIO AMAZÔNICO DE ETNOMUSICOLOGIA

Etnomusicologia na Contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares PROGRAMAÇÃO GERAL Horários

22 de junho

16:00

INSCRIÇÃO E CREDENCIAMENTO

23 de junho

ABERTURA Dr. Fernando Arthur Neves (Pró-reitor de Extensão UFPA) LANÇAMENTOS REVISTA TUCUNDUBA – PROEX/UFPA MIXAGENS EM CAMPO – PPGMUS/UFRGS CONFERÊNCIA ETNOMUSICOLOGIA NA CONTEMPORANEIDADE Dra. Marilia Stein (UFRGS) Coordenação – Dr. Paulo Murilo Guerreiro do Amaral (UEPA)

MESA REDONDA 2 DIÁLOGOS DISCIPLINARES Dra. Alice Satomi (UFPB) Dr. Bernardo Mesquita (UEAM) Mestre Lucas Bragança (SANCARI) Coordenação – Dra. Rosa Maria Mota da Silva (UFPA)

SESSÕES DE COMUNICAÇÃO ORAL

19:20

MESA REDONDA 1 REFLEXÕES SOBRE GÊNERO, RELAÇÕES ETNICORACIAIS E SEXUALIDADES NA ETNOMUSICOLOGIA BRASILEIRA E ESTUDOS MUSICAIS DA AMAZÕNIA Dra. Laila Rosa (UFBA) Ms. Jorgete Lago (UFPA) Dr. Rafael Noleto (UFT) Dr. Paulo Murilo Guerreiro do Amaral (UEPA) Coordenação – Dra. Lívia Negrão (UEPA)

20:50

COQUETEL

APRESENTAÇÃO ARTÍSTICA CACIQUE SMALL BAND

17:30

18:00

19:00

24 de junho

MESA REDONDA 3 DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES Dr. Paulo Tiné (UNICAMP) Dra. Giselle Guilhon (UFPA) Dr. Miguel Santa Brígida (UFPA) Mestre Nego Ray (COISAS DE NEGRO Coordenação – Dra. Maria José Pinto da Costa de Moraes (UFPA)

SESSÕES DE COMUNICAÇÃO ORAL

APRESENTAÇÃO ARTÍSTICA GRUPO COISAS DE NEGRO

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II ENCONTRO REGIONAL NORTE DAASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ETNOMUSICOLOGIA

II COLÓQUIO AMAZÔNICO DE ETNOMUSICOLOGIA

Etnomusicologia na Contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares SESSÕES DE COMUNICAÇÃO 23.06.2016

HORÁRIO

19:10

19:30

19:50

20:10

20:30

SESSÃO 1

SESSÃO 2

SESSÃO 3

Coordenação: Edson Santos Silva

Coordenação: Tainá Façanha

Coordenação: Ricardo Smith

BANDA DE MÚSICA DA POLÍCIA MILITAR NO OESTE PARAENSE Andréa Reni Mendes Mardock Anderson Levy Mardock Corrêa

CIDADE E CULTURA MUSICAL: A FEIRA PIXINGUINHA EM BELÉM DO PARÁ (1980)

A PRÁTICA DO CARIMBÓ NO ESPAÇO CULTURAL COISAS DE NEGRO: POR UMA ETNOMUSICOLOGIA COLABORATIVA

JURUNAS: DA PERSPECTIVA DE SEIS REPRESENTANTES DA MÚSICA LOCAL Bárbara Lobato Batista / Ediel Rocha de Sousa / Erica Caroline Paixão / Lana Luisa Aragão / Nathália Lobato da Silva / Pedro Miranda dos Santos Júnior / Sonia Chada FUNDAMENTOS DO BOI DE TOQUINHO: BRINQUEDO DE ENCANTADO Luiz Antonio de Albuquerque Lins Filho / Luana Bagarrão Guedes

O FENÔMENO DA LAMBADA: REFLEXÕES SOBRE PROCESSOS DE EXPANSÃO, DESTERRITORIALIZAÇÃO E MUDANÇA CULTURAL/MUSICAL Francinaldo Gomes Paz Júnior MESTRE SEVERINO GRAVA UM CD: MAS O PRODUTOR É QUEM FAZ A MÚSICA

Nélio Ribeiro Moreira

CORDÃO DE PEIXE BACU: ESTUDO DE UMA PRÁTICA MUSICAL EM ICOARACI-PARÁ

Kleber Moreira / Agostinho Lima CATEGORIAS E PRÁTICAS MUSICAIS CARUARU (PE): O MUNDO DO FORRÓ

Luany Guilherme Ferreira / Lívia Alexandra Negrão Braga

Philipe Moreira Sales Silva / Carlos Sandroni

O CORAL EDGARD MORAES ALIANDO TRADIÇÃO E INOVAÇÃO NO FREVO-DE-BLOCO: O ÁLBUM CANTOS E ENCANTOS

EM

CONSIDERAÇÕES SOBRE A DESCENDÊNCIA DA MÚSICA ARMORIAL NA CONTEMPORANEIDADE: MUDANÇA E CONTINUIDADE

Carina Malaquias de Lima / Liliam Barros Cohen O ACERVO DE TCCS DA UEPA Bárbara Lobato Batista / Sonia Chada

MAPEANDO CENAS E CENÁRIOS MUSICAIS NO BAIRRO DO GUAMÁ, EM BELÉM-PA Jucélia Estumano Henderson / Sonia Chada OLHAR E ESCUTAR COM ATENÇÃO: TRANSMISSÃO E ASSIMILAÇÃO DO SABER NAS PRÁTICAS MUSICAIS DO POVO KA'APOR Hugo Maximino Camarinha / Claudia Leonor López Garcés OS TUPINAMBÁ NO BRASIL COLONIAL: SABER-FAZER INSTRUMENTOS MUSICAIS Rafael Severiano / Liliam Barros

Alice E. da Silva Alves / Carlos Sandroni Marília Paula dos Santos / Carlos Sandroni

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II ENCONTRO REGIONAL NORTE DAASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ETNOMUSICOLOGIA

II COLÓQUIO AMAZÔNICO DE ETNOMUSICOLOGIA

Etnomusicologia na Contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares SESSÕES DE COMUNICAÇÃO

HORÁRIO

24.06.2016 SESSÃO 4 Coordenação: Jucélia Henderson A ENGENHARIA DE SOM E A AUTORIA DA OBRA FONOGRÁFICA EM MÚSICA POPULAR

SESSÃO 5 Coordenação: Dayse Puget PESQUISA EM MÚSICA: METODOLOGIA EM HISTÓRIA ORAL Tainá Maria Magalhães Façanha

19:25 Ricardo Smith / Sonia Chada UNIVERSO DE SI: O CANTO E A FOTOGRAFIA COMO FONTES DE IDENTIDADE

A GUITARRADA E MESTRE VIEIRA: DOIS CASOS DE CONVERSÃO SEMIÓTICA

Yvana Crizanto

Saulo Christ Caraveo

MÚSICA SMART: UM ESTUDO ETNOGRÁFICO SOBRE A ESCUTA MUSICAL EM DISPOSITIVOS MÓVEIS

PONTOS RITUAIS: A RELIGIOSIDADE COMPOSIÇÕES DE WALDEMAR HENRIQUE

José Ruy Henderson Filho

Edson Santos da Silva / Sonia Chada

A HIERARQUIA COMO MÉTODO: EQUIDADE NA PRODUÇÃO DA MÚSICA DE CONCERTO, UM RELATO ETNOGRÁFICO

PRESENÇA DOS PONTOS DE RAIZ DA UMBANDA E DO CANDOMBLÉ NA M.P.B.

Hudson Cláudio Neres Lima / José Alberto Salgado

Dayse Maria Pamplona Puget

19:45

AFRO-BRASILEIRA

NAS

20:05

20:25

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/ Belém – 2016 Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.

SUMÁRIO APRESENTAÇÕES MUSICAIS: CACIQUE SMALL BAND ........................................................................................................... 16 GRUPO CARIMBÓ DE ICOARACI .............................................................................................. 17 CONFERÊNCIA: ETNOMUSICOLOGIA NA CONTEMPORANEIDADE MARÍLIA RAQUEL ALBORNOZ STEIN ............................................................................................... 19 MESA REDONDA 1: REFLEXÕES SOBRE GÊNERO, RELAÇÕES ETNICORACIAIS E SEXUALIDADES NA ETNOMUSICOLOGIA BRASILEIRA E ESTUDOS MUSICAIS DA AMAZÕNIA “O JAMBU TREME!”: ESTUDOS, FECHAÇÕES ETNOMUSICOLÓGICAS E A(R)TIVISMOS MUSICAIS PIONEIROS E NECESSÁRIOS DA AMAZÔNIA ........................................................................................................ 52 LAILA ROSA CAIPIRA, MULATA, SIMPATIA E GAY: REFLEXÕES SOBRE GÊNERO, RAÇA E SEXUALIDADE NOS CONCURSOS DE MISS DAS FESTAS JUNINAS EM BELÉM – PARÁ .......................................................................................... 66 RAFAEL DA SILVA NOLETO ENSAIO SOBRE RELAÇÕES DE GÊNERO EM GABY AMARANTOS, A “RAINHA DO TECNOBREGA” ........................ 75 PAULO MURILO GUERREIRO DO AMARAL. MESA REDONDA 2: DIÁLOGOS DISCIPLINARES ORGANOLOGIA, ARQUIVOS ONLINE E ETNOMUSICOLOGIA ....................................................................88 ALICE LUMI SATOM PALESTRA DE MESTRE LUCAS BRAGANÇA .............................................................................. 99 TRANSCRIÇÃO: TAINÁ FAÇANHA (MESTRANDA DO PPGARTES – UFPA) SUPERVISÃO: PROF. DR. PAULO MURILO GUERREIRO DO AMARAL (UEPA) MESA REDONDA 3: DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES DESDE QUE O SAMBA É SAMBA: REFLEXÕES E CRIAÇÕES SOBRE O GÊNERO.............................................. 103 PAULO JOSÉ DE SIQUEIRA TINÉ OUVIR-DANÇAR-ESCREVER: A “DANÇA” [RAQṢ] COMO “AUDIÇÃO” [SAMÂ’] NA COSMOPOESIA DE RUMI ..... 119 GISELLE GUILHON ANTUNES CAMARGO ETNOCORPOGRAFANDO SONS E GESTOS NA AMAZÔNIA .................................................................... 136 MIGUEL SANTA BRIGIDA PALESTRA DE MESTRE NEGO RAY ........................................................................................ 143 TRANSCRIÇÃO: PAULO ROBERTO DA COSTA BARRA (BOLSISTA PIBIC/CNPQ – UEPA) SUPERVISÃO: PROF. DR. PAULO MURILO GUERREIRO DO AMARAL (UEPA)

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COMUNICAÇÕES ORAIS SESSÃO 1 BANDA DE MÚSICA DA POLÍCIA MILITAR NO OESTE PARAENSE ........................................................... 147 ANDRÉA RENI MENDES MARDOCK ANDERSON LEVY MARDOCK CORRÊA JURUNAS: DA PERSPECTIVA DE SEIS REPRESENTANTES DA MÚSICA LOCAL ............................................... 154 BÁRBARA LOBATO BATISTA EDIEL ROCHA DE SOUSA ERICA CAROLINE PAIXÃO LANA LUISA ARAGÃO NATHÁLIA LOBATO DA SILVA PEDRO MIRANDA DOS SANTOS JUNIOR SONIA CHADA FUNDAMENTOS DO BOI DE TOQUINHO: BRINQUEDO DE ENCANTADO .....................................................162 LUIZ ANTÔNIO DE ALBUQUERQUE LINS FILHO LUANA BAGARRÃO GUEDES CORDÃO DE PEIXE BACU: ESTUDO DE UMA PRÁTICA MUSICAL EM ICOARACI –PARÁ ................................... 171 LUANY GUILHERME FERREIRA PROF.ª DR.ª LÍVIA ALEXANDRA NEGRÃO BRAGA O CORAL EDGARD MORAES ALIANDO TRADIÇÃO E INOVAÇÃO NO FREVO-DE-BLOCO: O ÁLBUM CANTOS E ENCANTOS ............................................................................................................................. 182 ALICE E. DA SILVA ALVES CARLOS SANDRONI SESSÃO 2 CIDADE E CULTURA MUSICAL: A FEIRA PIXINGUINHA EM BELÉM DO PARÁ (1980) .....................................192 NÉLIO RIBEIRO MOREIRA O FENÔMENO DA LAMBADA: REFLEXÕES SOBRE PROCESSOS DE EXPANSÃO, DESTERRITORIALIZAÇÃO E MUDANÇA CULTURAL/MUSICAL ................................................................................................................. 203 FRANCINALDO GOMES PAZ JÚNIOR MESTRE SEVERINO GRAVA UM CD, MAS O PRODUTOR É QUEM FAZ A MÚSICA ......................................... 214 KLEBER MOREIRA AGOSTINHO LIMA CATEGORIAS E PRÁTICAS MUSICAIS EM CARUARU (PE): O MUNDO DO FORRÓ ......................................... 223 PHILIPE MOREIRA SALES SILVA CARLOS SANDRONI CONSIDERAÇÕES SOBRE A DESCENDÊNCIA DA MÚSICA ARMORIAL NA CONTEMPORANEIDADE : MUDANÇA E CONTINUIDADE ........................................................................................................................ 231

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MARÍLIA PAULA DOS SANTOS CARLOS SANDRONI

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SESSÃO 3 A PRÁTICA DO CARIMBÓ NO ESPAÇO CULTURAL COISAS DE NEGRO: POR UMA ETNOMUSICOLOGIA COLABORATIVA ........................................................................................................................ 239 CARINA MALAQUIAS DE LIMA LILIAM BARROS COHEN O ACERVO DE TCC’S DA UEPA.................................................................................................... 245 BÁRBARA LOBATO BATISTA SONIA CHADA MAPEANDO CENAS E CENÁRIOS MUSICAIS NO BAIRRO DO GUAMÁ, EM BELÉM-PA.................................... 254 JUCÉLIA ESTUMANO HENDERSON SONIA CHADA OLHAR E ESCUTAR COM ATENÇÃO: TRANSMISSÃO E ASSIMILAÇÃO DO SABER NAS PRÁTICAS MUSICAIS DO POVO KA'APOR ................................................................................................................................ 263 HUGO MAXIMINO CAMARINHA CLAUDIA LEONOR LÓPEZ GARCÉS OS TUPINAMBÁ NO BRASIL COLONIAL: SABER-FAZER INSTRUMENTOS MUSICAIS ...................................... 273

Rafael Severiano LILIAM BARROS

SESSÃO 4 A ENGENHARIA DE SOM E A AUTORIA DA OBRA FONOGRÁFICA EM MÚSICA POPULAR................................ 284 RICARDO SMITH SONIA CHADA UNIVERSO DE SI: O CANTO E A FOTOGRAFIA COMO FONTES DE IDENTIDADE............................................. 290 YVANA CRIZANTO MÚSICA SMART: UM ESTUDO ETNOGRÁFICO SOBRE A ESCUTA MUSICAL EM DISPOSITIVOS MÓVEIS ............... 299 JOSÉ RUY HENDERSON FILHO A HIERARQUIA COMO MÉTODO: EQUIDADE NA PRODUÇÃO DA MÚSICA DE CONCERTO, UM RELATO ETNOGRÁFICO. ...............................................................................................................................................306 HUDSON CLÁUDIO NERES LIMA JOSÉ ALBERTO SALGADO

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SESSÃO 5 PESQUISA EM MÚSICA: METODOLOGIA EM HISTÓRIA ORAL .................................................................. 315 TAINÁ MARIA MAGALHÃES FAÇANHA A GUITARRADA E MESTRE VIEIRA: DOIS CASOS DE CONVERSÃO SEMIÓTICA ............................................. 321 SAULO CHRIST CARAVEO PONTOS RITUAIS: A RELIGIOSIDADE AFRO-BRASILEIRA NAS COMPOSIÇÕES DE WALDEMAR HENRIQUE ............ 330 EDSON SANTOS DA SILVA SONIA CHADA A PRESENÇA DOS PONTOS DE RAIZ DA UMBANDA E DO CANDOMBLÉ NA M.P.B ...................................... 339 DAYSE MARIA PAMPLONA PUGET

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APRESENTAÇÕES MUSICAIS

CACIQUE SMALL BAND

Small Band integrada por músicos do norte do Brasil que se dedicam a execução de música autoral e arranjos já criados para esta formação. O grupo nasceu num ambiente de cooperação e troca de ideias, que marcava os encontros de músicos de metal para o estudo de improvisação. Com o passar do tempo, firmou-se como uma Small band com repertório de música instrumental brasileira de influência jazzística. Os traços marcantes na identidade do Cacique Small Band é a música autoral e os arranjos feitos pelos próprios músicos. Nos saxofones, Elias Coutinho (alto), Thiago Levy (tenor) e Rafael Oliva (barítono). Nos trompetes, Johab Quadros e Gerson Levi, e no trombone, Adnelson Azevedo. Na base, Adelbert Carneiro ao contrabaixo, Isac Almeida ao piano e Tiago Belém na bateria.

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GRUPO CARIMBÓ DE ICOARACI

O Grupo Carimbo de Icoaraci surgiu no Espaço Cultural Coisas de Negro, local de referência para a prática musical do carimbó em Icoaraci-PA, oportunizando várias atividades culturais/musicais à comunidade do seu entorno, incluindo a Roda de Carimbó, representando a resistência da cultura africana e amazônica no Estado paraense. O Grupo Carimbó de Icoaraci atua com formações instrumentais variadas, apresentando características particulares na sua prática musical, cujos processos criativos, de aquisição e transmissão de música, de construção de conhecimento e de significado musical acontecem socialmente, por meio da participação na prática musical. Os instrumentos utilizados pelo grupo são dois curimbós - um grave e outro médio, um banjo, uma flauta transversal, dois pares de maracas, um milheiro, um par de claves, um contrabaixo elétrico e uma guitarra. A utilização de instrumentos artesanais com instrumentos elétricos é uma das características desse grupo, resultando em uma sonoridade particular, algumas vezes considerada pelo grupo “uma questão de modernidade”, na formação instrumental.

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CONFERÊNCIA: ETNOMUSICOLOGIA NA CONTEMPORANEIDADE Coordenação – Dr. Paulo Murilo Guerreiro do Amaral (UEPA)

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Etnomusicologia na contemporaneidade Marília Raquel Albornoz Stein UFRGS - [email protected] Resumo: Este artigo apresenta alguns temas para se pensar a entomusicologia contemporânea no Brasil, levantando questões metodológicas, apontando produções escritas publicadas e aspectos de coletivos de pesquisa na área. Pretende-se, assim, instigar o debate e a curiosidade, de ouvintes e leitores, no enfrentamento de desafios que atingem aqueles que praticam a etnografia da música, historicamente e especialmente no momento atual no Brasil, no âmbito das universidades e em outros contextos. Palavras-chave: Etnomusicologia no Brasil. Etnografia da Música. Universidade.

Abertura- diálogos interdisciplinares – transdisciplinares Esta apresentação tem por objetivo instigar o debate e a curiosidade, de ouvintes e leitores, no enfrentamento de desafios etnomusicológicos que nos atingem historicamente e especialmente no momento atual no Brasil, no âmbito das universidades, dos centros de cultura, dos espaços de formação e atuação de professores da educação básica, das instâncias de defesa dos direitos das minorias, dos núcleos de apoio aos jovens pesquisadores e também aos mais experientes. Durante esta semana, teremos oportunidade de discutir, de forma mais aprofundada, os diálogos disciplinares e interdisciplinares que a etnomusicologia vem realizando, ou já realizou, ou que acreditamos que deveria realizar. Neste momento, levantarei alguns aspectos que me parecem relevantes para instigar esta conversa. Não se trata de pensar o positivo e o negativo da etnomusicologia, ou suas condições de possibilidade (pois sabemos que para isso não existe uma fórmula), nem de traçar uma história linear de acontecimentos. Pretendo abordar fragmentos desta ciência a partir de uma escuta, de um olhar, de uma experiência do coletivo que dá suporte para algumas interpretações de continuidades e mudanças na área. Apesar do título generoso que me foi sugerido – a etnomusicologia contemporânea -, sem limites geopolíticos pré-estabelecidos, optei por tratar do estado da arte em nosso território nacional (sobreposto e tensionado pelos territórios dos povos originários). Compreendo o contexto de grande florescimento das pesquisas e de simultânea crise políticano Brasil- que envolve ameaças às instituições públicas voltadas à cultura, à educação e à ciência - como um inevitável momento de reflexão e de busca de

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fortalecimento coletivo de etnomusicólogos, atuantes e em formação, junto a seus interlocutores e parceiros. Minha fala pretende se somar a esta reflexão e a esta busca. Neste sentido, primeiro serão descritos paradigmas históricos e mudanças metodológicas em etnomusicologia, assim como o caso do projeto Encontro de Saberes (INCTI, 2015), para se pensarem alguns dilemas da etnomusicologia em busca de se enriquecer o debate. Na segunda parte da apresentação, revisarei brevemente a trajetória de institucionalização da etnomusicologia no Brasil, comentarei a produção de livros e periódicos no âmbito desta ciênciae trareidados, alguns panorâmicos e outros pontuais, dos coletivos brasileiros de pesquisa em etnomusicologia. 1.

Diálogos – Com quem? Quem somos? De paradigmas históricos e dilemas

político-epistêmicos O conhecimento etnomusicológico tem sido produzido em diálogoentre os pares tanto da área como de outras áreas de pesquisa. A própria entomusicologia, como nos lembram Lühninget al., é oriunda de um caminho interdisciplinar e dinâmico (2013, p. 7). Também parecem estar em curso, cada vez mais, importantes parcerias com diferentes setores da sociedade brasileira, co-responsáveis pelo desenvolvimento da disciplina. Desafiam-nos os esforços de ampliar as redes de pesquisa em âmbito internacional, na América Latina e nos outros continentes, não apenas colocando o Brasil como receptor de informações e paradigmas, mas também como propositor em etnomusicologia (ver LÜHNING, 2014a). Dessa forma, no campo da etnomusicologia, a construçãode estudos, reestudos, diagnoses de campos emergentes e atendimento a demandas sócio musicais pode seguir colaborando na promoção da qualificação do ensino e da pesquisa nas escolas de educação básica e superior, e também na melhora da qualidade de vida de todos no Brasil e na defesa de nossos princípios democráticos. Assim, com diferentes aportes interdisciplinares, em diálogo com a sociedade brasileira e também com a comunidade internacional, o próprio campo da etnomusicologia brasileira se consolida, qualifica e diversifica. A etomusicologia no Brasil, especialmente desde sua organização em torno da Associação Brasileira de Etnomusicologia(ABET), criada em 2001, e certamente muito antes disso - pelo esforço de pesquisadores, movimentos sociais, coletivos de agentes culturais, professores, etc. - vem-se pautando pela ampliação da pesquisa no país, não 20

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apenas através de sua institucionalização, mas também de ações investigativas articuladas em torno da inclusão social, do respeito à diferença e da valorização da interdisciplinaridade e da transdisciplinaridade. Interdisciplinaridade seria “acapacidade de cruzar as fronteiras da segmentação moderna, recombinando linguagens, conhecimentos e metodologias” (INCTI, 2015, p. 14). Transdisciplinaridade, por sua vez, seria “uma perspectiva de reflexão aberta sobre problemas concretos, capaz de reconciliar as Ciências Exatas com as Humanidades, bem como incluir saberes externos ao paradigma moderno e ao cânone acadêmico” (ibid.). Uma etnomusicologia incipiente, eurocêntrica e simultaneamente nacionalista, ocorria através das ações de folcloristas como Mario de Andrade1, entre muitos outros, na primeira metade do século XX no Brasil. Apesar de seu caráter exotizante e evolucionista, até hoje seus frutos permanecem de valor incalculável - desde que interpretados de forma crítica -em livros e fonogramas digitalizados, pelos acervos que constituíram, pois permitiram, com base em novos paradigmas, reestudos e avanços etnomusicais entre o passado e o futuro. A nascente etnomusicologia brasileira, baseava-sepor um lado na musicologia comparada e na “psico-musicologia” (MENEZES BASTOS, 1990) alemã e por outro lado inspirava-se, em meados do século XX, na perspectiva norte-americana da etnomusicologia, de forte matriz antropológica, metodologicamente marcada pelo trabalho de campo, cindida, no entanto, entre a musicologia histórica e a musicologia semântica. Os dilemas de então parecem ser ainda os de hoje: como evitar isolar a música de seu contexto? Como descrever conteúdos musicais sem separá-los de outros, sociais (serão outros?)? Como tratar as descrições pela perspectiva dos músicos e dos outros participantes do evento musical sem se abster de uma posição de pesquisador na narrativa? É certo que muito se transformou o projeto de fazer etnomusicologia com a virada hermenêutica, ou seja, com o reconhecimento do campo interpretativo na construção do conhecimentodos sujeitos da pesquisa, opondo-se à tradição descritivista. Mais do que isso, o próprio questionamento sobre quem pesquisa e para que se pesquisa estimula uma mudança radical nas maneiras de se pensarem as escolhas temáticas e metodológicas na etnomusicologia. Em diversos países, e também no Brasil. O aspecto colaborativo se torna central. A ciência não é feita pelo cientista para o cientista. Ou melhor, o cientista não é só quem está com o 1

Sobre o acervo sonoro e documental da Missão de Pesquisas Folclóricas, consultar: http://ww2.sescsp.org.br/sesc/hotsites/missao/. Acessado em: 22 jun. 2016.

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título reconhecido pela academia. Divide-se a notoriedade e reconhece-se a expertise dos sujeitos que produzem as sonoridades e performances no mundo, que fazem soar e pulsar o mundo, que permitem haver o mundo. Além disso, a música não é mais compreendida como sons unicamente, nem mesmo só como as pessoas que fazem a música em relação com o contexto do fazer musical e com os sons. Trata-se de um acontecimento, analisado em sua singularidade performativa a partir das perspectivas de seus realizadores, em contexto específico e cujas convenções e intencionalidades são ora repetidas, ora inovadas. Para Finnegan (2008), o complexo multimodal que é observado e vivenciado pelo pesquisador nas experiências de campo extrapola o conceito de “música”, envolvendo pessoas, memórias, cheiros, gostos, objetos, movimentos, palavras, olhares, intenções, identidades. As resistências interpretativas de muitos contextos sonoro-preformáticos - como muitos em que se realiza a música ameríndia - aos modelos ocidentais de realização musical ede criação de vocabulário musical (que, apesar de não serem a-corpóreos e também integrarem um fenômeno holístico, persistem sob um discurso de que a música se restringe a sons – ou mesmo ao registro gráfico dos sons) são parte dos fatores que criama necessidade, emum grande número de pesquisas etnomusicológicas, de trabalhar com o multimodalismo, única forma de se obterem soluções aproximativas às teorias nativas do universo sonoro-performático destes grupos (por exemplo, ver STEIN, 2009). Piedade enfatiza esta característica das práticas sonoro-performáticas originárias: [...] os sistemas musicais nativosimbricam-se nos domínios dos saberes, havendoportanto necessidade da compreensão da músicapara além da ordem sônica, tomando-a como um"sistema significante de relevância estratégicapara a construção do real" (MENEZES BASTOS e LAGROU, 1995, p. 2). A música amazônica lançadesafios ao próprio conceito de música, enriquecendo, portanto, todo o campo da Musicologia, Teoria Musical e Filosofia daMúsica. (PIEDADE, 2006, p. 67).

No entanto, não se trata apenas de reconhecer o caráter holístico multimodal do fenômeno sonoro-performático. Também está em jogo na pesquisa aqueles que não são pesquisadores nativos superarem dicotomias que escondem preconceitos baseados na hierarquização de aspectos e práticas sociais, que justifiquem dominações, invisibilizações, negações, silenciamentos. A complexidade das formas de registro e transmissão musical, que não se encaixam em padrões de apenas oralidade ou apenas escrita, assim como o caráter discursivo das categorizações da música como tradicional ou nova/moderna, foram 22

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tratados por Araújo em encontro de etnomusicologia de 2000 na UFMG (descrito adiante) e encontra-se em capítulo do livro resultante do encontro (ARAÚJO, 2006b). Movimentos sociais, políticas públicas e a etnomusicologia – mais sobre a necessária mudança de paradigmas e nossa inspiração antropológica Próximo à fundação da ABET -no contexto da reabertura democrática no Brasil e do estabelecimento da nova Constituição Federal (1988) - projetos importantes com presença de etnomusicólogos foram sendo constituídos no país, ora com apoio financeiro do governo federal,2 ora por iniciativas variadas, como as inspiradas no pioneirismo de órgãos de cultura e educação, como o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa (INCTI),3 que propôs o projeto Encontro de Saberes, marcandoo cenário acadêmico brasileiro de forma definitiva. No último encontro da ABET4, em 2015, foi muito significativa a presença de mestres latino-americanos representantes de povos originários das Terras Baixas e Andinos da América do Sul, de comunidades quilombolas e de movimentos jovens populares. A conferência de abertura foi proferida pelo compositor indígena e pesquisador musical colombiano da etnia Nasa, Inocêncio Ramos. Em mesas redondas sobre diferentes temáticas, assim como em outros momentos músico-performáticos, apresentaram suas reflexões sobre etnomusicologia, práticas sonoro-performáticas e políticas culturais e territoriais: o músico do grupo de rap KaiováBroMC's, Bruno Verón, do Mato Grosso do 2

Por exemplo, projetos de extensão como Saberes Indígenas na Escola e outros, de formação continuada para indígenas e para não indígenas, e Programa de Educação Tutorial–Indígena, ocorreram com financiamento Ministério da Educação (MEC) / Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI); o projeto de extensão Intervivências, entre comunidades populares e tradicionais e universidade, ocorreu com financiamento Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA); etc. 3

O INCTI se consolidou em 2009, através do Programa dos Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia (Portaria MCT nº 429/2008), selecionado no Edital nº 015/2008 do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), por intermédio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), em parceria com a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES, com a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG), com a Fundação Carlos Chagas de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), e com a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). O INCTI contribui para consolidar uma rede nacional de pesquisadores, realizando pesquisas sobre as políticas de ações afirmativas nas universidades brasileiras. “O projeto resulta de uma parceria estabelecida junto à UnB, ao CNPq, ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), ao MEC e ao Ministério da Cultura (MinC) – sendo o último o órgão financiador da proposta, bem como um aliado fundamental desde a sua criação.” (INCTI, 2015, p. 3). 4 Programação disponível em e os Anais em.

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Sul; a professora, pesquisadora e cantora Mapuche Elisa Avendaño Curaqueo, do Chile; e o músico e líder da comunidade quilombola da Manga, Nazário Frazão de Almeira, coordenador geral da Festa do Congo, entre outros participantes identificados com práticas culturais e territórios tradicionais no Brasil e em outros países da América Latina. Em diferentes planos do evento, estes intelectuais e artistas trouxeram perspectivas não hegemônicas sobre o estudo da música como prática cultural, político-performática. Entre metáforas sobre a força da música Nasa como condutora de alegria e sobre o pesquisarcomo pescar, em conexão com a crítica à destruição dos territórios e a poluição das águas (Ramos); realização de cantos Mapuche inspirados em cenas de repressão e violência cotidianas, como a do jovem assassinado em conflito étnico-territorial, junto à reflexão sobre a organização comunitária Mapuche e suas formas de educação musical (Curaqueo); a apresentação de composições de rap Kaiová como afirmação identitária e espiritual e denúncia de violências, injustiças, preconceito e negligência dos órgãos públicos (responsáveis pela demora na efetivação de seus direitos territoriais) para com os Kaiová no Mato Grosso do Sul (Verón) - sonoridades, performances, projetos políticos, resistências culturais foram imprimindo força e beleza discursiva ao encontro, potencializando a reflexão sobre diversidade musical e direitos territoriais, sobre relações entre seres humanos e extra humanos esobre formas desistematização de conhecimentos musicais, motivando continuidades e novas abordagens de pesquisa entre os diferentes pesquisadores presentes. Foi um encontro novo neste sentido, pois a área - apesar de há anos haver um crescimento das pesquisas participativas, dialógicas, colaborativas, aplicadas sobre temas das práticas musicais tradicionais e populares brasileiras5 - produz suas programações de difusão majoritariamente entre os pares com formação universitária, etnomusicólogos em geral não indígenas, não quilombolas, não de outras comunidades tradicionais e não juventude e outros grupos de perfil popular. Mas, como veremos, este mapa de visibilidade/audibilidade epistêmica vem se reconfigurando, por conta das demandas dos movimentos sociais e de grupos populares e tradicionais, das políticas de cotas nas universidades, doingresso de mestres tradicionais no ensino universitário (por

ex.,

5

Sobre o tema da enotmusicologia participativa, dialógica, aplicada e/ou colaborativa, ver Lühning (2003; 2006; 2014), Araújo (2006a), Cambria (2008), Lucas (2011), Stein e Silva (2014), Guazina (2015) e os artigos no último número da revista World of Music, recentemente publicada (2016).

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Encontro de Saberes, desde 2010) eda formação - por diferentes projetos e programas - de pesquisadores indígenas, quilombolas e de outras minorias étnico-raciais. Na edição anterior do Encontro Nacional da ABET (VI ENABET, João Pessoa, 2013), um grupo de mestres indígenaspesquisadores das práticas sonoro-performáticas dos povos Krahô, Guarani-Kaiová, Guarani-Mbyá, Maxakali/Tikmũ’ũn e Baniwa havia participado do evento. Estes pesquisadores apresentaram, em colaboração com etnomusicólogos não indígenas, resultados parciais da pesquisa ProDocSon – Memória através dos Cantos, desenvolvida a partir de 2011, pelo Museu do Índio do Rio de Janeiro e pela UNESCO.6 Nas outras edições do ENABET (assim como em outros eventos científicos nacionais e internacionais; por exemplo, nas Reuniões Brasileiras de Antropologia RBAs), outros pesquisadores já vinham representando nos eventos as próprias comunidades em investigação. Por exemplo, os estudantes da Maré, do projeto Música, memória e sociabilidade da Maré, coordenado por Samuel Araújo e Vicenzo Cambria (Laboratório de Etnomusicologia/UFRJ)7; e o mestre Guarani-Mbyá Vherá Poty, da equipe de coordenadores musicais do projeto Salvaguarda do patrimônio musical indígena: registro etnográfico multimídia da cultura musical em comunidades Mbyá-Guarani da Grande Porto Alegre, RS, coordenado por Maria Elizabeth Lucas (Grupo de Estudos Musicais [GEM]/Universidade Federal do Rio Grande do Sul [UFRGS])8 e pesquisador do projeto ProDocSon, acima mencionado. Reflete-se nestes encontros científicos o esforço da sociedade, dos movimentos sociais, das instâncias públicas de formação educacional

e

6

O Projeto de Documentação de Sonoridades (ProDocSon), vinculado ao Projeto de Documentação de Línguas e Culturas Indígenas Brasileiras (ProgDoc), do Museu do Índio do Rio de Janeiro/UNESCO, intitulado Memória através dos cantos,écoordenado por Rogângela Tugny e conta com a participação de equipes regionais, constituídas por pesquisadores indígenas Guarani-Mbyá (RS); Kaiowá (MS); Baniwa (AM); Krahô (TO); Enawene Nawe (MT); Tikmũ’ũn/Maxakali (MG), entre outros, e por etnomusicólogos não-indígenas. Pretendecriarinstâncias de troca de conhecimento entre povos vizinhos com passado comum, estimular a transmissão e a manutenção dos conhecimentos musicais tradicionais (TUGNYet al., 2010) e pesquisar pela perspectiva etnomusicológica junto a estes povos indígenas (para maior detalhamento sobre o projeto ver: LIMA RODGERS et al., 2016). 7 Os pesquisadores Samuel Araújo e Vicenzo Cambria, com outros membros do Laboratório de Etnomusicologia da UFRJ, desenvolvem desde 2005 este projeto etnomusicológico colaborativo com jovens moradores no bairro da Maré, RJ. 8 Projeto desenvolvido no âmbito do Edital nº 1/2007 – Apoio e Fomento ao Patrimônio Cultural Imaterial, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), 2008-2009. Além de Vherá Poty, mestre de música, professor de Guarani e liderança Guarani-Mbyá, participaram deste projeto outras lideranças Guarani e familiares das tekoá (aldeias) Nhundy (Estiva, Viamão, RS), Jataity (Terra Indígena do Cantagalo, Porto Alegre, RS) e Pindó Mirim (Terra Indígena de Itapuã, Viamão, RS) e diversos integrantes do GEM, entre os quais a antropóloga Janaina Lobo, que atuou centralmente na equipe executiva.

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dos pesquisadores etnomusicólogos de superar a perspectiva colonialista de pesquisar pelo Outro, com o Outro objetificado, ou de superar ainda a perspectiva que reconhece a subjetividade do Outro, mas apenas como “informante” ou “colaborador”. Em vez disso, pretende-se que os diferentes pesquisadores/nativos – da comunidade pesquisada, de fora da comunidade pesquisada – negociem seus espaços de construtores de conhecimento, tomem suas decisões metodológicas e interpretativas e conduzam os resultados da pesquisa em camadas e abrangências diversificadas de divulgação e aplicação (STEIN e SILVA, 2014). No plano da experiência etnográfica, a etnomusicologia divide perspectivas metodológicas pós-coloniais com a antropologia, entre outras áreas, pelas quais reconhece os conflitos sociais, as hegemonias e as resistências, como pano de fundo da constituição do campo e dos conhecimentos nele construídos. Para entender este movimento de “descolonização”, remeto a alguns pensadores que o historicizam e sobre ele refletem: James Clifford analisa “a formação e desintegração da autoridade etnográfica na antropologia social do século XX” (1999: 18), que apresenta o dilema da interpretação intercultural “associado à desintegração e à redistribuição do poder colonial” (1999: 18) a partir da metade do século XX, quando o Ocidente reconhece não ser mais possível “se apresentar como o único provedor de conhecimento antropológico sobre o outro” (1999:18-19). Para Clifford, neste mundo “ambíguo, multivocal, torna-se cada vez mais difícil conceber a diversidade humana como culturas independentes, delimitadas e inscritas” (1999, p. 19). Se “a escrita etnográfica não pode escapar inteiramente do uso reducionista de dicotomias e essências, ela pode ao menos lutar conscientemente para evitar representar ‘outros’ abstratos e a-históricos” (1999, p. 19). Desta maneira, diferentes povos terão condições de “formar imagens complexas e concretas uns dos outros, assim como das relações de poder e de conhecimento que os conectam” (1999, p. 19). Tais imagens serão formadas “a partir de relações históricas específicas de dominação e diálogo”, envolvendo um debate político-epistemológico mais geral sobre a escrita e a representação da alteridade. No mesmo sentido, de explicitar os contextos e as relações de poder inerentes às produções de conhecimento, Boaventura de Souza Santos (2010) propõe uma “ecologia de saberes”que promova uma revisão do conhecimento instituído na sociedade atual e o questionamento da legitimidade do resultado das ciências modernas (dominadas por uma 26

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reflexão epistemológica desprovida de contexto cultural e político da produção e reprodução do conhecimento) nos territórios colonizados. Ao encontro da “antropologia simétrica” de Bruno Latour (1994), Eduardo Viveiros de Castro reivindica que a antropologia seja tomada como uma prática de sentido em continuidade epistêmica com as práticas sobre as quais discorre, “não para fulminá-la por colonialista, exorcizar seu exotismo, minar seu campo intelectual, mas para fazê-la dizer outra coisa” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 2). Tal reflexão, como as anteriores, não explicita as maneiras concretas de proceder na pesquisa que corresponderiam a estas novas posições epistêmicas (interepistêmicas, como diria CARVALHO, 2016), mas fornece bases sólidas – éticas, filosóficas e políticas - para a constituição de debates, para redefinições metodológicas, para a constituição de campos, disputas e diálogos, com consequências tanto na esfera da legitimação de saberes e de processos de fazer pesquisa, quanto na valorização de sujeitos, de coletivos humanos e da defesa de territórios simbólicos e materiais vitais à constituição ontoepistêmica de cada sujeito e de cada comunidade. A análise do antropólogo Sergio Baptista da Silva, que aponta a existência de um necessário “constrangimento cosmológico”no fazer antropológico de pesquisadores que entram em experiências entográficas em contextos nos quais não têm familiaridade prévia com as sociocosmologias dos sujeitos socializados no campo, ajuda a construirmos essa imagem do antropólogo, e do etnomusicólogo, que, ao invés de principalmente falar do Outro, fala com o Outro, percebendo-se movido por sua diferença, por esta relação que o tempo todo tensiona o fazer científico. A presença no VII ENABET dos mestres latino-americanos de culturas tradicionais e urbanas populares como tecedores de contrapontos epistêmicos nos domínios de uma etnomusicologia

eurocentrada,

que

historicamente

os

excluiu,

simboliza

um

reconhecimento da grandeza de seu acervo de conhecimentos, a potencialidade de interlocução, aprendizagem e a incompletude das perspectivas, mesmo que diversas, mas hegemonicamente ocidentalizadas. A mudança de paradigma está em curso, mas é necessário estar atento para manter, mesmo que em fragmentos, ensaios, ações pontuais e em redes - locais, nacionais e transnacionais -, a vitalidade da tarefa de seguir produzindo uma etnomusicologia latino-americana cada vez mais plural e, assim, inclusiva.

O

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intelectual Ailton Krenak descreve encontros míticos e históricos coloniais no Brasil, observando sobre o necessário protagonismo dos povos originários que mais do que um esforço pessoal de contato com o Outro, nós precisamos influenciar de maneira decisiva a política pública do Estado brasileiro.[...]Esses gestos de aproximação e de reconhecimento, eles podem se expressar também numa abertura efetiva e maior dos lugares na mídia, nas universidades, nos centros de estudo, nos investimentos e também no acesso das nossas famílias e do nosso povo àquilo que é bom e àquilo que é considerado conquista da cultura brasileira, da cultura nacional. Se continuarmos sendo vistos como os que estão para serem descobertos e virmos também as cidades e os grandes centros e as tecnologias que são desenvolvidas somente como alguma coisa que nos ameaça e que nos exclui, o encontro continua sendo protelado. (KRENAK, 2016[1999]).

Ao encontro de saberes Não mais protelar este encontro foi o objetivo do projeto de ensino universitário Encontro de Saberes, implementadorecentemente na UFRJ e já vivido por seis outras instituições de ensino superior no Brasil, além de uma na Colômbia. Na ocasião de sua abertura, seu mentor, o antropólogo e etnomusicólogo José Jorge de Carvalho, destacou que a valorização da separação dos saberes em compartimentos é um aspecto que está na base das universidades. O Encontro de Saberes seria um movimento de busca de ampliação do universo de saberes na universidade, fundamentado em um diálogo interepistêmico entre os conhecimentos eurocêntricos dominantes na instituição e os saberes tradicionais promovidos por mestres indígenas e afrodescendentes convidados a ministrar aulas regulares (INCTI, 2015). Uma retomada da integração entre saberes e entre intelecto e sentimento (mente e coração). Para tanto, os mestres precisam estar “em presença” (CARVALHO, 2016), são insubstituíveis. É indispensável trazê-los, e não apenas seus saberes. Carvalho menciona a adequação de uma expressão japonesa, constituída pelo ideograma “Shin” (心), para definir esse processo, pois denota não apenas a compreensão cognitiva, senão também a conexão afetiva entre os sujeitos da construção do conhecimento – mestres e aprendizes. A palavra representariatanto a mente quanto o coração epoderia ser traduzida como“mente a mente”, ou “mente-corpo e também coração”. Carvalho explica o fundamento pedagógico que está em questão: “Minha mente sabe o que sua mente está pensando e meu coração sente o que seu coração está sentindo” (CARVALHO, 2016). A presença dos mestres é imprescindível, pois são eles que estão sentindo e pensando, falando com os alunos. Não pode alguém ficar no lugar deles. Tratase de um conhecimento diferente do ocidental, que se poderia retransmitir fora de contexto. 28

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Trata-se de um “saber direto”. Introduzir o Encontro de Saberes é fazer com que a universidade retome um saber que foi reduzido com base na Revolução Científica europeia, que foi regressiva, pois anulou a validade de vários saberes que anteriormente eram válidos naquela sociedade (CARVALHO, 2016).9 Como na psicanálise, informa Carvalho, a presença dos mestres na construção da aprendizagem é fundamental, por se tratar de um ato único, envolvente das subjetividades na experiência epistêmica. No Brasil ocorreram experiências deste tipo naUnB (primeiro oferecimento, em 2010), UFMG, UFJF, UECE, UFPA10e UFSB e no exterior, na Pontifícia Universidad Javeriana, Colômbia. Na UFRGS, será iniciada em agosto de 2016 a primeira turma da nova disciplina, proposta pelo Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros, Indígenas e Africanos (NEAB)11 e implementada no currículo do curso de Música, oferecida para toda a universidade como Curso 212 e com possibilidade de ser inserida nos currículos de outros cursos já em 2017. Ressalte-se que, apesar do caráter transdisciplinar do projeto – na UFRGS, contaremos com professores mediadores dos cursos de Economia, Música, Letras, Educação, Museologia, Agronomia, Antropologia -, há um contingente importante de etnomusicólogos atuando no Encontro de Saberes desde sua origem13, o que provavelmente esteja relacionado com o entendimento político e epistemológico de um grande número de etnomusicólogos brasileiros - envolvidos nesta perspectiva descolonizadora, inclusiva e atuando em pesquisas colaborativas/participativas– e também com a potência transdisciplinar das práticas sonoro-performáticas de grupos tradicionais,

9

Encontram-se aqui os vídeos da palestra de José Jorge de Carvalho no lançamento do projeto Encontro de Saberes da UFRJ (28 jan. 2016). Parte I: https://www.youtube.com/watch?v=R_0rIcsrvF0; Parte II: https://www.youtube.com/watch?v=rUx6n3V3cXI. No youtube estão também os demais registros (até a Parte VII). 10 A este respeito, ver o número 5 da Revista Tucunduba, lançado neste evento (TUCUNDUBA, 2016), exclusivamente sobre o projeto Encontro de Saberes na UFPA em 2014. 11 Os grupos apoiadores são: Grupo de Estudos Musicais – GEM (PPGMUS/PPGAS); Laboratório de Ensino de História e Educação– LHISTE; Núcleo de Antropologia das Sociedades Indígenas e Tradicionais – NIT (PPGAS); Núcleo de Estudos em Desenvolvimento Rural Sustentável – DESMA; Grupo de Estudos em Memória, Patrimônio e Museus – GEMMUS; Programa Saberes Indígenas na Escola/UFRGS – SIE (FACED); RIMP AbyaYala: Epistemologias Ameríndias em Rede (ILEA); RIMP Estudos Africanos (ILEA). 12 Chama-se Curso 2 a modalidade de disciplina que pode ser cursada e validada como crédito complementar para o estudante. 13 Dados muito relevantes são expostos no relatório (2015), apresentando a maioria dos professores parceiros (ou mediadores) como pertencentes às áreas de conhecimento Ciências Humanas e Linguística, Letras e Artes. Note-se que a etnomusicologia pode ser pensada como pertencente aos dois campos – ou construtora deles. Ao mesmo tempo, o relatório chama a atenção para a multiplicidade de pertencimentos da equipe de professores, pois, “com exceção das Engenharias, todas as demais áreas delimitadas pelo CNPq estão contempladas, através da participação dos acadêmicos, em diálogo com os mestres e mestras tradicionais” (INCTI, 2015: 51), o que indica o diálogo interdisciplinar em curso.

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centrais nas constituições de seus mundos. Tais experiências têm oportunizado que pesquisadores da área tenham conhecido, nos seus trabalhos de campo, mestres qualificados para o Encontro de Saberes, podendo, assim, colaborar na mediação de sua presença nas universidades. A disciplina Encontro de Saberes atende, entre muitas outras instâncias legais, às leis 10.639/03 e 11.645/08– que tornam obrigatórioo ensino, respectivamente,da história e da cultura afro-brasileira e africana e da história e da cultura indígena nos currículos escolares no Brasil -e à meta da Câmara Interministerial de Educação e Cultura, regulamentada pela Portaria Normativa Interministerial nº 1/2007, de incorporar os mestres de ofício e das artes tradicionais nos vários níveis de ensino(PRASS et al., 2016: 7). Assim, ressalta-se ainda a afinação da proposta com potencialidades importantes para a formação de professores da Educação Básica, no sentido de possibilitar que construam conhecimentos que subsidiem suas práticas pedagógicas na escola. Ao terem oportunidade de cursar a disciplina e vivenciar e perceber que saberes populares e acadêmicos se interconectam de diferentes e inúmeras formas, convergindo para importantes aspectos de uma formação interepistêmica, os licenciandos poderão igualmente promover a ampliação de critérios de seleção e de modos de desenvolvimento de temas e conteúdos atuais nas escolas, laborando currículos plurais em uma perspectiva inclusiva, não dicotômica e crítica. (PRASS et al., 2016, p. 6).

No último número da revista World of Music, Carvalho, Barros, Corrêa e Chada refletem sobre o Encontro de Saberes como campo interdisciplinar e transdisciplinar que possibilita confluências entre muitas áreas, entre elas a entomusicologia e a educação musical (CARVALHO et al., 2016). Este número da revista consiste em um dossiê intitulado Ethnomusicology in Brazil14, organizado por Angela Lühning e Rosângela Tugny (2016), e pode ser visto como um marco na etnomusicologia brasileira, pois nele se esboça um panorama atualizado de pesquisas e ações entomusicológicas no Brasil. Além da introdução, os seis artigos reunidos neste volume foram escritos coletivamente, por grupos de pesquisadores agregados em torno de temas de especialização ou de experiências comuns desenvolvidas através de redes interinstitucionais, etc. Entre as temáticas abordadas, encontram-se a pesquisa colaborativa e participativa em etnomusicologia; a pesquisa colaborativa em enotmusicologia ameríndia, sobre o projeto ProDocSon, do Museu do Índio do Rio de Janeiro; o já referido artigo sobre o projeto Encontro de Saberes;

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Disponível em: http://www.journal-the-world-of-music.com/current.html. Acessado em: jun. 2016.

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interfaces etnográficas entre práticas e pedagogias musicais em contextos musicais afrodescendentes; e as perspectivas dos músicos praticantes e dançantes do forró sobre mudanças nos festivais de rua no Nordeste brasileiro. 2

Dados sistematizados – um sobrevoo A etnomusicologia no Brasil é uma área complexa, diversificada, que se congrega,

reforça, transforma e revisa em encontros científicos, publicações e ações em rede. A fim de contribuir de alguma maneira no mapeamento da pesquisa etnomusicológica contemporânea dos últimos anos no Brasil, optei por revisaro estado da arte, revisitando artigos que anteriormente o fizeram, assim como listando alguns livros e revistas e exemplos de coletivos de pesquisa em etnomusicologia no Brasil. Panoramas sobre a etnomusicologia no Brasil Encontram-se disponíveis, em anais de encontros científicos (ABET, Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música [ANPPOM], Associação Brasileira de Antropologia [ABA], etc.) e periódicos científicos, uma série de artigos em que pesquisadores nos apresentam o estado da arte do fazer etnomusicológico no Brasil nos últimos anos, reunindo aspectos como a história da institucionalizaçãodo campo, tendências metodológicas, dilemas, etc. Entre estes textos, destacamos os de Gerard Béhague (1987), Angela Lühning (1991, 2014a, 2015), Elizabeth Travassos (2003), Carlos Sandroni (2008), Rafael de Menezes Bastos (2004, 2014[2006]) e Richard Rautman(2015). Abrem-se aqui parênteses necessários, para lembrar que outros autores se ocuparam mais especificamente das interfaces da etnomusicologia com a educação musical, como Lucas (1992, 1994, 1994-1995), Béhague (1997), Reginaldo Braga (1997, 2005), Luciana Prass (1998, 2005), Stein (1998), Margareth Arroyo (1999, 2000), Sandroni (2000), Lucas, Arroyo, Stein e Prass (2001), Travassos (2002), Luiz Ricardo Queiroz (2004, 2010), Acácio Tadeu Piedade (2006), Samuel Araújo (2006b), Líliam Barros (2008), André Luiz Pereira (2011) e AngelaLühning (2014b). Essa interlocução entre etnomusicologia e educação musical vem-se mostrando um campo profícuo para ambas as áreas, contendo um conjunto significativo de produções brasileiras em torno do tema. Recentemente esta articulação foi tratada no VII ENABET (Florianópolis, 2015), em mesa redonda 31

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organizada por Líliam Barros, assim como foi constituída esta interlocução em mesa redonda organizada por Jusamara Souza e Luciana Prass, em 2016, no encerramento do projeto Música na Escola (Porto Alegre).15Nestes espaços se colocaram questões sobre as intersecções entre estudos sobre músicas tradicionais e suas formas de transmissão - em seus contextos criativos, nas escolas diferenciadas e na educação básica em geral -, tendo em vista não só o reconhecimento das especificidades destas práticas musicais e de seus contextos e sua riqueza, expressa em múltiplas produções e demandas sócio-musicais, mas considerando também a legislação já referida (as leis 10.639/2003 e 11.645/2008), assim como a lei 11.769/2008, que trata da obrigatoriedade do ensino de Música nas escolas brasileiras. Retomando textos que promoveram panorama da etnomusicologia no Brasil: Travassos (2003) realiza um balanço da área pela perspectiva de sua institucionalização em Esboço de balanço da etnomusicologia no Brasil (2003, reapresentado na XV Reunião da ANPPOM, 2005), pontuando processos importantes para isso: fundação da ABET em 2001 (durante a 36ª Conferência do International Council for Traditional Music-ICTM); I ENABET em 2002, em Recife; criação de Laboratórios de Etnomusicologia (UFRJ e UFMG); constituição de outros grupos de pesquisa em etnomusicologia (Florianópolis, Porto Alegre, Salvador). Analisa a parcial superação do paradigma da estética do nacionalpopular e uma ampliação dos estudos no âmbito de música e mídia. Em artigo de interesse para a área da etnomusicologia indígena, Música nas Terras Baixas da América do Sul: estado da arte (escrito em 2006 como artigo de periódico e publicado em coletânea de 2013), Menezes Bastos apresenta a produção de dissertações e tese em etnologia indígena voltada às práticas sonoro-performáticas das terras baixas ameríndias. Antes disso, em 2004, o autor publicou Etnomusicologia no Brasil: algumas tendências hoje, em que propunha um panorama mais amplo, de pesquisas enotmusicológicas naquele momento, atendo-se, por fim, aos resultados de seu grupo de pesquisa, especialmente voltados aos campos sonoros ameríndios. Sandroni (2008) descreve a institucionalização e a ampliação dos profissionais etnomusicólogos no Brasil, destacando haver nos anos 1990 doze doutores identificados com o campo da Etnomusicologia, formados no exterior (SANDRONI, 2008, p. 69). Os

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Projeto de extensão (ForProf/MEC) voltado à formação continuada de professores em atuação na área de música no Rio Grande do Sul.

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primeiros mestrados em música no país foram criados nos anos 1980 (assim como data daquela década a fundação da ANPPOM, 1988) e os primeiros doutorados surgem do final dos anos 1990. Localiza em 2000, durante o “Encontro Internacional de Músicas Africanas e Indígenas no Brasil”, organizado por Rosângela Pereira de Tugny e Ruben de Queiroz em Belo Horizonte, a maturidade de uma organização nacional da etnomusicologia,16 expressa pelo grande número de participantes e peloprotagonismo de mestres de cultura popular nos debates. Esse encontro deu origem ao livro Músicas Africanas e Indígenas no Brasil (TUGNY e QUEIROZ, 2006), anteriormente mencionado. Em abril de 2001, no XIII Encontro da ANPPOM, em Belo Horizonte, um grupo de trabalho (“Etnomusicologia no Brasil – Balanço e Perspectivas”) relançou o debate sobre a criação da associação. Em julho do mesmo ano, no 36º Congresso do ICTM, no Rio de Janeiro, fez-se a assembleia de fundação da ABET, contando com mais de 50 pessoas presentes, e definiu-se para o ano seguinte (2002) a ocorrência do I ENABET, em Recife (SANDRONI, 2008: 71-72). Depois deste primeiro encontro, foram realizados Encontros Nacionais da ABET em 2004 (Salvador), 2006 (São Paulo), 2008 (Maceió), 2011 (Belém), 2013 (João Pessoa) e 2015 (Florianópolis). Ocorreu também uma série de Encontros Regionais (ver a esse respeito LÜHNING, 2014b; RAUTMAN, 2015). Lühninget al. (2013) analisam a formação de etnomusicólogos no Brasil no âmbito dos pós-graduações. Remete ao texto de Sandroni (2008), sobre a trajetória histórica da institucionalização da entomusicologia no Brasil; assim como a Travassos (2003), enfatizando que a autora interpreta que a formação e a atuação do etnomusicólogo não se confinam às Instituições de Ensino Superior (IES) (LÜHNING et al., 2013: 2). Atualiza o conjunto denúcleos com produção relevante em etnomusicologia. Além dos mencionados por Travassos (Salvador, Florianópolis e Porto Alegre), propõe João Pessoa, Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte como novos polos desta produção, até o ano de seu artigo. Acrescentaria que, neste ínterim, outros polos vêm sendo constituídos, entre eles em Belém, Manaus, Porto Seguro, Pelotas e Curitiba. Em 2014, Lühning produziu mais dois artigos que colaboram para a configuração deste panorama, atendo-se à trajetória histórica e a sua representação disciplinar no Brasil, em relação ao desenvolvimento internacional da área, considerando nesta comparação 16

Previamente, Manuel Veiga e outros etnomusicólogos já haviam buscado esta organização, a partir da experiência sistemática das Jornadas Nacionais de Etnomusicologia, bianuais, do final dos anos 1980 até 1993, na UFBA, organizadas por Veiga.

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aspectos como compromisso social, relação com políticas públicas e identidade cultural (LÜHNING, 2014a: 1). Oferece uma aguçada interpretação das trajetórias históricas da etnomusicologia na Alemanha e nos EUA, desde seu surgimento, no início do século XX, ao que vem se tornando: áreas menos centrais e mais dialógicas com outras disciplinas como a educação musical e a sociologia da música, na Alemanha, e a antropologia e diversas outras áreas, nos EUA (1914ª, p. 10-13). Passa então a refletir sobre a etnomusicologia no Brasil e sua trajetória contrastante com a destes dois países em especial, considerando que vimos construindo um caminho próprio (LÜHNING, 1991). Desde o primeiro programa de pós-graduação nesta área, instituído na Universidade Federal da Bahia (UFBA) em 1990, realizaram-se etnografias musicais majoritariamente em contextos brasileiros, diferentemente dos países europeus e norte-americanos, que em geral produziram conhecimento etnomusicológico a partir de contextos externos a seus próprios países.17 A autora destaca também que a área dialoga com as demandas sociais e reflete sobre os desafios desta sociedade complexa nas suas diferenças e contradições (2014a: 15), constituindo-se como uma “etnomusicologia brasileira” (LÜHNING, 2014a). Crítico preciso de uma série de limites que percebe na constituição da etnomusicologia nos anos 1970-1980 no Brasil, Gerhard Béhague já atentava na década de 1980 para a necessidade de uma configuração no país de uma etnomusicologia com características próprias, contrária a uma orientação etnocêntrica: Nem o folclore musical brasileiro nem a incipiente etnomusicologia têm contribuído muito para a teoria etnomusicológica em geral. Isso não quer dizer que a etnomusicologia brasileira deva seguir cegamente as lições da etnomusicologia européia ou norte-americana, mas sim que os etnomusicólogos brasileiros devem tentar formular os seus próprios objetivos teóricos, baseados na sua própria conceituação da problemática de pesquisa e na sua finalidade, conforme vêm fazendo, por exemplo, Rafael José de Menezes Bastos, José Jorge Carvalho, Elizabeth Travassos e Maria Elizabeth Lucas. A atitude ou posição sócio-política do etnomusicólogo brasileiro ainda está por ser definida. O problema da hegemonia cultural e do populismo cultural atuante deve ser enfrentado com a devida honestidade. Basta reafirmar aqui a necessidade de abandonar de uma vez por todas a orientação etnocêntrica e as atitudes um tanto neocolonialistas que herdamos do velho folclore musical e da musicologia comparada. (BÉHAGUE, 1987: 200).

Por outro lado, a busca de uma internacionalização da etnomusicologia brasileira é um esforço relevante, tanto em direção a interlocuções com países consolidados em termos

17

Semelhante constatação fazem Travassos (2003), Sandroni (2008), Barros et al. (2015) e Richard (2015). No entanto, os motivos interpretados e as consequências aferidas pelos autores são bastante diferentes e por vezes mesmo contrastantes, o que neste contexto não será abordado.

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de pesquisa em etnomusicologia, como em direção a outros países, especialmente na América Latina, em que esta área está, como aqui, em construção. No âmbito da instituição em que atuo como docente há dois grupos de pesquisa em etnomusicologia. Participo do Grupo de Estudos Musicais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (GEM/UFRGS), coordenado pela Profa. Maria Elizabeth Lucas. Criado em 1991 e registrado no Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq desde 1992, constitui-se como um coletivo interdisciplinar de formação acadêmica e atuação profissional na área de Etnomusicologia/Antropologia da Música, integrado por estudantes dos Programas de PósGraduação em Música e em Antropologia Social da UFRGS, cujas pesquisas tratam de repertórios musicais tradicionais, populares e eruditos, a partir dos métodos e técnicas de pesquisa arquivística e trabalho de campo etnográfico. Representando um esforço do GEM de produção de conhecimento musical pela etnografia na América Latina, para além do território nacional brasileiro,no sentido de desencadear interpretações sobre uma “cosmosônica” (STEIN, 2009) ameríndia, destaco os trabalhos recentemente defendidos de Ivan Fritzen Andrade, Os cantos das copleras em Amaichadel Valle: performatividadevocosonora, corpos e sentido de lugar no noroeste argentino (2016), e de Juan Carlos Molano Zuluaga, Damaciri y Jaury: laper formatividad sonora EmberáChamíenel resguardo indígena de San Lorenzo. Caldas (Colombia) (2016), ambos com orientação de Maria Elizabeth Lucas. Outro coletivo de pesquisa em etnomusicologia do PPGMUS-UFRGS, o Núcleo de Etnomusicologia da UFRGS, foi criado em 2014 e é coordenado por Reginaldo Gil Braga. Visa a contribuir para o estudo do patrimônio musical brasileiro e latino-americano, especialmente do chamado cone sul, a partir da pesquisa em torno de questões de memória e patrimônio musical, bem como de estudos em música do Brasil e América Latina. No mesmo sentido da abertura da universidade aos mestres tradicionais e seus saberes e da internacionalização das pesquisas, em 2013 na UFRGS criou-se o coletivo AbyaYala18: epistemologias ameríndias em rede, uma rede interdisciplinar de pesquisaextensão composta por professores e estudantes das áreas de Música,

Antropologia,

18

Termo utilizado pelo povo Kuna (Colômbia e Panamá) para referir-se ao território do continente, antes da conquista europeia. Líderes indígenas de diferentes etnias defendem hoje o emprego desta expressão para designar a América em declarações e documentos, argumentando que seu emprego remete à primazia da identidade ancestral. Esta rede do ILEA foi aprovada em abril de 2014 no âmbito do edital do Instituto Latino-americano de Estudos Avançados (ILEA)/PROPESQ /UFRGS (nº 001/2013, de 18 nov. 2013), e deverá submeter novo projeto em 2017 ao ILEA, condição de sua continuidade neste âmbito.

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Educação e Letras, cujo objetivo é divulgar as pesquisas e ações extensionistas das áreas envolvidas e desenvolver novos projetos conjuntos, relacionados aos modos de estar ameríndios, como apoio dos grupos de pesquisa aos quais estamos ligados. Esta rede pretende, ainda, possibilitar a articulação de pesquisas que vêm sendo desenvolvidas em instituições de ensino superior do Brasil, Uruguai, Colômbia, Peru e México; discutir algumas relações entre os processos de aprendizagem e as sócio-mito-cosmo-ontologias ameríndias; e criar um espaço institucional de interlocução entre vários especialistas oriundos de diferentes áreas do conhecimento e filiados a diversas instituições. Livros e revistas emetnomusicologia no Brasil Os mecanismos de difusão da produção científica são muitos (ver a este respeito GARCIA, 2013, p. 39). Livros organizados em torno do tema etnografia da música, com exposição de pesquisas, interpretação de contextos etnomusicológicos e com reflexão crítica sobre questões metodológicas, que tenham superado o mero nível descritivo, são especialmente relevantes para estabelecer uma espécie de “zona franca de conhecimento” (ibid.). Convocam leitores ao diálogo em uma “rede interpessoal e interinstitucional”, “contribuindo para a sustentabilidade do conhecimento” (ibid.). Por esta perspectiva podem ser pensados os livros coletâneas produzidos nos últimos 10 anos no Brasil, como por exemplo: Música indígena e africana no Brasil (TUGNY e QUEIROZ, 2006), Música Popular na América Latina (ULHÔA e OCHOA, 2005), Música em Debate (ARAÚJO; PAZ e CAMBRIA, 2008), Palavra Cantada (MATOS et al., 2008) e Mixagens em Campo (LUCAS, 2013). Os quatro primeiros livros foram organizados a partir de trabalhos apresentados em encontros científicos. Já esta última publicação reúne artigos sobre pesquisas etnográficas (mestrado e doutorado) em Etnomusicologia desenvolvidas no âmbito do GEM, nos Programas de Pós-Graduação de Antropologia e de Música da UFRGS, sob orientação de Maria Elizabeth Lucas, organizadora da publicação, sobre temas diversos, tais como a relação entre música e território, gênero e música, práticas musicais urbanas edireitos autorais coletivos na música indígena, entre outros. A publicação de monografias etnomusicológicas tem aumentado consideravelmente no Brasil. Em seu artigo de 2003, Travassos elege três livros etnomusicológicos que considera modelares para se compreender o caminho da disciplina, por serem atuais 36

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naquele momento: Feitiço decente, de Carlos Sandroni (2001); Os sons do Rosário, de Glaura Lucas (2002); e Voices of the Magi, de Suzel Ana Reily (2003). Relembra etnografias paradigmáticas, como A musicológica Kamayurá, de Rafael de Menezes Bastos (1999[1978]); Ubatuba nos cantos das praias, de Kilza Setti (1985); e Why Suyá Sing, de Anthony Seeger (1987), à época conhecido no Brasil na 1ª versão da edição inglesa. Sobre este livro, cabe destacar que em 2004 foi lançada a 2ª edição em língua inglesa e, em 2015, uma tradução atualizada do livro em Português (trad. Guilherme Werlang), uma iniciativa muito importante para as áreas de etnomusicologia e de etnologia indígena, pois permitiu que mais profissionais e estudantes tivessem acesso a este estudo pioneiro de um pesquisador norte-americano que muito produziu no Brasil e em parceria com instituições nacionais19.Outro livro etnomusicológico mencionado por Travassos é Contribuição bantu na música popular brasileira, de Kazadi Wa Mukuna (2000). Destaco a publicação, posterior a este artigo, de A música dos Caboclos nos candomblés baianos, de Sônia Chada (2006, apresentada como tese de doutorado em 2001, pela UFBA, orientada por Manuel Veiga), além de A festa da Jaguatirica. Uma partitura crítico-interpretativa, de Rafael José de Menezes Bastos (2014, fruto de sua pesquisa de doutorado finalizada em 1990). Estas duas obras ajudam a compor este panorama de pesquisas precursoras no enraizamento da etnomusicologia no Brasil, publicadas em livro. Atualmente uma nova geração de etnomusicólogos tem publicado suas etnografias, contribuindo de forma ímpar com o amadurecimento da reflexão metodológica na área, a partir da difusão mais ampla da produção de conhecimento sobre realidades sonoroperformáticas no Brasil e a partir da exposição depossibilidades investigativas, comparativas, políticas e sistematizadoras no fazer etnomusicológico. Cito alguns autores e seus trabalhos publicados: Deise Lucy OliveiraMontardo, Através do “Mbaraka”: música, dança e xamanismo Guarani(2009); Rosângela Tugny, dois volumes de cantos traduzidos, Para a tradução recente do livro de Seeger, Por que cantam os Kisêdjê – uma antropologia musical de um povo amazônico (2015[1987]), foi feita uma resenha porPrass e Stein (2016) - El oído pensante, v. 4, n. 1. (Disponível em: http://ppct.caicyt.gov.ar/index.php/oidopensante/issue/current. Acessado em: maio 2016). Nonato (2015) também publicou uma resenha desta obra - Mana, v. 21, n. 3, Rio de Janeiro, dez. 2015. (Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/0104-93132015v21n3p675. Acessado em: maio 2016) e posicionase como conhecedor não só do texto lido, mas também de experiências performáticas vividas anos depois da etnografia de Seegerentre os Kisêdjê, pois desenvolveu um reestudo entre os Kisêdjê. Isto lhe permitiu uma interpretação comparativa que engrandece o campo da etnomusicologia. Não temos por objetivo falar especialmente sobre reestudos, porém cabe destacar que se trata de processos investigativos importantes, que demonstram a continuidade e a complexificação dos saberes musicais sistematizados, potencializando o amadurecimento da área. Ver sobre reestudo: Sandroni (2005), Prass (2013[2009]) eIyanaga (2013). 19

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realizados em colaboração com os especialistas Tikmũ’ũn, Yamĩyxop Xũnĩmyog Kutex xi agtux xi hemexyog Kutex/Cantos e histórias do morcego-espírito e do hemex(2009a) e Mogmokayog Kutex xi agtux/ Cantos e histórias do gavião-espírito (2009b); de Toninho Maxakali e Eduardo Pires Rosse (Orgs.), Escuta e Poder na Estética Tikmũ’ũn Maxakali; Kõmãyxop: Cantos Xamânicos Maxakali/Tikimũ’ũn(2011); Rosângela PereiraTugny, Escuta e poder na estética Tikmu'un (2011); Werner Ewald, “Walkingand Singingand Following the Song”: Musical Practice in the Acculturation of German Brazilian in South Brazil – Ethnomusicological and Historical Perspectives (2011); Ivan Paolo de Paris Fontanari,20 Os “DJs da Perifa”: música eletrônica, trajetórias e mediações culturais em São Paulo (2013); LucianaPrass, Maçambiques, quicumbis e ensaios de promessa: musicalidades quilombolas do sul do Brasil (2013); Luiz Fernando Hering Coelho, Os músicos transeuntes: de palavras e coisas em torno de uns Batutas (2013); Reginaldo Gil Braga, Tamboreiros de Nação: música e modernidade religiosa no Extremo Sul do Brasil (2013); e Álvaro Neder, “Enquanto este novo trem atravessa o litoral”: música popular urbana, latino-americanismo e conflitos sobre modernização em Mato Grosso do Sul (2014). Essa produção publicada em livro vem-se ampliando de forma significativa no Brasil, sendoestes apenas alguns de seus exemplos. A profusão de etnografias etnomusicológicas descritivo-reflexivas certamente também é responsável pelo amadurecimento da área. Talvez seja cedo para apontar quais dessas etnografias musicais publicadas nos últimos anos que sejam especialmente basilares para a constituição do campo, e é importante que sejam muitas bases, diversificadas, pois os campos, as demandas e as perguntas de pesquisas também são de variadas ordens, precisando dialogar com diferentes referenciais, conforme o caso, Há, ainda, as incontáveis monografias etnomusicológicas finalizadas ou em curso que não foram publicadas, mas estão disponíveis em diferentes repositórios digitais na internet. Pode-se afirmar sem receio que essa diversificação, proliferação e descentralização da construção do conhecimento etnomusicológico via etnografia é significativo de um saudável enriquecimento e amadurecimento deste campo. Assim como os livros, revistas especializadas e números especiais em etnomusicologia nos últimos anos vêm colaborando na disseminação de etnografias musicais e potencializando reflexões sobre questões metodológicas inerentes 20

às

A respeito deste último livro, consultar: http://www.editorasulina.com.br/img/sumarios/621.pdf.

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experiências etnográficas-intervencionistas no Brasil. Periódicos dedicados a artigos etnomusicológicos nos apresentam a diversidade do pensamento brasileiro nesta área. Por um lado, existem revistas especializadas, como a da ABET –Música e Cultura-

21

cujo

último volume até o momento foi o 9, número 1, de 2014.22 Por outro lado, revistas científicas em áreas que investem no caráter interdisciplinar do fazer científico, em alguns de seus números dedicaram-se à etnomusicologia, como, por exemplo, a Revista da USP (n. 77, organizado por Francisco Costa, 2008);23Anthropológica, dossiê especial sobre “etnomusicologia” (organizado por Carlos Sandroni, ano 10, v. 17, n. 1, 2006)24e outro sobre “música e festa”, também com etnografias entomusicológicas(organizado por Sandroni e Michael Iyanaga, 2015, v. 26, n. 1).25 Dos coletivos em etnomusicologia no Brasil Conforme Sandroni: Os etnomusicólogos brasileiros estiveram presentes nos grupos de pesquisa repertoriados pelo CNPq desde o primeiro “censo” realizado pela instituição, em 2000. No site do CNPq, é possível fazer buscas textuais sobre os censos realizados de dois em dois anos desde então. Os resultados para a palavra “etnomusicologia”, considerando-se os campos “nome do grupo”, “nome da linha de pesquisa” e “palavras-chave da linha de pesquisa”, mostram um crescimento de 250% desde a fundação da Abet em 2001: 2000 – 4 grupos; 2002 – 7 grupos; 2004 – 11 grupos; 2006 – 14 grupos (SANDRONI, 2008, p. 72).

Em busca de atualização destas informações, nos deparamos com duas possibilidades de acessar os Grupos de Pesquisa no site do CNPq: por “busca textual” e por “consulta parametrizada” (“base corrente”). Considerando os mesmos campos adotados por Sandroni, fazendo no site do CNPq “busca textual” no censo de 2008 com a palavra-chave “etnomusicologia”, encontramos 15 grupos; e, em 2010, também,

15

21

Disponível em: http://musicaecultura.abetmusica.org.br/index.php/revista.Acessado em: maio 2016. Disponível em: http://musicaecultura.abetmusica.org.br/index.php/revista/issue/current. Acessado em: maio 2016. 23 Disponível em: http://www.revistas.usp.br/revusp/issue/view/1078. Acessado em: maio 2016. 24 Disponível em: http://www.revista.ufpe.br/revistaanthropologicas/index.php/revista/issue/view/13. Acessado em: maio 2016. 25 Disponível em: http://www.revista.ufpe.br/revistaanthropologicas/index.php/revista/issue/view/55/showToc. Acessado em: maio 2016. 22

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grupos,26 indicando um leve incremento no número de grupos. Atribuímos este resultado nos dados a um provável maior rigor na contagem dos censos mais atuais. No entanto, pela “consulta parametrizada” no site do CNPq, adotando ainda os mesmos campos e a mesma palavra-chave, os grupos de pesquisa totalizam 49, indicando, nesta situação, um acréscimo considerável de grupos de pesquisa relacionados à etnomusicologia

no

Brasil.

Estes

grupos

estão

vinculados

às

seguintes

instituições:27Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro, Instituto Federal do Ceará-Reitoria, Pontifícia Universidade Católica de Goiás, 2 grupos na Universidade Anhembi Morumbi, Universidade de Caxias do Sul, 3 grupos na Universidade de São Paulo, Universidade do Contestado, Universidade do Estado da Bahia, Universidade do Estado de Santa Catarina, Universidade do Estado do Pará, Universidade do Vale do Itajaí, 2 grupos na Universidade Estadual de Campinas, Universidade Estadual de Londrina, Universidade Estadual do Ceará, Universidade Estadual do Paraná, Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Universidade Federal da Bahia, Universidade Federal da Integração Latino-Americana, 2 grupos na Universidade Federal da Paraíba, 2 grupos na Universidade de Brasília, Universidade Federal de Goiás, 2 grupos na Universidade Federal de Minas Gerais, Universidade Federal de Pelotas, Universidade Federal de Pernambuco, Universidade Federal do Acre, Universidade Federal do Amazonas, Universidade Federal do Cariri, Universidade Federal do Ceará, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, 2 grupos na Universidade Federal do Pará, Universidade Federal do Paraná, 2 grupos na Universidade Federal do Piauí, Universidade Federal do Recôncavo Baiano, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 3 grupos na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Universidade Federal do Sul da Bahia, Universidade Federal do Tocantins, Universidade Federal Fluminense. Estes dados indicam que, nos últimos oito anos, o incremento na organização institucional de pesquisadores em Etnomusicologia continua ocorrendo, ao mesmo tempo em que, comparativamente, os dados censitários e os dados obtidos também no CNPq, porém por consulta parametrizada (busca corrente), apresentam uma defasagem

de

26

Para acompanhar o censo atual, sobre grupos de pesquisa no Brasil, consultar: http://lattes.cnpq.br/web/dgp/censo-atual/. 27 Há também a opção de se procurar por grupos de pesquisa registrados que estejam atualizados. Neste caso, aparecem 32 grupos de pesquisa na mesma consulta parametrizada.

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informação, talvez relacionada à metodologia censitária e ao ritmo de atualização dos dados pelos grupos, entre outros motivos. Um polo que exemplifica o desenvolvimento em pesquisa etnomusicológica é do estado do Pará. Líliam Barros, em Pontos sobre a Pesquisa em Música no Pará (2011), descreve aspectos da constituição de grupos de pesquisa no estado do Pará e pesquisas etnomusicológicas no âmbito daquele estado. Aprovado em 2008, o Programa de PósGraduação em Artes inaugurou o primeiro Mestrado em Artes na Amazônia, que congrega três linguagens artísticas – Artes Visuais, Artes Cênicas e Música. Naquele momento, 90% dos estudos estavam voltados a temáticas que atendessem a demandas dos grupos musicais locais, porém respondendo a necessidades e interesses mais amplos, em nível nacional e internacional (BARROS, 2011: 42). Apesar do interesse predominante nas pesquisas pelos temas das músicas tradicionais dos povos originários amazônicos, assim como por aspectos patrimoniais e pedagógicos vinculados, os estudos têm uma grande abrangência e diversidade, como se percebe tomando como exemplos as teses dos pesquisadores paraenses Líliam Barros, Repertórios Musicais em Trânsito: música e identidade indígenas em São Gabriel da Cachoeira, AM (2006), e Paulo Murilo Guerreiro do Amaral, Estigma e Cosmopolitismo na constituição de uma música popular urbana de periferia: etnografia da produção do tecnobrega em Belém do Pará (2009). Barros, Severiano e Chada realizam em 2015 uma revisão da produção etnomusicológica na Universidade Federal do Pará (UFPA), no artigo Pesquisa e o Laboratório de Etnomusicologia da Universidade Federal do Pará: uma análise interpretativa. Além dos grupos de pesquisa Grupo de Estudos e Pesquisas em Música (GEPEM) e Grupo de Estudos sobre Música na Amazônia (GEMAM), da Universidade do Estado do Pará (UEPA), e do Grupo de Pesquisa Música e Identidade na Amazônia (GPMIA), da UFPA, criou-se em 2011 o Grupo de Estudos sobre Música no Pará (GEMPA), também disposto a “produzir conhecimento sobre as práticas musicais existentes no Pará e na Amazônia, à luz da etnomusicologia” (BARROS, 2015: 23), contribuindo para uma crescente produção de teses e dissertações no viés etnomusicológico no Pará. Os autores destacam entre os aspectos marcantes desta produção a abordagem de temáticas regionais, a busca de compreensão da diversidade de práticas musicais paraenses, o caráter interdisciplinar de suas pesquisas e a ênfase na etnomusicologia colaborativa como busca de consolidação de trocas de saberes interculturais (idem: 3). Recentemente foi criado o Laboratório de Etnomusicologia da 41

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UFPA (LabEtno), pelo qual se pretende contribuir ainda mais para o aprofundamento das pesquisas em andamento e para estimular novos estudantes à pesquisa etnomusicológica. Conforme Barros et al., o LabEtno se junta aos já existentes Laboratório de Etnomusicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG, criado em 2000), da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) e o Laboratório de Etnomusicologia Elizabeth Travassos da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) (BARROS et al.: 4). Considerações finais Este artigo pretendeu apresentar alguns temas pertinentes para se pensar a entomusicologia contemporânea no Brasil, levantando questões metodológicas e dilemas, apontando percursos da área, produções escritas publicadas e exemplos de redes e grupos de pesquisa na área e em campos interdisciplinares. Outros temas foram tangenciados, sem o aprofundamento com que merecerão ser tratados em outras oportunidades: educação musical, projetos sociais em Música, patrimonialização, registros sonoros e audiovisuais e materiais didático-pedagógicosetnomusicológicos28. Em síntese, creio que a etnomusicologia na contemporaneidade parece continuar se institucionalizando, mas também se inclina a abrir seus núcleos institucionalizados à sociedade, criando opções metodológicas que implicam a escuta à sociedade e o enfrentamento de seus dilemas, no exercício cotidiano do diálogo - dentro dos coletivos de pesquisa, em redes interdisciplinaresinter e intrainstitucionais. Conforme Lühning (2014a) a etnomusicologia deveria buscar temas que abordem a composição da sociedade brasileira, a inserção de segmentos sociais, identidades, questões de gênero, políticas educacionais e culturais, direitos coletivos de propriedade intelectual ou conhecimentos tradicionais e do uso de tecnologias (2014a: 18), e também a educação

28

Penso ser urgente o debate não só sobre a produção, mas também sobre o acompanhamento das formas de produção, divulgação e utilização dos materiais etnomusicológicos no ensino escolar e não escolar. Este tema é instigante e, por exemplo, Lühning vem refletindo sobre ele: “Especialmente os professores das escolas públicas, atuando na área de música ou não, precisam de materiais fundamentados para trabalhar as questões das identidades locais e regionais, em vez de manter a ideia teórica de uma cultura nacional única que na prática nunca existiu. Estes materiais deveriam ser fruto da participação maciça dos pesquisadores na assim chamada divulgação científica como compromisso social e ético das universidades, mantidas com dinheiro público, materiais que não necessariamente precisam ser didáticos.” (LÜHNING, 2014ª, p. 20).

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musical (2014a: 19) e, principalmente, que tenham relevância para um conjunto de pessoas na sociedade. “Seguindo esta lógica, não seria mais o ineditismo do ponto de vista acadêmico de um tema que o torna relevante, mas a sua necessidade política e até urgência social/ cultural que, pelo menos, devem ser cogitadas como aspectos importantes na delimitação dos possíveis temas” (ibid.). Nesta perspectiva, temas emergentes seriam: temas que lidam com tradições ou expressões musicais em constante diálogo com as pessoas envolvidas nelas, o que pode ocorrer em contextos urbanos comunitários em situação de vulnerabilidade social, grupos minoritários, como grupos indígenas, quilombolas ou ribeirinhas, processos educacionais escolares ou não escolares, em contextos geográficos e sociais periféricos ou não, questões de transmissão e processamento de informações através dos mais diversos meios, novas formas e processos criativos, hoje tão relacionados com novas tecnologias e processos midiáticos, entre muitos outros possíveis temas. (LÜHNING, 2014a: 19).

Com base na interdisciplinaridade e na transdisciplinaridade, parece-nos necessário eurgente traçarcaminhos para contemplar - pela chave da sonoridade e da performance, a diversidade de etnoteorias, etnometodologias (STEIN, 1998), sociocosmo-ontologias dos mundos sonoros - os conflitos e as interrogações suscitadas nos encontros de alguns destes mundos. Esse esforço de ouvir e criar novas relações poderá ajudar a constituição de universidades ampliadas por diferentes concepções de ciência e cosmos, em que diferentes corpos, performances e processos de construção da pessoa se tornem pensáveis, na educação superior e na educação básica, assim como em diferentes contextos. Conseguiremos assim evitar a violência, nas palavras de Vherá Poty (comunicação oral, 2012), da “puni-diversidade”? Ou seja, conseguiremos que a universidade deixe de ser um espaço exclusivo - centrado em formas específicas de fazer ciência e de se relacionar entre as pessoas, com o mundo - para que se torne uma pluriversidade, aberta à sociedade, inclusiva, crítica e auto-crítica? Para isso, é importante que não só os etnomusicólogos estranhos a seus contextos de trabalho de campo estudem músicas tradicionais e outras, mas também que os cursos e os grupos de pesquisa se abram para que, cada vez mais, os atores sociais familiarizados com os temas e terrenos da pesquisa etnográfica musical os estudem. Tomando emprestada uma afirmação de Eduardo Viveiros de Castro acerca da vocação da antropologia, penso que, se há algo que cabe de direito à etnomusicologia, não é certamente a tarefa de explicar o mundo de outrem, mas a de multiplicar nosso mundo (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 11).

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MESA REDONDA 1

MESA REDONDA 1: REFLEXÕES SOBRE GÊNERO, RELAÇÕES ETNICORACIAIS E SEXUALIDADES NA ETNOMUSICOLOGIA BRASILEIRA E ESTUDOS MUSICAIS DA AMAZÕNIA

Coordenação – Dra. Lívia Negrão (UEPA)

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“O jambu treme!”: estudos, fechações etnomusicológicas e a(r)tivismos musicais pioneiros e necessários da Amazônia

Laila Rosa Universidade Federal da Bahia - [email protected] Resumo: Neste artigo sigo pelos caminhos de um breve panorama das epistemologias feministas descoloniais no campo da etnomusicologia brasileira aos “a(r)tivismos, estudos pioneiros e necessários da Amazônia”. Para trilhar esta rota, inicio situando a minha própria fala enquanto cantautora pernambucana, pesquisadora e professora feminista, para então considerar as atuações, pesquisas e a(r)tivismos de jovens pesquisadorxs do Pará e do Maranhão que, de perspectivas, lugares e identidades distintas, vêm se debruçando sobre o campo dos estudos sobre mulheres, feminismos, feminismo negro, gênero, raça e sexualidade em música popular, antropologia e na etnomusicologia, especificamente. A ideia é dialogar com estas perspectivas que são recentes e pioneiras, reiterando a relevância das mesmas para os campos dos estudos e a(r)tivismos da etnomusicologia brasileira e dos estudos sobre música popular. Palavras-chave: Etnomusicologia Brasileira. Estudos sobre música da Amazônia. Epistemologias feministas.

Situando a minha fala: das reflexões sobre gênero, relações étnico-raciais e sexualidades na etnomusicologia brasileira e nos estudos musicais da Amazônia “Se você quiser saber o que a jamburana faz... O tremor do jambu É gostoso demais. O jambu treme... Vai descendo, Vem subindo, Chega até o céu da boca, boca fica muito louca Com o tremor do jambu... O jambu treme...” Dona Onete Gostaria de iniciar junto ao canto de Dona Onete, cantora e compositora paraense para dizer que sim, é preciso tremer e fazer tremer como o jambu.29 Tremer o que ainda

“Planta cultivada na região norte do país, onde é utilizada como condimento culinário amazônico, principalmente para ao preparar o famoso “molho-de-tucupi”. As folhas e inflorescência são empregadas na medicina caseira na região norte do país, para tratamento de males da boca e garganta, além de tuberculose e litíase pulmonar. As folhas e flores quando mastigadas dão uma sensação de formigamento nos lábios e na 29

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está por ser tremido, o que está de certo modo conformado, seja por não identificação ou aprofundamento, percepção teórica e política de que falar sobre categorias estruturantes das desigualdades sociorraciais e de gênero na sociedade brasileira tais quais gênero, raça e etnia, sexualidades, geração, classe social, dentre outras, numa perspectiva interseccional, é diluir ou excluir a questão da desigualdade da classe social. É preciso compreender que estas categorias articuladas auxiliam na compreensão inclusive do contexto de análise do etnocídio, trazendo a questão do feminicídio para a pauta, por exemplo, como aponta Rita Segato (2014). Por quê tremer? Porque infelizmente ainda se nutre uma perspectiva de que falar sobre gênero e feminismos é se engajar em “especificidades” ou “isolamentos” políticos que excluem os homens, também subalternos e que, portanto, não contemplaria o “todo”. Outra crítica comum é de que, ao falarmos sobre gênero e feminismos no campo da etnomusicologia, estaríamos ocidentalizando culturas tradicionais que não se pautam por parâmetros ocidentais. Importante lembrar que os movimentos feministas e de mulheres indígenas, negras, trans, lésbicas, bissexuais, trabalhadoras rurais e tantas várias sempre foram estigmatizados por esta perspectiva de que há uma suposta “setorização” na luta feminista, antirracista e LGBTTI. O oposto, no entanto, não é devidamente observado, de que historicamente as mulheres e outras “minorias” são sujeitxs invisíveis (SCOTT, 1992 e 1989; BUTLER, 2004; CURIEL, 2010; LOURO, 1997). A questão da invisibilização recai sobre a materialidade do musical, como bem pontuam Ana Maria Ochoa (2006) e Talitha Couto Moreira (2012), pois a mesma implica pensar sobre as materialidades/corpos/vivências/conhecimentos que são heterogêneos e desiguais no campo da etnomusicologia brasileira, quais as questões colocadas, hierarquizadas ou invisibilizadas, quais as interlocuções construídas ou negligenciadas, firmando aí a importância de reconhecer com os movimentos sociais, incluindo os movimentos de mulheres, feministas e LGBTTI.

língua devido sua ação anestésica local, sendo por isso usada para dor-de-dente como anestésico e como estimulante do apetite.” Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Jambu.

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Considerando o campo da “Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares”, tema deste importante Encontro Regional da Associação Brasileira de Etnomusicologia – ABET e I Encontro de Estudos Musicais da Amazônia, no âmbito da universidade pública e de qualidade, no caso, a Universidade Federal do Pará, é fundamental ainda trazer a perspectiva da formação em etnomusicologia. Tomando como ponto de partida a formação do primeiro Programa de PósGraduação em Música- Etnomusicologia em 1990, na Universidade Federal da Bahia, que formou parte considerável de etnomusicólogxs que se tornaram pesquisadorxs e docentes pelas universidades brasileiras, formando também novos programas, e também, a criação da ABET em 2001 e a realização do I Encontro Nacional que ocorreu em Recife, PE, em 2002,30 como importante espaço de encontro, produção de conhecimento, formação e atuação política na área. Ainda sobre a dimensão da formação, é importante trazer os termos da dialogicidade freireana, engajada e participativa em contextos comunitários propostas e vivenciadas de formas diferenciadas por Samuel Araújo e o grupo Musicultura (2006), Angela Lühning (2006), Rosângela Tugny (2006), José Jorge de Carvalho e o projeto Encontro de Saberes debatido por Laize Guazina (2015), dentre outrxs que pensam a perspectiva de engajamento, interlocução e ética, como Angela Lühning e eu discutimos também no texto sobre invisibilidades e inaudibilidades de sujeitxs musicais que estejam fora das hegemonias diversas (LÜHNING e ROSA, 2010). Contudo, penso ser fundamental enquanto pesquisadora, pessoa e educadora, trazer a pedagogia feminista, lembrando, por exemplo, Nísia Floresta, autora potiguar que mais de 100 anos antes de Paulo Freire, já defendia a igualdade de gênero no acesso à educação, e infelizmente é pouco conhecida ou lembrada no campo da educação e educação musical.31 Na mesma linha mais de cem anos depois, e com a mesma atualidade, trazendo 30

Sobre o perfil institucional da etnomusicologia no Brasil ver Carlos Sandroni (2008). Faço questão de mencionar ainda atuação politizada de interlocução com os grupos/sujeitxs construída, da qual me considero diretamente formada pelo meu ex-orientador e amigo querido, o Prof. Dr. e compositor Carlos Sandroni, durante 3 anos consecutivos na iniciação científica enquanto graduanda do curso de licenciatura em música da UFPE, do Núcleo de Etnomusicologia e da Associação Respeita Januário, fundada em 1999. A mesma articulava encontros, apresentações, oficinas, dentre outras ações sempre em parceria com grupos tradicionais populares pernambucanos, tais quais, diversos grupos de cavalo-marinho, coco e maracatu, dentre outros. 31 O livro Direitos das mulheres e injustiça dos homens foi publicado por Dionísia Gonçalves Pinto (18101885), mais conhecida como Nísia Floresta, em 1832. Tal obra foi considerada uma tradução livre de A Vindication of the rights of woman de Mary Wollstonecraft (1759-1797), autora inglesa que se tornou o principal nome em defesa dos direitos das mulheres no século XIX.” (CAMPOI, 2011, p. 1).

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a perspectiva da interseccionalidade, a pensadora negra estadunidense bell hooks

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(2013)

propõe uma educação feminista e antirracista da transgressão e do entusiasmo, com a qual, particularmente me identifico e procuro trabalhar cotidianamente nas minhas aulas e demais espaços pelos quais transito, inclusive nos contextos comunitários de Salvador. É neste sentido de pedagogia feminista antirracista sugerido por bell hooks (2013) e Nísia Floresta (CAMPOI, 2011) e também de uma etnomusicologia feminista e da diferença defendida por Debora Wong (2006) que, desde 2012, venho trabalhando com a Feminaria Musical: grupo de pesquisa e experimentos sonoros (ROSA et alli, 2013), que integra a linha de pesquisa Gênero, Arte e Cultura do Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Mulher – NEIM/UFBA, histórico Núcleo feminista que desde seu surgimento em 1984, associa a produção de conhecimento à práxis feminista articulada com os movimentos sociais e de mulheres. É importante compreender que nem toda etnomusicologia engajada é feminista, mas que toda etnomusicologia feminista é engajada, pois não se compreende uma práxis feminista que não seja igualmente politizada voltada com os dois pés para fora do âmbito da universidade e que retorne para ela, juntamente com xs protagonistas historicamente invisibilizadas inclusive por vários dos estudos etnomusicológicos, que são as mulheres negras, indígenas, trans, lésbicas, bissexuais, deficientes, velhas, bem como as crianças. Claro que todo movimento contempla fissuras, conflitos e heterogeneidades e por esta razão, falamos em feminismos no plural, mas sim, é preciso tremer e encarar as importantes articulações, interlocuções e protagonismos. Neste sentido, para seguir adiante, proponho aqui relembrar o breve panorama das epistemologias feministas descoloniais no campo da etnomusicologia brasileira que tratei em outro momento (ROSA, SOBRAL e CARDOSO, 2015), trazendo para dialogar com os nomes como os de Rita Laura Segato (2014, 2002, 1999, 1995 e 1984), Maria Ignez Cruz Mello (2005) e a pioneira coletânea Estudos de Gênero, Corpo e Música organizada pelas musicólogas e compositoras feministas Isabel Nogueira e Susan Campos Fonseca (2013). A partir deste breve panorama, seguimos finalmente para os “a(r)tivismos, estudos musicais pioneiros, *fechativos* e necessários da Amazônia”. Para trilhar esta rota, considero as atuações, pesquisas e ativismos de jovens pesquisadorxs do Pará e Maranhão

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bell hooks é o pseudônimo de Gloria Jean Watkins e é adotado pela autora propositalmente com as iniciais em minúsculo, como denúncia da invisibilidade das mulheres negras na sociedade.

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que, de perspectivas, lugares e identidades distintos, vêm se debruçando sobre o campo dos estudos sobre mulheres, feminismos, feminismo negro, gênero, raça e sexualidade em música popular e na etnomusicologia, especificamente. A ideia é dialogar com estas perspectivas que são recentes e pioneiras, reiterando a relevância das mesmas para os campos dos estudos e a(r)tivismos da etnomusicologia brasileira e dos estudos sobre música popular. Como não tenho uma inserção no campo dos estudos musicais da Amazônia, fiquei pensando sobre qual seria a minha contribuição, desde este lugar “outsider” para este encontro e este artigo, especificamente, e então decidi contextualizar um pouco sobre a nossa proposta de simpósio temático “Reflexões sobre gênero, relações étnico-raciais e sexualidades na etnomusicologia brasileira e nos estudos musicais da Amazônia” no presente encontro. O mesmo surgiu de um esboço de desejo ainda em Havana, Cuba, durante o encontro da seção Latino-Americana da Associação Internacional dos Estudos Sobre Música Popular (IASPM), que aconteceu em março desde ano de 2016. Foi um encontro histórico para todxs nós que, igualmente esquerdistas, sonhávamos um dia visitar Cuba, e nos encontramos todxs ali emocionadxs pela primeira vez.33 Neste encontro, tive a alegria de coordenar o GT “Gênero, corpo e pós-colonialidade na música popular,” juntamente com Francisca Helena Marques (UFRB), Jorgete Lago (UEPA e UFBA) e Bernardo Mesquita (UEA). A partir dali, num grupo maior, falamos sobre o desejo de trocar figurinhas de pesquisa, projetos e interlocuções, e também de discutir sobre a importância do debate de gênero no campo da etnomusicologia brasileira e dos estudos amazônicos, fortalecendo a nossa própria interlocução em âmbito Norte-Nordeste. Neste encontro de Belém, a ideia do simpósio é de articular as nossas diferentes abordagens e experiências sobre aspectos teóricos das epistemologias feministas e dos estudos de gênero e queer numa perspectiva interseccional e descolonial, e suas contribuições para o campo da etnomusicologia e dos estudos amazônicos, a partir do compartilhamento de pesquisas e vivências com distintas temáticas que vêm sendo realizadas neste contexto. O simpósio nasce do encontro entre pesquisadorxs e artistas 33

Prontamente formamos um grupo Norte-Nordeste, compreendendo pesquisadorxs e professorxs de Manaus, Belém, Salvador, Maceió e Recife: além da minha pessoa, Alice Alves (UFPE), Andrey Faro (UEPA), Bernardo Mesquita (UEA), Francisca Marques (UFRB), Jorgete Lago (UEPA/UFBA), Maria Aida (UFPE), Nadir Nóbrega (UFAL), Paulo Murilo Amaral (UEPA) e Tony Leão Costa (UEPA).

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inseridxs no campo da etnomusicologia e da antropologia, que têm se debruçado sobre o tema no Brasil e especificamente, no contexto amazônico. Para esta empreitada nos articulamos conforme nossas atuações e produções, onde eu abordo uma parte mais teórica desta perspectiva com referenciais importantes da etnomusicologia e fora dela, e um pouco sobre a experiência com a Feminaria Musical: grupo de pesquisas e experimentos sonoros, grupo que integra a linha de pesquisa Gênero, Arte e Cultura, do Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Mulher, UFBA, do qual faço parte como pesquisadora desde o final de 2010. Entre interlocuções, fechações, militâncias e a(r)tivismos Premissa feminista 1: O pessoal é político Premissa feminista 2: Nem toda política é feminista, mas todo feminismo é político Premissa feminista 3: Nem toda etnomusicologia engajada é feminista, mas toda etnomusicologia feminista é engajada

Para tremer com “o sabor do jambu”, seguindo a receita da maravilhosa Dona Onete, nada melhor que o conceito de fechação para traduzir as experiências, identidades e corpos de sujeitxs, movimentos, práticas musicais e performáticas que permanecem invisibilizadas, bem como, as produções de conhecimento dissidentes que procuram pensar música e a etnomusicologia brasileira a partir destas “outras” experiências, para dialogar com a perspectiva de alteridades históricas problematizada por Rita Segato (2002). Quando trago o termo fechação articulado aos a(r)tivismos, feminismos, e engajamentos diversos, proponho que, ao tratar desta perspectiva dissidente, alcançamos outros olhares e estratégias para pensar sobre os movimentos sociais, os protagonismos de artistas como Gaby Amarantos, das mestras da cultura popular e/ou das travestis na quadrilhas juninas beleneses, a questão da formação em etnomusicologia e/ou pesquisa/atuação em música em geral, da educação popular e indígena, etc., perspectivas que estarão presentes no nosso GT, que, de modo diferentes e tratando de contextos diferentes, abordam protagonismos que são historicamente periféricos. Acredito que, a partir desta perspectiva dissidente, é possível pensar também em estratégias de ação, intervenção e interlocução.

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Um exemplo bacana da perspectiva da fechação enquanto dissidência epistemológica e política foi a realização do I Encontro sobre Gênero e Música da Amazônia, organizado pelo compositor, baterista e Prof. Dr. Bernardo Paiva Mesquita, que aconteceu na Universidade do Estado do Amazonas, nos dias 1 e 2 de setembro de 2015, em Manaus, que considero um marco pioneiro e fundamental dos estudos musicais da Amazônia e do Brasil. Tive a honra de ser convidada como musicista e palestrante da mesa de abertura “Música e gênero no contemporâneo: panorama e desafios”, juntamente com a Profa Dra Iraildes Caldas, da área da antropologia da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), que tratou e o próprio Bernardo Mesquita que recentemente tem se debruçado sobre os “trânsitos, crimes e prazeres” na história da música popular da Amazônia, problematizando o meretrício como importante espaço de trânsito de música popular, onde emerge o protagonismo não somente dos músicos que tocavam nestes espaços, como das próprias prostitutas que consumiam discos de música popular e atuavam como importantes mediadoras no consumo e trânsito desta produção fonográfica que à época era de acesso restrito. Uma outra articulação importante e dissidente no âmbito de Belém do Pará se refere ao projeto Encontro de Saberes, coordenado pelo Prof. Dr. José Jorge de Carvalho, que conta com a participação dxs colegas da UEPA e UFPA, Jorgete Lago, Liliam Barros, Sonia Chada, Paulo Murilo Amaral. Contudo, foi o olhar feminista e negro da Profa Ms. Jorgete Lago que constatou e questionou a desproporcionalidade entre a presença de mestres e mestras neste evento de referência e na produção de conhecimento sobre o universo da cultura popular paraense, questionamento que a pesquisadora trouxe para sua tese de doutorado em construção sobre a invisibilidade das mestras no cenário da música popular paraense, o que contradiz a realidade de seus protagonismos desde sempre. Na qualidade de doutoranda do PPGMUS- UFBA, Jorgete é também tutora e colaboradora da Feminaria Musical, tendo participado de diversas de suas intervenções e performances poético-musicais em Salvador e também em Recife, durante o encontro da Redor – Rede Feminista Norte e Nordeste, em 2014, bem como, tem produzido textos interessantes sobre a sua pesquisa (LAGO, 2015a e b; LAGO, 2014; LAGO e ROSA, 2014).

Outra

dissidência teórica e política que tem reverberado não somente na sua pesquisa de doutorado, como na sua inserção no campo da etnomusicologia brasileira e, especificamente da Associação Brasileira de Etnomusicologia – ABET, é que, ao retornar a 58

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Belém, Jorgete vem se articulando enquanto colaboradora de grupos de referência sobre estudos de gênero no Estado, como o Nós Mulheres – grupo “Pela equidade de gênero e étnico-racial, coordenado pela Profa Dra Mônica Conrado, na UFPA34 e o GEPEM – Grupo de Estudos e Pesquisas “Eneida de Moraes”35, grupo igualmente e referência no Estado do Pará no campo dos estudos sobre gênero. Menciono esta articulação para problematizar como precisamos sair do campo teórico da música para podermos nos apropriar de ferramentas epistemológicas que deem conta da complexidade das relações de gênero, étnico-raciais, das sexualidades dissidentes e outros marcadores que também estão presentes no campo do musical, mas que ainda são pouco abordados. O Prof. Ms. Rafael Noleto, por sua vez, tem se engajada nas dissidências de gênero, raça e sexualidades em música, dentro do campo da Antropologia, onde tem mestrado e está cursando o doutorado sob orientação da Profa Dra Laura Moutinho, na USP. Contudo, Rafael, que é maranhense radicado em Belém por vários anos, sendo atualmente professor da Universidade Federal do Tocantins – UFT, tem formação em Licenciatura em Música pela UFPA, sendo também cantor e compositor. Desde o seu mestrado que conclui em 2013 com a dissertação “Poderosas, divinas e maravilhosas: o imaginário e a sociabilidade homossexual masculina construídos em torno das cantoras de MPB” (UFPA), que nos brinda com um título altamente fechativo, vem produzindo e publicando importantes trabalhos sobre o tema (NOLETO, 2013). Atualmente o mesmo nos brinda com uma nova fechação que é seu projeto de doutorado sobre as travestis nas festas juninas "Brilham estrelas de São João!": gênero, sexualidade e raça nas festas juninas de Belém – Pará, projeto pioneiro que tem se dedicado a analisar o protagonismo feminino, homossexual, travesti e transgênero nas festas juninas do Estado do Pará. 34

O Grupo Nós mulheres é coordenado pela professora Mônica Conrado, da Faculdade de Ciências Sociais, e nasceu em 2009, a partir do Observatório da Lei Maria da Penha. Com o objetivo de discutir questões que se tencionam em torno da temática das relações de gênero e raça, o Grupo agrega pesquisadores de diversas áreas, como Direito, Psicologia e Ciências Sociais, que desenvolvem seus trabalhos baseados nessa perspectiva. O Grupo tem o papel de articulador estratégico e propulsor de iniciativas que reinscrevam a cor/raça e etnia como componente simbólico que institui sujeitos sociais inter-relacionados com gênero, classe e sexualidade. Ele possui a meta de fornecer instrumentos sociais por meio de pesquisa, extensão e ações estratégicas para formação de uma rede com as universidades, instituições públicas, ONGs, órgãos e entidades comunitárias nacionais e internacionais sob a tematização das relações sociais e de gênero. Disponível em: http://www.organizacaonosmulheres.com.br/nosmulheres.php 35 O Gepem é constituído por docentes, discentes, técnico-administrativos, pesquisadores e profissionais da UFPA e de outras instituições públicas e privadas, e dos movimentos de mulheres interessados na temática mulher e gênero. O Gepem tem uma coordenação colegiada exercida pelas professoras doutoras Maria Luzia Miranda Álvares (FACS/IFCH/UFPA) e Eunice Ferreira dos Santos (ICED/UFPA). Disponível em: https://bibliotecaqueer.wordpress.com/2012/03/02/grupo-de-estudos-e-pesquisa-eneida-de-moraes-gepemufpa/

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O Prof. Dr. Paulo Murilo do Amaral, por outro lado, além de ter trazido para o foco o tecnobrega paraense, gênero musical que, por si só, é estigmatizado e periférico como bem problematiza em sua tese de doutorado, traz ainda o protagonismo de Gaby Amarantos, cantora negra paraense (AMARAL, 2009). Vale ressaltar que Paulo guarda em seu repertório ressalvas em tom de crítica sobre ser paraense e estudar tecnobrega, “ao invés” de se dedicar ao estudo das músicas indígenas tradicionais do Estado, sendo o primeiro considerado como algo “menor” ou simplesmente música de “má qualidade”, discussão que ele tece brilhantemente na sua tese de doutorado. Sob a orientação da Profa Dra Maria Elizabeth Lucas, a tese de doutorado “Estigma e cosmopolitismo na constituição de uma música popular urbana de periferia: etnografia da produção do Tecnobrega Belém do Pará” tornou-se referência importante no campo dos estudos sobre música popular no Brasil, a partir de uma perspectiva da etnomusicologia. Por fim, compartilho um pouco dos a(r)tivismos nossos com a Feminaria Musical: grupo de pesquisa e experimentos sonoros, enquanto um espaço de produção de conhecimento que existe há 5 anos, de formação, a partir dos parâmetros da etnomusicologia engajada e da pedagogia feminista, pois temos construídos um espaço coletivo e colaborativo onde trabalhamos nossos corpos, trocamos experiências e saberes, realizamos oficinas, acompanhamos ações diversas em interlocução com os movimentos sociais, sobretudo de mulheres e feministas. Para citar algumas importantes ações temos o ato do 17 de maio, dia internacional contra a homofobia, realizado em 2014, que contou com a parceria do coletivo Kiu! Pela diversidade sexual, da UFBA, que reuniu cerca de 100 pessoas, incluindo a participação de Viviane Vergueiro, intelectual e ativista transfeminista negra (FERNANDES, ROSA, SOBRAL e FIUZA, 2015 e 2014; VERGUEIRO, 2014); o ato contra a mortalidade materna, em parceria com o Odara, Organização de Mulheres Negras da Bahia, também em 2014; ato contra a redução da maioridade penal e 20 de novembro de 2015, com o histórico Grupo de Mulheres do Alto das Pombas, bairro periférico de Salvador, com quem temos cultivado uma importante interlocução que tem se estendido para o campo institucional de estágio docente de licenciatura em música na Escola Municipal Nossa Senhora de Fátima, recentemente compartilhado pela formanda Priscila Graziela Mascarenhas, sob minha (des)orientação, onde estamos trabalhando com práticas musicais e encontros sobre temas diversos como

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Lei Maria da Penha, Zika, genocídio da população negra, saúde da mulher negra, etc. com turmas de EJA e com o próprio GRUMAP (MASCARENHAS, 2016), dentre outras ações. Assumindo o campo da etnomusicologia brasileira, bem como, dos estudos musicais amazônicos, tema deste encontro na querida Belém do Pará, não vejo como ignorar o diálogo com a pauta de gênero, sexualidades, relações étnico-raciais e outros marcadores sociais da diferença tanto nas nossas produções de conhecimento sobre música, como na forma com as quais pensamos projetos e interlocuções. A invisibilização é também uma forma de violência traduzida por um silenciamento epistêmico já denunciado pela feminista indiana Gayatri Spivak (2010). Então, é mesmo preciso tremer, como sugere Dona Onete “toda se querendo”, como se diz no Pará, mas que esse

tremer jamais seja de

medo ou de invisibilização. “E o jambu treme...” Tremo por acreditar. Tremo por desejar. Tremo para colorir e ser colorida pelas cores do arco-íris da diversidade. Tremo dissidente. Tremo poética. Tremo bruxa. Tremo feminista. Tremo fechativa. Tremo Fora do Objeto. Tremo com o jambu de Dona Onete “Toda se querendo” Para não Temer jamais. ForaTemer.

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.“Okarilé: uma toada icônica de Iemanjá”. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. 1999. Vol. 28. Pp. 237-53. Disponível em: http://www.iphan.gov.br/baixaFcdAnexo.do?id=3205 .Santos e Daimones: o politeísmo afro-brasileiro e a tradição arquetipal. Brasília: Editora da UnB, 1995. .“A folk theory of personality types: goods and their symbolic representation by members of the shango cult in Recife.” Tese de doutorado em Música. Belfast: The Queen’s University of Belfast, 1984. SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2010. WONG, Deborah. Ethnomusicology and Difference. Ethnomusicology, v. 50, n. 2, 50th Anniversary Commemorative Issue, p. 259-279, 2006. Disponível em: . Acesso em: 24 set. 2012. TUGNY, Rosângela Pereira de; QUEIROZ, Rubem Caixeta de. (Org.). Músicas africanas e indígenas no Brasil. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.. VERGUEIRO, Viviane. É a natureza quem decide? Reflexões trans* sobre gênero, corpo, e (ab?)uso de substâncias. JESUS, Jaqueline Gomes de; e Colaboradores. Transfeminismo: teorias e práticas. Rio de Janeiro: Matanoia Editora, 2014. Pp. 30-47.

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Caipira, mulata, simpatia e gay: reflexões sobre gênero, raça e sexualidade nos concursos de miss das festas juninas em Belém – Pará. Rafael da Silva Noleto Universidade Federal do Tocantins - [email protected] Resumo: Anualmente, a cidade de Belém (PA) se torna palco para as apresentações de inúmeros grupos de quadrilhas juninas, que compõem a programação das festas de São João realizadas na cidade. Estas festas são marcadas por diversos concursos de dança (financiados pelos poderes públicos ou promovidos por lideranças e/ou associações culturais das periferias de Belém) que visam escolher as melhores apresentações coreográficas de quadrilhas durante o período das festas juninas. Paralelamente aos concursos de quadrilhas, ocorrem também os concursos de miss, que estão subdivididas nas categorias Miss Caipira, Miss Mulata (ou Miss Morena Cheirosa), Miss Simpatia e Miss Gay (ou Miss Mix). As “misses”, como são popularmente conhecidas, são dançarinas que possuem status diferenciado dentro de uma quadrilha junina, pois são as principais representantes destes grupos coreográficos e, por este motivo, disputam títulos de reconhecimento que estão diretamente relacionados à avaliação de sua beleza, seu figurino e suas habilidades em dança. Antes de cada quadrilha se apresentar para um júri especializado, as “misses” que a representam dançam e investem na conquista de um título correspondente à sua categoria. Entretanto, a Miss Gay é a única que não dança caracterizada como tal junto com sua respectiva quadrilha, mas possui um concurso específico para sua categoria realizado em data diferenciada. Este trabalho visa problematizar questões relativas a gênero, raça e sexualidade que estão imbricadas nesses concursos de miss, atentando para como a articulação de marcadores sociais da diferença está diretamente relacionada com a lógica de produção desses concursos. Palavras-Chave: Festas Juninas. Gênero. Raça. Sexualidade. Concursos de beleza.

Este paper visa ser um texto de compartilhamento de dados etnográficos coletados em trabalho de campo recém concluído na cidade de Belém (Pará) acerca dos concursos juninos realizados no período festivo genericamente denominado como “São João” ou “quadra junina”. De caráter menos teórico e mais descritivo, este texto traz para a discussão alguns pontos centrais, percebidos no contexto destes concursos festivos, que podem iluminar a discussão que pretendo propor em minha tese – pesquisa que vem sendo desenvolvida sob orientação da Prof.ª Dr.ª Laura Moutinho –, pautada sobretudo na problematização de como certos marcadores sociais da diferença (raça, gênero, sexualidade, geração), articulados entre si, podem engendrar uma lógica própria para os concursos de dança e de beleza que analiso. Antes de adentrar o tópico mais específico deste texto (os concursos de miss), será necessário explicar a dinâmica geral dos concursos aos quais me refiro. Os concursos juninos ocorrem anualmente em Belém (e no interior do Estado) durante todo o mês de junho, resvalando, às vezes, para as primeiras semanas de julho. Contudo, sua preparação acontece no período entre o final do carnaval e o término do mês de maio. Neste caso, meu trabalho de campo em 2014 compreendeu exatamente este período de preparação para os 66

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concursos e, obviamente, a temporada de concursos em si, estendendo-se até o início de agosto, quando acompanhei alguns preparativos para um concurso denominado como “Rainha do Folclore” (que não compõe os certames do São João, mas que a eles está relacionado). Os concursos juninos são divididos em cinco principais categorias, a saber: os concursos de quadrilha, os concursos de quadrilhas mirins, os concursos de miss, os concursos de miss mirim e, finalmente, os concursos de miss gay (destinados a apenas maiores de 18 anos). Além destes três concursos, há a realização dos concursos de Miss Terceira Idade, destinados a mulheres acima de 60 anos, mas que não são realizados na grande maioria dos eventos que são promovidos por lideranças culturais nos bairros periféricos de Belém, destacando-se como um certame promovido pelos poderes públicos estadual e municipal. O recorte empírico deste trabalho toma como ponto de partida para a reflexão os concursos adultos de quadrilha, de miss e de miss gay, fazendo uso de dados relativos aos concursos mirins e de terceira idade apenas quando (e se for) necessário. Os concursos adultos de quadrilha consistem em uma disputa coreográfica coletiva entre grupos de dança com cerca de 20 pares (divididos pela identidade de gênero “feminina” ou “masculina”), que dançam uma coreografia de aproximadamente 20 minutos e lutam pela conquista do título de “melhor quadrilha” nos mais diversos certames realizados nas periferias de Belém (e região metropolitana) e em cidades do interior do Pará. Entretanto, antes que cada quadrilha se apresente, há a apresentação de suas três principais representantes: a miss caipira, miss mulata (ou miss morena cheirosa)36 e a miss simpatia. A apresentação das misses consiste em um concurso paralelo, que ocorre de maneira independente ao concurso de quadrilhas, no qual essas mulheres disputam o título de “melhor miss” referente à sua categoria específica, dançando uma coreografia que,

em

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Há um debate (que será apenas resumido e apontado aqui nesta nota de rodapé), motivado pelos regulamentos do concurso oficial promovido pela Prefeitura de Belém, que diz respeito à nomenclatura “Miss Mulata” e Miss Morena Cheirosa”. Em 2014, a Prefeitura de Belém resolveu abandonar a categoria “Miss Mulata” e adotar a designação “Morena Cheirosa” com o intuito de aproximar o qualificador racial “morena” da designação usualmente mobilizada para descrever Belém como cidade morena e cheirosa, referindo-se, respectivamente, ao caráter “mestiço” que configura a formação racial da população da cidade e aos cheiros dos frutos e temperos que integram os ingredientes da culinária local, tais como a manga (Belém também é considerada como cidade das mangueiras) e o tucupi (caldo aromático extraído da mandioca e utilizado para receitas como tacacá e arroz paraense). Por outro lado, de acordo com informações coletadas em entrevistas realizadas com Alice Miranda e Ruth Botelho (principais organizadoras dos concursos promovidos pela prefeitura), a categoria “Morena Cheirosa” sublinha o caráter mais paraense e amazônico pretendido para esta categoria de miss, afastando-se do caráter mais “negro” e “africano”, utilizados em anos anteriores nas coreografias dessas misses e percebidos, pela organização dos concursos da prefeitura, como não amazônicos.

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geral, possui 2 minutos de duração e rivalizando com as misses das outras quadrilhas. Ressalta-se que, dentro desta configuração, as misses (caipira, mulata e simpatia) de uma mesma quadrilha não competem entre si, pelo contrário, muitas vezes criam relações de reciprocidade e solidariedade, facilitadas pelo fato de que possuem status individualmente diferenciado e reconhecido no interior de sua quadrilha. Não obstante, há uma quarta categoria de miss para a qual existe um concurso específico, realizado em data à parte, e desvinculado dos concursos de quadrilha: a miss gay ou miss mix. Em geral, trata-se de um homem homossexual, travesti, transgênero, mulher transexual que figura em uma quadrilha como brincante (ou seja, um dos componentes da quadrilha) e que, no dia do concurso de Miss Gay ou Mix, disputa o título de melhor miss em sua categoria, representando a quadrilha para a qual dança ou com a qual possui algum tipo de vínculo. Após expor, muito resumidamente, o contexto empírico de minha pesquisa, compartilho alguns pontos teóricos centrais que devem orientar as reflexões de minha tese de doutorado. É necessário mencionar que este trabalho, inserido nos campos teóricos da antropologia e dos estudos de gênero e sexualidade, identifica-se com pesquisas recémpublicadas (ou ainda em processo de publicação)37 cujo foco é a discussão de como a articulação de conceitos relativos aos marcadores sociais da diferença (gênero, raça, classe, sexualidade e geração) pode engendrar ideais performativos de masculinidade e feminilidade em concursos de beleza (e de performance). Assim, afino-me à perspectiva de observação de autoras como Marcia Ochoa (2014), que, analisando concursos de beleza (feminina e transexual) na Venezuela, percebe como esses certames forjam um ideal de feminilidade nacional, que é projetado em um contexto transnacional com o auxílio de um grande aparato midiático. Para Ochoa (2014), estes concursos, de alguma forma, projetam as feminilidades que produzem num imaginário urbano e contemporâneo. Em parte, estas imagens do feminino figuram como representações de certa identidade nacional venezuelana na contemporaneidade. 37

Refiro-me à recente publicação do trabalho de Marcia Ochoa (2014) sobre como os concursos de miss e de beleza “trans” na Venezuela produzem feminilidades atreladas a certa noção de modernidade e identidade nacional. Destaco também a pesquisa de Silvana Nascimento (2013), ainda não publicada e realizada no estado da Paraíba (Brasil), acerca dos circuitos gays e transexuais da prostituição, dos concursos de beleza e da articulação política através do Movimento LGBT. Partindo da perspectiva da antropologia urbana, a autora avalia estes três circuitos (e, particularmente, destaco os concursos de beleza gay e trans) como importantes veículos propulsores da circulação dessa população LGBT pelos contextos urbanos brasileiros e internacionais.

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Devo mencionar ainda que esta análise pressupõe que os concursos de dança e beleza aqui analisados produzem o significado próprio daquilo que é considerado belo a partir de parâmetros e avaliações estéticas que sobressaltam, empiricamente, a articulação de marcadores sociais da diferença tais como gênero, raça, geração, classe social e sexualidade. Inspiro-me em uma vasta literatura dos estudos de gênero e sexualidade, com diversas discussões estabelecidas por autoras tais como Bederman (1996), Brah (2006 [1996]), McClintock (2010 [1995]), Stolke (2006 [2003]), Moutinho (2004a; 2004b; 2006) e Piscitelli (2008), que problematizaram o uso desses marcadores como eixos de produção da diferença utilizados como vetores que engendram certas hierarquias sociais. Assim, é possível dizer que esta análise visa contemplar uma abordagem interseccional dos marcadores sociais da diferença com o intuito de problematizar como certas estruturas de poder são engendradas para produzir matrizes de desigualdade social. Afino-me, então, à perspectiva de que “estruturas de classe, racismo, gênero e sexualidade não podem ser tratadas como ‘variáveis independentes’ porque a opressão de cada uma está inscrita dentro da outra – é constituída pela outra e é constitutiva dela” (Brah, 2006 [1996]: 351). É importante notar, neste caso, como as categorias “raça”, “gênero”, “sexualidade” e “classe” estão articuladas entre si, existem em relação a si e através dessa relação – ainda que de maneira contraditória, às vezes conflitante e sem uma articulação de perfeito encaixe entre elas (McClintock 2010 [1995]:19). Expostos os parâmetros teóricos que balizam este paper, insiro agora nesta discussão, alguns dados etnográficos para reflexão. Há dois marcadores de diferença que se sobressaem nestes concursos: gênero e raça. Se, de um lado, há um grande divisor generificado que opõe as categorias “mulher” e “gay/mix”, por outro lado, estes concursos demarcam o lugar racial das misses, estabelecendo a categoria “mulata” como destinada às mulheres mais “negras” ou com coloração de pele consideradas “escuras”, “morenas” ou “mestiças”. A partir disso, percebe-se que, em geral (mas não invariavelmente), as misses caipira e simpatia são visivelmente mais “brancas” ou “claras”. Embora haja casos esporádicos e pontuais em que candidatas “negras” ou “morenas” tenham disputado os títulos de miss caipira ou simpatia, a ocorrência maior consiste em que as candidatas mais “brancas” sejam alocadas nestas categorias. Vale ressaltar que, entre meus interlocutores, há um entendimento de que existem diferenças hierárquicas entre as três categorias femininas de miss, sendo a miss caipira a 69

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mulher mais importante da quadrilha, que carrega a temática de seu grupo em sua coreografia e figurinos. No segundo posto hierárquico há a miss mulata (ou morena cheirosa), que, de acordo com meus interlocutores, carrega consigo a “força” da quadrilha. Em última posição, há a miss simpatia que tem a função de representar a graciosidade de seu grupo coreográfico. Do ponto de vista coreográfico, coletei em campo algumas informações sobre a percepção de meus interlocutores quanto às diferenças entre as categorias femininas de miss. Nesta perspectiva nativa, é possível notar que espera-se da miss caipira uma apresentação coreograficamente mais complexa, que reflita o seu status maior dentro do grupo e que “traduza” os elementos temáticos propostos para a coreografia de sua quadrilha como um todo. Em geral, estas misses são vistas como melhores conhecedoras de técnicas de dança e são mais cobradas para inovarem em suas performances a cada ano. Por sua vez, espera-se que a miss mulata apresente-se com uma coreografia “forte”, que represente supostos atributos da raça “negra” como “energia” e sensualidade. Muitos de meus interlocutores afirmam que estas misses são mais “brutas” e dançam coreografias com movimentos percebidos como mais “pesados”. Possuem a incumbência de “levantar” a torcida das plateias, mostrando a garra de sua quadrilha. Finalmente, as misses da categoria simpatia configuram-se como um estágio inicial para a carreira de miss. Executam movimentos considerados mais “leves” e menos complexos, devem “encantar” o corpo de jurados que analisa os concursos e tem a missão de empreender uma sedução pueril em relação ao público presente, exibindo sorrisos e movimentos que são, simultaneamente, maliciosos e infantis. Dentre todas as misses, a miss simpatia é, quase sempre, a mais jovem. Com relação à categoria gay/mix, percebi, em campo, que as expectativas que se mantém em relação aos sujeitos homossexuais, transgêneros, travestis ou transexuais que disputam os títulos de miss são bem próximas das exigências coreográficas que são direcionadas para as miss mulatas. De acordo com a maioria dos discursos que pude ouvir e registrar em campo, meus interlocutores afirmam que as miss gay/mix possuem uma “força” que pode ser comparada ou equiparada às miss mulata, o que masculiniza a mulher “negra” (ou não “branca”) e não reconhece a feminilidade das misses gays/mix. Ressalto ainda o fato de que muitos sujeitos homossexuais e/ou trans do universo quadrilheiro são coreógrafos de inúmeras misses (mulheres ou gays/mix) que dançam nos 70

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concursos juninos, estabelecendo com elas uma relação dialógica através da qual ensinam e aprendem atributos de feminilidade, mobilizando, inclusive, marcadores raciais como elementos que reforçam a beleza, a densidade e a sensualidade de suas coreografias. Assim, a feminilidade é adquirida e aprimorada coreograficamente a partir de complexos movimentos de dança, que conferem a estas misses a possibilidade de se constituírem como mulheres. Outro aspecto relevante é o fato de como os concursos de miss produzem noções de “raça” e “etnicidade”. Na opinião da maioria das candidatas (miss mulata e gay/mix) com quem dialoguei, “os jurados gostam do que é diferente, do que é exótico, das coisas que representam a nossa cultura paraense”, conforme avaliação de Nandinha Castro38. De fato, esta percepção parece fazer sentido quando se verifica que grande parte dessas candidatas lança mão de coreografias e figurinos temáticos vinculados a certos ideais de brasilidade e, mais especificamente, de amazoneidade, que seriam condizentes, inclusive, com suas peles mais “morenas”, “negras” ou ainda percebida como peles com uma coloração “indígena”. Neste sentido, se os jurados e a comissão organizadora desses concursos indicam certa preferência em relação às candidatas que exploram tais ideais de brasilidade e amazoneidade, as noções de “raça” e “etnicidade” são propositalmente mobilizadas pelas candidatas em suas fantasias. Aproveitando o fato de que esses concursos não limitam a confecção das fantasias nem a elaboração de coreografias à temática junina, as candidatas exploram amplas possibilidades de figurinos e danças com motivações étnicas, religiosas e raciais, tornando visível a afinidade (ou até o pertencimento) dessas candidatas às chamadas religiões de matriz africana, a identificação com os rituais de pajelança e a valorização dos seres “encantados” da Amazônia39. É importante lembrar que essa mobilização de aspectos racialmente “negros”, “mestiços” e “caboclos” acaba por forjar certo poder libidinal nos corpos e performances das candidatas aos concursos juninos de beleza gay e “trans”, sustentado pela ideia de “mistura”, simbolicamente representada tanto pela ambiguidade das identidades de gênero e de sexualidade das candidatas quanto pelo fator de miscigenação racial que seus corpos

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Entrevistada em 2013. Para reflexões mais detalhadas acerca das formas amazônicas de expressão religiosa (especialmente relativas ao catolicismo popular), dos rituais de pajelança e dos seres “encantados” da Amazônia, indico a leitura de Maués (1995; 2005). 39

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ostentam quando performatizam em cena40. Se as candidatas veem como um diferencial a adoção de uma fantasia cujo tema é representativo de algo “exótico”, “amazônico” e racialmente marcado como “moreno”, “negro” ou genericamente “indígena”, tal diferença acaba se diluindo no conjunto de fantasias que carregam, igualmente, temáticas cujos conteúdos são semelhantes. Assim, os jurados ficam diante de uma gama de candidatas que optam pelo “exotismo”, em certa medida, racializado, aumentando o grau de concorrência entre elas. Neste sentido, além do investimento em aspectos culturais entendidos como “amazônicos”, “indígenas” ou “exóticos”, as candidatas investem ainda na representação ressignificada e modernizadora de uma identidade “cabocla”, uma categoria classificatória móvel, que traduz um amálgama entre mestiçagem e etnicidade vinculado ao estereótipo do atavismo, alocando sujeitos que não podem ser classificados racialmente nem como “negros” nem como “indígenas” e muito menos como um grupo étnico específico41. Dessa maneira, é possível inferir que os concursos de beleza e de performance cênica, em seus mais variados formatos, operam ativamente na construção de parâmetros definidores do belo a partir da articulação de concepções próprias relacionadas aos marcadores sociais da diferença tais como gênero, raça, sexualidade, geração

e

etnicidade42. Sendo assim, creio que os concursos de beleza em geral – e não apenas aqueles voltados à população LGBT – constituem-se como campos empíricos férteis para reflexões teóricas produtivas. Os concursos de beleza configuram-se como importantes fontes expressivas de valores sociais e convenções morais vigentes, ao menos no plano ideal, construindo os parâmetros da beleza a partir de noções especificamente produzidas

Em artigo que problematiza a categoria racial e de gênero “mulata”, Mariza Corrêa (1996) discorre acerca de como essa classificação de cor é pensada num imaginário social como um elemento que sexualiza a raça e racializa o gênero. 41 Inspiro-me em Rodrigues (2006: 126-127) quando analisa o uso da classificação “caboclo” como uma categoria contextual, ligada ao estereótipo do suposto “atraso” social/cultural/intelectual das populações amazônicas. De acordo com a autora, “a categoria caboclo não é apenas uma categoria relacional, mas antes de tudo, intersticial, intervalar, categoria mediadora entre o dentro e o fora, o interior e o exterior, e não pode ser apreendida em termos de descontinuidades e rupturas, conceituais ou práticas, entre um espaço regional e um tempo colonial, e os espaços e tempos pós-coloniais, translocais ou transnacionais. Mas, ainda que, conceitualmente, imprecisa e politicamente não-situada, deslocada entre fronteiras e margens, exatamente por isso pode permitir melhor o exercício de auto-reflexividade sobre o contexto amazônico e a constituição de seus sujeitos” (Rodrigues, 2006: 128). Em publicação mais recente, Castro (2013) problematiza a categoria “caboclo” como uma anti-identidade, isto é, uma identidade denegada que foi forjada a partir de discursos materializadores de uma violência simbólica que institui os caboclos como sujeitos sociais na Amazônia. 42 Embora o foco deste artigo não esteja voltado, em primeira instância, para a análise da conexão entre raça, beleza e mercado, vale destacar algumas reflexões da antropologia brasileira, que se movem na direção de compreender como aspectos raciais podem ser ressignificados dentro de um mercado de consumo voltado para negros (Fry, 2002) ou mobilizados de maneira politizada em concursos de beleza negra (Pinho, 2004). 40

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(e constantemente reinventadas) em torno de hierarquias sociais definidas por raça, classe, gênero, sexualidade e geração. Referências BEDERMAN, Gail. Manliness and civilization: race, gender and sexuality in the United States, 1880-1917. Chicago: Chicago Press, 1996. BRAH, Avtar. Diferença, diversidade, diferenciação. Cadernos Pagu. Campinas, v. 2, n. 26, 329-376, 2006 [1996]. CASTRO, Fábio Fonseca de. A identidade denegada: discutindo as representações e a autorrepresentação dos caboclos das Amazônia. Revista de Antropologia. São Paulo, v. 56, n. 2, 431-475, 2013. CORRÊA, Mariza. Sobre a invenção da mulata. Cadernos Pagu. Campinas, n. 6-7, 35-50, 1996. MAUÉS, Raymundo Heraldo. Padres, pajés, santos e festas: catolicismo popular e controle eclesiástico. Um estudo antropológico numa área do interior da Amazônia. Belém: Cejup, 1995. . Um aspecto da diversidade cultural do caboclo amazônico: a religião. Estudos Avançados. São Paulo, v. 19, n. 53, 259-274, 2005. MCCLINTOCK, Anne. Couro imperial: raça, gênero e sexualidade no embate colonial. Campinas: Unicamp, 2010 [1995]. MOUTINHO, Laura. ‘Raça’, sexualidade e gênero na construção da identidade nacional: uma comparação entre Brasil e África do Sul. Cadernos Pagu. Campinas, v. 2, n. 23, 5588, 2004a. . Razão, ‘cor’ e desejo: uma análise comparativa sobre relacionamentos afetivosexuais ‘inter-raciais’ no Brasil e na África do Sul. São Paulo: Editora Unesp, 2004b. . Negociando com a adversidade: reflexões sobre ‘raça’, (homos)sexualidade e desigualdade social no Rio de Janeiro. Estudos Feministas. Florianópolis, v. 1, n. 14, 103116, 2006. NASCIMENTO, Silvana de Souza. Variações do feminino: circuitos do universo trans na Paraíba. Revista de Antropologia. São Paulo, v. 57, n. 2, 377-411, 2014. NOLETO, Rafael. 2014. ‘Brilham estrelas de São João!’: homossexualidades e travestilidades masculinas nas festas juninas do Pará. Novos Debates – fórum de debates em antropologia. Brasília, n. 1, 27-32, 2014. OCHOA, Marcia. Queen for a day: transformistas, beauty queens, and the performance of femininity in Venezuela. Durham/London: Duke University Press, 2014. PISCITELLI, Adriana. Interseccionalidades, categorias de articulação e experiências de migrantes brasileiras. Sociedade e cultura. Goiânia, v. 2, n. 11, 263-274, 2008. RODRIGUES, Carmen Izabel. Caboclos na Amazônia: a identidade na diferença. Novos Cadernos NAEA. Belém, v. 1, n. 9, 119-130, 2006. 73

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STOLKE, Verena. O enigma das interseções: classe, ‘raça’, sexo, sexualidade. A formação dos impérios transatlânticos do século XVI ao XIX. Estudos feministas. Florianópolis, v. 1, n. 14, 15-42, 2006 [2003].

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Ensaio sobre relações de gênero em Gaby Amarantos, a “rainha do tecnobrega” Paulo Murilo Guerreiro do Amaral Universidade do Estado do Pará – [email protected] Resumo: A escritura deste paper resulta de um convite que recebi para fazer uma fala sobre relações entre gênero e música no II Encontro ABET Norte da Associação Brasileira de Etnomusicologia e no II Colóquio Amazônico de Etnomusicologia. Para tanto, retomei pesquisa de doutorado em que realizei uma etnografia da produção musical do tecnobrega, na cidade de Belém do Pará, Norte do Brasil, Amazônia Oriental. Naquela ocasião, entre 2005 e 2009, o trabalho foi desenvolvido com vários atores sociais da cena musical popular local, entre cantores, produtores e DJs, incluindo a cantora Gaby Amarantos. Passagens de sua trajetória artística e profissional, entre outras memórias de pesquisa, conduziram-me a constatações e percepções atuais sobre mudanças musicais e culturais da artista e da música em si. Em termos de gênero, essas mudanças encerram ressignificações socioculturais, estético-visuais, de etnia e de estilo de vida relacionadas a temas de maior abrangência sobre o tecnobrega, tais como o fato de ser uma música considerada de periferia e de “mau gosto” estético. Embora o propósito seja, stricto sensu, o de comentar relações de gênero, as referências teóricas retomam, por um lado, orientações clássicas da Etnomusicologia, com Bruno Nettl e Alan Merriam, bem como recorrem, por outro, a etnomusicólogos de safras mais recentes, a exemplo de Thomas Turino e Samuel Araújo, que discutem, respectivamente, sobre cosmopolitismo e a noção de brega no Brasil. Palavras-chave: Gaby Amarantos. Mudança musical. Gênero (em música)

1. Preâmbulo A escritura deste texto decorreu de um retorno meu, cerca de onze anos, ao tempo em que ingressei no doutorado em Música da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). A pesquisa que ali se configurava, de alinhamento etnomusicológico, investigou o tecnobrega, um saber-fazer musical popular estigmatizado pelo “mau-gosto” estético e emergido de regiões periféricas da cidade de Belém, Capital do Estado do Pará, na Amazônia oriental (GUERREIRO DO AMARAL, 2009). Naquele contexto aproximei-me da cantora Gabriela do Amaral Santos, uma de minhas principais interlocutoras. O tecnobrega constitui uma modalidade de música dançante, voltada a públicos jovens, e resulta do atrelamento de timbres, melodias e ritmos de danças locais e translocais a matrizes percussivas eletrônicas. Distante de gravadoras convencionais, o tecnobrega vincula-se ao trabalho de produtores musicais em estúdios amadores. Chamados de DJs, esses produtores lançam mão, em seus processos criativos, de procedimentos como a mixagem, a masterização, o sampling e o looping, realizados por meio de programas de computador baixados por eles da internet, gratuitamente. Também se encontra distante das rádios convencionais, já que as mídias privilegiadas de divulgação 75

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dos hits de tecnobrega são as chamadas “festas de aparelhagens”, espécies de radiodifusoras independentes que circulam em diferentes localidades de Belém, especialmente em bairros de periferia e em interiores do Pará. As festas acontecem em grandes galpões e reúnem milhares de pessoas (GUERREIRO DO AMARAL, 2009). O “mau gosto” atribuído ao tecnobrega deve-se, por um lado, aos seus vínculos socioculturais e históricos, e, por outro, à produção musical em si. Em relação ao primeiro aspecto, o tecnobrega corresponde a uma techno-versão regional contemporânea do brega (idem; ibidem), que, por sua vez, teria se estabelecido em diversas partes do Brasil, a partir da década de 1960, como música excessivamente romântica e de “má qualidade” relacionada ao gosto estético e ao estilo de vida de classes populares (ARAÚJO, 1987). O tecnobrega despontou na cena musical popular de Belém por volta de 2003, quando da criação da Banda Tecnoshow, coordenada por Gabriela. Já no que diz respeito ao segundo aspecto, o tecnobrega “transgride” um modus operandis mais canônico da produção musical, na medida em que pode lançar mão de sintetizadores de timbres e de diferenciados recursos aplicados à música digital. Idem, porque o tempo do produtor não corresponde ao tempo de que necessita um compositor para garantir, ao seu produto, resultante de inspiração e amadurecimento estético-musical, o devido valor artístico.43 Ou ainda, entre outros elementos, em razão de que o produtor não anseia pela garantia de seus direitos autorais, e sim pela ampla divulgação das músicas que produz – no caso dos direitos, vale acrescentar que parte significativa da produção do tecnobrega corresponde a versões, na “batida” do tecnobrega, de músicas autorais, motivo pelo qual a questão do copyright passa-lhe ao largo. Ao longo da etnografia que desenvolvi no universo de domínio do tecnobrega em quatro anos de pesquisa, fui percebendo o alto poder gerativo, de transformação, ou mesmo de desaparecimento desta música. Após esse tempo, e com o seu passar no lapso de vários anos após a finalização da tese, passei a percebê-lo menos como gênero musical e bem 43

Não há intenção de estabelecer qualquer distinção formal entre o compositor e o produtor musical, a não ser pela razão didática de evidenciar, neste texto, duas variáveis que emolduram contundentes hierarquizações nos âmbitos dos saberes e das práticas musicais: a linhagem do criador musical e os tipos de música que produz. Em relação à linhagem, entende-se, normalmente, que o compositor é aquele que conhece partitura, que cria dentro de formas musicais, que segue regras de estruturação secularmente estabelecidas pela literatura especializada, e ainda, que necessita de inspiração e da generosidade do tempo em favor da elaboração de uma obra autoral. Já o produtor musical, em especial o de música eletrônica e computacional, não conhece, normalmente, as ferramentas de que necessita o compositor. Em outras palavras, em virtude de não lançar mão, em seu processo criativo, de conhecimentos e de práticas musicais canônicas, o produtor, não raramente, é vítima de preconceito, independente da qualidade de sua produção.

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mais como comportamento. Um comportamento que sempre urgiu para mudanças, e mudanças vertiginosas; que não desperdiçou muitos arrebóis para alavancar a visibilidade nacional de Gaby Amarantos: a mesma Gabriela, cantora de bairro que soltou a voz, pela primeira vez, em uma igreja do bairro do Jurunas, em Belém, e que, agora, divide espaço na grande mídia televisiva com ícones da música brasileira, alguns deles antigos arautos da MPB e outros que estão na “crista da onda”; ainda, e muito importante para este pequeno ensaio, um comportamento não apenas da música, mas também da mulher, cabocla, nortista, de periferia, rotulada de “brega” e desviante de um padrão estético-visual globalizado que confere inflexível valor à magreza. A respeito de algumas questões de gênero relacionadas à trajetória de Gaby Amarantos é que me detenho aqui.

2. Fazendo Gênero ao Redor: engajamento e ativismo Deixo as teorias sobre gênero em música para os colegas especialistas. Limito-me, neste item, e de modo breve, em invocar temas magnos que vêm se destacando, contundentemente, no Brasil pós-afastamento da Presidente Dilma Rousseff, em importantes agendas sociais e políticas sobre o papel da mulher na sociedade, direitos humanos, civis e das minorias, entre outras que menciono a seguir. Além da sociedade em geral, a Academia e as entidades de classe, por meio de seus Sindicatos e Associações, têm participado dessas agendas de diferentes maneiras: manifestando-se nas ruas, preenchendo abaixo-assinados, elaborando e fazendo circular notas de apoio ou de repúdio, difundindo informações em redes sociais globais, publicando etc. As reuniões científicas, por exemplo, cumprem essencial papel político e social, ao lançar olhares qualificados sobre problemas que, ao contrário do que muitos pensam, dizem respeito a um país inteiro e a todos os seus habitantes. Para exemplificar, cito a violência contra homossexuais, o preconceito racial, a intolerância religiosa, a xenofobia, as rotulações culturais e comportamentais, entre outros que encontram fértil território de debate em inúmeros fóruns sobre gênero que acontecem no Brasil e mundo afora. Menciono dois casos: a Redor e o Fazendo Gênero. Fundada em 1992, a Rede Feminista Norte e Nordeste de Estudos e Pesquisa sobre a Mulher e Relações de Gênero (Redor) acaba de realizar, de 15 a 17 de junho de 2016, a 77

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sua décima nona edição, na Universidade Federal de Sergipe. A Redor reúne pesquisadores interessados em examinar temas importantes para os estudos feministas e de gênero, tais como políticas públicas, inclusão e educação, violência, identidade, meio-ambiente, relações étnico-raciais, direitos, diversidade sexual e religiosidade. Possui mais de trinta organismos de estudo e pesquisa associados, dentre os quais o Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher (Neim), da Universidade Federal da Bahia (UFBA), no Nordeste do Brasil, e o Grupo de Estudos e Pesquisas “Eneida de Moraes” sobre a Mulher e Relações de Gênero (Gepem), da Universidade Federal do Pará (UFPA), na região Norte. O Seminário Internacional Fazendo Gênero, que acontece desde 1994, em Florianópolis, ruma para a sua décima primeira edição, em 2017. Sua diversificada paleta temática encampa matérias de relevância capital para as ciências humanas e sociais, tais como políticas de identidade, cultura, corpo e sexualidade; globalização; relações de poder entre grandes projetos da modernidade e desafios pós-coloniais; preconceitos e estereótipos; etnicidade; cibercultura; comunicação, consumo e turismo; trajetórias, narrativas e memórias; entre outros. Com maior ou menor intensidade, e dependendo do contexto, vários desses problemas, temas ou matérias entrelaçam-se à história de vida e à trajetória artísticoprofissional de Gaby Amarantos, a partir das quais faço alguns recortes mediante algumas considerações sobre gênero.

3. A partir do Jurunas: recortes da trajetória da “rainha do tecnobrega” Gaby Amarantos viveu em Belém, desde o seu nascimento, em 1979, até mais ou menos o final dos anos 2000, quando se mudou para a região sudeste do Brasil. Morava com os pais, Seu Conrado e Dona Elza (falecida em 2015), e com os seus dois irmãos, Gabriel e Gabriele. A casa era grande, de dois andares, no coração do bairro do Jurunas, na periferia da cidade. Havia lugar para todos, inclusive para visitantes como eu, que acompanhei muitos ensaios da Tecnoshow, ali mesmo, na casa da família Santos. Após o nascimento de Davi, filho de Gaby, Seu Conrado construiu mais um andar, onde o menino passou os primeiros anos de vida. A cantora e o pai já não mais residem na casa.

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Desde tenra idade, Gaby já ouvia música nas esquinas jurunenses44, incluindo o brega. Nas brincadeiras com os colegas de bairro, ela era quem determinava o papel de cada um dos integrantes de sua equipe. Um pouco mais velha, começou a desenhar roupas, liderou um grupo de quadrilha, e cantou, pela primeira vez, na paróquia de Santa Terezinha, próxima de sua casa. Sua inserção na música brega antecedeu outra experiência musical que teve, em bares de Belém, cantando MPB. Em uma das entrevistas que me concedeu (GUERREIRO DO AMARAL, 2006), justificou que o fato de pertencer ao universo do brega não queria dizer que ela cantava apenas brega. Mencionou que gostava de Billie Holiday, Elis Regina, Elza Soares, Dulce Pontes, Mercedes Sosa, Noel Rosa, entre outros. Mesmo explorando um gosto musical variado no seu fazer artístico, foi com o brega, e em particular, com o tecnobrega, que Gaby consolidou sua imagem pública, a ponto de ter sido agraciada, no imaginário popular, com o título de “rainha do tecnobrega”. Contrariando o desejo de seu pai, bancário de profissão e músico nas horas vagas, Gaby não quis seguir outra carreira que não a de cantora. Chegou a fazer vestibular para o curso de Geografia, provavelmente pressionada pela família para cursar o nível superior. Não obteve aprovação. Deu aulas de reforço, em casa, além de ter trabalhado como atendente de telemarketing. Mas não se firmou em quaisquer destas atividades. Em favor de que sua família se convencesse de sua opção pela música, de modo particular Seu Conrado, Gaby precisou engajar-se em projetos por meio dos quais lhe fosse conferida maior visibilidade do que aquela que estava acostumada a ter nos palcos de Belém. Em um deles, a artista teve a oportunidade de se apresentar, ao vivo, em vários programas de auditório, de entretenimento e jornalísticos de longo alcance. Hoje em dia, ironicamente, Seu Conrado é quem a acompanha em shows e viagens de trabalho Brasil afora. Do auge de popularidade regional da Banda Tecnoshow – em meados dos anos 2000 – até uma primeira fase de “explosão” de Gaby Amarantos – em nível nacional, por volta do início da década seguinte, – a cantora, além de assumir-se, verbalmente, como representante da música brega e detentora de um jeito brega de ser, incorporava traços kitsch reveladores deste universo, a exemplo das roupas extravagantes que usava em apresentações, do apelo à sensualidade em performances corporais da banda, e do uso de 44

Quem nasce no bairro do Jurunas é considerado jurunense.

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recursos vocais estridentes, em solos, como se a garganta estivesse arranhando os sons emitidos. Esses movimentos, visualidades e sonoridades integravam um conjunto estético com base no qual Gaby se propunha a afirmar e valorizar a cultura brega, por um lado, e a reverter o rótulo desabonador atribuído aos artistas e à música brega, por outro. A respeito da fase seguinte de Gaby Amarantos, que pode chegar até aos dias atuais, arrisco-me a referir nada além do que hipóteses. Por exemplo, apesar do grande público massivo nacional não ter, provavelmente, a mais remota ideia do que significa ser um jurunense para alguém nascido e criado ali, a cantora jamais deixou de referir seus traços identitários. Ao mesmo tempo, curiosamente, parece distanciar-se do ser, agir, e principalmente, do dizer-se brega.

4. Relações de gênero e a passagem épica de Gaby Amarantos Ao retomar, neste momento, o anúncio sobre o comportamento da mulher periférica, cabocla, brega e estético-visualmente desviante, faço uma tentativa de apresentar relações de gênero atuantes em um processo de “mudança musical” e cultural ao qual denomino passagem épica de Gaby Amarantos. Segundo o etnomusicólogo Bruno Nettl, o termo mudança musical [e cultural] significa “mudanças e continuidades de estilo, repertório, tecnologia e aspectos dos componentes sociais da música [que] são manipuladas por uma sociedade, a fim de acomodar as necessidades tanto de mudança quanto de continuidade” (NETTL, 2006: 16). Considera ainda que a modificação ou o intercâmbio de repertório, operado pela sociedade, vai depender de como ela identifica e circunscreve o elemento primordial de seu pensamento musical (idem; ibidem). Na esteira do que menciona o autor, a mudança ou a continuidade deriva de disposições que emergem da sociedade. A partir disto, eu poderia depreender, por exemplo, que a subjetividade do detentor de um conhecimento ou de uma prática musical não define, per se, se haverá ou não modificação no suporte tecnológico de produção de timbres para uma grade de fontes sonoras; ou se determinado repertório precisa ou não ser atualizado; se alterações de estilo tornariam uma performance musical mais interessante à equipe de gravação ou a um público específico; entre outras possibilidades – não por falta de autoridade criadora, mas porque a música agrega ideias e conceitos gerados fora do campo estritamente sonoro. Merriam (1964) já considerava esta questão quando

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estabeleceu o seu modelo tripartite de entendimento da música como som propriamente dito, comportamento e conceito. Reflexões ainda primárias sobre questões de gênero relacionadas à

Gaby

Amarantos levam-me a quatro variáveis – estigma, mídias, feminilidade e cosmopolitismo – que corroborariam possíveis ressignificações de seus marcadores de etnia (cabocla), estilo de vida (brega), condição sociocultural (periférica) e padrão estético-visual pretensamente desviante. O termo estigma remete, imediatamente, à pesquisa do sociólogo canadense Ervin Goffman. O autor explora os sentimentos do indivíduo “estigmatizado” sobre si mesmo e em relação às pessoas consideradas “normais” (GOFFMAN, 1978). O estigma consiste em um atributo individual, mas de origem social, que representa uma ameaça à coletividade. Ou ainda, consiste na deterioração de uma identidade pessoal que não se encontra coadunada a padrões estabelecidos pela sociedade. Do ponto de vista de quem sofre o estigma, a sociedade lhe usurpa possibilidades e oportunidades, bem como derroga sua individualidade por meio da imposição de padrões de poder. Transgredir esses padrões significa estar à margem da sociedade e dos mecanismos de controle social, motivo pelo qual o estigmatizado é classificado como elemento pernicioso e desprovido de potencialidades. O incômodo decorrente do atributo de “mau gosto” estético conferido à música brega apresentou-se, nas narrativas de Gaby Amarantos, como talvez a sua única manifestação evidente em relação ao estigma, não me parecendo, portanto, que ela tenha se visto pessoalmente vitimada. Apesar disto, a artista se valeu da condição de protagonista de uma modalidade musical “degradada” para positivar a sua prática enquanto expressão de identidade regional. Dentre os mecanismos de positivação do estigma de ser brega, e também de sua consequente reversão, encontram-se mudanças musicais em níveis de estilo e repertório. O pulsante tecnobrega ganhou andamento mais cadenciado, transformando-se em melody ou tecnomelody.45 Tal mudança pode indicar que o feitio techno teria sido ressignificado no âmbito de processos criativos e de comportamentos musicais mais próximos à canção, no seio dos quais a participação da voz do solista é mais presente. A canção seria, em certa medida, a antítese do tecnobrega. A despeito daquele feitio, a tendência de canção 45

viria

Não quero dizer, com isto, que o tecnobrega foi substituído pelo melody.

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legitimar outra visão de mundo e de música, de um modo geral, em relação à estética “degradada” do tecnobrega. Pouco tempo depois, “estourava” nas paradas radiofônicas e televisivas o arrebatador Ex Mai [sic.] Love, sucesso autoral de Gaby que conquistou grande popularidade e reposicionou a artista na cena midiática massiva nacional. O rótulo desabonador do tecnobrega transcende o gosto estético-musical em si, abrangendo também duas outras noções: uma de que a música pertence à periferia e a ela deve ser destinada, e outra de que os seus produtores, divulgadores e consumidores seriam menos favorecidos em termos sociais, culturais e econômicos, do ponto de vista de quem atribui o estigma. O estabelecimento do tecnobrega como música de e para as periferias se encontra relacionado a um específico “modelo de negócios” (LEMOS & CASTRO, 2008) cujo funcionamento se dá, em tese, à margem de princípios como o dos direitos autorais e o da comercialização de produtos por intermédio de gravadoras. Em outras palavras, produz-se, divulga-se e consome-se música, sem que, para isto, artistas necessitem assinar contratos com selos e/ou pagar por espaços de divulgação em radio-difusoras convencionais. A produção e o consumo livre de CDs “piratas” consistem em um dos traços mais emblemáticos deste modelo, assim como a divulgação de músicas no âmbito das “festas de aparelhagem”. À medida que Gaby Amarantos se distanciava desse modelo, grandes corporações midiáticas tratavam de agenciar uma artista que, apesar de ter vindo da periferia, “superou dificuldades e chegou até aqui, vitoriosamente”. Destaco o trecho, entre aspas, apenas no intuito de assinalar opinião particular quanto ao discurso elaborado no nível dos mainstreams, que atribui valor ao artista das margens, normalmente, bem mais pelo seu sacrifício de vida em prol da arte do que pela relevância cultural de seu saber e de suas práticas. De modo consciente ou não, tal visão viria corroborar o adoecimento de uma sociedade, já bastante empedernida, em relação às suas abismais desigualdades socioculturais e econômicas. Gaby veio de “baixo”. Isto é inegável. Entretanto, é possível que o Jurunas lhe tenha pesado absolutamente nada, ou bem pouco, como a espécie de periferia que apetece o mundo hegemônico: a dos vitimados sociais, culturais e econômicos. Graças a inúmeros atributos dessa artista talentosa, musicalmente versátil, politizada e muito segura em

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relação ao potencial da música regional e dos artistas jurunenses, a periferia que sempre agenciou possui aura bem diferente. Ser jurunense é, entre outras coisas, estar junto de um celeiro de músicos e músicas, passando pelo cantador de carimbó (...) Mestre Verequete, pela Escola de Samba Rancho Não Posso Me Amofiná (...), além de Gabi [sic.] Amarantos, Beto Metralha e outros sons e personagens de uma paisagem sonora multíplice; é como ser mangueirense no Rio de Janeiro, ainda que não exista em Belém uma Escola de Samba como a Estação Primeira de Mangueira – que me parece ter sido escolhida como a “menina dos olhos” de todo o brasileiro que gosta de samba-enredo –, ou porque o Jurunas está às margens de um rio e não aos pés de um morro; é pertencer a um lugar que “tem uma diversidade musical maravilhosa”, nas orgulhosas palavras de Gabi, nascida e criada naquele bairro; é ainda não querer estar em outro lugar, mesmo em se podendo estar (GUERREIRO DO AMARAL, 2009: 80-81). Outra variável atuante na passagem épica de Gaby Amarantos, a feminilidade, articula-se com o corpo de uma artista cabocla, com uma patente referência à sensualidade consignada na dança – aspecto que, no caso de Gaby, se conecta a um padrão estéticovisual “desviante”, e com o estilo de vida brega de uma protagonista cultural da periferia. Lanço mão, para esta reflexão, de algumas experiências de pesquisa e de insights mais recentes. A primeira experiência de que me recordo aconteceu na casa de Seu Conrado e Dona Elza, quando Gaby perguntou-me se a letra de um hit de tecnobrega poderia ser interpretada pelo público como “vulgar”. Respondi-lhe evasivamente, creio. Mas pensei, com toda certeza, que ser “vulgar” consiste em um traço indelével da estética brega. O etnomusicólogo Samuel Araújo elenca alguns significados e sentidos sociais para o termo brega, dentre os quais “festa em um bordel” e coisa vulgar e cafona (ARAÚJO, 1987: 2021). Na segunda delas eu subi ao palco para registrar uma performance musical e coreográfica da Tecnoshow. Quando da apresentação de uma das músicas, notei que a letra fazia referência ao termo “xana”, considerado no Pará como uma das denominações populares para o órgão sexual feminino. A questão ficou-me ainda mais clara quando percebi os movimentos coreográficos dos dançarinos aludindo a um ato sexual. E pensei, lá com os meus botões de outsider em início de trabalho etnográfico, que aquela música e 83

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dança não seriam apreciadas positivamente em outros espaços que não os de periferia. Enganei-me, pois. Apesar de não ter simulado um ato sexual, o aclamado clipe “Xirley” anunciava o poder enfeitiçador de um café coado na calcinha. “Xirley” pode ter sido um divisor de águas para Gaby Amarantos em sua passagem épica. Além de ter incorporado a estética brega de forma magistral, o clipe percorreu o Brasil, a ponto de, provavelmente, ter alavancado a popularidade da artista. Um de seus pontos altos é o tratamento irreverente para temas seculares como a sexualidade, que continua alimentando tabus em uma sociedade machista e moralista como a brasileira. Outro aspecto emergente do clipe, ainda no que diz respeito à sexualidade, consiste na delimitação de alguns contextos. Em seu início, por exemplo, Gaby veste uma camiseta regata preta, bem como se encontra sem maquiagem e com o penteado desgrenhado. Se não fossem os contornos de um corpo tipicamente feminino (e destoante do padrão ditatorial de magreza que se quer impor, diga-se de passagem), ela poderia ser confundida com um estereotipado rapaz de periferia. Talvez tenha sido esta a sua intenção. Em contrapartida, Gaby ressurge, em duas sequências seguintes, com figurinos e performances irrefutavelmente femininas: primeiramente veste um modelo preto bastante jovial; e, em seguida, um traje mais pomposo, adornado com plumas. Na última, o modelo apoteótico da cantora poderia servir a uma porta bandeira de escola de samba ou a uma drag-queen. A versatilidade da artista, para além das questões estritamente musicais, reside também no fato de poder incorporar, em suas performances, traços visuais, comportamentais e aurais do masculino, do feminino ou do transgênero, do centro ou da periferia, do chique ou do brega, entre outros. Simula contextos étnicos, como em uma performance que registrei de uma coreografia ambientada em uma aldeia indígena. Além de espaços, suas performances também simulam o tempo, como no caso da gravação da faixa Shut-up, para o primeiro DVD da Tecnoshow, em que Gaby e os dançarinos da banda, devidamente trajados com roupas futuristas, executaram movimentos robotizados de androides. Tal versatilidade revela em Gaby um comportamento cosmopolita. O ser e o agir cosmopolita de Gaby Amarantos constituem a última das variáveis relacionadas à sua passagem épica. Conforme o etnomusicólogo Thomas Turino, cosmopolitismo significa tudo o que faz referência a objetos, ideias e posições culturais que podem ser mundialmente difundidos, mesmo sendo oriundos de determinados países [regiões, localidades]

e 84

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populações. Representa determinações translocais sobre hábitos e formações culturais específicos, mas também práticas, tecnologias e estruturas conceptuais concretizadas em localidades específicas e nas vidas das pessoas (TURINO, 2000: 7-8). Ser cosmopolita é forjar tempos, recriar espaços, estabelecer relações interculturais e transculturais; é absorver linguagens universais sem perder as referências identitárias regionais; é também, no caso das culturas pretensamente subalternas, relativizar sua condição de dominado e também exercer a hegemonia.

5. Desfecho A escritura deste artigo decorreu da surpresa de um convite inusitado que recebi da colega Laila Rosa, etnomusicóloga como eu, e professora doutora do Programa de PósGraduação em Música da Universidade Federal da Bahia, para participar de uma Mesa Redonda composta por especialistas em estudos de gênero. Mesmo sem ser conhecer profundamente o assunto, aceitei o convite. Em termos práticos, a proposta foi de que, baseado em um dos capítulos de minha tese, eu consolidasse uma discussão açambarcando questões de gênero em Gaby Amarantos. Ao longo da elaboração deste texto, percebi, também de forma inusitada, que a análise que eu havia feito da trajetória da artista, no doutorado, não daria conta de sustentar a proposta atual. Foi quando compreendi que eu não teria como prescindir da tese, em sua totalidade, já que desdobramentos sobre gênero, no particular de Gaby Amarantos, incidem sobre temas de base do trabalho de onze anos atrás, tais como a relação entre comportamento cosmopolita e produção musical de periferia. Quase declinei... Só que eu já havia aceitado o desafio. Contudo, antes de empreender, neste texto, conexões mais diretas com a pesquisa anterior, Laila e eu já havíamos trocado algumas ideias sobre a pertinência de enfocar Gaby Amarantos à luz do gênero, no que diz respeito, por exemplo: à preponderante presença da figura masculina no universo de domínio do tecnobrega e do diferencial deste aspecto em relação ao protagonismo artístico e musical de uma mulher; e a mudanças musicais, culturais e visuais da artista – e de uma artista cabocla – frente ao propósito da positivação do estima de ser brega e à sua entrada em outros contextos midiáticos.

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O cosmopolitismo em Gaby Amarantos vem abrindo, diante de mim, novos caminhos de compreensão sobre diferentes saberes e práticas musicais populares massivos que lidam com rótulos de desabono. As relações de gênero, exatamente por serem muitíssimo exploradas no nível da visibilidade midiática desses artistas, consistem em um desses caminhos.

Referências ARAÚJO, S. Music and Conflict in Urban Brazil. Urbana-Champaign. 108f. Dissertação (Mestrado em Música). University of Illinois at Urbana-Champaign, Urbana, 1987. GOFFMAN, E. Estigma: notas sobre manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. GUERREIRO DO AMARAL, P. M. Entrevista realizada com Gaby Amarantos em 02 de fevereiro de 2006. Belém. Gravada em áudio no formato mp3. Bairro do Jurunas. . Estigma e Cosmopolitismo na constituição de uma música popular urbana de periferia: etnografia da produção do tecnobrega em Belém do Pará. 2009. 244 p. Tese (Doutorado em Música). Instituto de Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2009. LEMOS, R. & CASTRO, O Tecnobrega: o Pará reinventando o negócio da música. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2008. MERRIAM, A. P. The Anthropology of Music. United States: Northwestern University Press, 1964. NETTL, B. O estudo comparativo da mudança musical: estudos de caso de quatro culturas. Revista ANTHROPOLÓGICAS, ano 10, vol. 17 (1), 2006. TURINO, T. Nationalists, Cosmopolitans, and Popular Music in Zimbabwe. Chicago and London: University of Chicago Press, 2000.

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MESA REDONDA 2

MESA REDONDA 2: DIÁLOGOS DISCIPLINARES

Coordenação – Dra. Rosa Maria Mota da Silva (UFPA)

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Organologia, arquivos online e etnomusicologia Alice Lumi Satomi Universidade Federal da Paraíba – [email protected] Resumo: A partir da temática do encontro sobre “a etnomusicologia na contemporaneidade”, o artigo pretende trazer a questão dos acervos on-line, apresentando o “Projeto de Disponibilização de cartografia organológica da cultura brasileira”. Este visa criar um banco de dados para dinamizar um espaço de consulta e intercâmbio científico sobre os instrumentos musicais locais – sobretudo dos manufaturados – em sua diversidade social, espacial e temporal. Na página hospedada no sítio eletrônico da UFPB, os assuntos estão divididos pelo primeiro nível do quadro organológico, exibindo quatro das seis categorias de Hornbostel-Sachs: idiofones, membranofones, aerofones e cordofones. Exceto os raros casos híbridos, cada instrumento é descrito conforme a numeração do sistema de classificação adotado pelo MIMO (Musical Instrument Museums Online) Consortium46 (2011). A cartografia apresenta todos os níveis existentes de tal sistema, chegando a criar algum, quando necessário. Além dessa abertura, a adoção da sistemática possibilita fornecer não somente os dados estruturais e acústicos de cada instrumento, mas também, links ou ilustrações bibliográficas, iconográficas, fonográficas e dados contextuais, contendo a realidade geográfica, histórica e social de cada instrumento com suas utilizações, representações, estilos e cultura musical. Desse modo seria possível discutir o lugar da organologia na disciplinaridade da etnomusicologia, pelo viés da observação timbrística, que reiteradamente, tem revelado a identidade de cada agrupamento social. Palavras-chave: etnomusicologia.

Organologia

brasileira.

Arquivos

online.

Disciplinaridade

e

Apresentação e terminologias Desde 1996, tenho me debruçado sobre a temática da música japonesa transterritorial, confirmando a presença do alaúde tricórdio sanshin47 da região de Okinawa, e do koto48, uma cítara pranchiforme com treze cordas, cujos primeiros registros constam na obra de Dale Olsen e Mário de Andrade (1981). Assim, o interesse pela organologia – despertado no aprendizado e desenvolvido no ensino de construção de 46

HORNBOSTEL, Erich M. von; SACHS, Curt. Systematik der Musikinstrumente. Ein Versuch. Zeitschrift für Ethnologie. Berlin, v. 46, p. 553-90, 1914. Satomi, Alice Lumi. “’As gotas de chuva do telhado’: música de Ryûkyû no Brasil”. Dissertação em etnomusicologia. Salvador: UFBA, 1998. 47

48

. Dragão confabulando: etnicidade, ideologia e herança culturas através das escolas de koto no Brasil. Tese em etnomusicologia. Salvador: UFBA, 2004

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instrumentos artesanais – permaneceu também no âmbito da pesquisa etnomusicológica. Ao receber o convite para participar da mesa sobre “Diálogos disciplinares” oscilei entre uma e outra área. Considerando a temática do encontro “a etnomusicologia na contemporaneidade” pendi para questão dos acervos on-line, como ponto de partida para a discussão do lugar da organologia na disciplinaridade ou interdisciplinaridade da etnomusicologia. O artigo tem como tema transversal o Projeto de Disponibilização da cartografia organológica, que envolve alunos de iniciação científica, desde 2014. Trata-se de uma continuidade do artigo “Vislumbrando uma organologia da música brasileira” (SATOMI, 2008), que desembocou no estágio pós-doutoral “Organologia das tradições musicais brasileiras”, no MIM – Museu de Instrumentos Musicais de Bruxelas, em 2010. Antes de apresentar o projeto, seria válido esclarecer a terminologia empregada sobre organologia, etnomusicologia e acervos. Entre o final do século XIX e a primeira metade do XX, a organologia firmou sua cientificidade, quando sistematizou a classificação dos instrumentos musicais, ao que tudo indica, através do catálogo de Victor Mahillon (1880). Diante de uma coleção generosa, o curador do museu belga resolveu classificá-la de acordo com os princípios construtivos e acústicos, estabelecendo como primeira divisão ou “classe”, a matéria vibrante principal: autofone, membrana, corda ou ar. Mais tarde, a dupla interdisciplinar Hornbostel-Sachs (1914), da coleção de Berlim, ampliou o sistema tripartite, que se tornou o padrão até os dias de hoje, assegurando a disciplinaridade da organologia no campo da musicologia sistemática. Na segunda metade do século passado, com o crescimento do reconhecimento das ciências humanas já podemos encontrar a preocupação em incluir o estudo da “perspectiva sociológica do instrumento, do instrumentista e seu contexto” (TRANCHEFORT, 1980, p. 11). Essa perspectiva aponta para a possibilidade de situar um instrumento de uma maneira menos estática e isolada, mas fazendo parte da cultura. Em seu artigo sobre a classificação de Hornbostel-Sachs, Anthony Seeger problematiza a limitação do sistema para “responder às questões sobre o papel dos instrumentos [...]. Ou seja, quem faz, quem toca, quando, onde, como e por quê” (1986, p. 175]. Associando a abordagem enunciada por Tranchefort com a lacuna observada por Seeger, o presente artigo fundamenta-se na seguinte definição:

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Organologia é o estudo dos instrumentos musicais que compreende não apenas a sua classificação, mas também o seu entorno espacial, temporal e humano. Quanto à (inter)disciplinaridade da etnomusicologia trago as palavras do professor Manuel Veiga “ a etnomusicologia é interdisciplinar por natureza”, que deve ser buscada incessantemente e não de maneira superficial (RIBEIRO, 2005, p. 9). Ao mesmo tempo, não é possível alcançá-la “sem antes enfatizar a disciplinaridade” e nesta podemos esbarrar na questão de determinar “os elementos essenciais da etnomusicologia”. Se um deles é a música, deve ser praticada por músicos bem preparados e capacitados para realizar análises de vários tipos [...] e dominar uma linguagem para se comunicar com ela. Por outro lado, há todas essas relações da etnomusicologia com as ciências do homem, que talvez também estejam nesse bloco da disciplinaridade, não da interdisciplinaridade.” (RIBEIRO, ib., p.10)

Considerando as camadas internas de uma “coleção” explicitadas por Flávia Toni temos: Documento refere-se a “todo suporte [...] suscetível de ser usado para consulta, estudos ou provas”. Documentação ao “ato de reunir documentos sobre um determinado assunto”. Coleção refere-se à “reunião de vários tipos de documentação [e documentos] relacionados entre si.” (TONI, 2008, p. 57-8). No caso do projeto em tela, o emprego da terminologia acervo teria o sentido amplo de abrigar essas três camadas internas: a “coleção”, no caso, dos instrumentos musicais; a “documentação”, ou agrupamento de exemplares reunidos por semelhanças na fonte vibratória principal, como os idiofones, membranofones, aerofones e cordofones; e o “documento”, no caso descrição, amostra sonora e visual do instrumento individual. Projeto de disponibilização de acervo O projeto Disponibilização de cartografia organológica da cultura brasileira, iniciado em 2014, originou-se dos exercícios de elaboração de quadros sinóticos, seguindo a sistemática de Hornbostel-Sachs, porém, eliminando o sistema numérico, para facilitar a visualização das subcategorias. Foi elaborado um primeiro quadro, ou cartografia, dos idiofones brasileiros, durante o curso de organologia, e um segundo, para ilustrar contexto instrumental da música japonesa, durante a elaboração da tese, na UFBA. A experiência de coordenar o Projeto de disponibilização do museu NUPPO – Núcleo de Pesquisa e Documentação da Cultura Popular, da UFPB, entre 2008 e 2012, certamente, facilitou a 90

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iniciativa do projeto atual. O projeto em andamento amadureceu na época do estágio, onde tive a chance de auxiliar a supervisora Anne Caufriez, no preenchimento da tabela do inventário da coleção indonesiana e latinoamericana do MIM em Bruxelas. A experiência fez parte do projeto MIMO – Musical Instrument Museums On-line, integrado por onze principais museus da Europa. E, finalmente aumentou a confiança para terminar o projeto, ao ser convidada para escrever onze verbetes de exemplares brasileiros para o Grove Dictionary of Musical Instruments, em 2012. Através da revisão de literatura ou em visitas virtuais ou presenciais, observou-se que constam coleções da cultura indígena esparsas pela Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro (CAMEU, 1987 e TRAVASSOS, 1986), a coleção de Curt Nimuendaju, no Museu Paraense Emilio Goeldi, em Belém, acervo do Departamento de Arqueologia e Etnologia, da Universidade de São Paulo (PINTO, 2001, p. 264). A ONG do projeto da cultura caiçara (SETTI, 2004) é o único acervo disponível em rede eletrônica encontrado pela pesquisa. No exterior parece haver uma amostra razoável no Museu de Göterborg, em Estocolmo, recolhidas por Karl Izikowitz (1935), que publicou um estudo abrangendo a América Latina. Dos onze museus integrados no projeto MIMO constam alguns exemplares no museu etnológico, de Berlim, e Horniman Museum, em Londres, e raros exemplares, no de Bruxelas. No museu etnológico de Lisboa, o acervo da cultura material indígena é bastante significativo, mas não foram observados instrumentos musicais. Em 2015 observou-se a existência do Museu Virtual de Instrumentos Musicais, do Rio de Janeiro, cuja coleção não se limita ao Brasil, consta apenas uma “trompa indígena dos Carajás”, entre os aerofones. A pesquisa bibliográfica segue a lista anterior de publicações seminais, que constam nos dicionários específicos de música brasileira como o de Mário de Andrade (1989), no compêndio histórico de Renato de Almeida (1942), e, principalmente, do catálogo etnológico da exposição da Biblioteca Nacional, específico em instrumentos musicais indígenas, de Helza Cameu (1979). Ademais da iconografia e breve descrição, ela se preocupou em constar, quando possível, o nome vernacular do instrumento, comunidades, ou tronco linguístico, região, detalhes da construção ou modo de tocar e ritual, usos e funções. Com a equipe de iniciação científica, estão sendo levantados e catalogados, também, os verbetes dos dicionários de folclore brasileiro (C ASCUDO, 2012), dos instrumentos musicais (LIBIN, 2014), da Enciclopédia da Música

Brasileira 91

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(ALVARENGA; MELO, 1977) os registros gerais e específicos anteriormente mencionados e, sobretudo, da secção organológica do professor Manuel Veiga (1981), pioneiro ao abordar a organologia indígena, em termos etnomusicológicos. Das fontes específicas sobre os instrumentos da cultura indígena, que tem como base a proposição de Hornbostel-Sachs temos mais duas publicações. A primeira a ser destacada é a de Karl Izikowitz (1935), que classifica de acordo com os princípios acústicos, detalhes técnicos de produção e variação sonora, usos e distribuição. Embora seja um estudo comparativo, etnográfico, e de certa forma difusionista e estruturalista, preocupa-se em abordar o instrumento como um “elemento cultural”, ou seja, uma célula de um organismo cultural ou complexo, com seus usos e funções, concepções religiosas, ritualísticas e outras. A segunda é um glossário dos exemplares brasileiros, de Elizabeth Travassos (1986) – a partir dos instrumentos descritos por Izikowitz (1970), Cameu (1977, 1979) e Sachs (1947) – que aplicam a numeração até o terceiro nível do esquema Hornbostel-Sachs. Da lista da revisão de literatura no artigo anterior, valeria seguir destacando a documentação de instrumentos indígenas nos trabalhos de Rafael M. Bastos (1999), Anthony Seeger (2004), Kilza Setti (1985), Acácio Piedade (1997 e 2004), Deise Montardo (2002). Acrescenta-se a pesquisa de Desidério Aytai (1985), sobre os

Xavante,

M. Ignez Mello (2005), sobre os Wauja, e as gravações dos Timbira, de Kilza Setti (2004), e os registros fonográficos de Roquette-Pinto, em 1912 (PEREIRA; PACHECO, 2012) Tendo como sujeito o instrumentarium brasileiro, priorizando os manufaturados, o objetivo do projeto é criar um espaço virtual para disponibilizar um acervo de dados, obtidos através de registros na literatura e em acervos, contendo coleções, documentações e verbetes de cada exemplar em sua diversidade social, espacial e temporal. Como o sítio eletrônico possibilita a atualização contínua do banco de dados, o projeto visa dinamizar, ademais da consulta, um espaço de intercâmbio científico sobre o timbre, ou a sonoridade local de cada comunidade, ou evento social. Especificamente o projeto almeja as seguintes metas ou etapas: 1. Levantar e fichar as fontes consultadas na pesquisa documental, visitando arquivos bibliográficos fonográficos e iconográfica em museus, acervos, ou bibliotecas, virtual

ou

presencialmente; 2. Catalogar cada instrumento, anotando dados musicais – acústicos, ergológicos e morfológicos, com descrição da extensão melódica, tessitura, dos estilos, 92

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tipo de escala, modo, conjunto – e contextuais – realidade geográfica, histórica e social, com descrições de suas utilizações e funções. 3. Criar e desenvolver o quadro sinótico, para classificar os instrumentos procurando contemplar o máximo dos dados anotados e sempre, que possível, acompanhados ilustração visual, sonora, áudio visual, ou

hiperlink.

4. A partir do lançamento do sítio eletrônico, promover a reunião, difusão e intercâmbio de pesquisas e estudiosos em torno da organologia popular brasileira. Quanto aos resultados esperados, em nível local, ou talvez nacional, espera-se formar material didático para as disciplinas de interesse do curso de Educação Musical e da Pós-Graduação em Música (etnomusicologia). Em esfera mais ampla, envolvendo ou não a equipe, estimular a produção de revisão de literatura e traduções das principais discussões sobre organologia. E em longo prazo, o projeto aspira a publicação em livro de estudos mais aprofundados, seguindo abordagens consistentes e completas, tais como as de William Malm (1946), sobre a música japonesa, e Rodríguez et all. (1997), sobre a cultura musical cubana, obra exemplar de trabalho em equipe interdisciplinar. Para a construção do quadro classificatório o corpus teórico principal adota o projeto MIMO, que tem como base atualização de Jeremy Montagu (2009). Este revisou a sistematização de Hornbostel-Sachs (1914), que, por sua vez, aperfeiçoou a divisão tetrapartite criada por Victor Mahillon, em 1880. E, naturalmente, há influências do filtro natural da literatura absorvida, onde predominam as reflexões de Kartomi (1992), Geneviève Dournon (1992) e Seeger (1986). Apesar da amplitude e intenção taxonômica do projeto, o procedimento metodológico principal se restringe à pesquisa bibliográfica, fonográfica e museológica, através do levantamento dos registros existentes em bibliotecas, acervos, pesquisas e na literatura, Para o fichamento tentar-se-á reunir os dados pertinentes para cada subdivisão prevista, complementando ou reduzindo as anotações de cada instrumento. Assim, a construção do quadro organológico brasileiro tem como ponto de partida o instrumental disponível, ou consultado, para depois utilizar os sub-ítens aplicáveis da “classificação descendente [partindo do geral para o particular]” (ver KARTOMI 1992, p. 17) proposta por Sachs-Hornbostel (1961), Dournon (1992) e Montagu (2009). O quadro concilia a forma de uma tabela taxonômica com um diagrama árvore com flexibilidade para crescer mais no comprimento do que na largura. O comprimento conta com a inclusão

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de um instrumento por linha e a largura com os parâmetros ou itens de classificação, por coluna. Na seleção de itens do quadro organológico, aproveitou-se grande parte dos subitens aplicáveis dos modelos mencionados, dispensando os que não se enquadram e acrescentando alguns exigidos pelos exemplares brasileiros. O quadro dos idiofones é o primeiro da série que contará com as outras três categorias principais do modelo tetrapartite de Hornbostel-Sachs. Está ainda em fase de construção, apresentando vinte e duas colunas. Da esquerda para a direita adaptam-se as subdivisões do modelo tetrapartite de Hornbostel-Sachs (1961) e Dournon (1992), seguindo ou sintetizando em seis níveis, as subcategorias ergológicas e morfológicas: forma de tocar, formato, componentes, particularidades, material e outras variáveis. Aos dados estandartizados do modelo tetrapartite e critérios de numeração nas colunas W (Hornbostel-Sachs, ampliado por Montagu) e X (Dournon), acrescentam-se os dados contextuais etnográficos do projeto MIMO, tais como: nomenclatura êmica (L); outros nomes éticos (M); identidade da comunidade ou grupo social (N); comentários (R), descrições; referências à bibliografia histórica (S); acervo ou coleção (T); fonte bibliográfica (U); fonte iconográfica (V) e as dimensões. Na coluna usos e funções (O), incluindo tipo de conjunto, manifestação ou ritual; temos as possibilidades musicais, onde além do âmbito, extensão do instrumento, (a exemplo de Victor Mahillon, 1984) podem ser acrescentados ritmos ou padrões estéticos, sugeridos por A. Seeger (1986). A região ou área cultural (P) onde cabem os troncos lingüísticos, responde a pergunta onde. A coluna da simbologia (Q), cosmologia ou representações do instrumento, um aspecto remarcado por Kartomi (1991). Nas colunas restantes, acrescentaram-se algumas colunas que, particularmente, considero relevantes como: fonte bibliográfica (V), referência à iconografia histórica (W); a numeração de Dournon (X); links (Y) que possam remeter o visitante virtual aos outros registros gravados e que indiquem outros endereços ou homepage, de estudos ou referências mais aprofundadas; e as dimensões (Z).

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Palavras finais Repensando a pergunta de partida, lembro que quando fui convidada para debater a questão da disciplinaridade causou-me estranheza pelo caráter interdisciplinar da etnomusicologia. Embora tenha reparado que, seguindo o modelo da UFBA, os cursos de mestrado da área estão implementados nos departamentos de música, sobretudo aqui no nordeste, vejo que na produção dos alunos de pós-graduação, predominam referências das ciências humanas em relação à musicologia, incluindo a etnomusicologia. Observa-se que há certa dose de desvalorização da transcrição em pentagrama, da análise musical e da organologia, o que pode incorrer no desinteresse, também, pelas fontes históricas. A cautela é compreensível para evitar os deslizes do etnocentrismo, da musicologia comparada, das abordagens folcloristas e, no caso, da organologia, das tendências evolucionistas ou difusionistas. Seria possível questionar se tais argumentos e cuidados não estariam camuflando limitações em percepção, análise e acústica musicais. Acredito, ainda, que tratam-se de ferramentas (transcrição, análise e organologia) que podem proporcionam consistência e identidade etnomusicológica. Sem desconsiderar a ênfase antropológica que muitos temas exigem, abster-se de tais ferramentas é esperado em outros departamentos, mas tenho observado que justamente nos de antropologia, conforme o orientador, existe a preocupação de utilizar pelo menos uma delas. Essas ferramentas podem fornecer uma maior cientificidade e credibilidade até para a própria cultura pesquisada, que aprecia ver suas peças musicais no papel, ou seus instrumentos organizados. A idéia de disciplinaridade é importante para demarcar e para poder compor o espaço [não só mostrando o conteúdo], mas sua maneira de olhar, o que ela não é capaz de olhar, onde é preciso olhar de outra maneira e onde ela pode se compor com outros olhares. [...] Somente é possível compor um todo unindo as partes quando você conhece as partes. A disciplinaridade é o ato de conhecer essas partes. Um todo é muito mais do que a soma das partes, mas é preciso que você tenha essas partes. (KAWAMURA, 1997, p. ##)

A autora da área de física, ou seja, das ciências exatas, é categórica na delimitação da área, mas semelhante ao posicionamento de Veiga, valoriza o domínio das partes, ou conhecimento, para desenvolver sensibilidade e bom senso para escolher as ênfases e as ferramentas de análises adequadas, para enxergar nossos limites, flexibilidade mudar e refazer se for preciso, considerando a perspectiva insider. Até mesmo na mudança de

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ênfase de abordagem das duas vertentes da etnomusicologia: uma que privilegia o som e outra que enfatiza o contexto. Após desenvolver o gosto pela pesquisa de campo, que hoje já se transformou em etnomusicologia aplicada, o desvio para a pesquisa bibliográfica, ou de gabinete, e na descrição etnográfica, implicaria num aparente retrocesso. No entanto, ao deparar com incipiente material didático, ou incompletos registros de instrumentos brasileiros nos livros e acervos gerais de música, somando-se ao crescimento dos estudos etnomusicológicos e às possibilidades modernas do mundo virtual, seria o momento oportuno para desenvolver uma organologia brasileira com uma abordagem etnomusicológica. Embora não se possa aprofundar o estudo num primeiro momento, a construção da cartografia já poderia contribuir em questões elementares de terminologia, mapeamento e classificação. Ao servir-se da rede eletrônica e acrescentar colunas referentes ao contexto musical e sociocultural, espero ter atendido as observações de Seeger. Antevendo o avanço tecnológico ele sugere complementar “dados na classificação dos instrumentos musicais para melhor servir a antropologia com uma tecnologia ainda por vir”. Dados esses num “procedimento que amplie a informação [...] tendo em vista inferir seu lugar na cultura material e nos processos sociais como um todo” (SEEGER, 1986, p. 173). E para finalizar lembro as palavras de Acácio para dissipar essa fronteira nebulosa e apontar uma saída agregadora e holística para nossas ciências demasiadamente fragmentadas: Os modelos teóricos que alicerçam a pesquisa em antropologia serviram de base para a consolidação da etnomusicologia, tais como as teorias do relativismo cultural. Porém, com a influência da fenomenologia e da hermenêutica cultural nas ciências humanas, a etnomusicologia e a musicologia se transformaram e se aproximaram de tal modo que, atualmente, é possível falar em um único campo de saber, uma musicologia geral, que abraça uma diversidade de estudos sobre a música (PIEDADE, 2010, p. 77)

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Instruments.”

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PALESTRA DE MESTRE LUCAS BRAGANÇA Transcrição: Tainá Maria Magalhães Façanha (Mestranda do PPGARTES – UFPA) Supervisão: Prof. Dr. Paulo Murilo Guerreiro do Amaral (UEPA)

Boa noite a todos! Aqui a gente perde um pouco da noção do tempo, mas eu tô ligado lá na pranchinha... [trecho inaudível]. Antes, quero agradecer à professora Líliam, ao Murilo e à Sônia Chada pelo convite; agradecer aqui aos mestres.Eu não tenho essa formação acadêmica, mas a minha formação é popular, tradicional. Eu venho lá do meu interior, trazendo aquilo que os meus antepassados me deixaram: a tradição do nosso carimbo. E, eu vejo assim, muitas pessoas falam porque o carimbó é isso, é aquilo. Mas é uma coisa que foi nos deixado. E nós temos que lutar por isso, pra que ele seja reconhecido ainda mais do que já é. Nós já passamos por alguns momentos ruins, muito ruins, ondeos nossos antepassados, por tocarem o carimbó, eram descriminados; presos, porqueaquilo achavam que era vagabundagem. Eles só estavam mostrando aquilo que eles sabiam fazer, que era tocar o carimbo. E isso nós estamos fazendo até hoje, graças a Deus e aos nossos mestres que deixaram essa herança muito boa.E a gente vai pensando, vivendo, estudando... Depois, será que isso um dia vai melhorar? Será que um dia nós vamos chegar [trecho inaudível] à grande mídia tocando carimbó, que é uma cultura tradicional? Será que [trecho inaudível] das cidades as escolas vão abrir a porta para o carimbó? Isso a gente tem que pensar, porque [trecho inaudível] isso é muito importante. Que as portas se abram, que sejam mais claras, que venham mais conhecimentos, mais tecnologias pra nos ajudar. Mas não deixando nosso carimbó de lado, porque isso é a nossa força. Isso que nós devemos fazer: você repassar esse seu conhecimento, que já foi transmitido pra você. Isso é legal. É isso que eu faço. [Trecho inaudível] Quando eu vou ensinar as minhas crianças, porque lá a gente ensina eles tocar, ensina a confeccionar o curimbó, ensina a confeccionar uma maraca. Eu confecciono banjo artesanal com panela de pressão. Isso é legal a gente fazer. Mostrar como se faz. Quer dizer: o caminho é esse. Você pode ser um doutorado em música e ter tudo, mas [trecho inaudível] falta pouco pra você viver nossa riqueza natural, nossa carimbó, [trecho inaudível] que é pras pessoas conhecerem, pra pessoas valorizarem; que eu acho que é por aí que a gente vai abrir as portas. Então, esse contexto de música, de 99

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Etnomusicologia, são muito bacana essa discussão. Você... Eu, por exemplo, tá no meio dos professores, dos mestres formados academicamente. E eu tô aqui, escutando e analisando, né. Quando será que, um dia, nós vamos ter um professor de carimbó nas universidades? Quando a nossa música realmente vai chegar a encontros desses assim? Porque isso é importante pra nós. Porque, afinal de contas, a gente vem brigando por uma coisa que há muito tempo tá aí. São mais de duzentos anos que a gente vem lutando aí pro carimbó ser reconhecido. Passamos dez anos numa luta pro camribó ser reconhecido como patrimônio cultural imaterial brasileiro. Foram dez anos de luta. Hoje nós temos uma abertura mais ou menos bacana, que leva os brega pra fora do Pará, pra fora do Brasil, pra mostrar a nossa cultura. Então, é por ai que a gente vai chegando. É lutando... É mostrando como se deve fazer. Porque você... Eu tenho um professor aqui do lado. Eu tenho certeza que, com toda formação que ele tem, ele nunca ouviufalar da confecção de um carimbó ou como se fazer. Não é verdade? E esse conhecimento eu tenho, como fazer. Tanto é que a gente teve uma passagem aqui com a professora Líliam, [trecho inaudível] Paulo Murilo, professora Chada, que entraram em contato comigo. E a gente fez o Encontro de Saberes, que nós tivemos aqui, neste mesmo local, tocando com as pessoas, maestros, tudo aqui, formado. E... e o cidadão chegou comigo e disse: “[trecho inaudível], eu sou paraense, eu sou formado em música, sou maestro e nunca tinha visto ninguém chegar e fazer o que você tá fazendo!” Esse conhecimento é tradicional. Isso é legal da gente chegar e mostrar. Fui em Brasília e passei dez dias lá na UnB, ministrando aula. Lá foi diferente a história. Lá não foi como confeccionar, mas sim como tocar. E eu tenho certeza que a turma que ficou lá, eles devemtá fazendo barulho por lá, porque eles gostaram muito de conhecer aquilo que eles nunca tinham visto. [Perguntavam (?)]: “que negócio é esse? – que toque é esse desse negócio aqui? – o que faz com isso?” A gente toca. Porque muitas pessoas dizem que “ah, você tá aqui; vou bater o carimbó.” Eu disse: eu não vou bater... Sem dúvida, você vai tocar o curimbó. [Trecho inaudível] Maraca... Você não vai sacudir a maraca. Você vai tocar a maraca. Isso aqui é um instrumento musical. Isso não é um brinquedo que (...). Isso não é uma palheta que a gente toca. Isso é um instrumento musical, que tem que ser levado, tocado e aceito como um instrumento musical.Então, é por ai que a gente vai caminhando. E, nessa vivência toda, a gente aprende que toda música deve ser respeitada. Não importa se ela é clássica, se ela é popular. Mas é música, e isso eu gosto de escutar. Eu gosto de escutar, é... Na minha casa eu tenho Beethoven, lá. E 100

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boto na minha casa, lá no meu gravadorzinho [trecho inaudível]. Escuto Zezé di Camargo e Luciano. Escuto Xavantinho e Pena Branca. Mas eu escuto também o meu Mestre Lucindo. Eu escuto o meu Mestre Verequete. Eu escuto o meu Mestre Cantilho [trecho inaudível], Mestre Zelé. Foramesses caras que deixaram essa herança pra gente. E a gente não pode esquecer deles. Assim como eu escuto Luciano Pavarotti eu também escuto Mestre Lucindo, né. [Trecho inaudível] E é por ai que a gente vai.

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MESA REDONDA 3

MESA REDONDA 3: DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES

Coordenação – Dra. Maria José Pinto da Costa de Moraes (UFPA)

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Desde que o Samba é Samba: reflexões e criações sobre o gênero Paulo José de Siqueira Tiné Instituto de Artes – UNICAMP Resumo: O trabalho discorre sobre resultados parciais obtidos nos recentes projetos de pesquisa sobre processos criativos em música popular do autor sobre ponto de vista do gênero samba. Esses projetos tiveram como objetivo registrar a produção para a formação idealizada (Ensemble Brasileiro), dentro da relação tensional entre ela e antecedentes históricos (Orquestras Típicas e Jazz Bands) próximos. Além disso, para além do processo de produção, o artigo tece sobre o contexto social no qual as execuções de tais peças se deram, bem como o perfil dos membros integrantes do processo e sua recepção. Palavras-chave: samba; processos criativos, orquestra típica.

1.Introdução SANDRONI (2003), em sua clássica obra Feitiço Decente, aponta dois paradigmas rítmicos que, de certa forma, dividem a história do gênero, principalmente a partir de sua introdução na história da indústria fonográfica brasileira, portanto, naquilo que viemos a entender como sendo música popular como algo diverso no folclórico ou étnico no sentido contemporâneo da compreensão da etnomusicologia49. Ou seja, os paradigmas do tresillo e do Estácio, filiando o primeiro à influência da habanera na América Latina e Central de uma maneira geral e ao continente africano, em especial ao Zaire, o segundo. O ponto brilhante, a meu ver, do texto reside no fato do autor entender que foi o modo de grafar tais paradigmas pelos artistas alfabetizados musicalmente, dentro da tradição europeia e ocidental, que trouxe à luz a questão da síncope, central na definição histórica do gênero, ainda que por vias tortuosas, como bem demonstra o autor. Portanto, a questão central do papel do arranjador, como um mediador cultural e como aquele que traduz sua escuta ao escrever o arranjo, como aponta SZENDY (2008), se encontra prefigurada na visão de SANDRONI. “O termo etno-musicologia, ainda com hífen, só aparece após a Segunda Guerra Mundial, na publicação do holandês Jaap Kunst, um dos primeiros estudiosos da música balinesa e javanesa – ‘Ethnomusicology: a study of the nature of ethno-musicology, its problems, methods and representative personalities’, tomando lugar ao de musicologia comparada, pela visão expressada por vários pesquisadores de que esse estudo não era mais comparativo do que os de outros campos do conhecimento. Em 1956 surge, nos Estados Unidos, a Society for Ethnomusicology, que retira oficialmente o hífen da palavra etnomusicologia, enquanto que a Associação Brasileira de Etnomusicologia só veio a firmar-se em 2001. A tendencia etnomusicológica das décadas posteriores tem sido a do estudo da música em uma sociedade, assim como a interação da musica com o seu contexto cultural, histórico e social”. CHADA: 2012, 3. 49

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Quanto ao processo de comercialização do samba que se deu através do início da era do rádio e entre os meios mecânicos e elétricos de reprodução com a indústria do disco, esse gênero se caracterizou, então, tonalmente do ponto de vista do viés melódicoharmônico. Para isso, é preciso pensar que os primeiros compositores no cenário carioca da década de 1920 não eram mais aqueles puramente comunitários, ou seja, apesar de fazerem parte de uma prática musical coletiva baseada na oralidade, eles expandem essa prática para os meios de comunicação e se profissionalizam. Tais compositores trabalharam, é de supor, no sentido de uma estilização tonal do gênero. Nesse sentido, parece ter havido uma neutralização dos elementos modais – como os pentatônicos - comuns na cultura afrobrasileira nesse processo de estilização. A partir disso, na década de 30, foi construído, no meio musical popular brasileiro, um modelo de exaltação nacional através do samba, principalmente através dos signos de exaltação encontrados na obra Aquarela do Brasil, de Ary Barroso. Quando se lembra que a primeira gravação de Aquarela do Brasil foi realizada em 1939, ano da partida de Carmen Miranda para os Estados Unidos da América, vê-se que uma série de signos e um ideário brasileiro foi constituído, ainda que tal processo pudesse ser completamente inconscientemente por parte dos compositores. A transformação da Aquarela do Brasil em parâmetro de exaltação se dá em pleno período do Estado Novoa ponto de o samba ser considerado o gênero brasileiro de música popular por excelência. [...] o samba de Ary Barroso transformou-se em emblema sonoro interno para os compositores populares [...] Estes símbolos são costurados, no paradigma exaltativo [sic], pelo sentimento de reconhecimento, aceitação e amor para com os mesmos, pois supõem-se sejam valores compartilhados, igual e integralmente, por todos brasileiros. (SOARES, 2002, p. 40)

É de se supor que, musicalmente, a construção desse ideário nacional e regional realizado por Ary Barroso, já se dá sob a égide do paradigma do Estácio. Na década de 1940, o locutor Almirante conduziu, na rádio Nacional o programa cujo epíteto “O Pessoal da Velha Guarda” já apontava para um viés nostálgico à turma de Pixinguinha e, na década seguinte, a gravadora Sinter lançou uma série de LPs que somam a faceta nostálgica ao aspecto carnavalesco. Tais arranjos foram editados recentemente pelo Instituto Moreira Salles em parceria com o selo SESC e, justamente os LPs, foram nomeados por “O Carnaval de Pixinguinha”.

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Do ponto de vista da performance musical, toma como base a questão de como se deve interpretar, arranjar e compor dentro do gênero tendo o conhecimento prévio de tais paradigmas. Devemos nos ater a eles ao interpretar um samba hoje? 2.A Proposta A discussão sobre processos criativos na área de música popular permanece em aberto. O campo da composição erudita e, principalmente quando envolve o uso de tecnologia, parece estar bem delimitado por envolver pesquisa e inovação estética. Entretanto, quando se passa ao campo da música popular muitas dúvidas permanecem. Como deveria ser realizada essa produção sem que, por um lado, a questão da pesquisa permaneça em foco e, por outro, que ela não seja simplesmente uma produção artística, pois, nesse caso, o legado desse trabalho seria parcial. Apenas como um método incompleto e provisório que estou realizando, além da produção artística propriamente dita, uma reflexão sobre seus pressupostos estéticos, análise, descrição de obras e contexto da recepção e dos realizadores. Em primeiro lugar a base para esse trabalho foi o grupo artístico que coordeno, o Ensemble Brasileiro para o projeto FAPESP de pesquisa “Processos Criativos em Arranjos e Composições para Jazz Band/Orquestra Típica”50. Qual ideia está por trás do grupo? A de se interpretar música brasileira com instrumentos característicos da mesma. A formação é um agrupamento reduzido do trabalho que coordenei entre 2003 e 2008 chamado Orquestra Popular Brasileira, uma orquestra típica, mas que tinha um objetivo de equilíbrio sonoro normalmente não previsto em tais formações: 2 flautas; 2 clarinetes; 2 saxofones (um alto e um tenor mas com possiblidades do uso do soprano); 1 trompete; 1 trombones; 2 percussionistas; 1 bandolim; 1 cavaquinho; 2 violões (um de 7 cordas); 1 acordeom e 1 baixo acústico. Findado esse projeto parti para uma versão reduzida do grupo, sem as madeiras aos pares, exceto os saxofones, com apenas o violão como representante das cordas e com uma bateria no lugar das percussões.51 Para o gênero samba dividi em duas etapas: interpretação, confecção de um arranjo original. Em complementação, incluí uma terceira composição que, embora não utilize 50

Processo No. 12/21209-2. Há que se considerar aqui que a escolha de instrumentos característicos difere daqueles típicos, quer dizer, não se trata de instrumentos de origem brasileira (a exceção do cavaquinho), mas daqueles que foram representativos na construção dos gêneros musicais abordados. 51

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apenas o samba, foi escrita para a formação clássica de Big Band. As peças escolhidas foram: uma adaptação do arranjo original de Pixinguinha (Alfredo Rocha Vianna 18971973) para o clássico “Pelo Telefone”, de Donga (Ernesto Joaquim Maria dos Santos 18901974) e Mauro de Almeida (1882-1956), escrito para a coleção da gravadora Sinter na década de 1950; um arranjo original de “Feitiço da Vila” de Noel de Medeiros Rosa (19101937); e para Big Band, uma composição intitulada “Nenê”, em homenagem ao baterista Realcino Lima.52 No primeiro caso, uma das questões que permearam a pesquisa foi: como interpretar arranjos históricos sem, necessariamente realizar interpretações historicamente orientadas? Além disso, ao se tomar uma interpretação como base, como ela pode servir de base para as próximas etapas? De fato, embora a disposição lógica do trabalho se dê nessa direção há, muitas vezes, não uma reprodução das características dadas, mas processos de inovação e introdução de elementos às vezes estranhos ao gênero, entretanto, sempre tentando não descaracterizá-lo. Por fim, pretende-se descrever brevemente os ambientes através dos quais as músicas executadas pelo projeto circularam, quais foram os contextos sociais nos quais se desenrolaram as apresentações e qual os perfis dos músicos que se dispuseram a participar do projeto e do público que recepciona esse tipo de produção. Pequena análise e descrição musical das obras 3.1 Pelo Telefone (Donga e Mário de Almeida) A gravação de Pelo Telefone em 1917 se converteu, segundo ZAN (1997, 27) em um símbolo do nascimento do samba moderno. Ela trouxe o gênero do campo que da cultura popular para a cultura de massa segundo a clássica divisão da cultura em níveis que, em última análise, remonta a Mário de Andrade. O fato de ela trazer um advento tecnológico, não parece ser o mais relevante para SANDRONI (2003). É fato que muitos sambas carnavalescos, a partir de então, comentam fatos do cotidiano e as “novidades” do mundo moderno e industrial. Ainda assim, o samba contou com duas versões de letra: uma oficial, outra “oficiosa” que logo se fez conhecida também. Donga teria registrado a 52

Baterista que integrou o Quarteto Novo após a saída de Airto Moreira. Tocou com Hermeto Pascoal, Egberto Gismonti, Elis Regina e Milton Nascimento durante a década de 1970. Na década posterior iniciou carreira de compositor de música instrumental tendo lançado diversos álbuns solo e atuado em grupos como o grupo Pau Brasil.

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música em seu nome fazendo a inversão da letra, que seria de Mauro de Almeida e de mais outro coautor, Didi da Gracinda. Segundo ZAN (Idem, Ibidem), Didi seria o autor da primeira parte do samba. A alusão ao “telefone”, constante nas duas versões, refere-se a um incidente ocorrido no quadro da campanha contra o jogo na cidade (...). O texto, lido rapidamente, deixa no ar uma dúvida: o chefe da polícia ordenava a alguém que telefonasse ao delegado do distrito onde se fazia a jogatina, (...), ou será que sugeria que se telefonasse aos diretores dos clubes, para que estes “arrumassem a casa” antes da chegada das autoridades? Foi a última hipótese que caiu na boca do povo, visto que era notaria a complacência em relação ao jogo que, como foi dito, era praticado nos “clubes chiques”. O próprio telefone, em 1916, se não era mais uma novidade no Rio de Janeiro, era ainda algo “chique”, na medida em que só uma parcela ínfima da população tinha acesso a ele. (SANDRONI, 2003, 121)

A formação básica para esses arranjos é: flauta (em alguns casos flautim); clarinete; 2 trompetes; eufônio; tuba e seção rítmico-harmônica, formada por percussão, cavaquinho e violão. Como se sabe, não se escrevia para esses últimos instrumentos na época, ficando a cargo da oralidade a interpretação a partir de conhecimentos tácitos sobre os gêneros abordados característicos da música popular. Mas a edição (VIANNA, 2014) realizou, a partir da comparação dos instrumentos, uma parte de cifra para os instrumentos harmônicos e como guia para percussão. Para o Ensemble Brasileiro foi realizada a seguinte adaptação: flauta, clarinete 2º trompete idem ao original, 1º trompete executado pelo saxofone soprano com reforço de 8ª executado pelo saxofone tenor (os dois realizando a mesma partitura), eufônio executado pelo trombone e tuba pelo contrabaixo. Acordeom, violão e bateria seguem a guia de harmonia. Entretanto, a tonalidade aqui difere no fato de haver a participação vocal que conduziu a uma mudança na tonalidade original do arranjo (de Si bemol maior para Sol). O arranjo é tocado integralmente duas vezes e, pela sua estrutura calcada na repetição do refrão - característico do samba de roda - optou-se por, a cada uma delas, usar as diferentes versões da letra. O acompanhamento escrito aponta, basicamente, para o uso de duas figuras básicas que findam por corroborar com a ideia básica de SANDRONI de dois paradigmas básicos do samba: o do tresillo e do Estácio. Isso porque as figuras escritas, de certa formam, travam a seção rítmico-harmônica de realizar outras figuras e, nesse caso, os padrões de acompanhamento estão submetidos ao tresillo. Observe abaixo:

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Fig.1 “Pelo Telefone”. Fórmulas de acompanhamento e tresillo.

O fato de Pixinguinha, nessa formação, escrever o acompanhamento, como que dentro da tradição das bandas de coreto mencionando anteriormente, aponta para uma concordância com o estilo de samba que se propôs a arranjar. Ou seja, apesar do arranjo pertencer a uma época na qual o paradigma do Estácio já estava estabelecido, o arranjador, até por ser um membro daquilo que já se chamava por “velha guarda”, escreve o arranjo em estilo antigo, por assim dizer. A bateria, na gravação realizada, conduz a introdução com o estilo de samba de prato, mas a partir das entradas da voz enfatiza o tresillo através do chimbal; somente ao final (“...olha a rolinha”) é que se atenta ao estilo “samba batucado” que, a rigor, seria o estilo historicamente “correto” de se realizar o arranjo. 3.2 “Feitiço da Vila” (Noel Rosa) O arranjo aqui realizado para a formação proposta parte já da aceitação do paradigma do Estácio como dada. Embora o embate entre Noel e Wilson Batista tenha balizado parte da poiesis da canção, como aponta SANDRONI (2003, 169-170), do ponto de vista musical o paradigma ficou estabelecido, ainda que, no plano da letra, Noel se coloca em oposição à figura do malandro como figura de identidade do samba propondo, assim, um “feitiço decente”. O samba é aqui diretamente identificado a um feitiço. Esta palavra é usada no Brasil também para designar as oferendas deixadas nas encruzilhadas com finalidades mágicas, geralmente no quadro das religiões afro-brasileiras. (...) A alusão ao “nome de princesa” refere-se à princesa Isabel, (...), a qual assinou o decreto que extinguiu a escravidão no país em 1888. “Feitiço da Vila” postula

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ZAN (1997, 49) aponta como uma das causas das disputas as diferentes proveniências sócio-econômicas dos sambistas da Estácio em relação aos da Vila Isabel. Noel Rosa, saído do Bando de Tangarás, no qual também contava a figura de Braguinha e Almirante, é também apontado por ZAN como outro autor responsável pela depuração do samba moderno e, nesse sentido, apesar do conteúdo poético antagônico, o pesquisador aponta Sinhô e os compositores da Estácio de Sá como os mais importantes influenciadores de Noel (1997, 54). Sua atuação como espécie de agente mediador entre o cotidiano cruel dos morros e da malandragem e o mundo dos setores médios da sociedade carioca deu a sua obra um caráter que talvez fosse insuficiente defini-lo como híbrido. Parece mais correto dizer que Noel produziu uma nova síntese no samba articulando a uma só tempo a ideia de “autenticidade” e sofisticação. (ZAN, 1997, 55)

O arranjo proposto é instrumental e, do ponto de vista musical, procura distribuir os elementos da canção de modo a evitar repetições literais.

Introd.: Trompete e acordeom conduzem a melodia. 1º Chorus (Exposição) A: violão trombone (melodia) e tamborim; A’:melodia

em

bloco

(clarinete+alto+tenor+trombone)

x

contracanto

(trompete+flauta+acordeom); B: antecedente: trêmulo (Flauta+clarinete+acordeon) X melodia (tenor+trompete) e dobra de trombone+baixo; consequente: Bloco de madeiras com reforço do acordeom; 2º Chorus (Variação) A: segue o bloco com variação melódica, retirada da flauta e introdução do trombone e condução melódica através do saxofone alto com reforço de acordeão e alteração da fórmula do acompanhamento do violão; A’: modulação ½ tom acima (de Re para Mi bemol maior); contraponto entre flauta e trompete com surdina; o acompanhamento rítmico passa a ser realizado pelo acordeom e violão realiza figura conjunta com o contrabaixo; 109

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B: antecedente: melodia conduzida em uníssonos e oitavas com harmonizações nas resoluções; pedal agudo em oitavas entre flauta e trompete; levada de partido alto enfatizando pedal na nota dominante; consequente: variação melódica em tutti ou, no jargão das Big Bands, um shout. Reexposição A: última aparição melódica realizada através do trompete com contracanto de saxofone tenor (mesmo de A’). Coda: repetição da frase consequente em bloco de madeiras com acompanhamento em levada de partido alto polarizando o pedal na tônica (Mi bemol); os três últimos compassos fazem a última menção melódica sob as harmonias da subdominante e subdominante menor e acorde final (Eb add.9).

Grosso modo, os arranjos realizados por Pixinguinha no box citado apresentam repetições através dos ritornelos. A observação e análise de arranjos para Big Band encontrados em obras como as de STURM (1994) e WRIGTH (1982) apontam para o fato de, no gênero jazzístico, o arranjador evitar repetições literais. Entretanto, nesse arranjo, as características brasileiras rítmicas e, em parte harmônicas, foram preservadas no sentido de se buscar uma não descaracterização do arranjo. No que tange a harmonia, ressalto a opção por extensões “brandas” como a 6ª maior no lugar da 7ª maior para acordes de I e IV grau na tentativa de não descaracterizar o gênero. 3.3 “Nenê” (Paulo Tiné) Nessa composição, além do samba, há a utilização de outros ritmos afro-brasileiros como o “ijexá”53, e o maracatú, além de trechos mais expressivos sem o uso de ritmos característicos. A relação entre a estrutura formal e as regiões tonais da peça “Nenê” se dá seguinte maneira:

“Termo que designa uma nação nagô e também um toque afro-bântico [sic.] de grande influência na formação dos candomblés baianos”. ANDRADE, 1989, 262. 53

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A

A’

B

C

C’ A” (impro Trb.) A3 (Impro Sax) -

shout Dó Maior Mib M. Dó M. Si menor.... B”

A4

C”

Fá M.

Dó M

Coda

Mib M. Dó M. Lá m. Dó M. Quadro 1: Nenê – estrutura do arranjo.

Basicamente a peça está estruturada na forma rondó, o que remete a uma relação de afinidade com o choro, mas com variações realizadas a cada repetição de A. De uma maneira geral não há o uso de blocos aplicados à melodia. Entretanto, há o uso do chamado comping em instrumentos de sopro, fato que remete à mencionada relação da Big Band com a Banda tradicional, algo semelhante ao que ocorreu nos arranjos de Pixinguinha no box citado. Observe o trecho abaixo, a melodia está sendo realizada na região grave pelo contrabaixo e trombone 3 e 4.

Fig.2 Nenê: acompanhamento de madeiras

A melodia da seção B está baseada em arpejos de acordes quartais (por sobreposição de intervalos de quarta) e notas repetidas. Por isso foram aplicadas a instrumentos de embocadura livre como os trompetes, trombones e flauta, os quais realizam tal articulação com mais naturalidade. O trecho abaixo corresponde aos compassos 12-14 e ao solo de 1º trompete acompanhado pelo naipe de trombone. Nesse trecho a seção rítmico-harmônica realiza em convenção os mesmos acordes:

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Fig.3 Nenê: início de B

A seção C é caracterizada por um relaxamento da intensidade rítmica que caracterizava a peça até então. A melodia se torna menos movimentada e em C’ e há a introdução do intervalo de 6ª abaixo agregado à melodia e de um contracanto aos trombones em 3ª. O final dessa seção realiza uma modulação para a 1ª seção de improvisação, executada pelo 2º trombone sobre a harmonia da seção A”, transposta uma 4ª acima da tonalidade original. A 2ª improvisação retorna à primeira região tonal. Apesar de esta ser a região da tonalidade de Dó Maior, esse acorde não ocorre em posição fundamental (sem inversão), deixando a resolução em suspenso. Observe a sequência de acordes que compõem tal seção:

//: Gsus7(9) /

C7M/G / D/G / G7(11+) / Gsus7(9) / C7M/G / D/G /

Gm7 /

Gb7(11+) / F7M / B7(alt) / Em7 / A7(11+) / Ab7M / % / Am7 / Ab7(11+) :// Quadro 2: Nenê – harmonia de A.

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Sobre essa harmonia, na segunda repetição, se dá o pano de fundo no etilo do shout no naipe de metais. Esse se dá pela sobreposição das técnicas das tríades na camada superior no naipe de trompetes, estando o 4º trompete oitava abaixo do primeiro, e clusters e 4way-close no naipe de trombones, estando o 1º trombone realizando a melodia, juntamente com os trompetes 1 e 4.

Fig.4 Nenê: shout no naipe de metais.

Após o final do solo de saxofone alto, acontece o retorno direto para a seção B”. A última seção A4 se dá de maneira variada e o último C” ocorre um tom abaixo dos primeiros e, além disso, com outro contracanto. Por fim, a Coda, realiza duas vezes o refrão melódico de A, executados pelo 1º trombone e contrabaixo com outra harmonização para realizar a cadência -II7M(4+) / I7M(4+) com um último arpejo se remetendo à melodia “quartal” da seção B, finalizando em tutti.

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Fig.5 Nenê: Finale em Tutti.

Os pontos nos quais especificamente o samba é efetivamente executado são nas frases consequentes de A, tanto nas seções de exposição quanto nas de improvisação. Nesses pontos o estilo de samba executado pela bateria foi o de samba de prato, estilo que, como demonstrou BARSALINI (2014), tornou-se célebre através do baterista Edson dos Santos Machado (1934-1990), em contraposição ao samba batucado de Luciano Perrone (1908-2001).

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Considerações extramusicais Farei aqui algumas breves considerações sobre os contextos nos quais as apresentações do grupo se desenrolaram durante o projeto e também um breve perfil sobre os músicos que dele participaram54. No período de agosto de 2014 até agora foram realizadas, além das gravações das peças de referências, seis apresentações, três delas no espaço Central das Artes, que se localiza no bairro das Perdizes em São Paulo, e cinco delas ligadas ao Movimento Elefantes, o qual comentarei a seguir. O Movimento Elefantes é um coletivo de bandas de sopro, muito embora, nesse contexto social não haja um rigor em relação à denominação. Se, do ponto de vista musicológico, se pode objetar da expressão, pois “banda” deveria se referir ao universo das bandas militares ou civis que envolvem os naipes de madeira, metal e percussão, há nesse terreno cultural uma acepção mais genérica de banda devido à influência da expressão Big Band no contexto cultural urbano. Supõe-se que essa expressão (Big Band) seja mais recente, advinda possivelmente da década de 1970, a qual teve os primeiros músicos advindos da Berklee School of Music, famosa faculdade em Boston-USA. No Brasil, até então, a expressão utilizada para essa formação era simplesmente “orquestra”, como se pode verificar a partir da antológica e importante “Orquestra Tabajara” que, além de ter abrigado artistas como Moacir Santos, K-Ximbinho, Jackson do Pandeiro e o próprio Hemeto Pascoal55, se tratava de uma formação clássica de Big Band (5 saxofones, 4 trompetes, 4 trombones e seção rítmico/harmônica – guitarra, piano, baixo e bateria). Nesse sentido, o Movimento Elefantes é um coletivo de Big Bands paulistas que abriga também os chamados Combos, formações menores que envolvem saxofones, metais e as chamadas cozinhas (seções rítmico-harmônicas). Além de ocupar espaços culturais urbanos com apresentações musicais, também realizou um DVD em 2009 e um CD em 2010, cujas cópias eram distribuídas ao final das apresentações e se sugeria que as pessoas copiassem e passassem adiante sobre o título de “DVDê” e “CDê”. Destaco algumas dos principais grupos que passaram e outros que ainda permanece no movimento: Sound Scape; Reteté; Jazzco; Projeto Coisa Fina; Projeto Meretrio; Speaking Jazz; Comboio; Banda Savana, Banda Urbana, Heartbreakers, entre outras. Algumas delas de relativa 54

Pode-se objetar a respeito da peça Nenê ter sido realizada noutro projeto de pesquisa. Entretanto, o contexto de difusão foi exatamente o mesmo das peças anteriores. 55 Ver MOURA, Fernando & VICENTE, Antônio. Jackson do Pandeiro: o rei do ritmo. São Paulo: Ed. 34, 2001.

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relevância no meio musical paulistano, outras menos. No meu caso estive ligado ao movimento primeiramente através da Big Band da Santa, ligada à Faculdade Santa Marcelina e, em um segundo momento, através do mencionado Ensemble Brasileiro. Ressalta-se também o fato do movimento ter ganhou um prêmio de economia criativa através da iniciativa do “pague quanto vale”, durante o período em que atuou no Teatro da Vila (2011-2014), localizado no bairro da Vila Madalena, onde o público poderia pagar o quanto quisesse ou até não pagar. Outra premiação obtida foi o prêmio FUNARTE 2012, através do coletivo TDV (Teatro da Vila), que contava com outros coletivos além dos Elefantes ligados à roda de samba; violões e atrações circenses. Os membros do grupo são, na maioria, músicos profissionais: dos dez integrantes (eu excluso), apenas dois possuem curso superior incompleto, sete possuem curso superior completo e um é mestre em artes. Ressalta-se que todos os cursos mencionados são em música, ainda que possa variar entre as modalidades de composição, licenciatura e instrumento. Além disso, a exceção do mencionado mestre, todos, em algum momento, foram meus alunos e todos passaram pelas experiências das Big Bands “acadêmicas” que coordenei antes de montar o Ensemble.56 Em relação ao público que frequentou as apresentações citadas ele é, na maioria, composto por aficionados em música instrumental e, muitas vezes músicos membros de outras bandas do coletivo. De uma forma geral há um intercâmbio muito intenso entre as bandas e, além disso, muitos parentes e amigos dos músicos costumam frequentas os shows. Alguns espaços proporcionaram um aumento nesse espectro quase comunitário do público como a apresentação no Centro Cultural Banco do Brasil, no Largo da Batata e, principalmente aquele realizado no Centro de Convenções Rebouças, pois se tratou de um evento de premiação para RH de empresas paulistanas. Claro está que o repertório não foi constituído apenas das peças em questão, mas também de outras dentro dos gêneros populares instrumentais da música brasileira57. Nesse sentido, em locais mais voltados para o público geral, houve uma maior apreciação das músicas mais consagradas em detrimentos às autorais, que possuem seções de improvisação ou especulações musicais 56

Por acadêmicas, nesse contexto, entendo grupos institucionais ligados a escolas e faculdades de música onde lecionei como a FAAM (Faculdades Alcântara Machado, ligada à antiga FMU), FASM (Faculdade de Artes Santa Marcelina) e EMESP (Escola de Música do Estado de São Paulo), anteriores à minha entrada na UNICAMP. 57 Apresentei a comunicação “Processos Criativos em Arranjos e Composições para Jazz Band/Orquestra Típica.” no XII congresso da IASPM-AL em Havana, Cuba. Nessa comunicação foi abordado o gênero Choro presente UFRJ

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nos arranjos. Também ressalto o fato de, devido às intervenções vocais na apresentação, com músicas com letras (Pelo Telefone, por exemplo), aproximou o público leigo, mas, por outro lado, afasta o “especialista”. Entretanto o samba, em todos os ambientes é bem recebido, seja como uma manifestação já estabelecida (público leigo), seja como um dado de afirmação de identidade cultural (público especialista). Referências ANDRADE, Mário. Dicionário Musical Brasileiro. Coordenação: Oneyda Alvarenga, 1982-84, Flávia Camargo Toni, 1984-89. – Belo Horizonte: Itatiaia, [Brasília-DF]; Ministério da Cultura; São Paulo: Instituto dos Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1989. CHADA, Sonia. O uso de fontes audiovisuais na Etnomusicologia: dois relatos de pesquisa. Anais do 2º Encontro Regional Norte de História da Mídia. Disponível em http://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:zb8eCihH7AAJ:www.ufrgs.br/alc ar/encontros-nacionais-1/encontros-regionais/norte/2o-encontro-2012/artigos/o-uso-defontes-audiovisuais-na-etnomusicologia-dois-relatos-depesquisa/at_download/file+&cd=4&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br. Acesso em 16/05/2016. BARSALINI, Leandro. Estilos de Samba na Bateria. Tese de doutorado. Campinas, UNICAMP, 2014. SANDRONI, Carlos. Feitiço Decente: transformações do samba no Rio de Janeiro, 1917/1933. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.: Ed. UFRJ, 2001. SZENDY, Peter. Listen: A History of Ours Ears. Trad. Charlotte Mandell. EBOOK: Fordham University Press, 2008. SOARES, Astréia. Outras Conversas Sobre os Jeitos do Brasil: o nacionalismo na música popular. São Paulo: Annablume Fumec, 2002. STURM, Fred. Changes Over Time: The Evolution of Jazz Arranging. Advance Music, 1996. ZAN, José Roberto. Do Fundo de Quinta à Vanguarda: contribuições para uma História Social da Música Popular Brasileira. Tese de Doutorado. Campinas: UNICAMP, 1996. WRIGHT, Rayburn. Inside Score. New York: Kendor Mucis Inc., 1982. - Partitura publicada VIANNA, Alfredo Rocha. O Carnaval de Pixinguinha. São Paulo: IMS/SESC/Imprensa Oficial-SP, 2014. Partitura. Org. Bia Paes Leme, Marcílio Lopes e Paulo Aragão. - Áudio Pelo Telefone. Alfredo Rocha Vianna (Pixinguinha). Disponível http://ims.com.br/ims/explore/artista/pixinguinha/audios Acesso em 20/05/2016.

em:

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Ouvir-Dançar-Escrever: a “dança” [raqṣ]58 como “audição” [samâ’]59 na cosmopoesia de Rumi [primeiro diálogo com Leandra Yunis]

Giselle Guilhon Antunes Camargo* Universidade Federal do Pará

Vem, entra na alma da alma da alma do samâ’ Vem, para teu cipreste interior no jardim do samâ’ 60 Vem, vem, tu que és a alma da alma da alma do giro! Vem, cipreste mais alto do jardim florido do giro. 61

Prelúdio: dança, poesia e experiência mística Em meados de 2013, ao nascer do Sol, em Santa Maria de Belém do Grão Pará, escrevi um e-mail ao professor Faustino Teixeira, do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião, da Universidade Federal de Juiz de Fora, Minas Gerais, manifestando meu desejo de realizar, em 2014, uma pesquisa de pós-doutorado no PPCIR, sob sua supervisão. A ideia era investigar a natureza da experiência mística compartilhada entre * Doutora em Artes Cênicas (UFBA/2006). Pós-Doutora em Antropologia Social (UFSC/2007). Professora da Universidade Federal do Pará, atuando no Curso de Licenciatura em Dança e no Programa de PósGraduação em Artes (PPGArtes) da UFPA. Coordena o Grupo e Projeto de Pesquisa CIRANDA – Círculo Antropológico da Dança e o Projeto de Pesquisa Etnografando Etnografias: mapeamento das pesquisas em Antropologia da Dança realizadas no Brasil entre 1988 e 2018, com ênfase na produção da/na Amazônia. Autora dos livros Sama: etnografia de uma dança sufi (2002), Mukabele: ritual dervixe (2010) e Rumi e Shams (notas biográficas) (2015). Organizadora da coleção Antropologia da Dança I (2013), II (2015), III (2015) e IV (2016). 58 Raqṣ: Termo genérico utilizado pelos árabes para designar a forma expressiva que corresponde ao que denominamos “dança”, no Ocidente. A raiz triliteral rqs ou rqd, encontra-se em outras línguas semíticas. 59 Samâ’: O termo é um masdar (nome verbal) do tipo sam’ e sim’, proveniente da raiz árabe s.m.’, que significa ouvir, fazer ouvir, palavra ouvida, rememoração, ato de escutar um som produzido por um instrumento musical ou por outro objeto qualquer. Metaforicamente, o termo significa música, dança, canção, melodia, estado (hâl), êxtase (wajd), reunião íntima, rememoração. Em persa, para distinguir o ato de ouvir e de escutar daquele de ouvir uma canção, utiliza-se a forma samâ’ [audição] para o primeiro e sima’ [escuta] para o segundo. (Cf. YAZICI, 2004 [2003; 1964]) No limite, “o samâ’ [audição] pode ser definido como dança (raqṣ), uma vez que provoca o movimento do corpo através do wajd (êxtase)” (GHAZÂLÎ (10581111) apud YAZICI, 2004 [2003; 1964], p. 8-9) 60 Extrato do Gazal 1295, n. 1, do Dīvān-e Shams-e Tabrīzī, de Rumi, contido no Kulliāt-i Shams yā Dīwān-i Kabīr, da edição crítica em persa de Badî‘ Al-Zamân Furûzanfar. Teheran: Amir Kabîr, 1957. [Tradução: Leandra YUNIS, 2016. [Tese de Doutorado (em andamento) em Estudos Árabes (USP) submetida à Qualificação] 61 Ibidem. [Tradução: José Jorge de CARVALHO. Poemas Místicos – Divan de Shams de Tabriz. São Paulo: Attar Editorial, 1996, p. 146.]

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Rumi (1207-1273) e Shams (1185-1248), esses dois “oceanos” da mística islâmica, que se inspiraram mutuamente, inundando o ambiente sufi de sua época com dança, música e poesia. O projeto que encaminhei efetivamente ao PPCIR, “Buscadores do Mistério: amor, poesia e experiência mística entre Rumi e Shams”, alterado depois para “Rumi e Shams: dança, poesia e experiência mística no Sufismo do século XIII”, resultou em uma minibiografia – entremeada com citações e poesias de Rumi e Shams, retraduzidas a partir de traduções do persa ao francês e ao inglês –, publicada pela Fonte Editorial, de São Paulo, em 2015, sob o título Rumi e Shams (notas biográficas). Faustino me sugeriu, à época, que eu concluísse o pós-doutoramento com essa publicação, mas eu não estava, ainda, satisfeita, de modo que lhe pedi que adiássemos um pouco a conclusão – até que eu escrevesse (e publicasse) pelo menos mais um artigo. O ano de 2015 transcorreu sem que eu tivesse qualquer inspiração que me mobilizasse a retomar o tema. Somente em 2016, quando recebi o convite para participar, na USP, da banca de qualificação (Doutorado em Estudos Árabes) de Leandra Elena Yunis, voltei a me reconectar com o universo de minha pesquisa. O presente texto tem por intenção revelar a trama desse primeiro diálogo. O segundo será tecido em 2017, após a defesa da tese de Leandra. Audição 1: da dança ao movimento anímico-intelectivo à poesia que dança A tese de doutorado, intitulada A dança no gazal de Rumi: por uma samatradução, da historiadora, dançarina e tradutora Leandra Elena Yunis, submetida, parcialmente (capítulos I, III, IV e VI), para fins de Qualificação, à minha apreciação, foi desenvolvida no Programa de Pós-graduação em Estudos Árabes e Judaicos, do Departamento de Letras Orientais da Universidade de São Paulo. Tecida na fronteira transdisciplinar da Dança com a História e a Literatura, propõe-se a investigar a noção de dança na poesia do místico persa Jalaluddin Rumi (1207-1273), traduzida diretamente do farsi ao português, contextualizando-a no ambiente místico, filosófico e teológico do Islã medieval. Nas leituras preliminares dos poemas de Rumi, sobretudo nas traduções inglesas (NICHOLSON, 1940; ARBERRY, 1968, 1961; BARKS, 1995; LEWIS, 2008a)

e

francesas (MEYEROVITCH e MOKRIM 1973), Yunis identificou certas “incongruências” nas traduções dos termos samâ’ [audição] e raqṣ [dança]. Do seu ponto de vista, a utilização imprecisa dessas categorias complicou o entendimento da noção de dança na 119

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poesia de Rumi, fora de seu contexto, “interferindo na interpretação histórica da posição teologal de Rumi a respeito da audição [samâ’] sufi e da dança [raqṣ] devocional”. Assim sendo, optou por apresentar, na tese, apenas traduções diretas. O árduo e, ao mesmo tempo, delicado trabalho de seleção e tradução resultou na reunião de 15 poemas líricos (rubais e gazais) e 70 dísticos do Masnavi, com versos que se referem à audição [samâ’] e à dança [raqṣ] – e ao movimento espiritual. Tais poemas e dísticos foram vertidos das principais obras de Rumi: 1) Dīvān-e Shams-e Tabrīzī, contido no Dīvān-e Kābir, a partir da edição crítica em persa de Badi Alzaman Foruzanfar; e 2) Masnawī-ye ma‘nawī, da versão bilíngue de Reynold Alleyne Nicholson, cotejada com as correções e ampliações de Arthur Arberry e, em alguns casos, com as traduções de Franklin Lewis, Afzal Iqbal, Annemarie Schimmel, Coleman Barks e Eva de VitrayMeyerovich & Mohammed Mokri. Em sua pesquisa anterior, intitulada Êxtase, poesia e dança em Rumi e Hafiz, desenvolvida em nível de mestrado, Leandra Yunis interpretou a imagem da dança em Rumi [e também em Hafiz] à luz da teoria da metáfora viva [e metafísica] de Paul Ricouer, considerando-a, ainda, por ser movimento, um estímulo extático relevante para a performance do Samâ’ [audição musical acompanhada de giros, característica da Ordem Mevlevi]. Nesse primeiro estudo, Yunis constatou que “a metáfora da dança leva o ouvinte a sentir o movimento que, sendo imaginado, estimula o córtex motor através do córtex prémotor, induzindo o corpo a respostas motoras e reações fisiológicas concretas”. Essas reações participariam, segundo a pesquisadora, da formulação do sentido não verbal do discurso poético, conforme a teoria cognitiva da metaforização corporal, podendo ser explicado, para fins de compreensão da imagem da dança na poesia de Rumi, nos seguintes termos: A metáfora da dança, referindo-se ao movimento corporal e ao movimento metafórico em si, teria uma metaforicidade ambivalente e funcionaria como metáfora metafísica que se estabelece pela interface dialógica entre discursos filosóficos e religiosos de âmbito comum, conforme pudemos atestar entre a tradição avéstica e a islâmica [referindo-se à pesquisa de mestrado] e, na presente pesquisa [referindo-se à pesquisa de doutorado], com as tradições judaicocristã e, hipoteticamente, o budismo afegão. (YUNIS, 2016)

A pesquisa sofreu, entretanto, um redirecionamento importante no que diz respeito ao “tratamento” da imagem da dança [metáfora da dança] em Rumi: antes [no mestrado], 120

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Yunis estava considerando a dança em seu aspecto cinético [movimento] e extracinético [significação cultural]; agora [no doutorado] passou a adotar o binômio aristotélico kínesis (κίνησις) [comportamento coreográfico e/ou extático que se exprime exteriormente (ẓāhir)] e metabolé (μεταβολή) [movimento anímico-intelectivo que se dá no trânsito de um a outro estado (hāl) ou estação (maqām) no interior (bāṭin) do místico]. Esse segundo binômio revelou-se bem mais eficaz do que o primeiro para a compreensão do modelo cosmológico que inspira, orienta e habita as imagens dançantes da poesia de Rumi. E é justamente nessa matéria – da indicação e descrição de modelos cosmológicos e/ou hermenêuticas espirituais operantes no imaginário de Rumi – que minhas hipóteses se diferenciam, em alguns pontos, das de Yunis. Mas antes de confrontarmos essas hipóteses, a fim de que possamos melhor compreender o sentido da dança [raqṣ], da audição [samâ’] e do movimento anímico-intelectivo [metábole] na poesia de Rumi, a partir das traduções de Leandra Yunis, sugiro que levantemos algumas questões. Audição 2: metáfora da metáfora da metáfora da metáfora Qual a especificidade da percepção de Rumi acerca da dança [imagem percebida]? Como e em que medida essa percepção orienta sua criação poética [imagem criada ou imaginada]? Em que consiste a singularidade desse approach, que explique seu interesse privilegiado pela dança? De que modo ele opera a transmutação da percepção imagética da dança [forma expressiva cinestésica de uma corporeidade dançante] em imagem [poética] dançante? Ou, noutros termos, como se efetua a conversão da dança [imagem percebida, aparentemente estável e puramente espacial] em imagem dançante [imagem criada ou imaginada, temporalizada e fugaz], e desta em imagem poética dançante [poesia que dança]? Como se dá o processo de criação [imaginação criativa ou imageante] dessas imagens dançantes em Rumi? Que elementos do imaginário islâmico medieval e, mais especificamente, do Sufismo persa, veem-se refletidos nas imagens poéticas dançantes de Rumi? É o próprio Rumi quem metaforiza [poeticamente] a imaginação (ẖayāl), que cria, por sua vez, as imagens dançantes que metaforizam [poeticamente] a dança, incitando e exaltando a ação de imaginar e dançar: “No altar do coração tem dias que a imaginação dança” (Rubai 717, Tradução I, n. 1) ou “A imaginação dança, em oração avança” (Rubai 121

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717, Tradução II, n. 1) ou “Dançando imagens o coração acorda” (Rubai 717, Tradução III, n. 1) ou, ainda, “Rezando, às vezes, a mente dança” (Rubai 717, Samatradução, n. 1) // “No véu do coração imagino tua dança” (Rubai 1342, Tradução I, n. 2) ou “Imagino-te dançar sob o véu do coração, [no tom do coração]” (Rubai 1342, Tradução II, n. 2) ou, ainda, “Em meu coração te imagino dançar” (Rubai 1342, Samatradução, n. 2). (Traduções e Samatraduções: YUNIS, 2016) Em sua análise do Rubai 1342 (Tradução II, n. 2), no que tange ao entendimento da categoria imaginação, Yunis interpreta a imaginação (ẖayāl) que dança ao tom do coração (qalb) – “Imagino-te dançar sob o véu do coração, [no tom do coração]” – como “vibração” das verdades a serem desvendadas, provenientes da criação divina. Essa ressonância [relação de correspondência com a divindade] se dá através da dança. Depois conclui: “É na imaginação que reside a relação íntima e impenetrável entre criatura e Criador, pela dança interior que conecta a palavra [formas inteligíveis de canções e versos] ao indizível [mundo intangível dos tons do coração], não em termos de cínese, mas de metábole, pela transmutação dos estados anímicos e intelectivos. ” (Ver YUNIS, 2016) Faz-se necessária uma rápida, porém essencial, intelecção aqui: não é exatamente na imaginação que reside a relação entre criatura e Criador, em Rumi, mas “sob o véu do coração”, no “véu do coração”, na “casa do coração”, na “tábua do coração”, no “altar do coração” – metáforas que Rumi utiliza para se referir ao coração sutil (qalb) [órgão da percepção suprassensível] – onde “imagino-te dançar”. Não é, portanto, a imaginação que me faz “imaginar-te dançar sob o véu do coração”, mas a “escuta [samâ’] do coração”, o “tom do coração”. São eles que me fazem, ao inverso, imaginar, criativamente, a dança que tu danças no coração. Faz, então, sentido afirmar que “A imaginação que dança ao tom do coração é a criação divina que vibra ali”. Ao usar as metáforas “alma que borda”, “nota que colore”, “pena que corre [risca] e tinta [pinta]”, “tom do coração”, “tonalidades que tocam [marcam] o coração”, Rumi não está sendo, ainda que pareça contraditório, metafórico, mas literal. Chamou-me a atenção um brevíssimo comentário feito pela autora em sua Revisão Bibliográfica, inserida no Capítulo I, intitulado “Introdução”, acerca da dicotomia símbolo/referencial, em Rumi: Afzal Iqbal, o primeiro autor a sistematizar uma biografia crítica de Rumi em língua inglesa, destaca que a dança, os músicos e as referências ao ritual são concretos em Rumi, como corroboram Franklin Lewis e William Chittick, não

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/ Belém – 2016 Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares. obstante outros tradutores e estudiosos biográficos, como Annemarie Schimmel e Eva de Vitray-Meyerovitch, enfatizarem o seu valor simbólico. Em nossa investigação literária e histórica verificamos que a rede metafórica da dança ultrapassa a dicotomia símbolo-referencial e aponta para uma dimensão até agora pouco explorada. (YUNIS, 2016) [negritos meus]

Analogamente, para que possamos compreender tal literalidade, no que tange às tonalidades que tocam, marcam, riscam, colorem e iluminam o coração sutil (qalb), nos poemas dançantes de Rumi, precisamos travar contato com a hermenêutica espiritual que alimentou, à época – esta tem sido minha insistente hipótese –, a imaginação criativa do poeta. Trata-se da fisiologia dos órgãos sutis da percepção [“fisiologia do homem de luz”] e da doutrina dos fotismos luminosos, descritas no Tafsir (literalmente, “exegese”), de Najmuddin Razi (?-1256), contemporâneo de Rumi, discípulo direto de Najmuddin Kubra (1145-1221), eminente mestre sufi da Ásia Central, que fora mestre de Bahauddin Walad, pai de Rumi e mestre de Baba Kemal que, por sua vez, fora mestre de Shamsuddin de Tabriz, principal mestre de Rumi. Sua obra ficou inacabada e foi continuada por Alaoddawleh Semnani (1261-1336), Sheikh pertencente a uma nobre família de Semnan, cidade situada a uns 200 km a leste de Teheran. Partindo do pressuposto de que as partes que constituem o ser humano são fragmentos de suas homólogas cósmicas, Kubra recorreu à imagem de sua predileção, a pedra preciosa, para formular uma hermenêutica espiritual (fisiologia dos órgãos sutis da percepção), na qual a “pedra” – metáfora para cada órgão ou centro sutil (latifa) – está associada a uma metafísica da luz que se reflete no Infinito: Cada pedra preciosa (ou seja, cada um dos elementos do homem de luz) que está em ti, provoca em ti um estado místico ou uma visualização no Céu que lhe corresponde [...]. [...] Cada vez que ascende de ti uma luz, desce em direção a ti uma luz, e cada vez que teus raios de luz ascendem, descem, igualmente, em tua direção, raios de luz que lhes correspondem. [...] Se essas energias tiverem a mesma qualidade, encontrar-se-ão a meio-caminho (entre o Céu e a Terra). Mas quando a substância de luz que habita em ti, crescer será ela o Todo, em relação à sua homogênea, no Céu. Então será a substância de luz, no Céu, que suspirará por ti, pois será a tua substância que lhe exercerá atração e ela descerá em tua direção. Esse é o segredo do caminho místico. (KUBRA apud CORBIN, 1971, p. 84 apud CAMARGO, 2010, p. 148-149) [Tradução: Giselle Guilhon]

Audição 3: liberando a energia espiritual Sobre o processo de criação poética na mística, Yunis (2016) destaca os estudos mais recentes de Leonard Lewisohn (1997, 2014) e Patrick Laude (2005), baseados na premissa lançada por Seyed Hossein Nasr de que “a ciência poética no islã medieval 123

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funcionaria como um modus operandi da natureza e consistiria na perfeita receptividade das ressonâncias anímicas e espirituais da mensagem divina através do âmbito corpóreo” (NASR apud LAUDE, 2005, p. 51 apud YUNIS, 2016): Segundo o preceito, a escrita [poesia] e a expressão corporal [dança], ao serem regidas ambas pelos mesmos princípios cósmicos, se concretizariam como signos, representações microcósmicas e arquetípicas sob as quais a realidade sutil e a verdade inefável se ocultam, abrindo a fresta para a dimensão interior e inconsútil. (Ver ADONIS, 2008, p. 202 apud YUNIS, 2016)

Mais adiante, Yunis (2016) reforça a premissa de que não há cisão entre o ‘eu’ e a natureza no pensamento islâmico medieval. Do mesmo modo, eu diria, que não há cisão entre os átomos e o Cosmos, que podem ser vistos, respectivamente, como metáforas do ‘eu interior’ e da Natureza. Do infinitamente pequeno ao infinitamente grande – átomos, corpos, planetas, sóis, galáxias –, tudo está em correspondência e harmonia cósmica, na poesia de Rumi. O que está em cima e o que está embaixo. O que está dentro e o que está fora. Olhemos (e escutemos) esse espelhamento nos extratos samatranscritos por Leandra Yunis (2016): “O Amor Divino, dançarino se faz nas alturas; / tal como o disco, de cheio em minguante, da lua.” (Masnavi I, 1346) // “Por que danço sob o Sol? Todo átomo dança memorável” (Gazal 621, 1) // “Os átomos dançam / Por Ele as esferas e o céu dançam” (Rubai 515, 1) // “Sol, lua, estrelas dançam em rotações, / e nós, no eixo dançante” (Gazal 196, 2) // “Os corpos dançam e as almas, mais ainda. / A Alma gira nelas; elas em si, mais ainda” (Masnavi I, 1347) // “Uma alma como cem universos dança” (Rubai 717, Tradução I, 1). Assim sendo, citando uma vez mais Patrick Laude, reitera Yunis: “o corpo reflete de forma direta e espontânea a beleza divina atribuída a toda criação, diferente[mente] da alma que, em sua múltipla interface de função mediadora, pode obliterar-se na matéria” (LAUDE, 2005, p. 52-57 apud YUNIS, 2016) Em consonância com esse princípio medieval da correspondência harmônica entre natureza e linguagem [dança, música, poesia...], Yunis conclui que “a dança pode ser considerada um mecanismo especial de inspiração poética, já que a função cósmica do corpo é justamente refletir os movimentos da alma” que, por sua vez, acrescentemos, refletem os movimentos cósmicos: “A alma não é oculta ao corpo ou o corpo à alma” (Masnavi I, 8) // “Do palmeado das folhas não tens noção / pois o corpo não tem a escuta do coração” (Masnavi III, 100) “Dança ali, onde teu eu se rompe” (Masnavi III, 95).

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/ Belém – 2016 Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares. 3252 Luz do espírito o miolo, a casca esfera celeste. Uma se faz visível; o outro enigma veste. 3253 O corpo é manifesto; o espírito, encoberto: o corpo tal manga, o espírito, mão decerto. 3254 Mais que o espírito, o intelecto é encoberto. Mas a percepção dá passo ao espírito, mais perto. 3255 Sabes pelo movimento que ali há vida. Não sabes que é de intelecto preenchida. 3256 A cabeça é que regula o movimento, faz do cobre ouro, no ato do conhecimento. 3257 Com a habilidade em tuas mãos compreendes o intelecto em ação.

(RUMI, Masnavi: 3252-3257. Samatradução: Leandra YUNIS)

Yunis (2016) afirma ter selecionado esse trecho do Masnavi, [que inclui mais alguns dísticos que não transcrevi aqui], porque, de seu ponto de vista, ele sintetiza a noção de gnose mística do autor, ao mesmo tempo em que revela sua cosmovisão de corpo, alma, espírito, intelecto, intelecto universal e espírito divino, orientando-se hierarquicamente no sentido exterior-interior, sendo o íntimo do coração o lócus do encontro (wujūd) [wajd] com as realidades espirituais superiores. Segundo sua compreensão, tal sistema diverge relativamente daquele desenhado por Al-GHAZÂLÎ (1058-1111) – corpo, alma, intelecto, espírito e éter – “de onde Rumi, provavelmente, teria absorvido certa influência aviceniana e diverge, sobretudo e de modo mais surpreendente, das noções apresentadas pelos demais mestres sufis que atribuem à alma uma conotação sempre [nem sempre] negativa, associada aos impulsos negativos e aos defeitos morais”. Encontra mais similaridade entre a cosmovisão de Rumi e a Teologia de Aristóteles, com o que considera “uma sutil variação” da noção de alma: [...] se na teoria plotiniana a alma é ambivalente, simultaneamente múltipla e una, receptiva e sujeita à decadência [frente aos] estímulos da matéria e[,] ao mesmo tempo[,] capaz de conhecer e de elevar-se num movimento similar ao do ato intelectivo, em Rumi a alma está ligada de forma positiva à imaginação e sua gnose ocorre em associação ao espírito e não ao intelecto.

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/ Belém – 2016 Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares. O intelecto parcial ou individual deriva, por sua vez, do Intelecto Universal de modo similar ao que vemos na obra plotiniana; porém, Rumi parece compreendê-lo no sentido de uma faculdade instrumental, desiderativa e estimativa, tal como as que Avicena atribui também aos animais. Não obstante, espírito (rūḥ) em Rumi apresenta as mesmas características da dimensão una e intelectiva da alma plotiniana e, por vezes, seu sentido é intercambiável com o de alma. Trata-se, a nosso ver, de uma síntese entre as noções teologais neoplatônica e gazaliana, construída em parte a partir da assimilação semântica do falso cognato do termo persa jān [alma, espírito] com o termo árabe unificação (jamᶜ), o que permitiu a retomada do traço conceitual grego. Assim, o espírito [rūḥ] seria a alma em sua dimensão unitiva, espiritual e superior, enquanto a alma [naf] representaria a pulsão anímica inferior e múltipla. A diferença entre Rumi e os demais autores místicos é que ele não distingue o termo nafs, arabizado do grego nous (νους), do termo persa jān, de modo que para o poeta a alma [naf], em sua dimensão espiritual ou mundana é uma e única dimensão e não têm a conotação negativa dos textos islâmicos. (YUNIS, 2016)

Mais adiante, na mesma sessão dos Comentários, Yunis introduz uma citação de Makki (?-996), citado por Hujwiri (990-1077), que se aproxima, à primeira vista, da cosmovisão de Najmuddin Kubra (1145-1221) e de seus discípulos Najmuddin Razi (?1256) e Alaoddawleh Semnani (1261-1336), já mencionados. Para fins de comparação, reproduzo dois extratos que descrevem, respectivamente, as duas cosmovisões: Deus [...] aprisionou o coração [qalb] no espírito [ruh] e o espírito na alma [naf] e a alma no corpo; então misturou o intelecto (ᶜaql) com eles e enviou-lhes profetas e deu comandos, daí cada qual começou a buscar sua estação de origem. Deus ordenou que orassem. O corpo sinalizou a si mesmo a orar, a alma [naf] obteve o amor, o espírito [ruh] chegou próximo a Deus e o coração [qalb] encontrou paz na união com Ele. (MAKKI apud HUJWIRI, 1911, p. 309 apud YUNIS, 2016) Quando a natureza esotérica que designa os gênios e as faculdades se torna pura, contempla-se nela o que lhe é homólogo no Macrocosmo. O mesmo é verdadeiro para a alma (naf), o intelecto (‘aql), o coração (qalb), o espírito (ruh), a transconsciência (sirr), o arcano ou centro intuicional (khafi), o lugar interior onde se desvelam os atributos divinos que embriagam – onde se diz: “eu sou teus ouvidos”, “eu sou os teus olhos” [...] – até a consciência profunda (haqq). (HAMADÂNÎ apud CORBIN, 1971, p. 80) [Tradução: Giselle Guilhon]

Audição 4: dançando com os átomos e as estrelas Se partirmos do pressuposto de que a poesia [incluindo a música e a dança] e a história são meios de organizar ideias e informações culturais, exprimindo, em configurações diversas, distintas formas de experiência humana [ouvir, dançar, escrever] através do tempo – uma no ser [corpo/alma/coração/intelecto/espírito/consciência/intuição] 126

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e outra no ambiente [contexto/cultura/sociedade] de existência desse ser –, a poesia pode ser vista como um produto histórico ou mesmo transhistórico, da ação humana: [...] cada [ser] constrói uma [poética] própria que, no entanto, é relativa ao conjunto de conhecimentos disponibilizados em cada circunstância histórica e aos padrões associativos que o [ser] desenvolve para estabelecer as suas correlações com o mundo – outros [seres], outras [poéticas], outros conhecimentos. (BRITTO, 2008, p. 30)

Como qualquer outra produção humana, a poesia [incluindo a música e a dança] se modifica ao longo do tempo, articulando-se ao mundo como um sistema cultural, através de trocas informativas de caráter contaminatório. Inteiramente diferente da noção de “transferência” de características, contida na ideia de “influência”, a ideia de “contaminação” refere-se ao caráter residual da interatividade processada entre múltiplos agentes. Um relacionamento gerador de efeitos não planejados que se propagam ao longo do tempo (Cf. BRITTO, 2008, p. 30): O sentido de historicidade da [poesia] é destilado deste seu modo de existir – que envolve uma complexa rede de implicações temáticas, cuja compreensão lógica e sua sistematização narrativa dependem de um aparato teórico de equivalente complexidade. (BRITTO, 2008, p. 30-31)

A pesquisadora Leandra Yunis demonstra estar consciente dessa complexidade, fato que se confirma através do amplo quadro de referências místico-filosóficas que apresenta em sua tese, com a clara intenção de revelar o ambiente intelectual com o qual Rumi esteve, direta ou indiretamente, em contato e, ao mesmo tempo, dar sustentação às suas hipóteses intuitivas [formuladas nas traduções e samatraduções] e intelectivas [formuladas nos “comentários” às referidas traduções] sobre a natureza das imagens poéticas em Rumi. Referências provenientes tanto da Teologia Corânica, vertida pelos sufis em forma de exegese espiritual intuitiva, baseada na experiência interior da palavra sagrada, quanto da Falsafa (Filosofia Árabe Islâmica), que abarcou, indistintamente, por desconhecimento do grego, a herança aristotélica e platônica, apropriando-se do pensamento grego por meio de retraduções do persa, siríaco, sânscrito e hebraico. Ressalta que “entre os filósofos persas, o pensamento grego fora acomodado em um ambiente que amalgamava maniqueísmo, mazdaísmo e zoroastrismo a um neoplatonismo anterior trazido do século VI por filósofos gregos refugiados na corte de Anushiwar da perseguição de Justiniano”. (Cf. BELO, “Introdução” d’A Teologia de Aristóteles [tradução: Catarina 127

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Belo], 2010, p. 13-24 apud YUNIS, 2016 [nota de rodapé]) Não deixa de mencionar também a importância da Casa da Sabedoria (Bayt Al Hikma), na Bagdá do século VIII, universidade estatal cujo projeto tradutório, dirigido por Al Kindi, reunia todos os textos disponíveis das mais antigas e importantes civilizações, entre os quais a Teologia Mística de Pseudo Dionísio-Aeropagita, Corpus Hermeticum de Hermes Trimegistos e A Teologia de Aristóteles, que reúne excertos de textos plotinianos traduzidos pelo cristão sírio AlHimsi (século IX) e editados por Al-kindi (801-873). Mais tarde, no século XIII, a universidade e sua biblioteca seriam destruídas pelos mongóis e seu acervo (mais de 400 mil manuscritos) transferido para Maragha, cidade persa situada na província iraniana do Azerbajão Central. (Cf. YUNIS, 2016) Para que percebamos mais concretamente a reverberação dessas contaminações – mazdaísta, hermética, neoplatônica (via Falsafa), corânica, sufi – na cosmopoesia de Rumi, citarei, abaixo, alguns extratos poéticos, a partir das traduções e samatraduções de Yunis (2016), os quais iluminam, inversamente, tais sistemas místicos, filosóficos, teologais. Vamos ao primeiro extrato: 7 Dança feito Rei-Sol, não fogo de palha; Vem-me às mãos o graal, meu ídolo dançante (RUMI, Gazal 189 / Tradução: YUNIS)

Yunis introduziu o epíteto Sol para preservar a referência a Ahura-Mazda, divindade persa protomonoteísta e pré-islâmica associada ao fogo e celebrada na primavera com danças em torno de fogueiras ascendidas com “madeira da faia”, expressão que substituiu por “fogo de palha” com a finalidade de opor a importância espiritual do rei à obsolescência da matéria: “O mazdaísmo utilizava vinho e dança de forma ritual para acessar níveis diferenciados de consciência, mas o ídolo dançante aqui alude ao amado arquetípico; Rumi, porém, aproveita a simbologia da hierofania ígnea e seus universais atributos de sabedoria/calor” (YUNIS, 2016). Vejamos esse segundo agrupamento de versos: 2 O esplendor da Sua face cai feito chuva em cada átomo Nessa volúpia, cada átomo procria mais centenas de átomos (RUMI, Gazal 621 / Tradução: YUNIS)

2 No calor / se faz nuvem / Volúpia em gotas / se multiplica (RUMI, Gazal 621 / Samatradução: YUNIS)

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Nesses versos, Rumi dialoga claramente com a teoria cosmológica da emanação, de Al-Farabi (872-950), filósofo árabe que atualizou o neoplatonismo presente na metafísica de Aristóteles, criando um sistema metafísico de grande complexidade. Pela exposição do Ser Primeiro – que guarda semelhanças com o Uno de Plotino –, explicou seus atributos e o modo pelo qual a aparente multiplicidade das coisas existentes no mundo derivou d’Ele. Numa formulação bastante original, de um ponto de vista islâmico ortodoxo, a metafísica da criação de Al-Farabi fez com que o Ser Primeiro, em sua unidade absoluta, emanasse de si a multiplicidade dos seres – cosmologia que foi adotada, posteriormente, por Ibn Sina [Avicena]. (Ver ATTIE FILHO, 2002, p. 200). Passemos ao terceiro conjunto de versos: 1 Desperta dia! Os átomos dançam Por Ele as esferas e o céu dançam (RUMI, Rubai 515 / Tradução: YUNIS)

6 Ainda que o céu se sobreponha à sétima esfera celestial Além dali ainda há degraus para o samâ’ (RUMI, Gazal 1295 / Tradução: YUNIS) ou

6 Sobe além / da sétima esfera / celestial / degrau por degrau / atinge / a audição mística (RUMI, Gazal 1295 / Samatradução: YUNIS)

A emanação segue uma hierarquia que se inicia pelo ser mais próximo e mais perfeito em relação ao Ser Primeiro, e segue em escala descendente até o ser menos perfeito. A existência dos seres a partir do Primeiro se faz por emanação desse Ser [“Sua face cai feito chuva em cada átomo”] à medida que Ele dá origem às outras coisas [“cada átomo procria mais centenas de átomos”] de modo que toda existência emana necessariamente de Sua existência: “Do Primeiro procede o ser segundo, que também é uma substância absolutamente incorpórea e não está em uma matéria. Ele intelige sua essência e intelige o Primeiro e isso que ele intelige de sua essência não é outra coisa senão sua essência. Enquanto ele intelige algo do Primeiro resulta necessariamente dele o ser de um terceiro.” [E assim sucessivamente.] (AL-FARABI apud ATTIE FILHO, 2002, p. 209). Al-Farabi continua sua descrição cosmológica que alia o princípio plotiniano da emanação ao sistema geocêntrico de Ptolomeu: 129

/ Belém – 2016 Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares. O processo repete seguidamente o esquema precedente: cada nova inteligência conhece sua própria essência e conhece algo do Primeiro, resultando, em cada etapa, uma nova inteligência, uma esfera correspondente a cada um dos planetas e uma alma que move essa esfera. Tal processo, seguindo em fases sucessivas, emana ou “cria” dez inteligências sucessivas que correspondem às seguintes esferas dos planetas com suas respectivas almas que as movem: [PRIMEIRA INTELIGÊNCIA] segunda inteligência: primeiro céu; terceira inteligência: esfera das estrelas fixas; quarta inteligência: esfera de Saturno; quinta inteligência: esfera de Júpiter; sexta inteligência: esfera de Marte; sétima inteligência: esfera do Sol; oitava inteligência: esfera de Vênus; nona inteligência: esfera de Mercúrio; décima inteligência: esfera da Lua; [mundo sublunar: Terra] A emanação segue ritmada até a décima inteligência e é descrita como uma superposição incorpórea de cada uma delas em sequência necessária, compondo um sistema de esferas desde o Ser Primeiro até a esfera da Lua, tendo a Terra como centro. (AL-FARABI apud ATTIE FILHO, 2002, p. 209)

Segundo Yunis, “se o samâ’ pode ser sintetizado coreograficamente pelo ‘giro’, isso se deve à noção pitagórica da rotação circular das esferas celestiais cuja mimetização corporal [produz] o conhecimento das realidades ocultas” (YUNIS, 2016): “Os corpos dançam e as almas, mais ainda. / A Alma gira nelas; elas em si, mais ainda.” (Masnavi I: 1347) E chegamos ao quarto verso: 2 Sol, lua, estrelas dançam em rotações, nós no eixo dançante (RUMI, Gazal 196, Tradução: YUNIS)

Aqui podemos intuir uma contaminação das ideias de Hermes Trimegistos (100300 a. C.), contidas no Corpus Hermeticum, acerca do movimento giratório. Em seu diálogo com Asclépios, Trimegistos afirma que todo móvel é movido não em qualquer 130

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coisa que se move, mas em qualquer coisa em repouso, assim como o motor, que está em repouso, pois não pode ser movido com aquilo que move. Daí se conclui que todo movimento é feito numa imobilidade, como o movimento dos planetas, que consiste em girar em torno dos mesmos eixos: “[E] o movimento circular não é nada mais que o movimento em torno de um mesmo centro firmemente contido por uma imobilidade. Com efeito, o movimento em torno de um mesmo centro exclui a possibilidade de um movimento do eixo.” (TRIMEGISTOS [100-300 d. C.] apud CAMARGO, 2002, 57) Conforme Yunis, pela imagem da dança esférica que aparece no 2º verso [“Sol, lua, estrelas dançam em rotações, / nós no eixo dançante”] se indica o aspecto cinético do giro no sentido da mímesis e da conexão objetiva com a rotação dos astros: O que distingue a dança do centro/eixo dançante da dança exterior? Provavelmente a conexão interior com o sentido e significado do movimento cósmico. Conforme a noção pitagórica e platônica difundida na mística persa, quando os astros giram em torno do próprio eixo desenhando o perímetro das órbitas, a alma recebe esse estímulo através de uma espécie de reverberação circular ou espiralada e dança então impulsionada pela vibração das esferas superiores. Esse giro é [a] expressão cinética do processo metabólico, não do movimento coreográfico exterior. (YUNIS, 2016)

Último Prelúdio: quando a dança se torna audição e vice-versa Duncan Macdonald (1901, p. 236), em sua tradução do Kitâb âdâb al-samâ’ wa alwajd (O Livro dos Usos Corretos da Audição e do Transe), de Abu Hamid Muhammad AlGhazâlî (1058-1111), traduz a palavra samâ’, ora por listening to music and singing, ora por hearing to music and singing, ora por listening, ora por hearing, ou, ainda, simplesmente, por music ou singing. Entretanto, em seu artigo Samâ’, que está na Encyclopédie de l’Islam (MACDONALD, 1908), lê-se que a palavra “tem um sentido particular no Sufismo, onde significa escutar a música, os cantos, os salmos ou a recitação rítmica, a fim de chegar à emoção religiosa e ao êxtase (wajd), designando, também, os cantos e a música vocal e instrumental que escutamos com este propósito.” James Robson (1938), na sua tradução inglesa do tratado sobre o samâ’ de Majd al-Dîn Ahmad al-Tûsî, irmão de Al-Ghazâlî, traduz a palavra por audition. Henry George Farmer (1929, p. 140) traduz o samâ’, genericamente, por listening to music, chegando também a traduzir, simplesmente, por music. John Spencer Trimingham (1971) traduz por spiritual concert. Louis Massignon (1922, p. 85) traduz samâ’ por concert spirituel ou oratorio, palavras que foram utilizadas, mais tarde, por Mohammad Mokri (1961, p. 1014-1015) e Eva de Vitray131

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Meyerovitch (1972). Henry Corbin (1964, p. 260), por sua vez, a traduz por audition musicale, expressão compartilhada, mais recentemente, por Jean-Louis Michon (1994), que utiliza também audition spirituelle. Marijan Molé (1963), no seu longo artigo sobre a dança extática do Islã, utiliza constantemente a palavra samâ’ sem jamais traduzi-la. Gilbert Rouget (1990 [1980])62 em seu livro A Música e o Transe e Jean During (1988) em Música e Êxtase concordam em traduzi-la por audition, embora traduzam wajd diferentemente: Rouget por transe e During por extase. Porém, acrescenta Rouget, como a relação entre o samâ’ (audição) e o transe (wajd) é muito estreita, no limite da palavra, samâ’ significa, ainda, “estado de transe” 63: Nós podemos, com efeito, dizer entrer en samâ’ [entrar em samâ’] ou être saisi par le samâ’ [ser possuído pelo samâ’], ou, ainda, être en samâ’ [estar em estado de samâ’]. No sentido prático [corporal], [...] o termo equivale à “dança extática”. [...] No limite, ainda, samâ’ significa “música”, ou qualquer coisa equivalente, porque nós podemos dizer entendre le samâ’ [ouvir o samâ’] – o que é, aliás, inopinado e contrário à lógica mesmo da palavra, porque isto equivale a dizer entendre l’audition [ouvir a audição]. Assim, repito, uma vez que o samâ’ deriva da raiz s.m.’. (entendre ou écouter) [ouvir ou escutar] – designando, no seu sentido primeiro e geral, o ato de ouvir ou escutar, sem referência a um fenômeno sonoro particular – digamos, [então], audition [audição]. Dito desta maneira, nos textos sufis que nos interessam, o verbo entendre (s.m.’.) [ouvir], em suas diversas formas, comporta sempre um objeto implícito, que é ou a poesia, ou o Alcorão, ou a música (não qualquer música mas certo tipo de música, apenas). (ROUGET, 1990 [1980], p. 451-452) [Tradução: Giselle Guilhon]

E aqui retornamos ao nosso ponto de partida: se o samâ’ é audição [espiritual, poética, musical] na cosmopoesia de Rumi, é também êxtase [wajd], é também dança

62

Rouget adverte, todavia, que no contexto no qual Al-Ghazâlî e os sufis, em geral, utilizam a palavra, a categoria Samâ’ é intraduzível. Por duas razões: “A primeira é que ela designa uma coisa muito particular, que não corresponde a nenhuma outra cerimônia que não pertença ao Sufismo e que é esta cerimônia, feita de oração, de música e de dança, reunindo os dervixes com o propósito de adorar a Deus através da prática do transe [wajd]. Esta cerimônia se chama Samâ’ e, tomada neste sentido, a palavra está no mesmo patamar que, por exemplo, Islã: não há equivalente em Francês. A Segunda é que o livro de Ghazâlî é, antes de tudo, uma empreitada para justificar o Samâ’ e que este repousa sobre a ambiguidade da palavra, ou, antes, sobre o fato de que ela tem dois sentidos, um sentido muito particular, que é este que nós queremos explicar, e um sentido geral, que é aquele da audition [poesia e música]” (ROUGET, G. La musique et la transe. Esquisse d’une théorie générale des relations de la musique et de la possession. Paris: Gallimard, 1990, p. 450 [Tradução: Giselle Guilhon]). Como During persuasivamente argumenta: “Se a atitude do ouvinte do Samâ’ não for considerada inteiramente única na cultura oriental, pelo menos o rito deveria ser considerado uma conquista original” (DURING, 1988, p. 15). 63 Relação esta que encontra fundamento nas palavras de Al-Ghazâlî: “Saiba que o Sama [...] faz frutificar um estado no coração que é chamado transe (wajd)” (MACDONALD, 1908, p. 200 apud ROUGET, G., 1990, p. 451)

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[raqṣ], é também música [samâ’]. Ao atingirmos esse grau de escuta [musical, poética, espiritual], a música se torna dança e a dança se torna música. E assim – cinética e metabolicamente –, podemos ouvir o samâ’ [música] como dança e dançar o samâ’ [dança] como música. À medida que o corpo vai entrando em movimento, provocado pelo movimento dos órgãos suprassensíveis, ativados, por sua vez, pela intensidade (menor ou maior) do êxtase [wajd] produzido pela experiência da audição [samâ’] – musical, poética, espiritual –, vai aumentando, também, a possibilidade daquele que se encontra em êxtase manifestar exteriormente seus estados místicos (hâl). Rumi o expressou lindamente por meio da Poesia. Referências ATTIE FILHO, Miguel. Falsafa. A Filosofia entre os árabes. São Paulo: Palas Athena, 2002. BRITTO, Fabiana Dultra. Temporalidade em dança: parâmetros para uma história contemporânea. Belo Horizonte: Fórum Internacional de Dança, 2008. CAMARGO, Giselle G. A. Sama: etnografia de uma dança sufi. Florianópolis: Mosaico, 2002. CAMARGO, Giselle G. A. Mukabele: ritual dervixe. Florianópolis: Insular, 2010. CAMARGO, Giselle G. A. Rumi e Shams (notas biográficas) São Paulo: Fonte Editorial, 2015. CARVALHO, José Jorge de. (Seleção, Tradução e Introdução dos Poemas Místicos: Divan de Shams de Tabriz de Jalaluddin Rumi) São Paulo: Attar, 1996. CORBIN, Henry. Histoire de la philosophie islamique, vol. I. Paris: Gallimard, 1964. CORBIN, Henry. L’homme de lumière dans le soufisme iranien. Saint-Vincent-sur-Jabron: Éditions Présence, 1971. [Collection Le Soleil dans le Coeur, dirigée par M. -M. Davy] DURING, Jean. Musique et extase. L’audition mystique dans la tradition soufie. Paris: Albin Michel, 1988. FARMER, H. G. A history of arabian music to the XIIIth century. London: Luzac and Co., 1929. LUCCHESI, Marco. Rûmî: a dança da unidade. In: TEIXEIRA, Faustino. (Org.) No limiar do mistério: mística e religião. São Paulo: Paulinas, 2004, p. 321-332. MACDONALD, Duncan. B. Emotional religion in Islam as affected by music and singing being a translation of a book of the Ihyâ ad-Din of Al-Ghazzâlî with analysis, annotation and appendices. In: Journal of the Royal Asiatic Society, 1901. MACDONALD, Duncan. Samâ’. Encyclopédie de l’Islam. 1908. 133

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Etnocorpografando sons e gestos na Amazônia Miguel Santa Brigida Universidade Federal do Pará – [email protected] Resumo: Imerso como artista-etno-pesquisador na construção epistêmica da Etnocenologia e no acompanhamento das pesquisas em Etnomusicologia na Amazônia, cujas produções vem engendrando contornos singulares para a pesquisa em Artes na região norte, o artigo apresenta as construções e reflexões etnocientíficas a partir do LABETNO - Laboratório de Etnomusicologia e do TAMBOR - Grupo de Pesquisa em Carnaval e Etnocenologia, ambos integrados ao PPGARTES/ICA/UFPA. Considerando este panorama, apontamos para novas proposições metodológicas a partir da intersecção do corpus teórico dessas duas etnociências. Palavras-Chave: Etnomusicologia. Etnocenologia. Metodologia.

A construção epistemológica das etnociências na Amazônia, notadamente da Etnomusicologia e Etnocenologia, vem engendrando um singular campo de construção de conhecimento na pesquisa em Artes por meio do Instituto de Ciências das Artes (ICA), Escola de Teatro e Dança (ETDUFPA), Escola de Música (EMUFPA) e do Programa de Pós-Graduação em Artes (PPGARTES), liderados pelo LABETNO – Laboratório de Etnomusicologia coordenado pelas professoras Dr.ª Lilian Cohen e Dr.ª Sônia Chada e do TAMBOR – Grupo de Pesquisa em Carnaval e Etnocenologia (CNPq-2008) coordenado pelo professor Dr. Miguel Santa Brigida. Estes dois grupos de pesquisa vêm edificando e adensando as proposições e reflexões epistêmicas dessas duas etnociências nas diversas pesquisas realizadas na pós-graduação, nos seminários e grupos de estudo, destacando nesta investida de construção de conhecimento a atuação do LABETNO que abriga o Grupo de Pesquisa e Identidade na Amazônia (GPMIA), o Grupo de Estudos sobre Música no Pará (GEMPA) e tem como principal objetivo fomentar e produzir conhecimento sobre as diversas práticas musicais na Amazônia. O Laboratório promove sistematicamente Ciclo de Palestras, Jornadas de Pesquisas, ampliando o espaço de debates e socialização de pesquisas em Etnomusicologia. No campo da Etnocenologia, o TAMBOR estuda o carnaval brasileiro em sua diversidade de práticas espetaculares, com ênfase no carnaval das escolas de samba, alargando igualmente os estudos das carnavalizações para múltiplos fenômenos das culturas populares brasileiras, notadamente os fenômenos etnocenológicos amazônicos. Abriga também o Grupo de Estudos em Etnocenologia (GETNO), que sistematiza e socializa os estudos desta linha etnocientífica, além da realização de seminários e Giras de Artistas-Pesquisadores, ofertando espaço de intersecção com a comunidade artística e 135

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acadêmica sobre os estudos etnocenológicos. O grupo promove bienalmente, desde 2012, o Encontro Paraense de Etnocenologia, que em 2016 realizou sua terceira edição com o tema Espetacularidades Etnocenológicas – Alteridades, Estéticas e Poéticas, reunindo pesquisadores, professores e a comunidade artística interessados na investigação de práticas espetaculares brasileiras com ênfase na Amazônia. Este evento agrega vários grupos de pesquisa da região e do país e mantém parceria com a UFBA, UNB, UNIRIO, UEPA e IFPA, articulando a produção do conhecimento na Etnocenologia e promovendo o intercâmbio local, nacional e internacional. Este panorama de construção etnocientífica na Amazônia abriga em seu fundamento epistêmico a germinação da Etnologia enquanto ciência interessada nas reflexões sobre a variabilidade humana no espaço e no tempo, que gerou no século XIX o surgimento da Etnomusicologia, inaugurando uma nova abordagem para os fenômenos musicais propondo, a partir de Alan Merrian em sua obra Antropology of Music de 1964, um novo paradigma para os estudos da música privilegiando a ênfase na cultura e no relativismo cultural. Com a evolução dessa etnociência, a proposição inicial de Merrian promoveu o estabelecimento de uma musicologia geral consagrando a esses estudos uma dimensão fundamental de humanidade. A Etnocenologia surgiu no século XX, em Paris no ano de 1995 a partir da Universidade Paris 8 Saint-Denis, UNESCO, Maison des Cultures du Monde presidida pelo sociólogo Jean Duvignaud, instituições articuladas para a realização do Colóquio de Fundação do Centro Internacional de Etnocenologia, tendo como principal propositor JeanMarie Pradier, autor do Manifesto da Etnocenologia. No Brasil a configuração desta nova disciplina evidenciou que: Na última década do século XX o mundo acadêmico e artístico testemunhou o aparecimento da etnocenologia, disciplina que transformou a criação, fruição e reflexão das artes cênicas já consagradas, das festas, dos rituais e de outros correlatos. Lançada na Universidade Paris VIII em 1995, liderada por JeanMarie Pradier, esta nova vertente das etnociências, chegou ao Brasil em 1997 pela UFBA, através do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas (PPGAC), inaugurando um novo paradigma teórico-metodológico e promovendo um singular avanço da pesquisa artística no ambiente universitário brasileiro, por meio de um dos principais propositores e pensadores, o Prof. Dr. Armindo Bião, criador do referido programa e da ABRACE – Associação Brasileira de Pesquisa em Artes Cênicas. Desde sua inserção no universo da pesquisa em Artes Cênicas na academia da Amazônia, a etnocenologia – enquanto Etnociência das Artes e Formas de

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/ Belém – 2016 Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares. Espetáculo – vem engendrando um singular corpus teórico e metodológico, revelado nos projetos, objetos e fenômenos de pesquisa por ela acolhidos, que sublinham uma importante contribuição na construção epistemológica e na afirmação da autonomia do pensamento dos artistas-pesquisadores brasileiros. (SANTA BRIGIDA, 2015, p. 14)

Imerso como artista-pesquisador-professor no encantado universo destas duas etnociências, nossa reflexão compartilhada no II Encontro Regional Norte da Associação Brasileira de Etnomusicologia e no II Colóquio Amazônico de Etnomusicologia com o tema

“Etnomusicologia

na

Contemporaneidade:

diálogos

disciplinares

e

interdisciplinares”, buscou contribuir com o construto metodológico que esta interdisplinaridade vem edificando e alavancando na pesquisa em artes no norte do país – especialmente no estudo e compreensão das práticas musicais e espetaculares de matrizes afro-brasileiras e indígenas – em observância a vitalidade da dimensão política dessas etnociências, comprometidas com o combate ao etnocentrismo e eurocentrismo ainda observados na academia brasileira. Nas proposições iniciais da Etnocenologia apresentadas por Jean-Marie Pradier fica evidenciada a inspiração na Etnomusicologia quando afirma que “o etnocenólogo examina com uma certa inveja o percurso, já velho de um século, de uma disciplina que hoje soube colocar em evidência conceitos e métodos de estudos complementares” (PRADIER, 1998, p. 15), reconhecendo a dimensão interdisciplinar da Etnomusicologia, porém já sinalizava a investida transdisciplinar futura da Etnocenologia, que ao celebrar em 2015 vinte anos de seu lançamento, grifou esta trandisciplinaridade como signo-marca de sua proposição metodológica, confirmada nas conferências, mesas redondas e debates realizados no I Encontro Nacional de Etnocenologia, realizado em abril de 2016 em Salvador, que reuniu artistas

e pesquisadores

nacionais

e internacionais

e apresentou como

tema

“Etnocenologia: O estado da Arte” que refletiu sobre o campo de saber promovido no Brasil nesses vinte anos. Em sua anunciação lexical esta nova disciplina apresentou como principal pilar epistemológico as PCHEOS (Práticas e Comportamentos Humanos Espetaculares Organizados), legatário do fulcro epistêmico da Etnomusicologia anunciado um século antes nos SCHEOS (Sons dos Comportamentos Humanos Espetaculares Organizados). Ao reconhecer e alargar os estudos da música para além das produções e práticas musicais que já estavam reconhecidas, estabelecidas, legitimadas e consagradas, notadamente

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continente europeu, a Etnomusicologia ampliou os paradigmas investigativos vigentes para a compreensão de outras práticas, categorias e modalidades musicais da diversidade de grupos étnicos do mundo todo, privilegiando para além da música, os sons do comportamento humano. Nessa inspiração etnocientífica e multicultural, a Etnocenologia igualmente investiga as práticas espetaculares para além das linguagens cênicas já consagradas no teatro, dança, circo, ópera, dentre diversos correlatos, alargando a dimensão do espetacular para outras práticas, não só extracotidianas como cotidianas, contemplando em seu principal pilar epistemológico três subconjuntos: as Artes do Espetáculo, os Ritos Espetaculares e os Papéis Sociais do Cotidiano (BIÃO, 2009, p. 9091). Ao refletirmos sobre a intersdisciplinaridade dessas duas

etnociências

recorreremos a algumas proposições apresentadas por Alan Merrian em seus estudos etnomusicais com ênfase nas dimensões culturais, das quais destacamos três aspectos: 1Corpus de cantos e sua relação com a música; 2- Os tipos de música tal qual são definidos pelos interessados; 3- As aprendizagens. Por correspondência análoga a esta tríplice proposição, elencamos igualmente três aspectos configurados por Jean-Marie Pradier para a Etnocenologia: 1- A dimensão corporal em sua inteireza física, simbólica, espiritual e social do fenômeno considerado; 2O estudo dos tipos de práticas espetaculares tal como são definidos pelos autóctones (do mais global ao mais analítico); 3- A aprendizagem dos performers e dos participantes e/ou espectadores. Esta tríade de fundamentos etnocenológicos trazem como centro de sua construção epistêmica o corpo, na qual: A perspectiva etnocenológica se opõe ao pensamento dualista segundo o qual se concebe a existência de atividades simbólicas sem corpo e atividades corporais sem implicação cognitiva e psíquica. Do mesmo modo, o objetivo da etnocenologia não é o de propor somente um inventário e uma descrição de formas, mas também o de determinar o que se produz quando o evento espetacular acontece. O pressuposto monista é o corpo/pensamento: não há corpo sem pensamento, nem pensamento sem corpo. O pensamento é uma forma dilatada no espaço. O corpo é pensamento. (PRADIER, 1998, p. 10).

Nossa atuação na pesquisa e travessia etnocenológica em mais de uma década na constituição da autonomia do pensamento de artistas-pesquisadores propõe um aprofundamento na relação com o corpo, derivativa das proposições de Pradier. Em primeira instância, na defesa do pensamento monista, Pradier grafa esta relação na forma 138

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Corpo/Pensamento. Nesta perspectiva, propomos a grafia Corpo-Pensamento na miragem de uma maior indissociabilidade e pensamento imperativo no avanço híbrido da operação etnocenológica fundada na relação corpo-fenômeno e corpo-pesquisador. A partir das proposições de Bião para o horizonte metodológico da Etnocenologia, o pesquisador propôs a necessária e imprescindível articulação entre Objeto-TrajetoSujeito-Projeto, no qual Objeto contempla o campo da pesquisa, o fenômeno espetacular de interesse, o Trajeto são as técnicas e princípios que buscam permitir o conhecimento do objeto por parte do sujeito, bem como a história que reúne o sujeito e a sua opção pelo objeto, Sujeito é o próprio pesquisador e Projeto é a proposta construída pelo pesquisador, que explica o objeto de estudo pretendido, o trajeto que levou o sujeito a se interessar por ele e sua perspectiva de aproximação e pesquisa. (BIÃO, 2009, p. 39-40). Derivando essa articulação apresentada por Bião acrescentamos o conteúdo do Afeto64 e redimensionamos a abordagem do corpo em três grandezas: 1- O Corpo da pesquisa; 2- O Corpo na pesquisa; 3- Quando o meu Corpo é a pesquisa. Esta tríade resultante aponta para os seguintes aspectos: 1- O corpo da pesquisa no que concerne aos aspectos teóricos transdisciplinares elencados da Etnocenologia, amalgamados pelo pesquisador enquanto estrutura do pensamento e do fluxo argumentativo na construção de um corpo epistêmico; 2- Refere-se ao incondicional envolvimento do corpo do pesquisador imerso no fenômeno espetacular eleito, não permitindo distanciamentos e sim, a vivência profunda no plano interno, destacando a emoção e cognição para a geração de conhecimento; 3- Quando o próprio corpo do pesquisador e sua prática espetacular é o fenômeno investigado. Este aspecto do envolvimento emocional no plano interno do fenômeno, constituise um dos principais aspectos singulares da metodologia etnocenológica. A relação entre emoção e cognição aponta para uma nova postura do pesquisador, fora dos fluxos paradigmáticos vigentes, afinando-se às proposições das epistemologias não cartesianas, imprenscidíveis para a pesquisa em artes. Evidencia-se também a dimensão metodológica enquanto postura ética e política, em um movimento integral do pesquisador dionisíaco proposto pela Sociologia da Orgia de Maffessoli “que inaugura linhas originais

de

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Proposição de nossa autoria acrescentada para a articulação metodológica apresentada por Bião. Ver o artigo A Etnocenologia na Amazônia: Trajetos-Projetos-Objetos-Afetos. Repertório: teatro & dança - Ano18, n.25 (2015.2) - Salvador: UFBA/PPGAC.

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indagação. Chega a ser banal a pergunta: que seria da ciência sem o aspecto aventuroso da mente, sem uma iniciativa propriamente dionisíaca?” (MAFFESOLI, 1998, p. 48). Ao considerarmos esta travessura e travessia da Etnocenologia interessada na investigação das espetacularidades tradicionais e contemporâneas dos fenômenos brasileiros em suas polissemias e polifonias, destacamos na Amazônia a dominância de pesquisas nas práticas espetaculares das culturas de matrizes africanas, afro-brasileiras, afro-indigenas e indígenas das quais destacamos mais uma tríade pela perspectiva do corpo na dimensão metodológica: 1- O Saber Incorporado; 2- A Experiência Encarnada; 3- A Sabedoria dos Praticantes. Conexas respectivamente: 1- Aos saberes que o pesquisador já traz em seu corpo enquanto Trajeto Antropológico na conceituação de Gilbert Durand; 2A experiência do corpo imerso no fenômeno e a resultante da vivência no campo na indissociabilidade campo-corpo; 3- Proposição de nossa autoria que refere-se a valoração máxima do enunciado: quem sabe é quem faz, vive e sente65. Quando discorremos sobre o diálogo interdisciplinar de nossa experiência como etnocenólogos no acompanhamento da produção da Etnomusicologia na Amazônia, acreditamos tornar-se imprescindível uma maior articulação não só com o corpus teórico já definidos desde a nascente etnocenológica, mas fundamentalmente com a dimensão relacional dessas teorias enquanto metodologia de análise. Nessa direção, apontamos uma outra grandeza para a Etnomusicologia, caracterizada pela imersão do corpo nas dimensões aqui refletidas para métodos de campo nos estudos desta disciplina. Esta proposição considerou as diversas questões, debates e socializações de pesquisas, nossa participação em diversas bancas de mestrado, além de coorientações nas quais observamos ainda muito timidamente a imersão do corpo pelos etnomusicólogos enquanto construtores de conhecimento, afinados com os fenômenos etnomusicais, seminando novas posturas e inaugurando novas metodologias que acreditamos assinarão com novos tons, ritmos e harmonia um redimensionamento nas pesquisas da Etnomusicologia na Amazônia. Ao refletirmos sobre esta intersecção epistemológica e metodológica do corpo etnocenológico em articulação com o corpo etnomusicológico no centro de um novo fluxo investigativo podemos grafar: Etno + Corpo + Logia = a diversidade cultural das práticas Título derivado de nossa conferência “Quem sabe é quem faz, vive e sente: saber incorporado, experiência encarnada e a sabedoria dos praticantes na construção epistemológica da etnocenologia”, proferida no I Encontro Nacional de Etnocenologia realizado em abril de 2016 em Salvador. 65

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musicais amazônicas + o corpo imerso no fenômeno + a construção epistêmica da Etnomusicologia na Amazônia. É o corpo do artista-etno-pesquisador66 integrado à essas duas etnociências na geração seminal de novas posturas metodológicas interrelacionando novas culturas, novos paradigmas epistemológicos para as etnoreflexões das artes na Amazônia. Pradier anunciou a Etnocenologia como a Carne do Espírito. Maturemos a Etnomusicologia na Amazônia como corpos cujas carnes são espíritos, músicas, sons, movimentos e gestos. Referências BIÃO, Armindo Jorge de Carvalho. Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos. Salvador: P&A Gráfica Editora, 2009. MAFFESOLI, Michel. O Conhecimento Comum: Compendio de sociologia compreensiva. São Paulo: Brasiliense, 1998. MERRIAN, A. P. The Antropology of Music. Evaston Nortwestern University Press, 1980. PRADIER, Jean-Marie. Etnocenologia: A Carne do Espírito. Tradução Armindo Bião. Repertório: teatro & dança. Ano1, V.1 (1998). Salvador: UFBA/PPGAC. SANTA BRIGIDA, Miguel de. A Etnocenologia na Amazônia: Trajetos-Projetos-ObjetosAfetos. Repertório: teatro & dança - Ano18, n.25 (2015.2)- Salvador:UFBA/PPGAC.

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Conceito poposto pelo pesquisador Rafael Cabral em seus estudos etnocenológicos sob nossa orientação.É de sua autoria também proposição de corpografismo a partir de sua pesuisa “Amerindios Mex: um estudo da preparação corporal de atores a partir da representação mítica de grafismos dos animais sagrados dos mebengokre da aldeia Apexti” .

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PALESTRA DE MESTRE NEGO RAY Transcrição: Paulo Roberto da Costa Barra (Bolsista Pibic/CNPq – UEPA) Supervisão: Prof. Dr. Paulo Murilo Guerreiro do Amaral (UEPA)

Boa noite a todos! Quero agradecer a organização, pelo convite. Meu nome é Raimundo Silva. Sou lá do Espaço Cultural Coisas de Negro. E... lá nós temos uma prática denominada roda de carimbó, que acontece há dezesseis anos, né. E, segundo uma pesquisa feita pelo Mova-ci (Movimento de Vanguarda da Cultura de Icoaraci), essas rodas de carimbó aconteciam desde os anos 50, ali no quilômetro 23 da Augusto Montenegro, ali, na Casa Esperança de um cidadão lá, que reunia pessoas vindos da região do salgado pra essa prática de carimbó. Eu, quando jovem, tive a oportunidade de ver ali, na sétima rua de Icoaraci, o Mestre Verequete. Eu, na idade de 12 anos, fui brincante do boi-bumbá pingo de ouro, ali no Distrito. Vim e participei muitas vezes de concursos que eram realizados aqui no museu. Tive oportunidade de participar da inauguração da Primeiro de Dezembro, na época, nos concursos de boi-bumbá. E, ao término dos ensaios, nós passávamos por trás da casa do Verequete; e eles, tocando aqueles tambores lá que me deixavam extremamente fascinado. Talvez por isso que eu esteja falando disso agora, porque assimilava disso quando jovem. E dentro do Coisas de Negro, quando a gente começou, não era comum ter essas rodas de carimbo. Geralmente acontecia nos períodos das quadra junina, e coisa pra turista ver. E, quando agente começou a fazer, tocamos para quatro pessoas, mais ou menos. Não era comum as pessoas virem pra esses lugares pras rodas de carimbó. Inclusive, nessa época, os trios elétricos dentro de Belém era um coisa, assim, assustadora, né. Até parece que agente estava em outro Estado, como na Bahia, por exemplo, assim, na questão dos trios elétricos. Mas, mesmo assim, a gente continuou a fazer aquelas rodas de carimbó. Então não era muito comum ver, assim, é, pessoas de grupos, de um mesmo grupo, dentro do espaço. É, não é? Não tinha essa prática de tá se reunindo. E o Coisas de Negro veio e, justamente, quebrou essa questão. E, hoje em dia, a gente ver várias pessoas dentro do Coisas de Negro, é, vivenciado essa roda de carimbó. Lá no Coisas de Negro nós temos umas oficinas já. Eu iniciei algumas umas oficinas que eu utilizo o instrumento e faço o repasse através da tradução oral. E eu utilizo também uma percussão corporal, né, usando palmas e a mão batendo o próprio corpo, que depois eu vou 142

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demostrar para vocês como é que isso é feito. E, no decorrer dessas oficinas, eu peço para aquelas pessoas que venham para o instrumento, é..., demostrar aquilo que foi colocado através da rítmica, né, através do corpo todo, né. E, dentro do Coisas de Negro, também, a gente tem a questão da construção dos instrumentos, né. Eu desenvolvi a construção de alguns instrumentos: os curimbós, as maracas, o reco-reco... E, recentemente, eu conclui um curso de luthier lá na Fundação Curro- Velho, que já determinou que eu construísse uns instrumentos em uma qualidade bem melhor: violão, cavaquinho, banjo, né... Tem essa qualidade. E, dentro do Coisas de Negro eu tive a oportunidade de conhecer pessoas, de quando criança, que eu andando ali pelo quilômetro 23, como eu já falei, eu via os tambores lá, pegando sol, que eu nem sabia de quem eram aqueles tambores. Depois, no decorrer da realização dessas rodas de carimbó, eu comecei a ter contato com os Mestres, que é a Dona Maria de Nazaré do Ó e seu João Ribeiro. Eles, que são os detentores do grupo lá, chamado Águia Negra, e tem o grupo para-folclórico Vai Andar. Então, a partir do momento que a gente começou a fazer essas rodas, a gente começou a ter contato com os mestres, né. Eu vivenciei, quando jovem, desde criança, e agora, a partir desses dezesseis anos pra cá, a gente teve a oportunidade de tá vivenciando com esses mestres: João Ribeiro, Maria de Nazaré do Ó, senhor Pedro Coutinho – que é um dos remanescentes do grupo Uirapuru, do Verequete; assim como o seu Pedro, que já faleceu; o seu Agostinho Guarda, também que fazia parte dessas rodas de carimbó ali do quilômetro 23. Então, o Coisas de Negro veio pra juntar essas pessoas. E a gente fica muito feliz em poder tá aqui, falando disso, para um grupo de pessoas bem especiais, né. Eu sou um autodidata, e isso é muito importante. O que eu faço no instrumento é coisa assim, de puro sentimento, né. Eu consigo transpor isso para o instrumento, apesar de ser um tambor de tocar carimbó. Mas eu desenvolvi umas outras levadas, tendo o curimbó como base. Desde elementos do samba de cacete, eu acabei de desenvolver uma outra maneira de se tocar o samba. Eu dei mais um molho para o samba, que depois eu vou demostrar pra vocês. E com relação à prática, eu vou fazer aqui alguns movimentos, aqui, bater as palmas, e espero que vocês possam repetir. E depois eu vou pedir que uns dois voluntários venham traspor essa questão aqui para o tambor, tá bom? Esses movimentos, lá, que a gente faz, ele tem uma levada que eu chamo de “andada”, né, que foi uma coisa que eu criei, que eu utilizo as mãos, depois uso o corpo, depois eu peço para que eles façam a levada no tambor. Ela é assim: [mestre Nego Ray começa a demonstração]. Muito obrigado pelos voluntários! Uma 143

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coisa assim... Hoje, o que a gente observa é, com relação a nossa proposta de fazer as rodas de carimbo: muitos jovens passaram a gostar mais dessa questão do carimbo, né. Hoje em dia, a gente ver muitos jovens, nos seus trabalhos de conclusão de curso, tendo o carimbó como tema, né, que nos procuram constantemente para obtenção de informações. E, pra gente, é de suma importância dar continuidade a essas tradições, né, nas questões populares. E o tambor era uma das primeiras formas de comunicação que existe entre os povos, né. É... O som que você consegue emitir no tambor, você consegue atingir as camadas, a psique, no sentido mais profundo. Um domingo desses, nós fomos tocar dentro de um terreiro, terreiro de umbanda, mesmo, né. E, em determinado momento, a gente tocou “Chama Verequete”. E tinha duas pessoas que (...) não faziam parte do terreiro, mas estavam lá participando daquela festa. Que, quando a gente tocou, a energia foi tão grande, que aquelas pessoas sentiram a questão da energia do tambor e chegaram a “balançar”, né. Aí, as pessoas responsáveis pelo terreiro, acolheram elas, levaram para um local mais adequado, e conseguiram trazê-las para o estado que antes elas estavam. Então, essa questão dessa relação do tambor, ela tá para humanidade, assim como a humanidade estar para essas questões né. Desde que o mundo é o mundo, que, o som é motivo de interesse muito grande das pessoas, né. Na Roma antiga, os guizos eram vendidos a peso de ouro, né, por causa daquele som, que ele tem característico. Ele tem uma característica muito grande, aquele som, aquele som agudo, ele atinge uma camada de um por cento da cabeça da gente, que é muito forte, muito poderosa, né. Os antigos usavam aquilo para se fazer as projeções astrais, né, aquelas coisas. Eu vivi uma experiência, uma certa vez, mas foi muito rápida, né. Eu cheguei a sair de forma muito rápida, mas voltei também, muito rápido, né, é aquela questão, fazendo essas experiências. Então, essa questão do som é de suma importância na vida de cada ser humano. Eu vou demostrar, agora, é, uma levada... na verdade, um elemento que é muito utilizado no samba de cacete lá na região de Cametá, né. Eles usam um mecanismo usando o calcanhar para fazer umas variações rítmicas, né; pra dar um... E acabei que eu, pegando esse mecanismo, acabei criando uma outra variante do samba com um pouco mais de swing, que eu vou demostrar para vocês [mestre Nego Ray começa a demonstração]. Muito obrigado! E, com relação à prática das composições, geralmente eu (...) vivencio uma determinada situação e acabo que capturo com o olhar e transformo em poesia. E, depois, eu vou para o instrumento e pratico, e vejo em qual ela se adequa melhor, a levada, né. Então, geralmente surge tudo junto: a letra

e, 144

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consequentemente, a música; e eu vou para o instrumento, e me dou o privilegio de escolher em qual levada ela fica melhor. Pode ser um carimbó, pode ser uma levada mais pop. E eu vou citar aqui uma poesia que eu fiz, que eu compus pra filha de um amigo meu, Silvio Barbosa, que está bem ali. Que ela nasceu no dia 07 de janeiro e... estava lá em casa, e adentrei no jardim que eu tenho lá, um pé de açucena. E, naquele momento que eu adentrei ali, naquele, eu senti um cheiro muito forte. Ela floriu pela primeira vez. Inebriado que eu fiquei por aquele perfume, eu observei, ela tinha florido pela primeira vez. E a esposa dele tava para dar à luz a uma criança, né, e... eu acabei que eu associei, né, ela não tinha nascido. Mas aí, pela atmosfera, eu acabei que, comecei a pensar, e veio os primeiros versos da poesia, e ficou assim: [cantando] Meu pé de açucena meu flor, Isso é um grande sinal A Luci acabou de nascer Pereceu no meu quintal Eita, sopro de vida muito especial Que veio do Silvio à Marisa Pra brincar no meu quintal (2x) Hoje ela já dentro, de vez em quando, do Coisas de Negro, a mãe dela leva ela junto com o Silvio. Ela já entra, sabe? Já faz a correria, já brinca. É motivo de muita satisfação poder fazer essas coisas e contar essas coisas para vocês. Sintam-se privilegiados de estarem vivenciando, algo assim, de muita importância dentro da música do Estado, né. Hoje o carimbó se tornou patrimônio cultural, brasileiro, e o Coisas de Negro serviu muito de referência pra isso, muito mesmo, né. E a gente tem dois intercâmbios, já, agora, com o pessoal do interior. Veio o Sereia, Gilmar. Domingo passado teve o grupo Uirapuru. Esse domingo, lá, vai estar a Marcela Martins, que é lá da cidade de Soure, vai estar se apresentando lá. E, no outro domingo, dia 03, a Nazaré Pereira vai estar fazendo um show lá – aproveito até divulgando já, por ocasião dessa questão, lá. E eu fico muito feliz em poder estar aqui. Depois, o carimbó de Icoaraci vai tocar um pouco. E eu fico muito grato pela presença de todos e pela fala que eu acabei de fazer, tá bom? Muito Obrigado!

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COMUNICAÇÕES ORAIS

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SESSÃO 1 Coordenação: Edson Santos Silva

Banda de música da Polícia Militar no Oeste Paraense

Andréa Reni Mendes Mardock Universidade do Estado do Pará - [email protected]

Anderson Levy Mardock Corrêa Polícia Militar do Pará – [email protected] Resumo: A Banda de Música da Polícia Militar do Estado do Pará na região oeste do estado, mais especificamente na região do Baixo Amazonas no município de Santarém, se dá numa perspectiva histórica e social. O projeto será mais indicativo para se pensar musicalização em diversos ambientes, tais como: Escolar, Hospitalar, Comunidade e Eventos Civis e Militares, e desta forma contribuir com ações para o desenvolvimento musical de crianças e adolescentes, oferecer ambiente musical em escolas e hospitais e abrilhantar eventos civis e militares com belas harmonias e melodias. A contribuição social, é um projeto voltado para o ensino do uso de instrumentos, os integrantes da banda, apresentam crianças e adolescentes como sujeitos, e a música como instrumento do desenvolvimento intelectual, e trás a tona uma questão social na medida em que envolve sujeitos sociais (crianças e adolescentes), bem como dá oportunidade aos mesmos de desenvolverem dimensões socioeducativas, com interação através da música e consequentemente a influência dela em seu cotidiano. A Banda da Polícia Militar em Santarém vem desenvolvendo suas atividades desde a década de 70, atualmente atende quatro projetos: “Construindo Sonhos”, com Crianças e Adolescentes; “Banda Itinerante nas Escolas”, Alunos, Professores e Funcionários; “Banda Itinerante nos Hospitais”, Pacientes e Acompanhantes e “Banda de Música em eventos Militares e Civis”. Portanto, é notória a sociedade santarena durante essas quatro décadas, a contribuição da Banda, abrilhantando eventos e aproximando a Polícia da Comunidade. Palavras-chave: Banda de Música. Polícia Militar. Projetos.

1. APRESENTAÇÃO67 A Banda de Música da Polícia Militar do Pará foi fundada no ano de 1981, com o propósito de abrilhantar as solenidades militares e eventos civis da sociedade santarena. Em princípio sua formação com 23 integrantes era composta de 11 militares e 12 civis. Sua

Dados coletados na Seção de Pessoal no 3º Batalhão de Polícia Militar – BPM, através do Boletim Geral – BG e Boletim Interno – BI. 67

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primeira formação estava sob a responsabilidade do sargento Zaranza, o qual era responsável pela seleção dos integrantes civis e militares para sua composição. A instrumentação que compunha a banda pertencia aos próprios músicos, pois naquela ocasião a Polícia Militar não dispunha de instrumentos que pudessem atender as necessidades de formação da banda. Inicialmente o repertório foi formado com ajuda dos músicos civis, pois os mesmos pertenciam a Banda Municipal de Santarém, dessa forma, era mais prático adotar o próprio repertório popular que a Banda Municipal executava em suas apresentações. Entretanto, nas solenidades militares, executava-se um repertório específico para os eventos, baseado no mesmo que a Banda Central da Polícia Militar. Atualmente a Banda, está composta com 13 integrantes, dos quais 04 dos sargentos são formados no Curso de Licenciatura Plena em Música pela Universidade do Estado do Pará (UEPA) e 01 soldado encontra-se em processo de formação no mesmo curso. A Banda de Música hoje apresenta duas formações em sua estrutura de trabalho. A formação tradicional no qual se apresenta nas solenidades cívico militares que acontecem no decorrer do ano, bem como, uma formação diferente para os moldes de uma banda militar, que é composta de instrumentos de sopro complementada com instrumentos eletrônicos os quais mudam sua característica de formação, proporcionando a Banda de Músicaoutras alternativas de apresentação junto a sociedade. 2. CAMINHOS PERCORRIDOS68 A música produz influência na vida de todos nós, seja jovem, criança ou adulto indistintamente. A Banda da Polícia Militar em Santarém que ativamente participa de eventos sociais em diversos momentos como eventos esportivos, recepção das autoridades governamentais, nos mais variados eventos religiosos, missas, cultos, desfiles cívicos militares e natalinos, bailes, nas festas escolares Municipaise Estaduais. Com isso a Banda da Polícia Militar em Santarém vem sendo o cartão de “boas vindas” e de aproximação entre polícia e comunidade, transformando a população em parceira da cultura e da segurança pública.

68

Idem.

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Segundo Carvalho p.4 “Em 1678 na Inglaterra surge o termo Banda Militar que eram chamados de músicos nas tropas. Em 1762, quase cem anos depois, na França se constitui a primeira orquestra militar”. Napoleão escrevendo a seu ministro de Guerra em 1813 disse: “Passei em revista a vários regimentos que não tinham banda. Isto é intolerável! Apresse-se em enviá-las”. Hoje podemos dizer que a Banda de Música da Polícia militar em Santarém alimenta a sociedade com boa música e bons músicos. Com a criação da 1ª Companhia Independente de Polícia em 1970, o número de policiais em Santarém aumentou consideravelmente, e nas comemorações da semana da Pátria com participação ativa nos desfiles, fazendo assim a Polícia Militar em Santarém seu primeiro desfile com uma pequena banda de fanfarra composta de seis militares, distribuídos: duas Caixas de Guerra, um Bombo e três Surdos. Militares que já tinham prática de bandas nas escolas foram escolhidos para participarem da banda de fanfarra. O que se segue nos anos vindouros mesmo sem uma banda formal, visto que a banda de fanfarra só era reunida para os eventos e desfiles comemorativos. O que se segue nos próximos anos da década de 70 é que a Companhia Independente da Polícia Militar – CIPM, não tinha uma banda de música para as comemorações internas, eram convidadas algumas bandas de fanfarras das escolas da rede estadual de ensino, para abrilhantarem e assim aproximar a comunidade da Polícia Militar e a participarem juntamente com os militares dos desfiles comemorativos. A partir de 1978 houve um aumento no quantitativo de Policiais Militares da Companhia, Militares formados em Santarém, pois até então os policiais destacados eram oriundos de Belém, com esse avanço no quantitativo de militares a banda da fanfarra da PM no desfile de 7 de setembro já se tem um número bem significativo, visto a fanfarra de 1971, composta por 15 militares. Na década de 80 houve a necessidade de expansão, dado o aumento da área de jurisdição e o crescimento demográfico, ficando assim a CIPM pequena para atender a demanda da Região do Baixo Amazonas. Dessa forma, pela necessidade de conformidade com a Portaria nº 001/80-AJG, de 02 de abril de 1980, a 1ª Companhia Independente de Polícia Militar tomou a denominação de 3º Batalhão de Polícia Militar – Batalhão Tapajós.

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Pelo Decreto nº 2.110 de 01 de fevereiro de 1982 foi definitivamente consagrado a denominação de 3º BPM, sob o comando do Cel PM Pedro Alves de Sousa.69 Devido às comemorações, formaturas, promoções e condecorações que fazem parte do calendário militar, houve a necessidade do batalhão ter sua própria Banda de Música, para recepcionar autoridades na cidade de Santarém, pois o 3º BPM era responsável por fazer a Guarda de Honra de tais autoridades. Desde então a Banda de Música passou por grandes transformações do período de sua criação até hoje. Mas o maior avanço foram nos últimos 4 anos. Hoje o atual regente é o 1º Sgt BRINDEIRO, que juntamente com os componentes da Banda, inovaram e investiram em instrumentos e equipamentos para melhor desenvolverem suas atividades. Uma das grandes conquistas foi à mudança de local de instalação que saíram do 3º BPM, que é um Batalhão Operacional (que atua em todas as frentes de serviço Policial Militar) e está adido ao CPR-I que é um comando estratégico. A fim de contribuirmos com a sociedade santarena, através da segurança pública e os dons trazidos com os militares, nos quais referenciamos os musicais e ainda compreendermos o contexto atual das instituições onde serão executados os projetos, traçamos os seguintes objetivos: Geral: Contribuir através dos projetos da Banda de Música da Polícia Militar, com ações para o desenvolvimento musical de crianças e adolescentes, oferecer ambiente musical em escolas e hospitais e abrilhantar eventos civis e militares com belas harmonias e melodias. Específicos: 

Proporcionar às crianças e adolescentes um espaço de educação e cidadania

na comunidade, em prol do desenvolvimento da sensibilidade e criatividade humana por meio do contato com a linguagem artístico-musical; 

Despertar o interesse pela música nas escolas;

69

Dados coletados para o Projeto da Banda de Música, 1º Comandante do 3º Batalhão de Polícia Militar em Santarém.

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Promover benefícios tanto para pacientes como a equipe de profissionais e

acompanhantes em ambientes hospitalares, através da música; 

Oferecer a sociedade santarena um bom repertório através da Banda de

Música da Polícia Militar, em eventos civis e militares. 3. PROJETO CONSTRUINDO SONHOS O ensino da Música, como componente curricular na Educação de um modo geral e Educação Profissional, conforme a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) LEI Nº 11.769, de 18 de agosto de 2008, artigo 26, parágrafo 6º, o qual assevera “a música deverá ser conteúdo obrigatório, mas não exclusivo, do componente curricular de que trata o § 2o deste artigo” BRASIL, (2008). O Projeto de Musicalização “Construindo Sonhos” surge da necessidade de oferecer às crianças e adolescentes uma atividade que possibilite a integração sócio cultural, pois é certo que a Música assim como as demais artes, fazem parte do dia-a-dia na vida das crianças e adolescentes. Porintermédio do Projeto de Musicalização “Construindo Sonhos” espera-se que o amor e apreço pela Música irradiem do ambiente militar, para casa de cada integrante, com isso espera-se alcançar os seguintes objetivos. 

Desenvolver a percepção auditiva e a memória musical;



Conhecer usos e funções da Música através dos instrumentos;



Criar oportunidades de cultura e lazer para os estudantes, diminuindo seu

tempo ocioso. O desenvolvimento do Projeto consiste em 03 etapas distintas e sequenciais. A primeira se refere ao convite a alguns Militares para atuarem como professores no ensino musical e o preparo da estruturação de “Ensino de Música”. Paralelamente ocorrerá a segunda Etapa, viabilizando a preparação do local em que funcionará o Projeto de Musicalização “Construindo Sonhos”. Essas duas primeiras etapas servirão de encaminhamento para inserção da Música junto à comunidade. A música proposta para ser executada no projeto tem como base a Educação Musical e em futuro próximo Profissionalizante de Técnico Musical, abordando em diferentes graus os seguintes assuntos: Iniciação Musical, Flauta Doce, Canto, Instrumento e Fanfarra. 151

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Portanto o Projeto de Musicalização “Construindo Sonhos” desenvolver-se-á em todas as fases, desde seu início com os contatos e sensibilização dos parceiros, até a execução propriamente dita, que ocorre dentro da sala do projeto, e que conforme esperamos chegar a outros locais de nossa comunidade, principalmente, no ambiente familiar dos alunos. 4. BANDA DE MÚSICA ITINERANTE O Ensino da música no ambiente comunitário representa uma ótima oportunidade de ampliar a visão e a audição das crianças e dos jovens, música é arte, manifestação, meio de comunicação, uma das formas de linguagem que exerce um poder mágico sobre as pessoas, neste sentido a cultura musical integral, que é mais que um agregado de certas habilidades mais ou menos cultivadas, configura-se no ser humano desde a infância como parte integrante de uma personalidade harmoniosa, e este poder que a música oferece podem integrar sócio afetivamente as mais variadas diferenças existentes em nosso meio, quer seja, na sala de aula, em casa, no trabalho, na comunidade ou nas instituições religiosas. Para Jean Piaget o desenvolvimento humano dá-se através de estágios, considera que a maneira de raciocínio e forma de aprender da criança são constituídos através da interação com o meio físico e social. Neste sentido, a criança passa por estágios para chegar a um pleno desenvolvimento cognitivo, afetivo e neurológico. “Os estímulos são o alimento das inteligências. Sem esses estímulos a criança cresce com limitações e seu desenvolvimento cerebral fica extremamente comprometido”.(Antunes, 1998. p.18). O normal seria que a criança chegasse à vida musical pelo canto, pelas evoluções rítmicas e pela utilização do material auditivo, porém, é bom para sua educação musical, que pratique, em um momento dado, um instrumento. A técnica instrumental, realizada em um sentido musical e vivo, pode ser fonte de alegria. RODRIGUES (p.108).

A educação musical aliada à prática instrumental executada pelas bandas de música atrai naturalmente a atenção de qualquer criança, proporcionando-lhes possibilidades de aumentar seu potencial de criação e criticidade, proporcionando sua socialização. 

Desta forma traçamos os seguintes objetivos:



Proporcionar o conhecimento sobre a banda de música; 152

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Melhorar a interatividade entre a Polícia Militar e a sociedade;



Propiciar vivência musical integrada;



Divulgar o trabalho musical executado pela Banda de música.

É direcionado para a sociedade em geral, com foco principal nas atividades músico culturais e sociais nas instituições públicas educacionais, com apresentações musicais para todas as faixas etárias. 5. BANDA ITINERANTE EM HOSPITAIS Na perspectiva de intervenção da ação social na área da saúde, por meio da música como instrumento de humanização hospitalar, mediante apresentações musicais para a apreciação da arte. Entende-se que essa ação permitirá a inserção da música no espaço hospitalar,

propiciando

bem-estar

aos

pacientes,

aos

familiares

e

à

equipe

multiprofissional, contribuindo para melhorias e qualidade de vida aos usuários desses espaços. Proporcionando um momento musical, para: aliviar o estresse, aliviar a angústia da espera, aliviar a dor, colaborar nos procedimentos e um maior envolvimento da família; pelas oportunidades individuais que cria, através das melodias; pela qualidade das relações interpessoais que possibilita; pela atuação como agente polarizador de vários recursos e serviços; pelas emoçõesgratificantes que gera e pelos sentimentose valores positivos que desperta, para além da compensação do sofrimento causado pela doença, (ABEM 2012, p. 183). Desta forma traçamos os seguintes objetivos: 

Promover através da música um ambiente agradável para pacientes,

equipesmultiprofissionais e acompanhantes, nos hospitais públicos, tornando-odesta forma mais acolhedor e humano. 

Levar a arte com a música instrumental;



Possibilitar através da música um ambiente de descontração e alegria,

integrando Equipe de profissionais, pacientes e acompanhantes; 

Proporcionar uma pausa na difícil rotina dos profissionais da saúde e uma

oportunidade aos pacientes, familiares e amigos de esquecer, ainda que por instantes, os problemas de saúde que os levaram até o local;

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Com duração de uma hora, as apresentações são realizadas sempre em local de amplo e fácil acesso e grande movimentação. Após a apresentação principal, a banda divide-se em grupos, que circulam por andares, corredores e quartos, alcançando os pacientes que não têm condições de se locomover, sempre de acordo com as orientações de cada hospital. No repertório das apresentações, serão apresentadas composições de autores nacionais e internacionais. Referências ANTUNES, Celso. Jogos para a estimulação das múltiplas inteligências. Petrópolis. Editora: Vozes, 1998. BRASIL, Ministério da Educação. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei 11.769 de 18 de agosto de 2008, Art. 26, parágrafo 6º. Brasília. Ministério da Educação/Secretaria de Educação Especial. CARVALHO, V.M. de. História e Tradição da Música Militar. Disponível em: . Acesso em: 08 set. 2015, 10:15:27. Música e saúde: A humanização hospitalar como objetivo da educação musical. Revista da ABEM/Londrina/v.20/n.29/171-18/jul.dez 2012 p.183. PIAGET, J.; INHELDER, B. A Psicologia da Criança. Rio de Janeiro: Difel, 1978. [La Psychologie de L Enfant, 1966]. RODRIGUES, Helena Guimarães. Bases Psicológicas da Educação Musical. Realizado no primeiro encontro João XXIII-P. Alegre. (p. 108).

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Jurunas: da perspectiva de seis representantes da música local.

Bárbara Lobato Batista UFPA – [email protected]

Ediel Rocha de Sousa UFPA – [email protected]

Erica Caroline Paixão UFPA – [email protected]

Lana Luisa Aragão UFPA – [email protected]

Nathália Lobato da Silva UFPA – [email protected]

Pedro Miranda dos Santos Junior UFPA – [email protected]

Sonia Chada UFPA – sonchada2gmail.com

Resumo: O presente artigo é um trabalho de conclusão disciplinar que teve como foco a prática musical de um dos bairros de Belém. O objetivo foi o de investigar, classificar e fornecer informações sobre as práticas e a produção musical do bairro do Jurunas. O bairro se localiza nos arredores do centro de Belém, sendo muito populoso e muito expressivo culturalmente, tendo como características marcantes o tecnomelody e o tecnobrega. A pesquisa apresenta resultados sobre a produção musical do bairro, a partir do ponto de vista de seis artistas locais. Os entrevistados são representantes de contextos e gêneros musicais distintos - carimbó, tecnomelody, MPB e Samba. Os resultados apontam as diferentes concepções que os artistas têm a respeito da influência de sua música no bairro, e questões sobre problemas sociais e música para consumo. É nítida a preocupação de alguns artistas em relação à hegemonia musical existente no bairro e, assim, se preocupam em desenvolver mecanismos para que possam ser difundidos outros gêneros musicais, visando a comunidade.

Palavras-chave: Jurunas. Produção musical. Representantes locais.

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1. Introdução Belém é uma cidade conhecida por ter uma população hospitaleira, acolhedora e festeira. Fazem parte da cultura paraense, entre outras manifestações, o carimbó, a guitarrada, o tecnobrega e as aparelhagens que trazem alegria para sua gente. Cada bairro da cidade tem um toque especial. Talvez seja o açaí, o pato no tucupi ou o tacacá que apimentem a relação entre a cidade e seus moradores, inspirando-os em suas expressões culturais. Um dos bairros mais expressivos culturalmente é o bairro do Jurunas. Localizado na zona sul de Belém, o Jurunas recebeu esse nome devido ao antigo nome de uma travessa chamada Jurunas, na época conhecida como “boca” do Jurunas. Com nome de origem indígena, o bairro possui várias ruas que também recebem nome de tribos indígenas como Tupinambás, Tamoios e Mundurucus. Segundo o censo de 2010, o Bairro do Jurunas possui 64.478 habitantes,

sendo

30.380 homens e 34.098 mulheres (IBGE, 2010). É um bairro com muitas disparidades econômicas. Algumas zonas são desenvolvidas economicamente, contendo prédios e estabelecimentos comerciais, e outras áreas carecem de infraestrutura e saneamento básico. O estado do Pará é culturalmente muito rico, com várias manifestações envolvendo dança, música e religião. A música, de alguma forma, está presente nessas manifestações. Pesquisas sobre a música no Pará têm sido desenvolvidas, porém, diante da diversidade musical existente no Estado, ainda não temos uma visão geral do cenário musical paraense. Com o intuito de colaborar com as pesquisas acerca da música no Pará, esta pesquisa foi desenvolvida escolhendo o bairro do Jurunas, por ser um dos bairros mais expressivos culturalmente de Belém. Apesar de ser um bairro conhecido como polo do desenvolvimento do tecnobrega, do tecnomeody e das festas de aparelhagens, este trabalho não tem como foco apenas estes estilos, e sim a produção e o fazer musical dos gêneros musicais com os quais tivemos contato no referido bairro. Diante das características sociais do Bairro do Jurunas, propusemos desenvolver uma pesquisa seguindo o caminho teórico da Etnomusicologia, sobre o cenário musical do bairro, investigando a produção musical existente no bairro a partir do ponto de vista de seis artistas locais, considerando o contexto social em que as práticas estão inseridas e

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buscando entender de que forma o contexto social influencia a cultura, em especial a música, considerando a prática musical como: Um processo de significado social, capaz de gerar estruturas que vão além de seus aspectos meramente sonoros, embora estes também tenham um papel importante na sua constituição, sendo de extrema importância neste contexto. (...) A execução, com seus diferentes elementos (participantes, interpretação, comunicação corporal, elementos acústicos, texto e significados diversos) seria uma maneira de viver experiências no grupo (CHADA, 2007, p. 139).

A fim de gerar material de pesquisa, registramos a entrevista com seis representantes da música local em forma de documentário. Os entrevistados foram: Helinho, Rubão Andrade, Ziza Padilha, Cleide Moraes, Suanny Batidão e Dona Josenilda. 2. Análise dos dados A primeira pergunta feita aos entrevistados foi desenvolvida a fim de coletar dados sobre a maneira com que o contexto social em que o compositor está inserido influencia a sua produção musical. A partir da análise dos dados obtidos, percebemos que para a maioria dos artistas entrevistados o contexto social em que eles estão imersos é o que mais influencia as suas produções musicais. A entrevistada Josenilda, gerente responsável pelo grupo de carimbó Uirapuru, conta que as situações vivenciadas no dia-a-dia influenciavam diretamente as composições do mestre Verequete. Como exemplo, certo dia ela conta que uma moça de cabelos longos, que lhe chamou a atenção, foi inspiração para uma de suas composições. De acordo com o verificado por Blacking (2000), quando afirma que as criações musicais são reflexos de eventos culturais, sociais, psicológicos e musicais ocorridos na vida do compositor. O entrevistado Helinho, intérprete e secretário da escola de samba “Rancho não posso me amofiná”, explicou desde o processo de escolha do tema até a escolha do samba enredo: o processo começa com uma pesquisa que dura de 30 a 45 dias, feita pela comissão do Rancho para escolher um determinado tema. É elaborada uma sinopse que é passada para um grupo de compositores específicos que dispõem de 60 dias para elaborar o samba. Então, é organizado um festival para que as composições sejam apresentadas e os diretores possam escolher qual o samba que irá para a avenida. Antes a escolha do samba enredo era feita por professores da UFPA. Entretanto, os diretores perceberam que nem sempre a composição escolhida era a que mais agradava à população e aos

integrantes da escola de 157

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samba, já que os professores analisavam os sambas a partir de uma visão técnica. Hoje os sambas são escolhidos por diretores do Rancho, considerando a aceitação das composições pela comunidade. Podemos perceber que a preferência do grupo social contribuiu para que houvesse uma mudança no repertório musical da escola de samba. Este fato se torna compreensivo a partir do momento que entendemos que a música está em constante mudança, em uma associação com a realidade da sociedade na qual a música é consumida. Nettl (2006) defende, quando analisa as mudanças musicais que ocorreram em um grupo de aborígenes australianos: “Para alguma coisa ser a música "deles", ela não depende somente do estilo musical,

mas

também

de

uma

associação

específica

com

sua

sociedade,

independentemente de como a música soa”. Ao fazer a segunda pergunta, percebemos respostas mais divergentes, tanto no entendimento do que seria influenciar musicalmente o bairro quanto a percepção de cada artista a respeito do seu trabalho em relação à comunidade. No que se refere ao aspecto social, Helinho, Rubão (violonista, toca na noite belenense) e Ziza (músico, violonista, produtor cultural) entendem que existe uma necessidade de políticas públicas que atendam a essa carência de educação musical presente no bairro, reconhecendo que esta seria uma ferramenta para resgatar crianças e adolescentes de uma realidade de violência e drogas, além de servir como uma forma de propagação de estilos musicais pouco difundidos na comunidade jurunense. Segundo Helinho, o Rancho, mesmo sendo uma grande referência no bairro, atinge no máximo 10% da população local, o que nos leva a concluir que os demais artistas que tem seu trabalho mais independente, tendem a ser menos propagados. Partindo dessa necessidade social e artística, alguns artistas do bairro, inclusive, Rubão e Ziza, decidiram se reunir, por meio de uma associação, a CARAMUJU, que tem o intuito de reunir os artistas locais de diversos estilos, a fim de propagar novos estilos musicais para crianças e adolescentes através da educação e apresentações musicais. Para Suanny (cantora, representante do melody) e Cleide Moraes (cantora, representante do brega e das serestas), a música faz parte do dia-a-dia das pessoas, seja no lazer ou até mesmo no trabalho, proporcionando um momento de prazer. Um fato que chamou bastante atenção foi quando ao responder esta pergunta, Dona Josenilda expôs a falta de interesse por parte do governo e também da população sobre o grupo Uirapuru, 158

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devido à falta de investimento na música de autoria do mestre Verequete, o que acaba interferindo na propagação de sua música, inclusive no bairro do Jurunas. A terceira pergunta foi desenvolvida para que pudéssemos descobrir outros artistas do bairro. A partir das respostas pudemos perceber que alguns dos artistas entrevistados são bastante envolvidos com a cultura musical do seu bairro, pois citaram outros artistas, bandas, grupos e projetos sociais e reconheceram que o Jurunas é um bairro diversificado e rico culturalmente. Três dos entrevistados disseram não conhecer movimentos culturais no bairro do Jurunas. Todos citaram a escola de samba “Rancho não posso me amofiná”, mostrando o quanto o “Rancho” é um ícone cultural importante no bairro. A partir da análise das respostas dadas para a quarta pergunta, constatamos que todos os entrevistados demonstram orgulho e satisfação em serem considerados representantes da cultura do seu bairro. Apesar das dificuldades que passaram e passam para divulgar e desenvolver seu trabalho conseguem viver da música. O amor à música e o acreditar no que fazem é o que gera a força propulsora para continuarem a desenvolver seus trabalhos musicais. Serem reconhecidos como representantes da cultura do seu bairro é um dos fatos que geram o sentimento de orgulho, e de que todas as dificuldades superadas valeram à pena. A quinta pergunta tem como objetivo entender como o artista se enxerga na sociedade, como eles interpretam o que é considerado um profissional da música: As distinções entre a complexidade superficial dos diversos estilos e técnicas musicais não nos diz nada de relevante sobre os propósitos expressivos e o poder da música, ou sobre a organização intelectual que a sua criação importa. A música tem por demais a ver com sentimentos e experiências humanas em sociedade, e seus padrões são, com muita freqüência, o produto de explosões surpreendentes de cerebrações inconscientes, para que se sujeite ela a regras arbitrárias, tais como as dum jogo (BLACKING, 2000, p. 42).

Tivemos certa dificuldade para que essa pergunta fosse compreendida. Reconhecemos que seria melhor se tivéssemos elaborado mais adequadamente a pergunta, o que nos fez por muitas vezes ter que explicar o que queríamos saber. Percebemos da parte de dois entrevistados - Helinho e Suany, a preocupação em atender à nossa expectativa por sermos estudantes de música da UFPA. Concluímos assim, pois a resposta inicial foi de que músicos para eles são aquelas pessoas que procuram estudar música formalmente. Mas, logo em seguida, afirmaram que músicos são aquelas pessoas que têm afinidade com o fazer musical e o fazem independente de terem estudo formal ou

não. 159

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Suany chega a comentar que os músicos do tecnomelody não costumam estudar música formalmente. Para Rubão e Cleide Moraes, músico é aquele que, apesar das dificuldades que existem no ramo da música, não desiste e faz da música o seu sustento. Para o Ziza Padilha, músico é aquele que sonha e estuda música, independente do seu desenvolvimento técnico, teórico e prático. Dona Josenilda, em sua resposta, mencionou grupos e compositores do carimbó. E, que o ato de tocar já caracteriza um músico. Breves considerações O contato com os fundamentos da etnomusicologia, através da

disciplina

Introdução à Etnomusicologia, ofertada para alunos do curso de Licenciatura em Música da UFPA, e a experiência que tivemos em campo durante esta pesquisa, nos fez refletir sobre a diversidade musical existente em nosso Estado e, a importância de cada uma dessas expressões musicais para as pessoas que as criam, praticam e consomem. Concluímos que as experiências vividas só vem a acrescentar à nossa formação profissional, pois, nós, estudantes do curso de licenciatura em música e em potencial futuros professores, devemos também conscientizar nossos alunos acerca dessa diversidade e sua importância. Cada artista produz música direcionada para um público, ambiente e com objetivos específicos. Sendo, para a pesquisa, dispensável qualquer tipo de julgamento e/ou comparação entre os gêneros. Alguns artistas entrevistados criticaram a hegemonia da música de massa e afirmaram ter a necessidade de desenvolver mecanismos difusores de outros gêneros musicais no bairro. Dona Josenilda, também se queixa da falta de apoio de órgãos públicos ao grupo de carimbó Uirapuru. A maioria dos entrevistados manifestou um sentimento de frustração em relação à realidade do bairro, que tem um alto índice de violência e criminalidade. Também lamentaram a falta de projetos sociais que pudessem proporcionar o contato com as artes, em especial a música, funcionando como um mecanismo para afastar as crianças e os jovens do mundo do crime. Acreditamos ser possível aulas de música ministradas por educadores conscientes, nas escolas do bairro do Jurunas. Educadores que em suas aulas desenvolvessem atividades relacionadas a vários gêneros musicais, proporcionando aos alunos o contato com a

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diversidade musical presente no bairro e no Estado paraense, minimizando as distâncias e diferenças. Referências BLACKING, John. How musical is man? 6a ed. Seattle: University of Washington, 2000. CHADA, Sonia. A Prática Musical no Culto ao Caboclo nos Candomblés Baianos. In: III SIMPÓSIO DE COGNIÇÃO E ARTES MUSICAIS, 2007, Salvador. Anais... Salvador: EDUFBA, 2007. Pp. 137-144. NETTL, B. O estudo comparativo da mudança musical: estudos de caso de quatro culturas. In: Revista ANTHROPOLÓGICAS, ano 10, vol. 17 (1), 2006.

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Fundamentos do Boi de Toquinho: brinquedo de encantado. Luiz Antônio de Albuquerque Lins Filho Faculdade Integrada Brasil Amazônia – [email protected] Luana Bagarrão Guedes Faculdade Integrada Brasil Amazônia - [email protected] Resumo: Este trabalho busca identificar os fundamentos do brinquedo de rua “boi de Toquinho”, reconhecendo a importância dessa brincadeira e dialogando de forma comparativa com as outras brincadeiras de boi bumbá ocorridas em Belém, apontando semelhanças e distinções entre esses bumbas e o boi de Toquinho. Palavras-chave: Boi-bumbá. Tambor de Mina. Cultura Popular.

1. Introdutórios ao brinquedo Para entendermos os fundamentos do boi de Toquinho, faz-se necessário primeiro compreender o começo do boi “Orgulho de Codó” de seu Dominguinhos de Légua, pois o boi de Toquinho tem seus desdobramentos iniciais na festa desse boi em São Luis do Maranhão. Para isso, analisamos o depoimento do encantado Dominguinhos, coletada em nossa pesquisa de campo e de seu Leandro (cavalo70 de seu Dominguinhos) em entrevista dada ao pesquisador Gérson Lindoso (2006), que havia feito pesquisa sobre o boi Orgulho de Codó, e dessas duas fontes fizemos análise para compreender esse começo do Boi de Toquinho em Belém. Com auxílio do dossiê do complexo do bumbá meu boi do IPHAN, que mostra que são os encantados que regem a brincadeira dessa vertente de boi (IPHAN, 2011, p. 86) do começo ao fim. Reafirmado por seu Dominguinhos de Légua da família de codoenses na croa71 de seu Leandro quando nos conta a trajetória que começa as brincadeiras do boi “Orgulho de Codó”. O meu boi quando ganhei...porque meu filho ele professor e ele foi não sei o que uma faculdade, participar não sei de que, e tava muita gente de fora né. Então como era lá em São Luís o pessoal deram de lembrança uns boizinho na vara né, uns boizinho na vara. E seu leandro meu filho chegou no meu ponto no meu altar que tenho em minha casa né... que é a casa de seu leandro, e botou o boizinho pendurado no pescoço de são joão. quando baixei nele eu olhei o boi e disseram,

70 Cavalo é o termo usado pelas entidades aos filhos de santo ao qual se encorporam 71 Termo usado pelos mineiros para designar “cabeça”, ou melhor, pessoa em qual o encantando está encorporado.

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/ Belém – 2016 Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares. as serventes as clientes - olha, aquele boizinho é pra ti (entrevista: Dominguinhos, na cabeça de seu Leandro, Idem; Ibden).

Desse começo podemos fazer um espelhamento no texto de Gérson Lindoso sobre o boi Orgulho de Codó no momento de uma entrevista com seu Leandro, onde aparece a seguinte versão: Segundo o próprio Leandro (entrevista maio 2006) o boi de encantado lá teve início, a partir do pedido de seu Dominguinhos Légua, pois na casa não tinha boi de encantado e também, devido ele ter sido presenteado por uma cliente dele com um boizinho na vareta, que logo foi identificado pelos outros filhos de santo do terreiro como o boi daquele encantado (LINDOSO, 2006, p.14).

Percebemos as semelhanças nos depoimentos feitos em períodos diferentes, importante atentar que seu Dominguinhos é o encantado e guia de seu Leandro. É com base neles que entendemos sobre os fundamentos do boi de encantado e pudemos associálos ao momento da observação e análise do ritual do boi de Toquinho. Esses fundamentos do boi, expressão utilizada referindo-se aos elementos que compõem o boi de encantado, e aqui trazemos o boi de Toquinho em observação, consiste basicamente nas etapas que são: o batismo do boi; esconder o boi; busca da Joia; busca do Mourão e fuga ou morte do boi. Importante ressaltar que esse roteiro, após a festa do batismo, ocorrem em único dia apenas, no caso observado do boi de Toquinho. Começando na madrugada, com o fim do toque do tambor, até a noite seguinte com a fuga do boi. E das razões desse roteiro ser feito dessa maneira, temos a explicação dada pelo encantado seu Dominguinhos de Légua: Do boi só é num dia, não pode ficar muitos dias. Boi de encantado. Agora boi mesmo que lá sai de lá nas brincadeiras de são João, eles brincam o ano todo né. O nosso não porque a gente não como tá muitos dias aqui no “mundo de pecado”, pra tá fazendo, pra tá batucando não, o nosso tudo acontece só num dia nesse dia o foge, é laçado é pegado a prenda. (entrevista: Dominguinhos, na cabeça de seu Leandro, Idem; Ibden).

Percebemos semelhanças na observação feita em pesquisa de campo em todo o folguedo do boi de Toquinho com o relato acima. Diferente dos bois de comédia de Icoaraci, por exemplo, pois o “[...] mês de Junho, durante as festas juninas, é seu tempo, e suas apresentações duram até agosto ou setembro. ” (FIGUEIRADO & TAVARES, 2006, p. 90)

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2. Fundamentos e suas etapas Começando pelo batismo que é um ritual religioso que ocorre no mês de Junho em apenas um dia, dentro da casa de tambor de mina, no caso de boi de Toquinho, esse batismo ocorre na casa de Mãe Cléa, onde seu encantado chamado “Ceará” que também é um dos padrinhos do boi de Toquinho. O ritual segue dentro de um padrão descrito por seu Dominguinhos constatado na pesquisa, onde ele conta que: Isso só em junho mesmo. Batizou, esconde.[...] Chama quatro padrinho quatro madrinha cada um batiza ele. cobre ele com a barra da saia e guarda nos assentamentos da casa. Pra sai só em setembro (o boi do seu dominguinhos) o meu batiza junho só sai em setembro. Porque ele (boi de toquinho) é igual ao nosso. é um brinquedo particular num pode tá amostra todo tempo não. Porque aquilo ali é um talismã né. é uma coisa sagrada né, batizou ele fica na casa. (entrevista: Dominguinhos, na cabeça de seu Leandro, Idem; Ibden).

O batismo para os brincantes do boi de Toquinho compõem um dos momentos rituais do terreiro. Buscando identificar essa etapa na modalidade de boi de comédia para nossa análise comparativa, pesquisamos o trabalho de Dias Júnior que narra o enredo na seguinte forma: Seu enredo é basicamente o mesmo em quase toda a região norte, conta a história de um boi de raça, que é mandado buscar pelo senhor da fazenda para servir como reprodutor do rebanho e, desse modo, ser o boi estimado do fazendeiro. O animal receberia um tratamento muito melhor que aquele dado aos escravos: qualquer mau trato ao boi representaria castigos severos aos cativos e ao vaqueiro e, por isso, a postura de vingança de Pai Francisco ao apanhar o boi preferido do Senhor. Pai Francisco era um preto velho que vivia na área de pastagem do animal. Uma vez que sua esposa Catirina, grávida, sentira o desejo de comer a língua do boi, ele desafiava ao “Amo”, que também era capataz da fazenda, ao atirar no boi de estimação do Senhor para retirar-lhe um tassálio. Em algumas encenações o desfecho se dá com a morte do boi num final glorioso e satírico, de êxtase do preto velho que vinga todos os seus antepassados (DIAS JUNIOR, 2009, p. 90).

E também buscamos nos relatos do amo de boi Jorge Raimundo Pereira de Souza essa análise, quando narra o enredo de sua comédia: é um aniversário de uma fazenda da filha do fazendeiro, ai fazendo pega convida toda... ai diz que vai ter um aniversário... e vai ferra o boi... o melhor boi da fazenda dele... começa o processo... chama o ferrador, passa pro administrador, o administrador para pros vaqueiros e os vaqueiros levam pro campo e quando acontece de alguém roubar o boi do fazendeiro. Que no caso é Catirina, Cazumbá, Pai Francisco, depois eles levam o boi e quando boi fica doente. Eles resolvem chamar o feiticeiro pra tirar...chamar o feiticeiro pra curar o boi... ai

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/ Belém – 2016 Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares. vem os compadres deles pra fazer aquela festa ai chama o ferrador. (Jorge Raimundo Pereira de Souza em entrevista concedida em 06 de Jun. 2013).

Nas duas narrativas acima não consta nenhuma menção ao “batismo ou batizado do boi” dentro da modalidade de boi de comédia recorrente entre os bumbas da região de Icoaraci. Verificando que essa peculiaridade, o batismo, é apenas do boi de terreiro. A etapa seguinte consiste no momento em que se esconde o boi. No caso do boi de Toquinho ocorreu na madrugada de domingo antes do tambor72 terminar, em meio aos cânticos o boi é levado pelos encantados para residência de um filho de santo da casa de mãe Rosângela. Lá o boi fica até o amanhecer quando saí para a próxima etapa. Pegar as “joias do boi”, esse momento consiste na busca de presentes como: bolos, dinheiro, brinquedos, dentre outras coisas doados por pessoas que são admiradoras da brincadeira do boi e previamente avisam para o boi ir buscar segundo nos conta a encantada Dona Leonor na crôa de Chistofer (entrevista concedida em 21 out. 2013). Essa etapa ocorre pela manhã posterior a fuga do boi e decorre durante todo o dia, confirmamos também que são os encantados que saem com o boi para buscar as “joias”. Aqui podemos visualizar um dos presentes (joias) dado ao boi de Toquinho no momento da busca da joia na imagem abaixo. Ilustração 1: um bolo - presente dado ao boi de Toquinho.

Fonte: Luis Filho, 2012

72

Denominação dada pelos integrantes do tambor de mina ao ritual religioso do tambor de mina

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Isso ocorre por toda manhã até o momento que o boi chega no terreiro e começa o toque para o “guarnicê ou guarnecer”73 para buscar o Mourão74 e da “cobertura do boi” com o “manto de pastilha” que são duas outras etapas do folguedo. O manto de pastilhas trata-se de uma espécie de manto feito de pastilhas de doces e bombons que serve para cobrir o boi de Toquinho no momento que ele sai do terreiro e vai para casa pegar o mourão e logo após coberto com esse manto de pastilha são cantadas músicas do boi para homenageá-lo para em seguir sair o cortejo com o mourão. O mourão é outro elemento que constitui uma parte específica do folguedo do boi de Toquinho. É um mastro feito de uma árvore desfolhada, geralmente coberto de fitas coloridas, frutas e brinquedos e sobre suas representações para os brincantes da casa de mina, ele está associado a fartura como nos explica Pai Aírton: O boi se amarra o Mourão pra matar né, aí é que tá, por isso que é feito mourão, tudinho, e a parte que se enfeita se coloca [...] os brinquedos, pastilhas, essas coisas porque é fartura, trás a fartura a prosperidade (pai Aírton, entrevista concedida em 18 de out. 2012)

As representações simbólicas desse mourão para os participantes do boi de Toquinho é de caráter religioso como é dito por mãe Rosângela quando diz que o mourão “representa prosperidade, fartura, a cura”.(entrevista: Rosângela, 18 out. 2012) e essa ideia é reafirmada pelo encantado Dominguinhos de Légua quando conta que o “mourão simboliza a fartura, a riqueza, árvore, esperança, crescimento nesse ritual do boi” (entrevista: Dominguinhos, 21 out. 2012). Esse elemento do mastro não foi encontrado nos folguedos de Icoaraci nem pelos relatos coletados e nem pelo trabalho de Figueiredo e Tavares (2006).

73 74

Referente ao “objetivo de reunir, preparar e concentrar os brincantes” (IPHAN, 2011, p.168) Mastro adornado com frutas e fitas coloridas, feito de um tronco de árvore de médio porte.

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/ Belém – 2016 Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares. Ilustração 2: Mourão sendo levado pelos encantados nas ruas do conjunto Pedro Teixeira

Fonte: Lins Filho, 2012

Os encantados são encarregados de levar o mourão até a casa de pai Huevy como mostra a imagem acima, onde é enterrado e se apreende a etapa final do boi de Toquinho e no seu final o mourão é dividido em partes e dado como amuleto para os presentes. Apesar de perceber nos trabalhos de Lindoso (2006) e o dossiê do IPHAN (2011) que nos mostram que dentro do roteiro do boi de encantado, a última etapa é descrita como “a morte do boi”. No boi de Toquinho, em seus três anos de existência, ainda não ocorreu essa morte dentro da encenação, nas três vezes de seu folguedo o desfecho final se deu através da fuga. Reafirmado pela fala da encantada Leonor que nos conta que: dos três anos toquinho chora qui só pro boizinho dele não morrer. Luta, luta qui só pro boi dele não morrer. Chorar que eu digo é chorar né, dentro do ritual.[...]ele luta que só pa boi dele não morrer. E ate agora o boi dele ainda não morreu. Só fica ferido. (Dona Leonor, na cabeça de Christofer, em entrevista concedida no dia 21 de outubro 2012).

Percebendo essa distinção comparado aos bois de comédia, em que o desfecho final se dá através da ferração do boi, como nos conta Jorge Raimundo Pereira de Souza quando cita alguns bumbas da região. “É tudo boi de ferração que eu conheço é que o Resolvido, Não Duvido [...] o flor do campo.” (entrevista concedida por Jorge Raimundo Pereira de Souza em 06 de jun. 2013).

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Ao compreendermos as etapas que constituem o boi de Toquinho através da observação de campo com o auxílio dos trabalhos citados acima e dos relatos dos entrevistados. Pudemos fazer uma análise comparativa ao trabalho de Bruno de Menezes (1993) quando narra no capítulo chamado “sinopse da estória do bumbá” e “A causa de ser morto o boi” as distinções são bastante claras, desde o cortejo como vimos a cima até o sentido religioso existente no boi de encantado e que não é identificado no boi de comédia da região de Icoaraci. Vicente Salles (2004) fala que o boi bumbá, que antecedeu as criações dos chamados “currais”, era uma brincadeira feita no improviso, e seu roteiro foi criado a partir desse confinamento nos currais, diferente do boi de toquinho que possui um roteiro e sai às ruas. Podemos concluir através das caracteristicas entre o boi de Toquinho e boi bumbá brincado em Icoaraci, levantadas pela pesquisa, que estes são dinstintos, tanto no formato do folguedo quanto em suas representações simbólicas, para seus participantes. E também percebermos o começo desse folguedo do boi de Toquinho em Belém. Referências AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de Moraes (org.). Usos e Abusos da História Oral. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2002. BARBIERI, Renato. (14 de março de 2012) Atlântico negro – na rota dos orixás. Brasil, [ficheiro de vídeo]. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=5h55TyNcGiY acessado em: 30/04/2013. COSTA, Marisa Vorraber; SILVEIRA, Rosa Hessel; SOMMER, Luis Henrique. Estudos culturais, educação e pedagogia. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rbedu/n23/n23a03.pdf . Acesso em: 19/02/2013 DIAS JR. José do Espírito Santo. Cultura Popular no Guamá: um estudo sobre o boi meu bumbá e outras práticas culturais em um bairro da periferia de Belém. Dissertação de Mestrado. PPGHSA/IFCH/UFPA. Belém, 2009. Disponível em: http://www.unama.br/editoraunama/download/revistami/mi_v17_n2_2012/artigos_pdf/mi_ v17_n2_2012_artigo_8.pdf acessado: 19/05/2013 às 10:17 . Boi Bumbá em Belém, uma expressão urbana e popular. Amazônicos • vol. V, nº 2 (2010), pp. 75-103

Revista Estudos

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. Tambor de mina em São Luís: dos Registros da missão de pesquisas folclóricas aos nossos dias. Publicado em Caderno Pós de Ciências Sociais-UFMA, v.3/6, 2008. disponível em: http://www.gpmina.ufma.br/pastas/doc/Minada%20MPF%20aos%20nossos%20dias.pdf acessado em: 03/11/2012. FERRETTI, S. F. Boi de encantado na mina do Maranhão – Boletim nº5. Comissão maranhense do folclore – Junho de 1996. 8 p. Disponíveis em: http://www.cmfolclore.ufma.br/Htmls/Boletim%2005.htm acessado em: 03/12/2013. FIGUEIREDO, Aldrin Andrade. A cidade dos encantados: pajelanças, feitiçarias e religiões afro-brasileiras na Amazônia, 1870-1950. Belém: Edufpa, Dissertação de Mestrado – Universidade Estadual de Campinas. 2009. [Orientador Sidney Chalhoub] disponível em: http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=000104092 . Acesso em: 26/04/2013 FIGUEIREDO, Sílvio Lima; TAVARES, Auda Piani. Mestres de Cultura. EDUFPA, Pará, 2006. 169p. HUNT, Lynn (Org.). A nova história cultural. Trad. Jefferson Luiz Camargo. 2ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001. 318p. IPHAN, Complexo Cultural do Bumba-meu-boi do Maranhão. Dossiê do registro como Patrimônio Cultural do Brasil / Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. São Luís: Iphan/MA, 2011. Disponível em:http://portal.iphan.gov.br/portal/montarDetalheConteudo.do?id=16258&sigla=Instituci onal&retorno=detalheInstitucional acessado em: 26/04/2013 LINDOSO, Gérson C. Pereira. Novos personagens, outros significados: o boi de encantado em terreiros de mina de São Luís. Comissão maranhense do folclore – Boletim 35, 2006. disponível em: http://www.cmfolclore.ufma.br/arquivos/b117b784e276aae4bb081b5c21738dfb.pdf acessado em: 31/05/2013 MENEZES, Bruno de. Obras completas - lendo o Pará, Boi Bumbá (auto popular), Secult Pará, 1993. MOTA NETO, José Colares. A Educação no Cotidiano do Terreiro: Saberes e Práticas Culturais do Tambor de Mina na Amazônia/ João Colares da Mota Neto; Orientadora Maria Betânia Barbosa Albuquerque. Belém: [s.n.], 2008. 193f. PINSKY, Carla Bassanezi (org.). Fontes históricas. São Paulo: Contexto, 2005 SALLES, Vicente, O negro da formação da sociedade paraense. Textos reunidos. Belém:Paka-Tatu, 2004. 250p. SILVA, Anaíza Vergolino e. O tambor das Flores: uma análise da Federação Espírita Umbandista e dos Cultos Afro-Brasileiros do Pará (1965-1975). 1976. Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1976. 272p. SILVA, Sílvia Sueli Santos da. O boi de máscara: Imaginário, contemporaneidade e espetacularidade nas brincadeiras de Boi de São Caetano de Odivelas. 2011. Tese (Doutorado em Artes Cênicas) – Universidade Federal da Bahia, Bahia, 2011. [Orientadora Prof.ª. Drª. Suzana Maria Coelho Martins] 169

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THOMPSON, Paul. A voz do passado: História Oral. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1992. 385 p. TV Brasil. Bumba-meu-boi do Maranhão. Disponível http://www.youtube.com/watch?v=5G8gYfk-bBg acessada : 10/01/2013 às 20:50

em:

FONTES ORAIS Entrevista concedida por Mãe Rosângela em18 de outubro de 2012 Entrevista concedida por Pai Aírton em 18 de outubro de 2012 Entrevista concedida por Dominguinhos de Légua, na crôa de Leandro em 21 de outubro de 2012 Entrevista concedida por Dona Leonor de Légua na crôa de Christofer em 21 de outubro de 2012 Entrevista concedida por Jorge Raimundo Pereira de Souza em 06 de junho de 2013

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Cordão de Peixe Bacu: estudo de uma prática musical em Icoaraci –Pará. Luany Guilherme Ferreira Universidade do Estado do Pará

Prof.ª Dr.ª Lívia Alexandra Negrão Braga Universidade do Estado do Pará - [email protected] Resumo: Este trabalho apresenta uma análise musical do Cordão de Peixe Bacu do distrito de Icoaraci e o meio de transmissão dos saberes artístico–populares usados por Mestre Paulo para os participantes desse cordão. Trata-se de um estudo de campo em um delimitado espaço-tempo para etnografar o processo de educação musical do referido cordão. Dissertarei sobre a história do movimento dos Cordões e o surgimento do Cordão de Peixe Bacu. Arguirei sobre o contato de Mestre Paulo com os folguedos juninos, descreverei o perfil dos brincantes do cordão de Peixe Bacu e registrarei as músicas do cordão em questão no sistema de notação musical tradicional ocidental. Esta pesquisa aponta para o ensinamento da música em ambiente não escolar, bem como para a relevância do cordão no ambiente em que está inserido. Palavras-chaves: Prática Musical. Cordão de Bicho. Educação Musical.

O objetivo deste artigo é descrever a prática musical Cordão de Peixe Bacu, analisar o método de ensino de educação musical utilizado, a importância de este fazer musical espontâneo e a transcrição das músicas compostas pelo próprio guardião do Cordão: o Mestre Paulo. O Cordão de Bicho antecessor do Cordão de Pássaro é uma manifestação genuinamente paraense proveniente do interior do Estado do Pará, o primeiro registro foi numa publicação do naturalista inglês Henry Walter Bates no ano de 1850 (SILVA, 2003). Esta prática está intimamente ligada às festividades dos santos juninos mais populares: São João, Santo Antônio, São Pedro e São Marçal. É um tipo de teatro popular que engloba danças imitativas de aves ou animais, com execução musical e uma rígida construção de figurino. O Cordão apresenta similaridade com a brincadeira de Boi-Bumbá por ambos terem como motivo em comum a morte e ressurreição do protagonista; esta manifestação possui influências do hoje extinto Teatro Nazareno, do auto das pastorinhas, da comédia junina, também apresenta fortes contribuições das matrizes negra, indígena e europeia na sua formação (FIGUEREDO; TAVARES, 2006).

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A principal característica do Cordão de Bicho é o perfil protagonista que obrigatoriamente deve ser um animal de natureza real ou imaginária, como: Tem-tem, Onça Pintada, Dragão, Camarão, entre outros. Em algumas pesquisas é possível encontrar duas categorias de pássaros: I. Cordão de Pássaro e Bicho e II. Pássaro Melodrama Fantasia (LOUREIRO, 1995). Os cordões possuem texto mais simples, com cenas curtas de comédias, matutagem e pajelança. O que caracteriza é a formação dos brincantes em cena, particularidade deste folguedo. Os Cordões de Pássaros observados durante a pesquisa têm como característica comum a manutenção em cena da maioria dos brincantes, dispostos em um semicírculo ou em meia lua, no centro do qual se desenvolvem as seções das cenas. Os brincantes se dirigem ao centro do palco na hora da representação e em seguida retornam à posição original do semicírculo (SILVA, 2003, p. 07).

Pássaro Melodrama Fantasia diferencia-se por ter um enredo mais dramático, envolvendo ódio, amor, traição, vingança, adultério, morte; trabalha mais a fundo o infortúnio da mente humana. Além de usar vestimentas mais luxuosas, palco, camarim para a troca de roupa e cortinas para as mudanças e finalização de cenas. O enredo deste teatro popular basicamente baseia-se na perseguição e morte do animal provocada pelo caçador, o assassino é capturado pelos índios e levado ao dono do Bicho que o mandar trazer a vida de seu anima de volta, o infrator procura o personagem com poderes mágicos, geralmente o Pajé, para ressuscitar o animal. A estrutura da música é normalmente organizada em canção entrada, anúncio personagens, música de danças, e despedida. 1. Música de entrada: são consideradas aquelas que antecedem a parte dramáticas. Geralmente, fazem parte destas, uma abertura musical ou canto de apresentação e hino do grupo. 2. Música da parte dramática: são aquelas que compõe o enredo (música dos personagens) ou aquelas que servem de entreato (música do balé ou quadro especial). 3. Música de despedida: apresentação das despedidas e agradecimentos finais do grupo. (SILVA, 2009: p. 11).

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O Cordão de Peixe Bacu O Cordão de Peixe Bacu foi fundado no ano de 1998, na Vila Itália localizado no distrito de Icoaraci em Belém- Pará, pelo seu residente Paulo Roberto Oliveira da Silva e sua família. A finalidade da criação do cordão era oferecer entretenimento de qualidade às crianças de sua comunidade que viviam ociosas, espreitando conversas entre membros de gangue que moravam neste lugar, estes ouviam e admiravam as atitudes dos mais velhos. O pessoal da gangue chegava e falava tudo o que acontecia a noite, aí os menorzinhos ficavam tudo olhando prestando atenção e aquilo dali, da janela de casa, me incomodava muito (Paulo Roberto, 51 anos, Mestre do Cordão do peixe Bacu, dia 08 de março de 2015).

Temendo que os pequenos tomassem atitudes semelhantes aos membros de gangues, Mestre Paulo trabalhou para a criação do Cordão, construiu todo o enredo e as músicas. As organizações populares também devem ser aqui citadas como exemplo de iniciativas no campo de formação profissional e educacional em ambientes diversos à escola tal como a conhecemos. Consistem em pessoas que se organizam para suprir a carência de produtos e serviços dos quais a população necessita, mas que o Estado não consegue ou não se empenha no suprimento dessas necessidades (PINHEIRO, 2008: p. 06).

Paulo convidou seus dois filhos para compor o corpo musical do Cordão, também chamou as crianças da vila para representarem os personagens, a sua esposa Maria Rita Ferreira ficou com o encargo de figurinista, ela utiliza materiais reciclados para a composição dos adereços. Grande parte desses materiais é coletada nas margens do Rio Maguari, são encontrados: canudinhos, caixas de papelão, isopores e garrafas plásticas. Em 1998 Mestre Paulo havia composto dez músicas para o cordão, todas inspiradas nos principais personagens, que são: São João, São Pedro, Santo Antônio, o Pescador, o Boto, o Barco, o Siri, o Camarão, a Tarrafa e o próprio Bacu. Aí eu fiz ele em 98, só que olha aí, eu fiz ele, juntei uns parentes e o pessoal da comunidade era só pra gente brincar um dia, nós ensaiamos mais ou menos umas três semanas, eu compus umas músicas, eu saia em carnaval, eu gosto de carnaval, então sempre com aquele adereço e nesse ano que nós saímos no carnaval nossa ala tava representando o Boto, então o Boto que era um chapéu na cabeça a mulher pegou, trabalhou e fez um Bacu de isopor, no outro dia os moleques ficaram me pedindo pra sair de novo, aí não paramos mais (Paulo Roberto, 51 anos, Mestre do Cordão de Peixe Bacu, 08 de março de 2015).

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Logo após a primeira apresentação dentro da comunidade de pescadores, cumprida com sucesso, houve inúmeros pedidos dos brincantes para continuar saindo nas ruas de Icoaraci e mostrar o Cordão de Peixe Bacu. De lá para cá o Cordão desfilou em terreiros juninos, casas de família, museu Emílio Goeldi, teatro Margarida Schivasappa, Estação das Docas, Curro Velho, entre outros lugares. Uma das exigências de Mestre Paulo para levar o Cordão é que seja servido aos brincantes mingau de milho, comida tradicional do período junino. A escolha do protagonista do Cordão, Peixe Bacu, deve-se ao fato dele ser um animal presente no cotidiano dos moradores de Icoaraci, é um peixe abundante e de baixo valor comercial, por isso é desprestigiado pelos pescadores. O local do surgimento do Cordão, a Vila Itália, existe há aproximadamente 60 anos e encontra-se no Distrito de Icoaraci no bairro da Campina. A Vila fica localizada em uma zona portuária entre os muros da empresa Pesqueira Maguari, companhia extrativista de grande poste. O assento foi ocupado por pessoas oriundas do interior do Estado do Pará, a maioria tinha como ofício a pesca, mas com o aumento da poluição do rio causada pelos antigos curtumes da região, sobreviver da pescaria se tornou algo cada vez mais insustentável. Mestre Paulo Roberto Paulo Roberto Oliveira da Silva nascido em 1964 em Belém, estudou somente até a 4ª série do ensino fundamental e logo iniciou o ofício de açougueiro –que aprendeu com seu pai – o primeiro contato com os folguedos junino aconteceu aos 09 anos na antiga Campina Grande, hoje chamado de COHAB em Icoaraci. Mestre Paulo participou do extinto Cordão de Pássaro Tangará da estrada do Outeiro somente no ano de 1973. Na época em que tinha 15 anos frequentou uma quadrilha junina onde ficou até os 16 anos, deste então não participou de mais nenhum folguedo.

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/ Belém – 2016 Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares. Figura 1 Mestre Paulo Roberto no momento do ensaio do Cordão de Peixe Bacu em maio de 2015.

Fonte: Arquivo pessoal.

Paulo nunca frequentou escola de música, sequer tocava um instrumento, mas já produzia suas canções; Antes de inventar o Bacu, eu já tinha uma ideia de montar umas músicas, eu ficava em casa só ouvindo aí pegava a caneta e fazia umas letras de uns sambas aqui pra nós brincar aqui na Itália (Paulo Roberto, 51 anos, Mestre do Cordão de Peixe Bacu, 31 de maio de 2015).

Após o Peixe Bacu mestre Paulo aprendeu a tocar alguns instrumentos percussivos, canta e compõe todas as músicas do Cordão e as renova quase todo ano. Perfil dos Brincantes O Cordão do Bacu trabalha com crianças entre a faixa etária de 02 a 11 anos de idade que sejam moradores da Vila Itália ou das proximidades. Não é necessário pagar para participar, apenas ter disponibilidade para participar dos ensaios e das apresentações e não é exigência ter conhecimento prévio de música. As crianças são filhos de operários, profissionais liberais e desempregados, possuem baixa renda, e parte delas moram em apartamentos cedidos pelo governo federal através do programa PAC (Programa de aceleração do crescimento) e recebem o Bolsa Família – Programa do governo federal de assistência familiar. Alguns residem em palafitas com seus familiares na Vila Itália, outros em casas próximas dessa Vila. A quantidade de brincantes varia entre 10 a 13 crianças presentes por ensaio, em conversa informal, Mestre Paulo declarou se sentir triste com a reação de alguns moradores evangélicos da comunidade. Eles negam a participação de seus filhos no cordão por acreditarem ser uma prática alusiva a adoração a um ser maligno. Paulo complementou 175

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dizendo que antes de haver o “boom” das igrejas evangélicas, o número de crianças participando do cordão variava entre 30 a 40 brincantes. No Bacu há crianças que participam do cordão há mais de 3 anos, como é o caso dos irmãos Igor Moraes e Isac Matias, eles são mais hábeis no palco e também mais sensíveis à música. Algumas crianças que participam do cordão são estudantes de instituições públicas de ensino em Icoaraci, outras são muito novas para iniciar seus estudos, porém nenhuma delas apresenta, durante os ensaios, dificuldades em aprender as letras das músicas e as coreografias, pelo contrário, as músicas são rapidamente internalizadas. Metodologia de Mestre Paulo O método de ensinamento musical praticado pelo Mestre Paulo acontece através da repetição das canções, não é ensinado nenhum instrumento aos brincantes, eles utilizam a voz em coro uníssono, exceto nas canções dos personagens que seu intérprete canta em solo. Não é ensinado nenhum tipo de notação musical, as melodias e os arranjos são memorizados no decorrer dos ensaios. Para alguns que já sabem ler é entregue a letra das canções e para aqueles que não se sentem seguros para cantar a canção de seu personagem, Mestre Paulo oferece assistência individual, ele usa seu único dia de folga, o domingo, para junto com o brincante cantar a música repetidas vezes até que a mesma seja internalizada. Mestre Paulo, também, monta a coreografia das músicas, que são criadas a partir das características dos personagens, por exemplo, o movimento natural do Siri é captado e expressado corporalmente pelo intérprete na Canção do Siri. A forma de ensinamento da dança é semelhante na música, através da observação e imitação, os movimentos executados por Mestre Paulo são repetidos pelo brincante. O sistema de aprendizagem em países do ocidente é eminentemente teórico. Na Índia, em contrapartida, a improvisação tem origem na memorização de combinações harmônicas. Mesmo os que criam suas próprias canções têm a influência desse modelo. Os músicos indianos também são avaliados pela capacidade de conciliar prática instrumental, prática ritual e estudo (BRAGA, 2011: p. 36).

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Estrutura Musical do Cordão de Peixe Bacu A estrutura usada pelo Cordão de Peixe Bacu se divide em três sessões: canção de entrada, canção dos personagens e canção de despedida. As melodias são acompanhadas apenas por instrumentos percussivos: um curimbó que determina o andamento da música, um par de maracas e uma meia-lua que são responsáveis pela subdivisão e condução rítmica. Os ritmos usados são:o carimbó, a toada, o xote e a marchinha, este último o mais utilizado. As músicas são divididas em dois temas e em algumas é repetida a frase final, são tonais e usualmente estão em modo menor e são cantadas em registro grave correspondente a tessitura vocal do compositor, para as crianças que cantam e estão em processo de formação, algumas frases musicais tornam-se difíceis de serem entoadas. Tabela 1 Estrutura musical do Cordão de Peixe Bacu em 2015.

Canção de Entrada

Boa Noite

Canção dos Personagens

O Barco O Pescador A Sereia A Canoinha O Siri Carimbó O Boto O Maçariquinho

Canção de despedida:

O Camarão Adeus, adeus

Transcrição musical Para o processo de transcrição utilizei um aplicativo de celular de captação de sons para a gravação das músicas do Cordão coletado durante os ensaios e também uma filmadora digital, os aparelhos eram fixados, aproximadamente, a 2 metros de distância da fonte. Devido à baixa qualidade dos equipamentos de captação sonora, alguns sons e palavras foram difíceis de ser identificadas, foi necessária uma escuta mais minuciosa. Analisando detalhadamente as gravações colhidas percebi que a mesma música era interpretada a cada dia de uma maneira diferente, havia pequenas variações na rítmica, mudanças na afinação, no andamento e na letra: “Qualquer notação é uma representação e, 177

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assim sendo, será um recorte do objeto de estudo que para fazer sentido necessita de uma série de convenções e significados aprendidos e retransmitidos culturalmente” (MENDES, p. 210: 2015). No processo de notação musical utilizei o programa de edição de partituras MuseScore 2.0 Beta 2®, as melodias e as células rítmicas foram montadas por meio da percepção auditiva e reprodução em instrumentos melódicos. Figura 1 Partitura "O Pescador", compositor Mestre Paulo Roberto, transcrição Luany Ferreira

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/ Belém – 2016 Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares. Figura 2 Partitura "A Canoinha", compositor Paulo Roberto, transcrição Luany Ferreira

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Resistência e identidade cultural O Cordão de Peixe Bacu representa de forma autêntica a cultura dos moradores de Icoaraci, o mesmo resiste fora do seio do poder público e de ajuda de empreiteiras, ele sobrevive dentre os palcos populares de ruas, vielas e alamedas e ganha prestígio e admiração pelas poucas pessoas que o conhecem. Em seu próprio ambiente de origem o cordão não possui um grande número de pessoas atingidas, ele compete com a indústria da cultura de massa que esmagadoramente alcança um público maior. Dentre tantas dificuldades enfrentadas para manter o Cordão, sem dúvida, a falta de dinheiro é a mais pertinente, Mestre Paulo é quem custeia os lanches distribuídos diariamente nos ensaios, a contratação de transporte para locomoção dos brincantes em dias de apresentação e materiais para a confecção de adereços. O ensino da prática dos cordões oriundos de saberes populares oferecidos em ambientes escolares e não escolares permitirá a difusão, prolongamento e a perpetuação da tradição deste folguedo junino, contribuirá para a afirmação da identidade cultural e proporcionará ampla visão da realidade vivida por caboclos da região. Referências Braga, Lívia Alexandra Negrão. Identidades musicais no Curso de Licenciatura em Música da Universidade do Estado do Pará: uma composição em acordes dissonantes. Tese (Doutorado) - Universidade Federal do Pará. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, Belém, 2011. FIGUEIREDO, Silvio; TAVARES, Auda. Mestres da Cultura. Belém: EDUFPA, 2006. LOUREIRO, João de Jesus Paes. Cultura amazônica: uma poética do imaginário. Belém: CEJUP, 1995. MENDES, Adriano Caçula. Desafio da notação musical para músicas de tradição oral. In: ENABET: Encontro Nacional da Associação Brasileira de Etnomusicologia - Redes Trânsito e Resistência, VII. 2015, Florianópolis, Anais. PPGAS/UFSC: 2015. p. 206 – 220 PINHEIRO, Andrea Lopes. Escola, educação, ambientes não escolares. In: Revista Eletrônica da Faculdade Metodista Granbery, n. 4, 2008. Disponível em: http://re.granbery.edu.br/artigos/MTMy.pdf > acesso em: 27/11/2015. SILVA, Rosa Maria Mota da. A Música do Pássaro Junino Tucano e Cordão de Pássaro Tangará de Belém do Pará 2003. 199 f. Dissertação (Mestrado em Música) – Escola de Comunicação e Arte – ECA. Universidade de São Paulo. São Paulo; 2003.

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. O Cordão de Pássaro Corrupião: Uma prática musical bragantina. 213 f. Tese (Doutorado em Música) – Escola de Música da Universidade Federal da Bahia. Universidade Federal da Bahia. Belém – 2012.

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O Coral Edgard Moraes aliando tradição e inovação no frevo-de-bloco: o álbum Cantos e Encantos.

Alice E. da Silva Alves Universidade Federal de Pernambuco – [email protected]

Carlos Sandroni Universidade Federal de Pernambuco – [email protected]

Resumo: O Coral Edgard Moraes tem seu núcleo principal formado só por mulheres, fundado na cidade do Recife em 1987, filhas e netas do compositor Edgard Moraes, um dos expoentes máximos do frevo. O grupo busca aliar o lirismo e a poesia tão presentes no frevo-de-bloco e exaltados por seus compositores com as sonoridades não tradicionais do frevo. A partir disso, o presente artigo busca fazer uma análise geral de como o grupo trabalha essa concepção musical em seu último álbum, Canto e Encantos, lançado para a comemoração aos seus 25 anos. A obra traz inovações musicais muito aplicadas à questões timbrísticas, de orquestração e harmonia, mas mantendo ainda o saudosismo da canção no frevo-de-bloco. A intenção é entender, sem aprofundamento em termos harmônicos, a criação musical do álbum. Serão abordados os autores SILVA, 1998; BEZERRA e SILVA, 2006; VILA NOVA, 2007. A entrevista realizada com Marco César, diretor musical do álbum, foi o mote principal. Palavras-chave: Frevo-de-bloco. Coral Edgard Moraes. Inovações Musicais.

Introdução O frevo-de-bloco tem sua origem nos blocos líricos e retoma uma estrutura que se aproxima do que foram os ranchos carnavalescos do Rio de Janeiro no final do século XIX. Com forte inspiração no presépio familiar, “pleno de formosas pastorinhas a dançar e cantar, diante da lapinha e quando das procissões na noite da festa dos Santos Reis, louvando o nascimento do menino Jesus”. (DANTAS SILVA, 1998, p. 24). O cortejo é aberto a partir do flabelo (cartaz que leva o nome da agremiação e o ano da fundação), seguido por um conjunto majoritariamente de mulheres responsável pela parte cantada do frevo-de-bloco e pela orquestra de pau e corda. Nessa há um predomínio dos naipes de cordas dedilhadas e das madeiras acompanhados pela percussão. Pode haver também instrumentos do naipe de metais. A novidade de estrutura para festejar 182

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o carnaval, trouxe a possibilidade das mulheres participarem desse nas ruas, sua organização propiciava um afastamento da massa popular. O frevo-de-bloco tem origem a partir da reuniões familiares dos bairros recifenses do centro, com São José, Santo Antônio e Boa Vista. Trata-se, desde a sua origem, de um gênero musical vinculado às camadas médias e altas da sociedade. De fato, Bezerra e Silva (2006), assinalam que os blocos ‘nasceram sob o signo da ordem e do apoio de intelectuais, da polícia e foram aplaudidos como contraponto ao carnaval dito ‘perigoso’ dos clubes pedestres e maracatus’. (VILA NOVA, 2007, p.79).

O Coral Edgard Moraes tem sua criação em 1987 formada pelas filhas e netas do compositor Edgard Moraes, que foi um dos maiores nomes da música pernambucana e do frevo. Antes disso, o grupo integrou o Bloco das Ilusões por treze anos. O Coral busca aliar o lirismo e a poesia tão presentes no frevo-de-bloco às sonoridades não tradicionais a esse. Em sua formação mais recente, é composto por Ana Chacon, Inajá Moraes, Iraçaíra Moraes, Isis Moraes, Maria Chacon, Marta Lopes, Valéria Moraes e Wanessa Moraes. Coral Edgard Moraes.

Fonte: https://www.facebook.com/coraledgardmoraesoficial/photo s/. Foto: Marco Brito.

Assim, o objetivo desse trabalho é fazer uma análise mais geral de como o grupo trabalha essa inovação, a partir de seu último álbum Canto e Encantos, lançado em comemoração aos seus 25 anos. A intenção é entender como esses processos aplicados à questões timbrísticas e à orquestração dos arranjos acontecem. O caráter saudosista tradicional da canção é mantido. O estudo foi desenvolvido a partir de um viés etnomusicológico, de caráter etnográfico. A entrevista realizada com Marco César foi o 183

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mote principal. Bandolinista, compositor e arranjador. Ele é um dos grandes nomes do choro nacional. É também um dos maiores formadores de músicos na cidade do Recife. É importante observar que são elas, as mulheres do Coral Edgard Moraes, que mais incentivam as experimentações e que detém a palavra final nos processos de concepção de suas obras. Há um protagonismo feminino que foge totalmente do original processo de participação das mulheres no frevo-de-bloco. Marco César.

Fonte : https://www.facebook.com/marcocesar.brito Foto: Marco Brito.

Desconstruindo processos da tradição do frevo-de-bloco O álbum Cantos e Encantos, em seu encarte, é assim apresentado por seu diretor musical, Marco César: Imaginar o FREVO tocado só aos modos momescos é limitar demais a grandeza cultural que ele expressa e representa. Com a filosofia de inovar nos timbres, harmonias e linguagens, imaginamos um registro de formato universal que mexesse com os mais aguçados ouvidos críticos, acostumados aos sons das grandes obras. Tudo começa com o talento inigualável do Maestro Spok, da produtora Valéria Moraes e dos companheiros músicos, compositores e arranjadores que abraçaram a causa nobre do fazer artístico [...] (2012)

O ponto inicial foi entender o que é imutável no frevo-de-bloco para não descaracterizá-lo. Marco César explica que “é a rítmica do frevo” cantarolando a seguinte célula rítmica:

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E continua: É importante ter, não quer dizer que ele (sic) tenha que estar o tempo todo, assim, porque a gente sabe que tem o básico e tem as variações. E as variações também são muitas vezes de acordo com o arranjo. (Depoimento pessoal, 2016).

Capa do CD Cantos e Encantos.

São 16 faixas, em quase todas a base instrumental é baixo, na maioria das vezes acústico, violão de 7 cordas, cavaco e bandolim. “A filosofia desse disco é fazer com que as pessoas cheguem em casa, depois do trabalho, sentem e em vez de ouvir só um Caetano, Gil vá ouvir a música popular brasileira pernambucana, vá ouvir um frevo-de-bloco sofisticado. ” (Depoimento pessoal, 2016) 1. Edgariando (Edgard Moraes) Arranjo: Spok Voz solo de Valéria Moraes. Espécie de tributo a Edgard Moraes, é um medley de três músicas dele: A dor de uma saudade, Alegre Bando e Valores do Passado. Um aspecto importante, referente à identidade genérica do frevo-de-bloco, é a sua caracterização como uma música feita para o canto feminino, em conjunto. O frevo-de-bloco pode ser definido num plano discursivo constituído fundamentalmente pelo seu caráter coletivo, simbolicamente representado nas vozes que entoam as canções – o coro feminino acompanhado pela orquestra – e

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/ Belém – 2016 Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares. na própria formação do bloco, enquanto desfilantes fantasiados (diferenciandose, por exemplo, do passista, que, em termos de representatividade simbólica, destaca-se individualmente pela indumentária colorida e pela utilização da sombrinha para garantir o equilíbrio na execução da dança do frevo). (VILA NOVA, 2006, p. 80-81)

É a música abre-alas e serve bem ao propósito de inovação. Não há a presença do apito inicial e do acorde em uníssono, o que são muito tradicionais no frevo-de-bloco. Geralmente, após o apito do maestro, que dá a chamada para o início da música, segue o acorde em uníssono feito pela orquestra, no tom da canção. O saxofone faz o solo inicial seguido pelo bandolim, pela flauta que introduzem a voz de Valéria em um rallentando que vai puxar o andamento acelerado, a estrutura de coro e a orquestração já tradicionais. Soma-se a tudo isso, o uso do baixo acústico, do trompete e do trombone que não são instrumentos comuns para a orquestra de pau e corda. Traz também a participação do coro do Bloco da Saudade, que foi responsável pela revitalização na década de 1970 dos blocos líricos. No alvoroço das ruas, nos dias de Carnaval, o diretor da orquestra dá o sinal de alerta aos músicos e ao coral com o apito – todos ficam atentos. A orquestra ataca o acorde inicial, o surdo, com uma única pancada forte, serve de guia para o andamento da composição a ser tocada. A introdução, feita em uníssono por todos, tem um caráter animado, impulsivo, lembrando de perto o espírito do frevo que, em seguida, irá contrastar com a linha melódica cantada, mais sóbria, quase sempre em tom menor. (MADUREIRA, Antônio José, 1980) .

2. Sou de Pernambuco (Raul Moraes) Arranjo: Maestro Edson Rodrigues A canção de Raul Moraes, irmão de Edgard Moraes, traz como característica forte a valorização da cultura pernambucana. O arranjador foi escolhido por ter convivido com Edgard e fazer referência à tradição do frevo. Assim, sua música já volta com o apito e com o acorde em uníssono de abertura - geralmente no tom da canção, no início e no fim dela – e com o protagonismo das cordas dedilhadas e das vozes em coro. 3. Frevo Chorado (Getúlio Cavalcanti) Arranjo: Edmilson Capelupi Apresenta características de uma música de câmara, mais intimista, possui um arranjo mais fraseado, menos em uníssono. A intenção, segundo Marco César, não é 186

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restringir o disco “ao mesmo som, à mesma batida, ao mesmo timbre. Então uma frase de cavaquinho que você faça ou uma frase de violão que você faça já dá um diferencial grande para quem tá simplesmente sentado escutando”. O arranjador é um dos nomes referência do choro em São Paulo e traz essa influência de certa forma em seu arranjo. A flauta entra segurando a melodia com as cordas em tremolo dando a base. A seguir, a rítmica marcante do frevo-de-bloco reaparece, mas o fraseado da flauta e das cordas trançado remete mais à tradição chorona. Na canção não há o apito inicial e o acorde em uníssono. 4. Encanto dos blocos (Luiz Guimarães e Alvacir Raposo) Arranjo: Maestro Duda Faixa executada somente pelo Coral Edgard Moraes e pela SpokFrevo Orquestra. E o maior diferencial é a presença do naipe de metais do grupo convidado e também sua ligação mais aproximada com o frevo-de-rua. Assim, algumas adaptações na estruturação, como o uso de um andamento mais rápido do que o habitual, foram necessárias. 5. Recife Espelho d’Água (Louro Castro e Moacir Oliveira Neto) Arranjo: Paulo Arruda Os maiores detalhes timbrísticos são o violoncelo e a bandola. E também, mais uma vez, uma voz feminina faz solo, dessa vez Inajá, dona Naná, filha de Edgard Moraes. O arranjo assim assume um caráter intimista para a música, o coro só aparece em partes de tutti, em momentos mais expressivos. A introdução mais camerística, com o solo do violoncelo acompanhado do violão de 7 cordas, foge completamente do que se espera para o gênero. O arranjo se adensa com a entrada dos outros instrumentos, bandolins e bandolas em tremolo, clarineta, flauta em uma dinâmica de crescendo e diminuendo que termina dando vez à entrada da voz solo e da rítmica do frevo-de-bloco. 6. Regressando de Aurora (Maurício Cavalcanti e Marcelo Varella) Arranjo: Marco César Tem como convidada a Orquestra Retratos do Nordeste que tem a formação 187

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tradicional para o conjunto choro em cordas dedilhadas (bandolim, bandolas, bandoloncelos e violas). “Na história do frevo, não se teve gravações nesses moldes, com esses instrumentos tratados como orquestra. Teve sim, todo mundo tocando em uníssono, fazendo acorde, mas não como frase erudita, é uma orquestra de câmara” (Marco César, depoimento pessoal, 2016) São fraseados que valorizam sua sonoridade, mas que se adaptam à linguagem do frevo-de-bloco.

7. Saudade que dói (Samuel Valente) Arranjo: Nilson Lopes Bom, se fôssemos Tiradentes, seríamos enforcados em praça pública, antigamente, se a gente tocasse com guitarra, com acordeon e com bateria. É um crime, mas só que houve uma concepção de arranjo, de Nilson Lopes, que é um jovem arranjador daqui de Pernambuco e que faz um trabalho, assim, de muita categoria, de muita escolha, de acorde, de arranjo e de muita modernidade. E sem deturpar a identidade [...] sem tirar o espírito do frevo (Marco César, depoimento pessoal, 2016)

Tem como convidado o Spok Quinteto que traz bateria, baixo, guitarra, acordeon e sax. Esse arranjo tem mesmo a inovação de timbres que não faz parte da tradição, mas mantém ainda muito forte a rítmica e o fraseado do frevo-de-bloco. 8. Mais que uma cantiga (Cláudio Almeida e Humberto Vieira) Arranjo: Fernando Rangel Traz as presenças do flugelhorn, do trombone e dos saxofones soprano e tenor. O arranjo tem influência do subgênero dixieland do jazz estadunidense, surgido na década de 1910 em New Orleans. Existem umas linhas de improviso que remetem a essa sonoridade. De todas as canções do disco, considero ser a que mais quebra com a rítmica tradicional do frevo-de-bloco, dando um ar por vezes jazzístico, por vezes amaxixado. Entretanto, termina com o acorde final clássico em uníssono. 9. Pirilampos (Diógenes Souza) Arranjo: Marco César 188

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O Quinteto de Cordas da Paraíba (dois violinos, viola, violoncelo e contrabaixo), abre a canção. Como convidado dá uma característica de “música de câmara pura”, de “música erudita tradicional” à canção, segundo Marco César. Há também a voz solo de Valéria. O uso do violino não é algo novo para o frevo-de-bloco, sempre fazendo solo em uníssono com a melodia, a linguagem que esse assume nessa canção sim: solo em contracanto, acompanhamento e improvisação escrita. Outro ponto forte defendido pelo diretor musical é a “timbragem de frente” das cordas friccionadas e não da orquestra de pau e corda. 10. Vinganças de Arlequim (Edgard Moraes e Caio Costa Lima) Arranjo: Ademir Araújo Formação tradicionalíssima. Desde o apito inicial e final até o acorde final em uníssono. O que traz diferente apenas é a presença do trompete e do trombone. 11. Recife Urgente (Luiz Paulo Galvão e Paulo Gama) Arranjo: Nilson Lopes Traz a SpokFrevo Orquestra como convidada. Melodia rebuscada para decorar, para cantar, para afinar. Há uma linha melódica das vozes, com uma extensão de agudos inclusive, que realmente não faz parte do repertório comum ao frevo-de-bloco. Esse sim, é um frevo extremamente difícil, para os cantores, porque não é um frevo que vai estar na boca do povo, a gente teve consciência disso. È um frevo que só determinadas pessoas, em determinados ambientes, em determinadas gravações ou projetos vai estar presente. (Marco César, depoimento pessoal, 2016)

12. Mar de ilusões (Tadeu Junior) Arranjo: Rodrigo Samico e Rafael Marques Como convidado, o grupo de choro Arabiando que traz a viola de 10 cordas e a bateria e só se fez inserir alguns instrumentos: flauta e sax tenor. Há uma linha de improvisos do bandolim, uns tremolos que flutuam mesmo entre a linguagem do frevo-debloco e do choro e umas frases de sax que remetem ao jazz. Ao fim da canção existe um

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contraponto da voz solo de Valéria, da flauta e do pandeiro que dão uma delicadeza, que enxugam o arranjo em um rallentando que remetem mais uma linguagem chorona. 13. Recife Cem Edgard (Fernando Azevedo) Arranjo: Marcos FM Arranjo tradicional, mas que traz o baixo elétrico. 14. Meu principado (Luciano Magno e João Aragão) Arranjo: Luciano Magno Com baixo acústico, piano, guitarra, violão base, sax tenor e bandolim, só que esse fazendo fraseado de guitarra solo. Isso e a voz solo são as marcas de diferenciação da canção. A guitarra elétrica, dá mais um suporte de base. 15.

Pares de Flores (Bozó 7 cordas e Eriberto Sarmento) Arranjo: Bozó 7 cordas Traz o piano e o violoncelo. O baixo acústico não faz só o pizzicato marcante no

frevo-bloco, faz solo também. Marco César ressalta que há também a conotação da bossanova, do samba gênero esse que faz parte do que o arranjador costuma ouvir. Há mesmo um desenho melódico e harmônico da base instrumental para o coro que remete à leveza dos arranjos da bossa-nova, do samba-canção. 16.

Regressando (Bráulio de Castro e Fátima de Castro) Arranjo: Nilson Lopes Vem em seu arranjo com a trompa e com o fagote, instrumentos sinfônicos. Tem a

participação do Quinteto de Sopros Arrecife (flauta, oboé, clarinete, trompa e fagote). Além do baixo elétrico. O tratamento do arranjo é mais jazzístico, com o uso de muito contraponto. O predomínio do naipe das madeiras é a marca mais interessante do arranjo. A rítmica do frevo-de-bloco é mantida mais fortemente pela percussão.

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Considerações Finais A trajetória do Coral Edgard Moraes transitando por esse meio de música de tradição popular, mas com essa busca por um processo de profissionalização, de ir ao palco, só faz atentar que processos arraigados, ditos intocáveis pelos mais tradicionais no frevo-de-bloco podem ser revisitados, repensados. Buscar inovações não necessariamente significa que vá se perder a essência, pode significar apenas dar vida nova, enxergar as diversas possibilidades musicais que existem para o frevo-de-bloco. Quando se engessa muito as coisas, sobretudo em artes, a tendência é que morra a criatividade, o espírito de liberdade. Como acredita Seeger (2008, p. 238), “o fato de que sempre existirá uma próxima vez, aponta para o que podemos chamar de tradição. O fato de que a próxima vez não será nunca igual à vez anterior produz o que podemos chamar de mudança”. Referências BEZERRA, Amilcar Almeida. SILVA, Lucas Victor. Evoluções: histórias de bloco e de saudade. Recife: Bagaço, 2006. BRITO, Marco César. Entrevista concedida a Alice Alves. Recife, 19 de abril de 2016. CORAL EDGARD MORAES. Cantos e Encantos. Recife: Editora CEPE, 2012. 1 CD. 16 faixas. MADUREIRA, Antônio José. Vem Escutar, Nossa Linda Canção. Fonte: http://www.blocodasaudade.org.br/#!artigo03/c38b. Acesso em: 15 de abril de 2016) . SEEGER, Anthony. Etnografia da Música. Tradução de Giovanni Cirino. Cadernos de campo. São Paulo, n.17, p.237-260, 2008 SILVA, Leonardo Dantas. Blocos carnavalescos do Recife: origens e repertório. Recife: Governo do Estado de Pernambuco, Secretaria do Trabalho e Ação Social, Fundo de Amparo ao Trabalhador – FAT, 1998. VILA NOVA, Julio Cesar. F. Panorama de folião - o carnaval de Pernambuco na voz dos blocos líricos. Recife: Fundação de Cultura cidade do Recife, 2007. v. 1. 167p.

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SESSÃO 2 Coordenação: Tainá Mª magalhães Façanha

Cidade e cultura musical: a Feira Pixinguinha em Belém do Pará (1980).

Nélio Ribeiro Moreira (FAV/ICA/UFPA - [email protected] RESUMO: Este artigo aborda a cena da canção popular em Belém do Pará nos primeiros anos da década de 1980 por meio de um evento particular, a Feira Pixinguinha. Trata-se de verificar de que maneira a realização desse evento foi fator contributivo para a formação de uma cultura musical na cidade, entendendo-a em condição de fronteira. O objetivo proceder a uma leitura das representações que foram construídas historicamente para traçar um quadro analítico-descritivo das práticas sociais e culturais havidas naquela configuração social. Palavras-chaves: Feira Pixinguinha; cultura musical; cena da canção popular; antropologia histórica.

A Feira Pixinguinha foi um evento musical idealizado pelo músico Maurício Tapajós e que estava atrelado ao Projeto Pixinguinha, este uma idealização da Sociedade Musical Brasileira, a SOMBRÁS, entidade criada pelos músicos JardsMacalé e Sérgio Ricardo. Inspirado na série de shows Seis e Meia, o Projeto Pixinguinha, criado em 1977, tinha como objetivo proceder a ocupação do Teatro João Caetano, na cidade do Rio de Janeiro, com espetáculos às 18h30 e ingressos a preços populares.75 O objetivo era “valorizar, difundir e formar plateia para a música popular brasileira e para o trabalho de artistas fora da evidência do mercado” e para alcançar esse propósito seria promovida “a circulação de espetáculos musicais pelo país” (ALMEIDA, 2009, p. 12). A fórmula era a seguinte: apresentar um artista de renome nacional e um expoente da canção local. Até 1983 o patrocínio do evento cabia apenas à FUNARTE e alguma parte subsidiada pelo meio empresarial. A partir daquele ano, a Petrobrás passou a patrocinar o Projeto Pixinguinha (Idem. Ibidem).

75

Disponível em: http://www.funarte.gov.br/brasilmemoriadasartes/acervo/pixinguinha/o-pai-do-projetopixinguinha/. Acesso em: 10 set. 2013.

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Este trabalho lida com o primeiro grande evento de música na cidade na época e que teve significativa ressonância na cultura musical76 da cidade na época que foi a Feira Pixinguinha de Belém. Esse pode ser lido comoinstrumento de uma política cultural cujo objetivo era a integração da produção musical da região amazônica ao cenário musical do Brasil no intuito de mostrar ao país os valores musicais da região.77 É essa a idéia que está expressa nos jornais e no texto do álbumque foi lançado em maio de 1980, onde estão as doze canções “selecionadas” na Feira, resultado do evento.78 Além de expor para o Brasil a cultura musical de “áreas isoladas culturalmente” 79, a Feira Pixinguinha pretendia promover uma animação cultural a nível regional.80 A cidade de Belém do Pará foi a segunda cidade a receber esse evento. A primeira versão do Projeto ocorreu em Brasília, em junho de 1979. Aliás, a ocorrência da Feira Pixinguinha em Brasília acabou por colocar a questão da possível existência de uma “MPB candanga”. Logo após o evento foi lançado um debate acerca de uma música de caráter local, “brasiliense”, haja vista que, ainda que não tivesse uma matriz original que legitimasse a ligação afetiva dos artistas com o seu lugar, a música de Brasília era resultado da junção de várias culturas musicais o que, de certa forma, resultou em um “posicionamento candangal”81: avaliar o ethos dessa produção, o que teria conformado uma música com as características dadas por elementos constituintes de umacidade projetada. Como se vê, a Feira Pixinguinha deu o mote para que também emergisse um debate sobre caráter da MPB produzida em Brasília. Então, ponto inicial de partida da “missão” de inclusão da produção musical de várias regiões do país ao corpus da música popular brasileira foi a Capital Federal, ela 76

Entenda-se por cultura musical a reunião de indivíduos atuantes na cena artística compõe uma cultura dentro da sociedade envolvente – o que pode ser tomado como uma subcultura -, haja vista que esses atuaram no sentido de estabelecer processos de interação instigados pela necessidade de dar uma resposta para problemas que lhes eram comuns. Assim, quando um grupo de pessoas tem de maneira relativa uma vida comum, em um pequeno grau de isolamento em relação a outras pessoas da sociedade circundante, a mesma posição na sociedade e problemas comuns, ali está uma cultura (HUGHES, apud. BECKER, 2008). 77 FUNARTE. Feira Pixinguinha. (LP). Belém, 1980. 78 “Feira Pixinguinha, sempre um sucesso”. Jornal O Estado do Pará. Belém, 19 de janeiro de 1980, p. 12. Caderno Cidade. 79 FUNARTE. Feira Pixinguinha. (LP). Belém, 1980. 80 Efetivamente, a Feira Pixinguinha, ainda que tivesse um modelo de festival e que tivesse havido ali uma “seleção”, tal como nos moldes dos “festivais da canção” dos anos 1960 e 1970, não era necessariamente um certame. Tratava-se mais de uma mostra de música, definição esta que, contudo, não aparece nos jornais da época. 81 “MPB candanga. Eixo Rio - São Paulo versus Eixão Monumental, a luta dos novos.” Jornal CB Hoje. Brasília, 21 de junho de 1979. Caderno Variedades. p. 21. Candango é como ficaram conhecidos os homens de vários lugares do país que se deslocaram para trabalhar na construção da cidade.

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própria uma cidade que foi construída com o intuito político-ideológico de ser um lugar mediano no espaço nacional que funcionasse como meio de integração de regiões ainda não totalmente incorporadas ao território nacional. Assim, do centro do Brasil se iniciaria a incursão à periferia do Brasil na busca por “revelar ao país os valores da música popular de cada região ou pelo menos dos grandes centros”. 82Vejamos o seguinte trecho de um jornal local do período: Belém é a segunda metrópole para a realização da Feira Pixinguinha, representando o que há de melhor na música da Amazônia através das vinte composições que foram classificadas no Rio de Janeiro [...].83 (Grifos meus).

O trecho citado fala em exposição do melhor da música da Amazônia numa perspectiva discursiva reducionista que abarca toda a região amazônica ao estado do Pará e, mais precisamente, à cidade de Belém do Pará. Assim, avento que a realização nessa cidade da segunda versão do projeto Feira Pixinguinha se deveu ao fato de: 1) Belém do Pará ser uma cidade amazônica na qual a produção musical era fato reconhecidamente destacado, pois rememora à década anterior episódios que delimitaram essa visão sobre a produção musical da região; 2) ser a cidade amazônica de maior expressão regional naquele contexto, “o modelo mais bem acabado de uma cidade da Amazônia”, como está expresso em um jornal da época – aliás, idéia essa expressa no recorrente uso do termo “metrópole da Amazônia”, um discurso construído sobre a idéia de um passado áureo que remete à época da economia da borracha

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; 3) como conseqüência da sua condição

amazônica, que associa os ambientes urbano e natural, ter se forjado na cidade uma perspectiva estética musical que é portadora de uma peculiaridade que se reflete na temática do cancioneiro local. Devido a isso, proponho ler a Feira Pixinguinha como um instrumento “missionário”, haja vista que teve como objetivo a incorporação das cenas musicais regionais/locais no circuito nacional da música popular brasileira moderna. A prática de reunião de artistas locais em vista de urdir meios para o estabelecimento de uma cena

“Feira Pixinguinha, sempre um sucesso”. Jornal O Estado do Pará, Belém, 19 de janeiro de 1980, p. 12. Caderno Cidade. 83 Idem. Ibidem. O júri que escolheu as músicas no Rio de Janeiro era composto por: Sueli Costa, JardsMacalé, Érico de Freitas, Chico Chaves e Cláudio Jorge. 84 Sobre as transformações processadas no espaço urbano de Belém no final do século XIX e início do XX ver: SARGES, 2002. 82

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musical regional mais coesa foi a sua conseqüência imediata. Isso pôde ser visto nas versões desse evento em Brasília e Belém.85 A questão do regionalismo era tema presente nas leituras dos artistas que participaram da Feira Pixinguinha de Brasília. E assim foi em Belém. A propósito, na cena musical dessa cidade a questão do “uso” do tema do regional teve uma repercussão mais impactante. Isso se deu porque se em Brasília a música local era resultante das imbricações das mais variadas tradições culturais em contato e amálgama, em Belém era imperativo o ambiente, a retomada do uso de um ethos amazônico que já havia se consolidado na produção de artistas de anos anteriores e que acabou por conformar uma “MPB de feições regionais” (COSTA, 2008) 86. As 20 músicas que foram apresentadas na Feira Pixinguinha foram retiradas de um universo de 81 que haviam sido inscritas. Os compositores das canções participantes eram oriundos de várias partes da região. Todavia, o quadro de “finalistas” dessa mostra musical foi formado por artistas atuantes em Belém. Quanto ao critério de escolha que definiu as canções finalistas, este tinha sido efetivado em uma dinâmica que considerava, primeiramente, a construção musical, e, em seguida, a letra. A performance dos intérpretes e a execução dos arranjos das cançõestambém foram quesitos observados pelos avaliadores e premiados pelos organizadores. No dia 18 de janeiro de 1980, no Teatro da Paz, às 18h30m de uma sexta-feira, tinha início a Feira Pixinguinha. Ali foram apresentadas dez canções. A comissão de júri que teve a responsabilidade de julgar as canções ali apresentadas era formada pelos músicos Maurício Tapajós, Danilo Caymmi, Antonio Adolfo e Carlinhos Vergueiro – que também se apresentaram para o público durante a mostra, “cantando ou tocando uma ou duas músicas”87 - e mais os paraenses Arnaldo Cohen, Guiães de Barros e Waldemar Henrique. No sábado, dia 19, ocorreu a segunda fase de apresentações na Feira Pixinguinha. Neste dia de apresentação, duas novas músicas foram incluídas em substituição às duas que haviam sido desclassificadas. A justificativa do júri – de que já haviam sido apresentadas 85

A terceira e última versão da Feira Pixinguinha ocorreu em Salvador, na Bahia, em fevereiro de 1980. É desconhecido o motivo do fim do projeto. 86 Essa perspectiva de um regionalismo militante por parte de artistas da música tem em sua formulação e atuação mais consistente e longeva a atuação do Maestro Waldemar Henrique. Ver: MOREIRA, 2011. 87 “Feira Pixinguinha, sempre um sucesso”. Jornal O Estado do Pará. Belém, 19 de janeiro de 1980. Caderno Cidade. p. 12.

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no ano de 1979 em outros eventos: a primeira, no Festival de Música do SESI e a segunda, no Festival da Lanchonete Um88, respectivamente - ensejaram argumentos de um dos mais importantes artistas do meio musical na época, Antonio Carlos Maranhão89. Para ele, a alegação dos organizadores de que as canções foram desclassificadas porque já haviam sido apresentadas em outros eventos não se justificava, pois na sua visão a Feira Pixinguinha não era um festival, tal como aqueles eventos dos quais as músicas haviam participado – ou seja, uma competição no sentido estrito. Essa situação acabou por gerar uma reclamação incisiva por parte do compositor. Segundo ele, o que ocorreu foi uma “deduragem”, o que iria atrapalhar o projeto em curso de estabelecimento da cena. Vale citar sua argumentação: É inadmissível que quem não entrou na Feira Pixinguinha fique dando uma de policial, de dedo duro, derrubando um e outro. Isso não é comportamento de quem faz música, porque quem faz respeita o trabalho dos outros. O que eu acho é que existe pessoas que não entraram na Feira e ficam dando notas em jornais derrubando os outros que estão participando.90

Para o músico, as atitudes por ele apontadas teriam uma repercussão negativa ainda maior porque ocorreram no contexto de início de um processo de afirmação da cena musical da canção na cidade, haja vista que, tomando como referência o que disse Maranhão, foi no final dos anos de 1970 que se apresentou um campo de possibilidades constituído por elementos satisfatórios para o estabelecimento de uma interação entre os artistas locais. Foi ali que “o pessoal da música [da cena da canção] começou a se reunir [...], portanto, não deveria haver essa ‘deduragem’ por parte das “patrulhas ideológicas”91. A conseqüência mais direta é que isso acabaria por abalar o sentimento de solidariedade entre músicos. Para Maranhão, era preciso superar essas perspectivas individualistas e agir em prol da formação de uma consciência de classe. Participar do evento era um objetivo dos músicos precisamente porque para os doze finalistas participariam da gravação de um disco. Na época havia uma concentração do “Duas desclassificações na Feira”. Jornal O Estado do Pará. Belém, 17 de janeiro de 1980. Caderno Cidade. p. 12. 89 Antonio Carlos Maranhão é o nome artístico de Antonio Carlos Ferreira Carvalho. Nasceu no Maranhão, em 1948. Veio para Belém no início dos anos 1970, onde teve contato com os músicos da cidade, como Nego Nelson e Carlos Henry, notáveis na cena da época. Engenheiro Agrônomo de formação, também estudou música. Nos anos 1980 participou de vários festivais de música e ativamente do circuito de “lugares da canção” da cidade, o que o tornou figura emblemática na cena (OLIVEIRA, 2000; SALLES, 2007). 90 “Duas desclassificações na Feira”. Jornal O Estado do Pará. Belém, 17 de janeiro de 1980. Caderno Cidade. p. 12. 91 Idem. Ibidem. 88

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mercado musical no eixo Rio - São Paulo – havia mesmo uma “concentração tecnológica” de recursos de gravação e divulgação –, o que era um obstáculo para os fazedores de música da região. Poucos gravavam. Pode-se destacar na época, como exemplo, Amazon River,92 segundo long play de Paulo André Barata, de 1980, Prato de Casa93, um disco compacto gravado pelo cantor e compositor Pedrinho Cavallero, e o disco Gerações,94 do cantor e compositor Carlos Henry, ambos de 1981, e todos gravados na cidade do Rio de Janeiro. Certamente por ser conhecedor dessa situação acerca da gravação, o músico Altino Pimenta, um dos músicos participantes viu a Feira Pixinguinha como achance para os músicos locais, haja vista que o disco com as canções escolhidas era “uma boa oportunidade para despertar novos valores”. 95 O fato é que ainda não havia na realidade local uma estrutura profissional de aparato instrumental e tecnológico, e nem profissionalismo por parte dos artistas locais. Era tudo muito incipiente. Daí que a gravação do disco da Feira Pixinguinha tenha ficado registrado na memória como “um sufoco, pois éramos muito inexperientes”, segundo relatou o guitarrista José LuisManeschy.96 A melhor canção da Feira Pixinguinha de Belém do Pará foi “Encadeado”, composição do músico Albery Jr., que foi quem também levou o prêmio de melhor compositor. O melhor letrista foi Antonio Carlos Maranhão, o melhor intérprete foi Walter Bandeira e o melhor arranjador foi o guitarrista José LuisManeschy. Uma questão a ser destacada da Feira Pixinguinha era justamente a perspectiva de que esse evento pudesse ser gerador do fortalecimento da produção e propagação de música na cidade, tal como preconizavam Antonio Carlos Maranhão na senda da própria proposta do evento. Assim, a reportagem que cobriu o evento final destacou que, apesar da ocorrência de fatos inusitados, o que se viu foi um “clima de absoluta cordialidade” entre os participantes/concorrentes no momento do evento. Vale a citação do texto que destaca essa “solidariedade”. [Um] clima de absoluta cordialidade entre os concorrentes, uns ajudando os outros, todos convencidos de que o apoio mútuo é indispensável para que esta

92

BARATA, Paulo André. Amazon River. (LP). Rio de Janeiro, Continental, 1980. CAVALLERO, Pedrinho. Prato de Casa. (LP). Rio de Janeiro, Sonoviso, 1981. 94 HENRY, Carlos. Gerações. (LP). Rio de Janeiro, Chantecler, 1981. 95 “Feira Pixinguinha, sempre um sucesso”. Jornal O Estado do Pará. Belém, 19 de janeiro de 1980. Caderno Cidade. p. 12. 96 Entrevista com o violonista e guitarrista José LuisManeschy, realizada em 17 de janeiro de 2014. 93

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/ Belém – 2016 Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares. chance dada ao compositor local seja de uma validade real. A partir de amanhã, com a gravação do disco, um novo tempo começa e as perspectivas são as melhores possíveis. O futuro sabe melhor, e é em busca dele que os valores revelados pela Feira Pixinguinha passam a trabalhar. 97

As gravações para o disco resultado da Feira Pixinguinha começaram a partir do dia 28 de janeiro. Contudo, apenas 11 faixas, de antemão, seriam gravadas, haja vista que Antonio Carlos Maranhãohavia desistido de gravar “Sonhos de valsa”. No entanto, ele retrocedeu e acabou por entrar no disco. Pode-se depreender que naquela configuração social, na rede de sociabilidade ali tecida as relações estavam pautadas por demonstrações de força na cena por parte dos seus integrantes, comum em qualquer forma de interação social. Notemos isso pela forma como Gondim fala das desavenças que ali haviam como tendo sido provocadas por “fofocas” e “ciumadas” que havia no meio musical e, ao se referir ao retorno de Maranhão para compor o disco, diz que o compositor “choramingou um retorno”.98 Ainda sobre o processo de gravação, outra “baixa” na gravação foi a ausência do conjunto de Álvaro Ribeiro 99 que havia acompanhado o cantor Walter Bandeira durante as apresentações no evento. Foi convidado, então, outro conjunto bastante destacado no cenário local, o do pianista e compositor Guilherme Coutinho. Contudo, a participação desse conjunto para gravar com Walter Bandeira não foi acatada pela organização do evento. Resultado: a gravação de “Nas garras da paixão”, interpretada por Walter Bandeira, foi realizada no formato voz e violão, sendo o violonista que o acompanhou o músico Nego Nelson. Sobre essa situação escreveu Gondim: “fez-se uma Feira [Pixinguinha] tida e havida como a melhor do Brasil e o Brasil não vai saber disso, porque o disco não poderá reproduzir o que se passou por aqui.” 100 Sobre esse episódio, relata o violonista Nego Nelson: Essa música [Nas Garras da Paixão] é uma música do Kzam [Gama]. Quem tocou fui eu. Eu cheguei lá e eles estavam gravando, lá no teatro, no Teatro da Paz foi onde gravaram as músicas do festival, da Feira Pixinguinha. O espaço tinha uma acústica muito boa, e lá estava toda a aparelhagem vinda do Rio [de “Encadeado foi a grande vencedora”. Jornal O Estado do Pará. Belém, 20 e 21 de janeiro de 1980. Idem. Ibidem. 99 Álvaro Ribeiro era pianista e compositor. Nascido em Portugal em 1931, se radicou em Belém. Estudou piano em Belém e em Portugal para onde voltou com 19 anos de idade. Trabalhou na Rádio Marajoara nos anos 50 e depois após uma temporada nos EUA, retornou à Belém onde formou um trio jazzístico que se apresentava nos bailes da cidade na década de 1960. Tocou com grandes nomes da música popular paraense, entre eles Fafá de Belém e Leila Pinheiro. Cf. SALLES, 2007. 100 . Jornal O Estado do Pará. Belém, 26 de janeiro de 1980. (Coluna Gerais, p. 2). 97 98

198

/ Belém – 2016 Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares. Janeiro]. Eu cheguei lá tava uma confusão, tava uma discussão lá, o Álvaro [Ribeiro] se pegando com o Walter [Bandeira], aí eu cheguei pra gravar uma música que eu nem lembro qual era. Aí o Álvaro disse assim: “olha, não vou acompanhar [o cantor Walter Bandeira], a gente tá brigado”, e foi embora. Aí eu disse: “me dá a partitura”. A gente deu uma ensaiada e gravamos, gravamos a música eu e Walter, assim meio que na marra. O Kzam diz que ta até errado, [que] tá horrível. Que nada, eu acho que tá bacana.101

Assim, das canções apresentadas apenas “Deuses da Mata” foi registrada tal como foi apresentada durante o evento, o que motivou a seguinte declaração do mediador cultural CléodonGondim: “essa é a [canção] que vai melhor demonstrar a capacidade da música popular paraense [...], pois o compositor havia trabalhado com o mesmo grupo de músicos”. 102 Mas no dia 22 de maio de 1980 ocorreu no Teatro da Paz o lançamento do disco com as gravações das músicas selecionadas na Feira Pixinguinha que havia sido realizada em Belém do Pará em janeiro.103 No dia anterior ao lançamento do referido disco, a Rádio FM Rauland104 tocou todo o disco em um momento da sua programação,

um

acontecimento marcante para a música paraense, segundo registrou Cléodon Gondim. O fato de ter executado o disco em sua programação “no mesmo pé de igualdade com as celebridades nacionais e internacionais”

105

foi algo emblemático para a história da canção

popular paraense, segundo o articulista, pois isso significavao marco de início para que o resto do país conhecesse a produção musical da região. Nas palavras de Gondim: Afinal, podemos estar conscientes que se faz música (e boa) nesta cidade. O disco não pode ser melhor do que é tecnicamente. Como um Éden, é um excelente princípio para nossa turma de cá, que ainda não teve chance ou não quis sair daqui para se fazer ouvir. O disco está aí e poderá correr o mundo, fazendo a cabeça de muita gente. E que o faça da melhor maneira possível, principalmente dos próprios artistas que nele estão, compenetrando-os com suas obrigações para com este povo e com a própria arte fazendo-os crescer e expandir.106

101

Entrevista realizada com o violonista Nego Nelson, em 19 de setembro de 2013. Jornal O Estado do Pará. Belém, 26 de janeiro de 1980. (Coluna Gerais, p. 2). 103 “Feira Pixinguinha”. Jornal O Estado do Pará. Belém, 22 de maio de 1980. p. 4. 104 A Rádio Rauland FM era parte integrante do grupo Rauland Belém Som Ltda., e que tinha ainda um estúdio de gravação. Foi fundada no ano de 1975. Nos anos 1980 tornou-se a RJ Produções. Essa rádio foi responsável pelo lançamento de cantores locais que atuavam no ramo de músicas de gênero popular consumidos pela população da periferia da cidade, como o brega, o carimbó, o bolero e o merengue. Entre os principais artistas que a rádio executava em sua programação na época estavam Pinduca, Cupijó, Orlando Pereira, Emanuel Vagner e Francis Dalva (COSTA, 2013, p. 218). 105 “Feira Pixinguinha”. Jornal O Estado do Pará. Belém, 22 de maio de 1980. p. 4. 106 Idem. Ibidem. 102

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Como mostra o trecho, havia uma “necessidade” de se mostrar a produção reunida naquele disco de música popular como comprovação da profícua produção de canção popular na cidade. Sendo assim, era de extrema importância a sua execução em uma rádio local que já executava e divulgava músicas de cantores e compositores locais - todavia de outros gêneros musicais -, o que poderíamos chamar de mundo da música popular massiva, como bregas, boleros, merengues e carimbós. Outra questão levantada por Antonio Carlos Maranhão foi acerca da eficácia da proposta de premiação para os participantes do evento da FUNARTE: a gravação em LP das músicas selecionadas como meio de divulgação da produção musical popular paraense. No seu ponto de vista, as rádios eram subsidiadas para promover determinados artistas, o que impedia a veiculação da produção do cancioneiro local. Considerando essa situação, para Maranhão a gravação resultante da Feira Pixinguinha poderia não alçar o objetivo de divulgação contido na proposta inicial. O artista pauta sua argumentação na experiência com o festival “Três Canções para Belém”, que ocorreu em outubro de 1977: a premiação para os vencedores foi a gravação de um disco com as canções premiadas, mas ninguém ouviu o disco, haja vista que as emissoras de Belém são dirigidas pelo que as gravadoras determinavam. Embasado nessa argumentação, Maranhão expõe sua visão sobre as chances reais do evento: o que os compositores e músicos locais participantes deveriam aproveitar da Feira Pixinguinha era a possibilidade que ela dava de integrar os compositores de Belém com os compositores de outras regiões do Brasil. Assim, poderia haver um entrelaçamento mais efetivo, de maneira que os artistas locais (compositores, músicos, cantores) pudessem participar de eventos “no sul maravilha”.107 Por fim, o que este artigo apresentouvai no sentido de ratificar o argumento de que a Feira Pixinguinha, quando motivou a reunião dos músicos atuantes naquela cena, promoveu a constituição de um cenário da canção local como algo mais consistente, o que certamente teve como elemento legitimador o discurso dos organizadores e dos músicos que atuaram como jurados. Acerca dessa intenção de ratificação do “sucesso” do evento, vale citar a seguinte passagem, de autoria de Mauricio Tapajós: A Feira Pixinguinha do Pará/80 mostrou diversos compositores já em fase de amadurecimento e dois intérpretes ao nível dos bons profissionais do país. O

107

Idem. Ibidem.

200

/ Belém – 2016 Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares. resultado geral foi muito superior ao de todos os festivais a que tenho assistido ultimamente, incluindo os [de] televisão.108

Estabelecendo o nexo com esse contexto, tal processo acabou por marcar uma nova orientação na produção e difusão da MPB. Portanto, o que foi apontado indica que foi a partir da realização da Feira Pixinguinha que se estabeleceude maneira mais solidificada, no meio musical belemense, a perspectiva de uma inserção mais profunda da música popular feita na região Amazônica, precisamente de Belém do Pará, no cenário musical nacional. Assim, a própria Feira Pixinguinha foi um marco importante no projeto de redimensionamento da canção popular local naquele campo de possibilidades. Referências ALMEIDA, Gabriela Sandes Borges de. Projeto Pixinguinha – 30 anos de música e estrada. (Dissertação de Mestrado). Fundação Getúlio Vargas, Programa de PósGraduação em História Política e Bens Culturais – Mestrado Profissional em Bens Culturais e Projetos Sociais, Rio de Janeiro, 2009. BECKER, Howard S. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. São Paulo: Zahar, 2008. COSTA, Antonio Maurício Dias da.Festa na cidade: o circuito bregueiro de Belém do Pará. Belém: [s.n.], 2007. COSTA, Tony Leão da.Música do Norte: intelectuais, artistas populares, tradição e modernidade na formação da “MPB” no Pará (anos 1960-1970) (Dissertação de Mestrado) Universidade Federal do Pará, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em História Social da Amazônia, Belém, 2008. HANNERZ, Ulf. “Fluxos, fronteiras, híbridos: transnacional”. In: Mana. N. 3, vol. 1, 1997, pp. 7-39.

palavras-chave da antropologia

JANOTTI JR., Jeder. “Entrevista - Will Straw e a importância da ideia de cenas musicais nos estudos de música e comunicação”. Revista da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação - E-compós, Brasília, v.15, n.2, maio/ago. 2012. MOREIRA, Nélio Ribeiro. “Identidade amazônica e música regionalista na primeira metade do século XX: Waldemar Henrique e a perspectiva primitivista do Modernismo Brasileiro.” Revista Estudos Amazônicos. Vol. VI, nº 2 (2011), pp. 139-165. . A música e a cidade: práticas sociais e culturais na cena da canção popular em Belém do Pará na década de 1980. (Dissertação de Mestrado) Universidade Federal do Pará. Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia, Belém, 2014. NAPOLITANO, Marcos. “MPB: a trilha sonora da abertura política (1975-1982)”. Estudos Avançados 24 (69), 2010. pp. 389-402. 108

Cf. FUNARTE, 1980. Encarte. Pode-se dizer que, no processo de cobertura jornalística, os periódicos locais atuaram como articuladores dessa legitimação, haja vista o destaque dado ao evento.

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OLIVEIRA, Alfredo. Ritmos e cantares. Belém: Secult, 2000. SALLES, Vicente. Músicas e músicos do Pará. Belém: SECULT, 2007. STRAW, Will. “Systems of articulation, logics of change: communities and scenes in popular Music”.Cultural Studies, vol. 5, n. 3, p. 368-388, 1991. VELHO, Gilberto. Arte e Sociedade: ensaios de sociologia da arte. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1977. . Um antropólogo na cidade. Ensaios de antropologia urbana. Janeiro: Zahar, 2013.

Rio de

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O fenômeno da Lambada: reflexões sobre processos de expansão, desterritorialização e mudança cultural/musical. Francinaldo Gomes Paz Júnior [email protected]

Resumo: A partir de uma abordagem etnomusicológica, este artigo visa discutir sobre o processo de expansão da Lambada para além dos limites da região amazônica, seu trânsito pelo Nordeste, sua disseminação internacional através do grupo franco-brasileiro Kaoma e os processos de mudança cultural/musical sofridos pelo gênero. Ainda, busca apontar fatores que teriam contribuído para que a Lambada fosse impulsionada e ganhasse popularidade no contexto regional, nacional e global. Utilizando-se de fontes documentais, em especial de textos jornalísticos que abordam a Lambada nos últimos 40 anos aproximadamente (a partir de 1970) - e, lançando mão de narrativas de atores sociais vinculados direta e/ou indiretamente à história e à cena musical paraense, reflito sobre os contextos musicais relacionados ao gênero musical e o fenômeno que envolve a Lambada nas décadas de 70 e 80. No que diz respeito aos processos de mudança cultural (NETTL, 2005; 2006), tomo como base de reflexão a relação entre a tradição/modernidade e mudanças culturais e musicais que se encontram presentes na Lambada. Nesse sentido, o estudo traz à tona informações referentes à trajetória de artistas e grupos musicais que se fizeram representativos pelo visível esforço de disseminar a lambada no cenário regional, nacional e mundial, tornando o gênero um fenômeno musical global. Ademais, destaca as principais mudanças experimentadas pela Lambada entre os dias de hoje e a década de 1980. Palavras-chave: Lambada. Mudança cultural/musical. Música (paraense; do Pará).

1. Introdução Este artigo visa discutir sobre o processo de expansão da Lambada para além dos limites da região amazônica, seu trânsito pelo Nordeste, sua disseminação internacional e os processos de mudança cultural/musical sofridos pelo gênero. Ainda, busca apontar fatores que teriam contribuído para que a Lambada fosse impulsionada e ganhasse popularidade no contexto regional, nacional e global. Utilizando de fontes documentais, em especial de textos jornalísticos que abordam a Lambada nos últimos 40 anos - aproximadamente (a partir de 1970) - e, lançando mão de narrativas de atores sociais vinculados direta e/ou indiretamente à história e à cena musical paraense, reflito sobre os contextos musicais relacionados ao gênero musical e o fenômeno que envolve a Lambada nas décadas de 70 e 80. No que diz respeito aos processos de mudança cultural (NETTL, 2005; 2006), tomo como base de reflexão a relação entre a tradição/modernidade e mudanças culturais e musicais que se encontram presentes na Lambada. Nesse sentido, o estudo traz à tona 203

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informações referentes à trajetória de artistas e grupos musicais que se fizeram representativos pelo visível esforço de disseminar a Lambada no cenário regional, nacional e mundial, tornando o gênero um fenômeno global. Ademais, destaca as principais mudanças experimentadas entre os dias de hoje e a década de 1980. Enquanto gênero musical, a Lambada pode ser definida como: (...) uma música de pulso rápido, sincopado e caracterizado pela onipresença de riffs (de guitarra ou saxofone), característicos da maioria das músicas afrourbanas, das Antilhas (por exemplo, zouk), e pan-africanas (por exemplo, rumba zairense). Por outro lado, a lambada é uma dança de par que se caracteriza por uma coreografia particularmente sensual, onde o contato estreito e permanente entre os corpos levemente vestidos dos dançarinos se cadencia através de movimentos de quadril sugestivos. Desta maneira, é o aspecto da dança que dá à lambada uma conotação particularmente erótica e que excede em muito a de outras “danças latinas” globalizadas (cúmbia, salsa, merengue) (MCGOWAN e PESSANHA, 1999 apud GARCÍA, 2006: p.3). 109

Apesar de as discussões em torno da origem da Lambada e da definição do termo evidenciarem que há pouco consenso sobre quem a teria criado, quando e onde (LAMEN, 2011a), sabe-se que sua ascensão em meados da década de 1980 e 1990 se deveu, em grande parte, a um processo de propagação do ritmo para além dos limites amazônicos. A Lambada, nesse sentido, se expandiu progressivamente no interior da Amazônia e em cidades do Nordeste brasileiro como Recife, Salvador e Fortaleza. Chegou até grandes metrópoles do Centro-Sul do Brasil, a exemplos do Rio de Janeiro e de São Paulo, e se estabeleceu em casas de shows denominadas “lambaterias” (GARCÍA, 2006). Internacionalmente, a Lambada se fez conhecida por meio do grupo Kaoma, que fez sucesso durante as décadas de 1980 e 1990, disseminando o gênero especialmente na Europa. Nesse processo de desterritorialização, o trânsito pelo Nordeste brasileiro da lambada e de outros sons com sotaque caribenho, principalmente na Bahia, fomentou uma interlocução entre o sucesso regional do gênero e sua exportação para a Europa. Vale destacar que,

109 No

original: “(...) una música de pulso rápido, sincopado y caracterizado por la omnipresencia de riffs (de guitarra o saxofón), característicos de la mayoría de las músicas afro-urbanas, antillanas (ej. zouk), y panafricanas (ej. rumbacongolesa). Por otro lado, la lambada es una danza de pareja que se caracteriza por una coreografia particularmente sensual, en donde el contacto corporal estrecho y permanente entre los bailarines ligeramente vestidos se cadencia a través de sugestivos movimientos de cadera. De esta manera, es el aspecto de la danza que otorga a la lambada una connotación particularmente erótica y que sobrepasa con creces aquella de otras "danzas latinas" globalizadas (cumbia, salsa, merengue)”.

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/ Belém – 2016 Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares. (...) não foi a partir do contato direto, seja aqui, seja lá, que a música e a dança de origem e/ou referência caribenhas alcançaram a cidade de Salvador. (...) A música do Caribe chegou à Bahia através do vinil, da fita cassete e das ondas do rádio [processo similar à sua chegada no Pará e especialmente em Belém] (MOURA, 2010: p. 346).

2. Banda Warilou

(Fig. 1) - Pôster fotográfico do Disco "Tudo Isso é amor" (Acervo Pessoal).

Um dos mais célebres conjuntos musicais que se fizeram notar durante a fase áurea da Lambada em Belém foi a banda Warilou, criada em 1990 pelo produtor musical Manoel Cordeiro. O grupo teria nascido na esteira de um processo histórico de estruturação da indústria musical regional, iniciado em meados dos anos de 1970 e 1980, e paralelamente da ação cultural popular de protagonistas que incorporaram aos seus respectivos saberes e fazeres (incluindo a criação musical) referenciais de urbanidade, hibridismo e cosmopolitismo peculiares da Lambada e de outros gêneros musicais caribenhos e latinoamericanos. Na segunda metade da década de 1970, o surgimento de uma indústria musical regional foi fomentada pelo estabelecimento e consolidação de gravadoras locais, o que possibilitou a emergência de artistas regionais, a exemplo de Manoel Cordeiro, Alípio Martins, Frankito Lopes, Teddy Max e Pinduca, bem como também a disseminação de suas respectivas produções discográficas (CUNHA, 2013). A esse respeito Manoel Cordeiro afirma que: “a música paraense começou a vigorar quando chegaram os estúdios aqui em Belém, porque até então gravar um disco era difícil, tinha que ir para Rio, São Paulo ou pra Recife” (CORDEIRO, 2014a).

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De acordo com que sugere a própria capa do primeiro LP do Warilou, o grupo incorpora influências de diferentes gêneros musicais, a exemplo da Soca, do Zouk e do Cacicó [ver figura 2]. Além destes, há ainda, nesta produção, uma evidente incorporação estilística de elementos da Lambada, da Guitarrada e do Carimbó.

(Fig. 2) – Capa do primeiro LP da Banda Warilou (Acervo Pessoal).

Em decorrência do sucesso do disco, o Warilou despontou no cenário paraense e nacional, tendo entre os seus maiores sucessos as músicas “Warilou” e “Tudo isso por amor”. Ademais, a banda Warilou desvelou artistas – a exemplo de Manoel Cordeiro – que agregaram e ressignificaram, no tempo-espaço de suas trajetórias, referenciais provenientes de influências híbridas e cosmopolitas de gêneros regionais, como a Guitarrada e o Carimbó, e de gêneros latino-americanos, que foram trazidos de países vizinhos à Amazônia, como a Soca, a Cúmbia e o Merengue. Ainda, demonstraram como essas músicas foram incorporadas, de modo que, “da levada de Guitarra do Carimbó misturada com os metais e a batida do Merengue [nascesse] a Lambada” (CORDEIRO, 2014a). 3. O fenômeno Beto Barbosa Entre vários artistas e grupos musicais que se popularizaram na Amazônia, no Brasil e/ou em outros países, ganhou destaque o cantor Beto Barbosa, nascido em Belém e conhecido como o “Rei da Lambada”. O cantor iniciou sua carreira, enquanto artista de lambada, a partir de um convite feito por Jesus Couto (representante da gravadora Continental) e Wilson Júnior, entre 1984 e 1885, enquanto cantava em uma casa de karaokê (MORAES, 1991). Em uma entrevista concedida ao Jornal O Liberal, Beto Barbosa relata que sua carreira teve início “(...) em Belém, quando começou aquela onda 206

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de Karaokê (...). Um dia no Family House, eu encontrei o diretor da minha atual gravadora, ele gostou do meu desempenho, da minha desenvoltura e resolveu me contratar” (BARBOSA, 1989). Apesar de ter lançado o seu primeiro LP em 1985, foi somente quatro anos depois, com o arrebatador sucesso midiático do hit intitulado “Adocica”110 que a carreira do artista despontou no cenário musical nacional. A música alcançou a vendagem de um milhão e meio de cópias e ficou entre as cinco músicas mais tocadas no Rio de Janeiro e São Paulo. Na região Norte e Nordeste “Adocica” chegou a alcançar primeiro lugar de execução nas rádios.111 O sucesso midiático de Beto Barbosa resultou, durante a década de 80 e início de 90, em premiações ao cantor de cinco Discos de Ouro, quatro de Platina, quatro de Platina Dupla e dois de Diamantes, tendo alcançado o primeiro lugar no ranking dos artistas que mais venderam discos no Brasil. Além das gravações de LP’s, as músicas também obtiveram ampla divulgação ao serem integradas à trilha sonora de novelas da Rede Globo de Televisão, a exemplo das músicas “Primavera faz Verão”, “Meu Mundo é Você” (MORAES, 1991), e “Preta”, que “estourou” nacionalmente na novela Rainha da Sucata. Esse período foi marcado também por turnês realizadas em território nacional. Beto Barbosa chegou a realizar 50 shows por mês. Entre outros aspectos, a popularidade meteórica de Beto Barbosa e o sucesso da Lambada para além dos limites da região amazônica corroboram mudanças culturais significativas para o gênero musical no espaço de tempo entre os dias de hoje e meados dos anos 1980. Um deles foi o desaparecimento progressivo de uma lambada mais internacionalizada, por sua vez coincidindo com o desaparecimento de Beto Barbosa da cena musical de Belém do Pará, bem como o da própria Lambada, que ao longo das décadas de 1980 e 1990 experimentou contundente visibilidade regional, nacional e internacional. O outro foi a retomada da Lambada instrumental ou Guitarrada, a partir de 2003, com os “Mestres da Guitarrada”.

110

Em sociedade tudo se sabe. O Liberal. Belém, 26 nov. 1989. Caderno Cidades, p.12 Botando a galera para dançar. O Liberal. Belém, 31 ago. 1997, s.p. 111 Beto Barbosa rompe fronteiras. O Liberal. Belém, 23 out. 1989. Caderno Dois, p.2.

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4. O grupo Kaoma e a Lambada Internacional No final da década de 1980 a Lambada experimentou um período de ascensão no cenário musical nacional e ultrapassou as fronteiras brasileiras. Internacionalmente, o caso mais emblemático é o do grupo musical Kaoma, um dos principais responsáveis pela difusão planetária do gênero. A banda originou-se depois que os franceses Oliver Lorsac e Jean Karakos tiveram contato com a Lambada em uma viagem à cidade de Porto Seguro, em 1988. Nesse período, a Lambada marcava impiosa presença na cena do carnaval baiano, sendo o ritmo mais dançado nas festas de verão naquele período (MOURA, 2010). A música marcante e a dança com forte apelação erótica112 fez com que Lorsac e Karakos se interessassem pelo gênero, tendo adquirido os direitos autorais de aproximadamente 400 títulos de Lambada no Brasil,113 dentre os quais composições de Beto Barbosa.114 Os franceses patentearam ainda o termo “Lambada” para poder lançá-lo mundialmente como modelo de dança tropical. De volta à França, Lorsac e Karakos “(...) criam um grupo musical internacional que batizam de ‘kaoma’ [no âmbito do qual se destaca] particularmente a cantora brasileira Loalwa Braz (...)”115 (GARCÍA, 2006: p. 3-4). Em maio de 1989 o conjunto grava o seu primeiro LP denominado “Worldbeat”, tendo como carro-chefe a música “Lambada”. A música era, na realidade, uma apropriação da Lambada intitulada “Chorando se Foi”, interpretada pela cantora brasileira Márcia Ferreira e originalmente composta pelos irmãos Ulysses e Gonzalo Hermosa.

112

Lambada, dança obscena ou erótica. O Liberal. Belém 22 out. 1989. Caderno Dois, p. 2. Padres acham que a lambada desperta desejo. O Liberal. Belém, 20 dez. 1989. Caderno Dois, p.4 113 Europa sucumbe à sensualidade da lambada. O Liberal. Belém, 1 ago. 1989. Caderno dois, p. 2. 114 Beto Barbosa: De Belém para o mundo. O Liberal. Belém, 24 set. 1989. Caderno Dois, p. 1. 115 No original: “(...) crean um grupo musical internacional al que bautizan ‘Kaoma’ y dentro del cual se destacan particularmente la cantante brasileña Loalwa Braz (...)”.

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(Fig. 5) – Capa do Disco “Worldbeat” (Acervo Pessoal).

Em curto espaço de tempo o grupo tornou-se extremamente popular na Europa. A música “Lambada” alcançou as paradas de sucesso de vários países do Velho Mundo e tomou conta do Continente.116 O movimento internacional da Lambada foi, porém, abalado por um grande escândalo judicial. A apropriação ilegal da música “Llorando se Fue” resultou em um processo na justiça francesa contra os produtores do conjunto Kaoma, o que teria marcado o momento de declínio da Lambada internacional, que gradativamente perdeu visibilidade na mídia a partir do início dos anos 1990. Paralelamente, no Brasil, a Lambada também entraria em franca decadência, cedendo lugar para o axé music. 5. Mudança cultural/musical Na contrapartida da popularidade de Beto Barbosa e da difusão translocal, nacional e internacional da Lambada, faz-se importante avaliar os impactos, no nível de mudanças culturais, ocasionados pelo gradativo declínio da Lambada cantada, a partir de 1990, e também pelo desaparecimento de Beto Barbosa da cena musical, conforme já mencionado. Ambas as situações parecem estar relacionadas ao fato de a Lambada ter incorporado, a partir de então, elementos sonoros do Xote e do Baião nordestinos. Já no caso da Guitarrada as mudanças decorrem do fato de que o gênero a princípio retomou uma tradição musical antepassada, lançando-se, porém, em um desafio contemporâneo de reviver o passado de um modo diferente, ao apresentar uma perspectiva de leitura híbrida.

116

Tribunal nega direitos sobre “La Lambada”. O Liberal. Belém, 17 out. 1989. Caderno Dois, p. 4.

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Em se tratando dos processos de “mudança musical”, o etnomusicólogo Bruno Nettl (2005; 2006) destaca que, historicamente, muitos estudos culturais se basearam na premissa de que era natural na música a estabilidade, a continuidade e a ausência de mudanças, e que as modificações ocorriam somente em situações excepcionais. Ademais, o pesquisador ressalta que, após os anos 1950, o estudo de mudanças musicais se tornou um dos principais temas de investigação na área da etnomusicologia. Segundo o autor, o termo “mudança musical” implica em: (...) Mudanças e continuidades de estilo, repertório, tecnologia e aspectos dos componentes sociais da música [que] são manipuladas por uma sociedade, a fim de acomodar as necessidades tanto de mudança quanto de continuidade (NETTL, 2006: p. 16).

Outro aspecto apontado por Nettl diz respeito às mudanças nas obras musicais, que só podem ser observadas através de sua existência em formas variadas.117 Além do que, mudanças de repertório, estilo, conceitos e funções, devem vincular-se à ideia de que “(...) como uma sociedade muda ou intercambia seu repertório depende de sua maneira de identificar e definir a unidade principal de seu pensamento musical”.118 Analogamente às reflexões sobre mudança musical, importa observar a questão da dicotomia entre a tradição e a modernidade. Quanto a isto, as tensões entre modernidade e tradição permeiam as diversas modalidades de expressão cultural e comunicacional há tempos. Diante de um modelo sociocultural marcado pela velocidade espaço-temporal e pela fugacidade e hibridez das formas identitárias, ser moderno é uma condição cada vez mais volúvel, enquanto que ser tradicional é, muitas vezes, uma condição desvantajosa (GABBAY, 2010: p. 1).

No âmbito da mudança musical, evidencia-se na Lambada uma cadeia de processos de modernização de produção musical, novas propostas midiáticas com leituras híbridas, atualização tecnológica e agenciamentos públicos, que geram tensões entre o que se considera tradicional e moderno. Partindo da afirmação de Nettl (2006: p. 16), segundo o qual muitas “(...) sociedades mudaram suas músicas em resposta a mudanças culturais”, o primeiro grande demarcador de modificações da Lambada foi resultado de uma mudança no contexto

117 118

(Idem, ibidem). (Idem, ibidem: p. 26).

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cultural do gênero, com a criação do projeto “Mestres da Guitarrada” e o ressurgimento da Lambada, sob o nome de Guitarrada. No campo musical, o aspecto mais visível de mudança do gênero foi a introdução do banjo executado por Mestre Curica no projeto “Mestres da Guitarrada”. Curica foi um dos músicos do conjunto do Verequete, tendo participado da primeira gravação de carimbó em vinil e produzido arranjos para Pinduca e Nazaré Pereira. Neste sentido, a participação de Curica no “Mestres da Guitarrada” deu-se fortemente “(...) em razão de ter composto a banda de Verequete e também por ser uma espécie de animador da banda e ter o elemento do carimbó”.119 Outro aspecto de mudança se deu pela proposta do “Mestres da Guitarrada” em produzir, no âmbito do CD duplo intitulado “Música Magneta”, uma leitura contemporânea do gênero por meio do enlace da guitarrada, estilo musical considerado tradicional, com objetos estético-musicais híbridos e diversificados. Nesse sentido, o projeto foi inovador quanto às experiências estéticas, permitindo mudanças culturais, estéticas e propriamente musicais, uma vez que, a experiência estética, tal como qualquer outra experiência social, (...) possui uma força situacional que permite sua reformulação e sua reinvenção, podendo ser compreendida como um saber-em-ação, podendo se reinventar à medida que são acionados (CARDOSO FILHO apud CASTRO, 2012, p. 442).

Contrariando os demarcadores de tradição, segundo o qual as performances de gêneros tradicionais deveriam “continuar operando de um modo quase oposto a esse modo urbano dos meios de tecnológicos (...)”120 o projeto “Mestres da Guitarrada” evidencia que, assim como outros gêneros musicais ditos tradicionais, a Lambada (agora denominada Guitarrada) se potencializa como expressão evocativa da memória coletiva popular, por um lado incorporando na música traços de regionalidade e tradição, mas por outro valorizando a inventividade e a atualização em seus processos criativos. Daí o porquê de se considerar que a lambada, assim como a guitarrada, tem vivenciado hoje experiências de mudança cultural e/ou musical.

Conforme narrativa de Vovô (Baterista do grupo “Mestres da Guitarrada”) citada por Costa (2013, p. 273). 120 (ibidem: p. 4) 119

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Mestre Severino grava um CD, mas o produtor é quem faz a música. Kleber Moreira PPGMUS-EMUFN – [email protected] Agostinho Lima PPPGMUS-EMUFRN – [email protected]

Resumo: Aqui fazemos uma explanação acerca do processo de gravação de um CD do Grupo de Coco de Roda do Mestre Severino, atuante em Natal, Rio Grande do Norte. Nela fazemos um breve relato sobre Mestre Severino e a criação de seu grupo. Abordamos a maneira peculiar como esse grupo foi criado e como a gravação do CD está interferindo no processo de continuidade do grupo, buscando verificar como a interferência de agentes culturais externos. Essa gravação terminou a poucos dias e, portanto, não há como emitir conclusões mais profundas a respeito. Esse momento é parte uma pesquisa mais ampla onde se investiga os processos de transmissão de conhecimento musical nesse grupo. Pesquisa que conjuga uma ação etnográfica com uma atividade participante. Não são realizadas discussões com bases teóricas, mesmo que se saiba onde as contribuições de diversos autores se encaixam e podem contribuir significativamente para a melhor compreensão da realidade abordada. Com esse artigo objetivamos estimular a discussão sobre o assunto, no congresso regional da ABET-Norte, e colher contribuições para a continuidade da própria pesquisa. Palavras-chave: Coco. Mestre Severino.Produção musical.

1. Introdução Aqui abordamos o processo de gravação de um CD do Grupo de Coco de Roda do Mestre Severino, atuante em Natal, Rio Grande do Norte. Terminada a poucos dias ela é parte de outras ações como oficinas e apresentações. Esseé um momento de uma pesquisa mais ampla onde se aborda o processo de transmissão de conhecimento musical nesse grupo. Fazemos uma explanação sobre a condição atual do grupo e apresentamos dados acerca dos estímulos externos para a criação e manutenção do grupo e sobre as interferências de agentes culturais externos que impõem mudanças extremas à performance atual do grupo e sua posterior apresentação para um público mais amplo. Não são realizadas discussões com bases teóricas, embora saibamos onde as contribuições dos teóricos se encaixam e podem contribuir significativamente para a melhor compreensão da realidade abordada. Isso será realizado em um segundo momento.

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2. Mestre Severino e seu grupo de coco Mestre Severino, Severino Bernardo Santiago, agora com oitenta anos de idade, relata que conheceu a manifestação do coco de roda na infância, quando acompanha seu pai nas brincadeiras na comunidade deles e em lugares próximos, na zona rural. Ele diz que não brincava, visto que era muito pequeno e coco era brincadeira de adulto, pois tinha nove anos quando seu pai faleceu. Entretanto, entende-se que de alguma maneira essa criança brincava o coco, mesmo que não dançasse na roda, pois quando criou seu grupo em 2008 ele se lembrava de muitos detalhes da brincadeira. Coco é manifestação de música e dança que possui muitas variações na região Nordeste, conforme Ayala (2000). Mário de Andrade (2002) foi um de seus primeiros e mais importantes estudiosos. No Rio Grande do Norte, temos o coco de roda, o de Zambê, pesquisado por Lins (2009) e o Bambelô, estudados por Medeiros (1978) e Gurgel (1990, 1999). A criação do grupo de Mestre Severino grupo ocorreu de maneira bem peculiar. Em 2007 ele participou do III Encontro Internacional de Mestres, em Limoeiro, no Ceará. À época era brincante do grupo de coco “Bambelô Maçariquinho”, da Vila de Ponta Negra em Natal, Rio Grande do Norte. Ele narra que no momento da apresentação em Limoeiro houve certa confusão porque um organizador do evento pediu para encerrar a brincadeira dizendo que eles não estavam cantando coco, mas carimbó. Então, Mestre Severino diz que assumiu a função de “tirador” das cantigas de coco e entoou uns cocos que eram cantados no grupo de seu pai. Terminada a apresentação ele diz que o organizador do lhe considerou um mestre de coco.

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Figura 1 – Mestre Severino e Kleber Moreira. (Acervo do Grupo de Coco de Roda de Mestre Severino)

É comum que os grupos de coco sejam criados quando os brincadores de coco reconhecem alguém como mestre.Quando brincadores de outros grupos se juntam em redor de um novo mestre. Quando um mestre morre, adoece e o membro mais experiente ou da família é tornado mestre e posto no lugar. O grupo de Mestre Severino foi criado a partir da iniciativa de algumas amantes e estudiosas da cultura popular que decidiram criar um grupo e encontraram nele um mestre. Eram estudantes e professoras universitárias e do ensino púbico estadual, músicos, atrizes, e profissionais ligados à publicidade e ao cinema. Algumas delas tinham experiência em grupos parafolclóricos. Não eram pessoas da mesma comunidade ou segmento sociocultural do mestre, ou de outros grupos de coco. A influência de agentes externos na formação tem implicações na estruturação do grupo e na música e dança. As músicas e danças da brincadeira de coco de Mestre Severino foram se consolidando a partir de estímulos à memória dele. Como não tinha um repertório já tradicionalmente dado, elas solicitavam que ele lembrasse dos cocos que ouvira durante a vida. Com não havia dançadores(as) antigas e conhecedoras das particularidades da dança de coco de roda na região, essas moças foram criando seus passos e coreografias, a partir do que viram e conheciam sobre a dança, isso tudo com certa “supervisão” do mestre. 216

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Criado e continuado dessa maneira, o grupo de Mestre Severino apresenta mais flexibilidade que outros grupos. O mestre o lidera, mas as decisões são tomadas coletivamente. Atividades como o agendamento de apresentações em eventos, a elaboração de projetos para leis de incentivo à cultura egravação de CDs são decididos inicialmente e efetivados pelas próprias participantes, sem a intervenção direta do mestre. O repertório musical também é impactado por esse tipo de do grupo é mais flexível e instável. Na brincadeira do coco há muita improvisação na tirada de cocos

121

. Isso faz

com que o repertório varie mais que aquele da brincadeira do boi-de-reis, como observa Lima (2008). Uma parte do repertório de um grupo coco já é dada por coquistasanteriores ou contemporâneos. No caso do grupo de Mestre Severino, a música está sendo criada a cada momento a partir do que ele se mestre se lembra, o que torna o repertório mais maleável. Na maioria dos grupos de coco a dança muda menos que a música. No grupo de Mestre Severino, a ausência de dançadeiras mais experientes permite que as iniciantes regulem seu próprio processo de criação de passos e coreografias. Isso é observado na maior amplitude de movimentos corporais e mais “força” nos passos executados pelas jovens dançadeiras, do que aqueles observados em dançadeiras mais idosas. 3. A gravação do CD e os impactos no grupo de Mestre Severino. O grupo de Mestre Severino conta com sete participantes: seis mulheres e um homem, além do próprio mestre. Em 2015 as integrantes do grupo elaboraram um projeto que foi aprovado no edital “Bolsa Funarte de Fomento aos Artistas e Produtores Negros”,lançado pelo Ministério da Cultura. No projeto foram propostas quatro ações:a gravação de um CD; oficinas de coco de roda para crianças da comunidade de Alcaçuz; quatro apresentações do grupo e distribuição de CDs nas escolas da rede pública da Natal/RN. O primeiro CD do grupo foi gravado em 2010, dois anos depois da sua criação. Isso diferencia o grupo de Mestre Severino de outros grupos de coco. Há uma maior preocupação das participantes no registro e divulgação das atividades do grupo, até na internet. Esse tipo de ação se deve à facilidade das participantes de elabora um projeto; de

121

Tirar um coco é iniciar o canto de uma música.

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terem mais informações sobre formas de inserção e divulgação do grupo, e contatos com outros segmentos e agentes culturais. No processo de gravação, que terminou neste mês de abril de 2016, algumas medidas foram tomadas pelas participantes do grupo, que chamam a atenção pela peculiaridade do tipo de ação diferenciada das que, comumente, ocorrem em outros grupos de coco. Decidiu-se fazer ensaios regulares, algo que não havia anteriormente por diversos fatores, para a escolha e preparação do repertório que seria gravado. Resolveu-se fazer a gravação em um estúdio e não na rua ou em algum lugar público que tivesse uma estrutura mais próxima daquelas que os grupos de coco atuam, no cotidiano. Também foi escolhido um produtor musical para dirigir o processo de gravação e um preparador vocal para as cantadeiras. Esse processo de gravação e de trabalho atual do grupo está sendo pesquisado, dado que ele é um momento que deixa mais transparente todo o processo de influências e participações de agentes culturais externos, desde a criação do grupo. Esse longo processo tem conferido ao grupo de Mestre Severino algumas características especiais em relação a outros grupos da região. A gravação do atual CD proporcionando mudanças, através das interferências, que incidem diretamente sobre os processos de transmissão e construção de conhecimento musical; sobre o que será reconhecido futuramente como música e grupo de coco no Rio Grande do Norte; sobre a estrutura do grupo e sobre como esse grupo será, futuramente, entendido dentro do âmbito das culturas populares.

Figura 2 – Ensaio do grupo de Mestre Severino (Acervo do Grupo de Coco de Roda de Mestre Severino)

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Para facilitar a execução das músicas na gravação elas transcreveram as letras os cocos. Isso difere completamente da forma de memorização da música nos grupos de tradição oral. A colocação das músicas em letra de papel pode ser um bom recurso de execução, mas pode, também, concorrer para estancar o processo de improvisação e criação de novos cocos. As participantes dizem que a transcrição foi necessária devido ao fato de o mestre mudar muito os cocos a cada momento e isso não facilitaria a gravação. Masisso pode estandardizar o repertório. Os primeiros ensaios para a gravação ocorreram na frente da casa do Mestre Severino, no município de Alcaçuz. Os outros ensaios foram realizados em uma sala de estúdio. Essa mudança de ambienteparece ter inibido o grupo, pois se observava certa imprecisão do mestre na “tirada” dos cocos e canto de resposta das toadeiras. Alia-se a isso o tempo rigorosamente medido de gravação, o que pressiona qualquer brincador acostumado aos ensaios com tempo mais livre, onde se erra, para, volta, repete, tudo com mais tranquilidade e a pressão dos minutos correndo. Talvez por sentirem que suas vozes estavam sendo registradas, as cantadoras apresentaram pequenos problemas na execução. O proprietário do estúdio que realizou a gravação, não é especialista em é um músico de jazzsem especialidade em gravação de campo ou de grupos musicais que têm outra face sonora, performática e estética. Ele interferiu, no intuito de obter uma melhor uma boa sonoridade, no processo de captação do som dos tambores, alterando sensivelmente o timbre de um deles. Pergunta-se: quem deve determinar o que é uma boa sonoridade? O mestre, o grupo ou um técnico de som competente, mas com outro gosto sonoro? O produtor musical contratado, não parece ter experiência com grupos de coco. No primeiro CD do grupo “Cocoimbolê”, não gravou o grupo junto, mas as vozes e instrumentos separados, o que fere a performance desse tipo de grupo. Em um ensaio em estúdio ele teceu considerações sobre a execução vocal, classificando-a como ruim. Fez tal julgamento alegando que nas manifestações populares existiria uma forma certa de se cantar, que o conjunto vocal não estava conseguindo. É muito vaga essa noção de “forma certa de cantar”. Principalmente tratando-se das múltiplas maneiras de canto existentes nas expressões musicais das culturas populares. Também sugeriu que, para resolver o problema sonoro, a solução era substituir as coquistas, que vêm desde a criação do grupo, e colocar instrumentos tiposaxofone, violão e 219

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sanfona – o coco começava a querer virar samba de crioulo doido. Ele decidiu que iria colocar uma sanfona, violão, uma rabeca e outros instrumentos de percussão, afora os tradicionais tambores de pau furado usados no grupo. Decidiu, também, colocar cantoras profissionais de MPB no lugar das coquistasdo grupo. O mais grave é que isso foi assumido pelo grupo. e o CD foi gravado. Com a inserção dos instrumentos ocorreu uma total descaracterização da formação instrumental do grupo. Os instrumentistas contratados são bons, mas não é esse o terreiro deles. Em algumas faixas observa-se um caráter jazzístico. Em outras faixas, observa-se que as cantoras profissionais deram uma substância melódica diferente aos cocos cantados por Mestre Severino. 4. Algumas considerações. Com a globalização e a world musicocorre certa pressão para a homogeneização das músicas do mundo à maneira dos fazeresmusicaisdos países economicamente dominantes, cujas culturas se derramam mundo abaixo, conforme Mendonça (2007). Mas, conforme Ortiz (2003), essa própria pressão gerou um contramovimentoem que se busca a afirmação das diferenças e diversidades das músicas do mundo, a partir de como cada cultura local adentra e dialoga com o mundo moderno. Importa discutir a maneira como o grupo foi criado porque demonstra que agentes culturais externos a determinada comunidade ou segmento sociocultural podem contribuir para a dinâmica das manifestações culturais tradicionais. A crise de alguns grupos populares, em comunidades periféricas de centros urbanos, tem sido minorada ou resolvida a partir da inserção de pessoas externas a eles. Em outros casos, a continuidade de determinadas formas de expressão musical, como a música de rabequeiros, se tornou possível, em Estados como a Paraíba e Rio Grande do Norte, quando essa música mudou de contexto e de segmento social (LIMA, 2004). A tradição não é fixa nem do passado, e a cultura popular não é estática nem é única, mas algo em que se instaura na negociação constante de interesses culturais e sociais como observam Abreu (2001) e Thompsom (1998). As cultura são circulares, mas possuem certa autonomia e é possível observar diferenças entre elas como aponta Gans(2014). As culturas se hibridam, como observam, Existe a hibridação cultural, como afirmamCanclini (1989) e Vargas (2007) e as culturas se misturam em muitos casos.

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As ideias contidas nos textos desses autores devem servir de norte para que entendamos que manifestações como o coco de roda têm suas dinâmicas, seus contornos sociais e políticos musicais que precisam ser respeitados para que possam bem mudar. Contribuições de agentes externos são sempre boas para a manutenção e continuidade da tradição, mas isso nunca se dará através de interferências que desfigurem as manifestações, suas músicas, seus modos de estar no mundo, como está ocorrendo com o coco de Mestre Severino, na recente gravação do CD. Uma coisa é certa, o coco de Mestre Severino não será o mesmo após o lançamento desse CD. Não há certeza se fará sentido ele continuar como grupo tradicional se o registro de suas músicas, que deve ser um espelho fiel da manifestação em determinado momento de sua história, apresenta uma macumba pra turista ouvir. Referências ABREU, Marta, Cultura popular, um conceito e várias histórias. In Abreu, Martha e Soihet, Rachel, Ensino de História, Conceitos, Temáticas eMetodologias. Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2003. Disponível em: http://www.museucasadopontal.com.br/sites/default/files/artigos/pdf/Artigo%203%20%20 Martha%20Abreu.pdf . Acesso em 23 mar 2012. ANDRADE, Mário de. Os Cocos. Belo Horizonte: Itatiaia, 2002. AYALA, Marcos e AYALA, Ines. (orgs.) 2000. Côcos: alegria e devoção. Natal: EDUFRN. CANCLINI, Nestor G. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. 3. ed. São Paulo: Edusp, 2000. GANS, Herbert J. Cultura popular e alta cultura: Uma análise e avaliação do gosto. São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2014 GURGEL, Deífilo. Danças folclóricas do Rio Grande do Norte. Natal: Edufrn,1990. GURGEL, Deífilo. Espaço e tempo do folclore potiguar. Natal: Prefeitura do Natal, FUNCART,1999. LINS, Cyro H. de Almeida. O zambê é nossa cultura: o coco de zambê e a emergência étnica em Sibaúma, Tibau do Sul-RN. 108 f. Dissertação (Mestrado emAntropologia Social) – Programa de Pós-graduação em Antropologia social.UFRN, Natal, 2009. Disponível em: http://repositorio.ufrn.br:8080/jspui/handle/123456789/12260. Acessado em 2/6/2013. Acesso em: 20 de mar 2013 LIMA, Agostinho. Música tradicional e com tradição da rabeca. 220 f. Dissertação (Mestrado em Música)- Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2001. LIMA, Agostinho. As músicas de rabeca no Brasil. nº 27, p. 48-60. Natal: UFRN/CCHLA, 2004. 221

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Categorias e práticas musicais em Caruaru (PE): o mundo do forró. Philipe Moreira Sales Silva Universidade Federal da Paraíba – [email protected]

Carlos Sandroni Universidade Federal de Pernambuco – [email protected]

Resumo: Esse artigo traz os objetos relacionados ao projeto de pesquisa intitulado Categorias e práticas musicais em Caruaru (PE): o mundo do forró. A pesquisa tem como objetivo geral a investigação da prática do forró na cidade de Caruaru, procurando entender o processo musical da “Capital do Forró” e a sua relação com o desenvolvimento cultural, econômico e político da cidade. Os processos de transformações na música produzida em Caruaru e as suas consequências no mercado musical contribuíram diretamente no cenário do forró e nas práticas dos grupos tradicionais, pois foi constatado que os músicos tradicionais, como tocadores de pífanos e repentistas, entraram no mercado musical juntamente com cantores de forró e artistas midiáticos. Os cantores de forró buscaram formação superior de música e os músicos com formação acadêmica começaram a tocar pífanos em bandas tradicionais da cidade. Por outro lado, há uma insatisfação dos artistas com o mercado musical em Caruaru devido à falta de diálogo com o poder público, levando a uma excessiva concentração das atividades musicais no período junino. Palavras-chave: Forró. Música em Caruaru. Categorias musicais.

Situado no agreste setentrional de Pernambuco, Caruaru é considerada a maior cidade do agreste pernambucano e a quinta maior do estado. Seu desenvolvimento econômico é resumido no quarteto: feiras, comércio, indústria e turismo (MARQUES, 2012). A indústria e o turismo têm suas tradições na produção artesanal e têm como principal polo de produção o Alto do Moura. A feira popular, com todas as suas variedades, foi reconhecida em 2006 como patrimônio histórico e artístico brasileiro concedido pelo Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). O seu status de “Capital do Forró” é resultado da tradicional festa junina promovida pela cidade e também do número de artistas caruaruenses que fazem forró e que tiveram projeção no cenário da música nacional. Para a compreensão da construção do status de “Capital do Forró” alguns fatores serão analisados. O primeiro deles expõe que a cidade de Caruaru (PE) vem sendo cantada desde a metade do século XX por diversos artistas. Jackson do Pandeiro em 1955 gravou a música de Zé Dantas “Forró em Caruaru” (Rojão) no seu primeiro disco lançado pela Copacabana e no mesmo ano, em resposta a essa música, Luiz Gonzaga gravou o “Forró

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de Zé Tatu” (Rojão) de Zé Ramos e Jorge de Castro em 78 RPM pela RCA Victor. O que se percebe, analisando as duas músicas, é que em meados da década de 1950 Caruaru já era um centro de produção de forró e, que nessa época, ainda não se designava ao gênero, mas aos bailes que reuniam a população para dançar. Durante a comemoração do centenário da cidade em 1957, Luiz Gonzaga gravou um compacto em 78 RPM pela RCA Victor (DREYFUS, 2000) com duas músicas em ritmo de baião: “A feira de Caruaru” (Onildo Almeida) e “Capital do Agreste” (Onildo Almeida/Nelson Barbalho). Na década de 1970 foi projetada, em nível nacional, a Banda de Pífanos Zabumba Caruaru liderada pela família Biano. Como lembra Pedrasse (2002), o contrato com a gravadora CBS e os acordos feitos com a prefeitura de Caruaru para a viabilização das gravações fizeram com que fosse exigida a inclusão no disco de várias músicas que falassem da cidade, fato que mostra a expansão da música produzida em Caruaru para todo o cenário nacional. Especificamente no ano de 1980, o Trio Nordestino gravou o LP Corte o Bolo pela Copacabana. No disco a música “Capital do Forró”, de Jorge de Altinho, vira destaque e, a partir de então, Caruaru passa a ser conhecida como “Capital do Forró”. O segundo fator que marcou Caruaru como centro principal da produção do forró foi o cenário histórico de encontros de cantores, instrumentistas e compositores de Caruaru e regiões próximas que constituíram suas obras em torno desse universo do forró em que a cidade está inserida. Esses artistas contribuíram para o desenvolvimento do forró em Caruaru e deixaram um grande legado para as futuras gerações de forrozeiros. Procurando o entendimento da prática musical no mundo do forró, a devida pesquisa reuniu diversos aspectos do desenvolvimento musical em Caruaru. Foi necessária uma abordagem das manifestações musicais que se enquadram em determinadas categorias musicais. Para isso, se fez um estudo etnográfico da festividade junina na cidade e, durante essas observações, toda uma conjuntura de fatores foram apresentados. Dentre elas: os polos culturais e as atrações realizadas durante os trinta dias de festividade, os movimentos de artistas e as reinvindicações de melhorias na estrutura do São João por parte dos músicos. Essas pesquisas de campo proporcionaram uma compreensão da prática musical em Caruaru e as consequências na cadeia produtiva do forró devido às mudanças de categorizações musicais. No âmbito do desenvolvimento da música em Caruaru na contemporaneidade é notório o processo de mudanças. Elas modificaram o conceito de se fazer música na cidade 224

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devido à globalização, ao acesso a formação musical e ao processo de descentralização da mídia. As categorias musicais como “música popular”, “música folclórica” ou “tradicional” e “música erudita” sofreram mudanças ao longo dos anos, ou seja, os grupos tradicionais como coquistas, tocadores de pífanos, repentistas passaram a competir no mercado profissional que era associado à música popular, os músicos populares passaram a frequentar os centros acadêmicos como universidades e conservatórios e os músicos eruditos passaram a incorporar elementos da música popular em suas obras e a acompanhar artistas da música tradicional e popular. As primeiras mudanças de categorização começaram na década de 1950 quando “Oneyda Alvarenga vai propor que se adote a divisão entre ‘folclore’ e ‘popular’ com a definição que prevaleceu na segunda metade do século XX” (SANDRONI, 2003, p. 4), a partir de então, as musicas anônimas desenvolvidas no ambiente rural foram designadas como músicas folclóricas e as músicas autorais desenvolvidas nos centros urbanos como música popular. A distinção entre as categorias, a partir de então, “[...] deixa de ser valorativa e passa ao plano das categorias analíticas [...]” (SANDRONI, 2003, p. 5). Só a partir da década de 1990 é que essas categorizações passam a ser questionadas. Essas mudanças categóricas têm resultados nas práticas musicais desenvolvidas principalmente nas festas populares da cidade, especificamente na festa junina onde o forró é o gênero mais evidente nesse contexto. O trabalho referente à etnografia dos festejos juninos em Caruaru contemplou todos os espaços onde as manifestações musicais são praticadas. Esses espaços são divididos entre as imediações centrais, onde acontecem as principais atividades dos festejos, e as imediações periféricas, onde se concentram alguns polos e as festas das comidas gigantes. Até o início da década de 1990, o São João de Caruaru era descentralizado, as festividades eram nas ruas dos bairros e organizadas pelas próprias comunidades. Com o passar dos anos, o poder público junto com as empresas do entretenimento resolveram criar um modelo de São João centralizado com atrações cada vez mais midiáticas. Nessa festa junina centralizada pode-se perceber uma variedade musical dentro de categorias que se transformaram ao longo desses anos no cenário caruaruense. O foco principal da festa fica nas imediações do centro comercial entre o pátio de eventos Luiz Lua Gonzaga e a antiga estação ferroviária. Nessas imediações são disponibilizados o palco principal com maior estrutura (onde se apresentam os artistas em evidência na mídia nacional e alguns artistas consagrados da música caruaruense) e os palcos com estruturas menores (onde

se 225

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apresentam os artistas que não estão em evidências na grande mídia, grupos tradicionais e boa parte dos artistas caruaruenses). Esses palcos menores, conhecidos como polos culturais, são locados na antiga estação ferroviária e próximo ao palco principal no Pátio de Eventos Luiz Lua Gonzaga. Nas imediações periféricas encontram-se alguns palcos também chamados de polos culturais, onde se apresentam trios pé-de-serra, bandas de pífanos, grupos tradicionais como mazurcas e brincantes de bumba-meu-boi. Outras manifestações nas imediações periféricas são as comidas gigantes. Dentro dos principais bairros da cidade grupos de pessoas realizam as famosas comidas gigantes onde são preparados diversos tipos de comidas típicas em desmedidos tamanhos como pé-demoleque, pamonha, pipoca, cuscuz. Dentro dessas festividades, os diferentes grupos musicais, cantores e trios pé-de-serra se apresentam para animar os participantes da festa. Por serem festas alternadas, realizadas em um único dia, os artistas se apresentam em um trio elétrico ou em uma estrutura de palco simples. Essas manifestações da comida gigante são resquícios que sobraram do antigo São João descentralizado e que a cada ano vem perdendo força para a região central da festividade. A cadeia produtiva de Caruaru gira em torno do São João, mas afinal de contas, o que os artistas fazem para manter a produção musical dentro de um mercado fora do período junino? A busca a essa resposta não pode ser concreta se não houver um mapeamento de atividades musicais na cidade. Fora desse período, Caruaru produz poucos festivais e eventos organizados pelo poder público. Esses eventos são restritos ao período da semana santa (Caruaru Parada Obrigatória), comemoração ao aniversário da cidade e poucas iniciativas da FUNDARPE em promoção de festivais como é o caso do Festival Pernambuco Nação Cultural. Isso contribui para uma estagnação na cadeia produtiva musical da cidade, pois o movimento econômico do forró depende desses períodos para a realização das atividades dos músicos que fazem forró. Para entender o processo de construção da prática musical do forró em Caruaru será necessário um aprofundamento sobre o gênero baião que deu uma abertura ao que chamamos de gênero forró. O baião foi o marco para que a música nordestina ganhasse uma projeção a nível nacional. Luiz Gonzaga, junto com o advogado e músico cearense Humberto Teixeira e, posteriormente, com o médico pernambucano Zé Dantas, constituíram uma nova identidade musical no cenário da música brasileira nas décadas de 1940/50. Com relação ao baião, “[...] antes de se tornar gênero musical,

associado 226

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inicialmente de forma particular à sanfona ou acordeão, o baião também passeou pelas feiras nos braços dos rabequistas e violeiros” (VIEIRA, 2000, p. 41). Sobre a origem etimológica do baião, Guerra-Peixe (2007, p. 119) diz que: “[...] a palavra ‘baião’ deriva de ‘baiano’ ou vice-versa [...]”. Na Enciclopédia da Música Popular Brasileira – Erudita, folclórica e popular o termo baião conhecido também como baiano “[...] é a dança viva, assinalada da Bahia, Sergipe, Paraíba, Maranhão, Rio Grande do Norte, Ceará e Pernambuco [...] ‘O baião é a dança e a música ao mesmo tempo’. ” (MARCONDES, 1977, p. 62). O baião, idealizado e divulgado por Luiz Gonzaga, se insere no processo de produção cultural no Brasil como gênero de forma organizada e planejada; “[...] a idéia (sic) de Luiz Gonzaga era fazer uma grande campanha para lançar a música do Nordeste nos grandes centros urbanos. [...] ao contrário de outros gêneros musicais no Brasil [...], que surgiram de repente, sem nenhuma programação, no caso do baião houve um real planejamento [...]” (DREYFUS, 2000, p. 112). Uma das grandes maneiras de a música de Luiz Gonzaga se propagar, principalmente na região sul, era as associações que o baião fazia com outro gênero dominante. Segundo Vieira (2000, p.78): O baião se associou ao samba não somente por essa via mais direta, ou seja, da gravação num mesmo disco. Às vezes, essas associações se davam também por outros mecanismos, por exemplo, quando um artista prestigiado e plenamente identificado com o samba produzia um baião. O baião acabou se tornando uma espécie de gênero abrangente onde outros tipos de gêneros como o xote, xaxado, rastapé e forró interagiam com ele. “A palavra terminou por contrair um sentido genérico, sendo, pois, freqüentemente (sic) utilizada para denominar todo um conjunto. [...] os gêneros satélites passaram a ocupar o campo musical brasileiro, tendo como principal porta-voz Luiz Gonzaga, por vezes ‘confundido’ com o próprio baião” (VIEIRA, 2000, p. 48). Com o passar dos anos, o gênero forró acabou tornando-se genérico aos demais gêneros satélites. Segundo Ferreira (2009, p. 19): “[...] o termo forró só adquire significado de gênero musical a partir de 1970 – antes era apenas sinônimo de baile e festa”. Ainda sobre o surgimento do forró como gênero, Dreyfus (2000, p.275) complementa: [...] no final da década de 70, a palavra forró – nas zonas urbanas – adquiriu um segundo sentido, exatamente como sucedera no início do século com a palavra

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/ Belém – 2016 Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares. samba. O forró, que significa originalmente “baile”, passou a designar também o ritmo sobre o qual se dançava no baile. [...] a moda do forró oferecia ao público urbano mais uma opção de dança.

É nesse contexto de forró não só como dança, mas, também, como gênero musical que a cadeia produtiva do cenário da música caruaruense se insere. É na linguagem oral dos rádios e a irradiação instantânea das programações locais (Lopes, 2010) que o forró se movimenta e se torna um meio produtivo concebendo a cidade de Caruaru o título de “Capital do Forró”. O processo de evolução da cadeia produtiva, as mudanças de categorização e a indústria do entretenimento causaram um grande impacto na prática musical em Caruaru nesse século XXI. No início da década de 1990 uma nova forma de se fazer forró surgiu no Nordeste, principalmente na região do Ceará, onde apareceram diversas bandas de forró com uma linguagem voltada aos jovens. Esse movimento musical com aspectos cosmopolitas, ao qual chamamos de “forró eletrônico”, confrontou com os artistas que se caracterizam por fazer o “forró autêntico”, surgindo assim, uma espécie de bipolaridade do forró. Os empresários da indústria do forró eletrônico fizeram estratégias justamente no declínio da indústria fonográfica. Eles se opuseram às gravadoras multinacionais que se utilizavam da mídia para as vendagens de discos e investiam nas rádios e TVs para a promoção de vendagens de shows. Outro ponto importante é o conceito sobre o estereótipo a que o forró está associado: ao imaginário rural do sertão nordestino, ao flagelo da seca e às duras condições de vida do trabalhador. Com relação à nova temática abordada no forró eletrônico e a sua grande aceitação por parte do público jovem, Trotta (2009, p. 11) escreve: “[...] este referencial estereotipado não corresponde à situação atual do jovem urbano dos estados do Nordeste, que, não raro, recusa sua filiação pura e simples a este imaginário”. Esse novo conceito de nordeste desassociado aos estereótipos criados na primeira metade do século XX sobre a região vem crescendo desde a década de 1990. “Na música, o surgimento de cenas culturais que decididamente ignoravam as representações agrárias e sertanejas em suas elaborações estéticas começa um longo processo, ainda em curso, de modificação deste imaginário, sempre envolto em inúmeros e violentos conflitos culturais” (TROTTA, 2008, p. 12). Todos esses enfoques sobre o “mundo do forró” e sobre a cadeia de produção musical

trouxeram

contribuições

de

extrema

importância,

pois

refletem-se 228

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indiscutivelmente na prática musical desenvolvida na cidade e nas controvérsias referentes à produção musical em Caruaru. Essa discussão referente à nova perspectiva de mercado com a globalização, a descentralização da mídia e a criação de novos meios tecnológicos de divulgação e produção musical foi desencadeado no cenário da música da “capital do forró” e resultou numa significativa mudança na cadeia produtiva do forró. Referências: ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. 5ª ed. São Paulo: Cortez, 2011. ARAÚJO, Maria Inês de. João do Pife e Banda Dois Irmãos. Caruaru: Graficom, 2012. CROOK, Larry. Zabumba music from Caruaru, Pernambuco: musical style, gender, and the interpenetration of rural and urban worlds. Austin, 1991. Tese (Doutorado em Etnomusicologia). Universidade do Texas, Austin, 1991. DREYFUS, Dominique. Vida de viajante: a saga de Luiz Gonzaga. 2ª ed. 1ª reimpressão. São Paulo: Editora 34, 2000. GUERRA-PEIXE, César. Estudos de folclore e música popular urbana. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007. LOPES, Ibrantina Guedes de Carvalho. Sociedade dos forrozeiros e ai! Entre a memória e a mídia. Recife, 2010. Dissertação (Mestrado em Comunicação). Centro de Artes e Comunicação, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2010. MARCONDES, Marco Antônio (org.). Enciclopédia da música brasileira: erudita, folclórica, popular. São Paulo: Art Editora, 1977. MARQUES, Josabel Barreto. Caruaru, Ontem Hoje: De Fazenda a Capital. Recife: Ed. Do autor, 2012. PEDRASSE, Carlos Eduardo. Banda de Pífano de Caruaru: uma análise musical. Campinas, 2002. Dissertação (Mestrado em Artes). Instituto de Artes, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2002. RAMALHO, Elba Braga. Luiz Gonzaga: síntese poética e musical do sertão. São Paulo: Terceira Margem, 2000. SANDRONI, Carlos. Adeus à MPB. Em Decantando a República, Rio de Janeiro, vol. 1, p. 23-35, 2003. TROTTA, Felipe. O forró de Aviões a circulação cultural de um fenômeno da indústria do entretenimento. Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação. São Paulo, p. 1-13, 2008. . O forró eletrônico no Nordeste: um estudo de caso. Revista In texto, Porto Alegre, vol.1, p. 102-116, 2009. . A reinvenção musical do Nordeste. Operação Forrock, Recife, p. 1-43, 2010.

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VIEIRA, Sulamita. O sertão em movimento: a dinâmica da produção cultural. São Paulo: Annablume, 2000.

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Considerações sobre a descendência da música armorial na contemporaneidade: mudança e continuidade. Marília Paula dos Santos Universidade Federal da Paraíba – UFPB – [email protected]

Carlos Sandroni Universidade Federal de Pernambuco – UFPE – [email protected] Resumo: O presente trabalho é parte de uma pesquisa de mestrado que se encontra em sua fase inicial e que propõe uma análise sobre a descendência da música armorial na contemporaneidade. Partiremos da discussão sobre o que foi o Movimento Armorial, quais suas características e como se deu a disseminação de sua música. Pretendemos fazer uma relação entre a música produzida nas primeiras décadas do Movimento com as da atualidade. A partir disto buscaremos entender como se expressa a ‘identidade musical nordestina’, procurando perceber se há em sua constituição propostas armoriais e/ou elementos que indiquem algum tipo de continuidade deste pensamento. Para tanto selecionaremos para analisarmos alguns grupos/artistas como Antônio Madureira, oQuadro, SaGRAMA, Antônio Nóbrega e outros mais . Palavras-chave: Música Armorial. Identidade Sonora. Música em Pernambuco

1. Introdução O Movimento Armorial, iniciado em 1970, teve impacto significativo na cultura, e especialmente na música, da região Nordeste do Brasil. Seu criador, o escritor Ariano Suassuna (1927 –2014), paraibano que residiu no estado de Pernambuco a maior parte de sua vida, exerceu grande influência na cena cultural do Nordeste. Esta influência é sentida até hoje, quando artistas continuam realizando trabalhos com atributos relacionados ao que ele propôs. De fato, um grupo significativo de compositores e intérpretes tem realizado, na atualidade, uma música, que além de continuar sendo considerada como representação sonora do Nordeste, é chamada por muitos de “Armorial”. Esta nomenclatura em relação a estas peças criadas e executadas na contemporaneidade tem causado um conflito de ideias, de forma que muitos são os que discordam entre si sobre a definição de uma música armorial e até mesmo de sua existência. Apesar de haver bastantes trabalhos e um grande interesse sobre a música armorial e suas diversas manifestações artísticas, percebemos que, no campo musical, as pesquisas estão, de modo geral, mais voltadas a artistas ou grupos específicos, ou ainda, a peças e suas interpretações. Como as de Nóbrega (2007), que trata de características estético-formais; Costa (2011), que a partir da análise da obra de Antonio Carlos Nóbrega 231

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faz um aparato geral do que seria a música armorial; Ventura (2007), o qual traz a relação do espaço com a paisagem sonora; Silva (2014), que realiza uma pesquisa mais musicológica, relacionada a aspectos técnicos de uma peça de Guerra-Peixe, entre outros mais. Esta pesquisa, que se encontra em sua fase inicial, pretende pensar sobre os fenômenos de mudança e continuidade, fazendo uma relação da produção atual de uma música que é classificada por muitos como armorial, sendo vista, inclusive, como representação sonora do Nordeste, com aquela produzida pelo Movimento Armorial na época de seu lançamento e apogeu. Como não há uma data clara de finalização do Movimento Armorial, até porque o próprio Suassuna continuou com trabalhos nesta linha até o ano de seu falecimento, no caso de não haver nenhuma suposição ou esclarecimento sobre o assunto, definiremos, no futuro, um momento marcante para delimitar melhor do espaço temporal deste trabalho. Com isto, buscaremos ainda entender, na cena musical atual, sobretudo no estado de Pernambuco, as influências deixadas pelo Movimento, seus reflexos, como foram absorvidos e modificados. Pretendemos, no decorrer da pesquisa, levar em conta trabalhos de grupos e artistas da região. 2. O Movimento Armorial: acontecimentos históricos, suas músicas e algumas considerações O Movimento Armorial teve sua estreia oficial em 18 de outubro de 1970, com um concerto da Orquestra Armorial de Câmara do Conservatório Pernambucano de Música, na Igreja de São Pedro dos Clérigos, em Recife, Pernambuco. O repertório seguia os ideais do Movimento, sendo integrado na primeira parte por peças do Barroco brasileiro, compostas por Luís Álvares Pinto [1719 – 1789] e José Lima [1907 – 1985], e na segunda parte por composições de Capiba [1904 – 1997], Guerra-Peixe [1914 – 1993], Jarbas Maciel [1933], Clóvis Pereira [1932] e Cussy de Almeida [1936 – 2010] (MORAES, 2000). A resistência cultural é um aspecto muito presente no pensamento armorial. É perceptível, tanto na elaboração da sua arte, quanto nas suas pesquisas, a resistência às influências estrangeiras e ao cosmopolitismo. A imagem de passado, de arte artesanal, era também relacionada à pobreza e ao atraso. O armorial entendia a identidade nacional como a mistura de três principais povos: os negros, os brancos e os ameríndios, que davam 232

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origem ao que é chamado de brasileiro (MORAES, 2000). O que Ariano Suassuna faz é elaborar uma confluência espaço-cultural de inúmeras coisas - símbolos, imagens, dogmas, conceitos, fórmulas, emblemas - encontradas em outras sociedades, em outros lugares, para criar a imagem da cultura nacional do Brasil (VENTURA, 2007: 59). O Movimento Armorial englobava todas as formas de arte, mas a música foi a que mais se sobressaiu. Este destaque se deu, dentre outros motivos, pela política então vigente no Brasil. Ventura explica que para o governo militar da época, a música armorial seria uma ótima maneira de promover uma “arte nacional”, devido ao fato de ser baseada nas raízes de uma cultura brasileira, ao mesmo tempo que, por não ter letra, não poderia tornarse veículo contra o Regime Militar (VENTURA, 2007). Nas primeiras décadas do século XX, intelectuais e artistas debatiam sobre o papel e a importância da cultura e da música rurais para a construção de uma música nacional, pois elas eram vistas como partes autênticas da tradição folclórica do Brasil (MORAES, 2000). A música armorial se acomoda a este discurso regionalista da década de 1920, contribuindo para a construção de um imaginário espacial e sonoro do Nordeste (VENTURA, 2007: 30). Neste período, como aponta Albuquerque Jr., o Nordeste surge enquanto região epistemológica. Mais do que repensar a música e as artes, a “invenção” do Nordeste questiona o pensamento naturista que colocava o nordestino num lugar de inferioridade, de segunda classe (ALBUQUERQUE JR., 1994). O imaginário sonoro nordestino já vinha sendo construído também pela figura de Luiz Gonzaga pois, segundo Ventura, a nova maneira de perceber e “criar” o Nordeste trazida pelo compositor foi, em parte, absorvida pelo Armorial. Além do mais, elementos utilizados na música de Luiz Gonzaga, como o baião, estão fortemente presentes na construção da Música Armorial (VENTURA, 2007). As primeiras experiências musicais se deram a partir da formação de um quinteto. Todavia, Cussy de Almeida criou no Conservatório Pernambucano de Música uma orquestra de cordas e os membros desse primeiro quinteto passaram a fazer parte dela. Apesar disto, Ariano Suassuna e Cussy de Almeida discordavam em alguns critérios de estética e textura musical em relação ao que seria uma música armorial. Para o primeiro, era importante a presença de instrumentos populares, do uso “do povo”, enquanto que para o segundo, isto atrapalhava, sobretudo no que dizia respeito à afinação. Por conta destas e de outras discordâncias, o escritor fundou um segundo quinteto, que ficou conhecido como 233

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o Quinteto Armorial. Este fazia um trabalho mais “artesanal” e tinha temas “mais” nordestinos. Utilizava instrumentos como rabeca, marimbau, pífano e viola sertaneja. Sua estreia ocorreu no dia 26 de novembro de 1971, na Igreja Rosário dos Pretos em Recife com um programa dividido em três partes: música barroca europeia, música barroca brasileira e música armorial (MORAES, 2000). É notável que este tipo de construção musical está totalmente ligado ao seu meio, seja ele político, social, cultural, econômico, etc e, consequentemente, o influencia. Algo que é muito pertinente é o fato de mesmo depois de o movimento ter deixado de ser tão ativo e apesar do falecimento de Ariano Suassuna, há ainda músicas sendo compostas e interpretadas sendo classificadas como armoriais, seja muitas vezes por quem a produz/executa, seja por ouvintes. Ao tratar da continuidade da música armorial notamos que há um fator muito importante, o de identidade nacional/regional que utiliza a música como um dos fatores de afirmação da mesma, criando no imaginário coletivo de uma cultura o pertencimento de uma sonoridade como dela, como representativa do seu espaço, que vai muito além da extensão territorial geográfica. Askew, ao abordar a identidade nacional, explica que o conceito de nacionalismo surge a partir de uma série de relações continuadamente negociadas entre pessoas que compartilham os mesmos espaços geográfico, político e ideológico (ASKEW, 2002: 10). Neste mesmo sentido podemos pensar a questão da identidade regional e, mais especificamente, da identidade musical regional. Fronteiras não devem ser pensadas apenas como lugares de culturas visivelmente muito diferentes nem somente como lugares físicos. Quando uma música, ou características musicais são tomadas como pertencentes a uma cultura, esta se torna uma maneira de afirmação de lugar. Fronteiras são ambientes de fortes diferenças culturais e também são espaços nos quais as identidades já existentes tendem a se fortificar ainda mais. Desta maneira, compreendemos a necessidade de pernambucanos e, de um modo mais amplo, nordestinos, quererem mostrar que eles têm uma música, uma sonoridade específica que os representa. E isto acaba gerando uma questão muito forte, que é a da ideologia. Chauí ao tratar de ideologia em seu sentido marxista, explica que elas representam as relações sociais, sendo construídas a partir de uma práxis. Em seguida, esta gera um ideal que passa a comandar as ações (CHAUÍ, 1980). De modo que, ao selecionar elementos já existentes, musicais e culturais, o Movimento Armorial chamou a atenção 234

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para determinadas sonoridades como pertencentes primordialmente ao Brasil, que consequentemente, por motivos que não vamos discutir nesse momento, passaram a ser vistas como identitárias do Nordeste. Consequentemente esta sonoridade acabou transformando-se numa maneira de se afirmar como nordestino, de modo que atualmente é comum ver grupos e artistas realizando performances com influências, como eles mesmos afirmam, dos armoriais. Neste sentido surgem algumas problemáticas em relação ao que seria uma música armorial e sobre sua existência na sociedade contemporânea. O armorial era inspirado na cultura popular, de modo que os compositores/pesquisadores construíram esta música a partir de características estéticas já existentes. Deste modo, pode-se afirmar que toda música realizada dentro destes moldes seria armorial? Esta imagem sonora nordestina se fixou de uma maneira que até hoje as idealizações de Suassuna, assim como as sonoridades que ele acreditava que eram a base para a música que queria produzir no movimento armorial, estão em vigor. Entretanto, parece que pensar estas práticas ideologicamente tem sido conflitante quanto a sua classificação como armorial, ao ponto de muitos chegarem a afirmar que sequer há música deste tipo nos dias de hoje. Isto talvez se deva ao fato de a definição de música armorial ser muito abrangente, no sentido de ter inspiração, ter sua essência em práticas populares que já existiam e também por suas criação e prática ter transcendido o próprio Movimento. Partindo deste ponto, faz-se importante entender o meio sociocultural no qual esta manifestação musical tem sido produzida. E para compreender este ambiente, é preciso entender o ser humano que o compõe, sua cultura, seu meio. Para tanto, serão utilizados, entre outros, autores como Hall (2005) e Bauman (2005). Ambos tratam da identidade na pós-modernidade, expondo como diversas identidades surgem e desaparecem rapidamente, como as mesmas se misturam. Falam como as sociedades se apropriam de determinadas ações e práticas como pertencentes a elas. Se levarmos em consideração a colocação de Hall que “as transformações associadas à modernidade libertaram o indivíduo de seus apoios estáveis nas tradições e nas estruturas” (HALL, 2005: 25), é totalmente compreensível este desencontro de ideias e todas as transformações que ocorreram na prática desta música que compõe o que estamos chamando aqui de campo armorial. Vejamos o que Bauman fala sobre as identidades: 235

/ Belém – 2016 Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares. As “identidades” flutuam no ar, algumas de nossa própria escolha, mas outras infladas e lançadas pelas pessoas em nossa volta, e é preciso estar em alerta constante para defender as primeiras em relação às últimas. Há uma ampla probabilidade de desentendimento, e o resultado da negociação permanece eternamente pendente. (BAUMAN, 2005:19).

Quando o ser humano classifica determinadas práticas ou se identifica com elas, ele cria identidades para os outros e para si. Além do mais, as suas práticas ideológicas acabam modificando as práticas e vice-versa. Ao permear a cena musical pernambucana, esta relação de música espaço/Nordeste/Pernambuco é bastante presente no que refere ao armorial e a alguns grupos e artistas. Neste sentido já foram realizadas algumas conversas informais com muitas pessoas que estiveram e estão envolvidas com toda a “efervescência” do armorial e com um tipo de música que é visto como representação sonora nordestina. Vamos relatar aqui um pouco desta relação com o grupo SaGRAMA, que depois de ter realizado a trilha sonora do filme O Auto da compadecida, baseado na obra de mesmo nome de Ariano Suassuna, ficou bastante conhecido e passou a ser frequentemente relacionado ao armorial. O SaGRAMA é um grupo instrumental tendo sido formado em meados dos anos de 1990, a partir da iniciativa do músico, compositor, ex-integrante do Quarteto Romançal – grupo armorial com intuito de fazer músicas baseadas nas raízes da cultura popular – e professor do Conservatório Pernambucano de Música, Sérgio Campelo. O grupo tem uma formação instrumental fixa: duas flautas transversais, um clarinete, um violão, uma viola sertaneja, um contrabaixo acústico e variados instrumentos de percussão. Dependendo da necessidade dos arranjos, são incrementados outros instrumentos. O grupo ainda fez parte de muitos outros eventos artísticos, como a realização de trilhas sonoras, tanto para peças teatrais, quanto para espetáculos de danças, para curtas metragens e até mesmo para vídeos e CD-ROMs educativos. O filme O Brasil Império na TV, uma realização da Fundação Joaquim Nabuco, teve sua trilha sonora composta e gravada pelo SaGRAMA, assim como a peça de teatro Fernando e Isaura, uma adaptação do romance homônimo de Ariano Suassuna realizada por Carlos Carvalho (ANDRADE, 2011). Como é possível observar, há uma relação da música do SaGRAMA com a imagem do armorial de Ariano Suassuna. Logo, é comum ver em reportagens este conjunto musical sendo retratado como um ícone desta música. Sobre isto, Campelo coloca que o grupo se sente um pouco incomodado, pois eles fazem sim música armorial, mas da mesma forma também tocam músicas de outras 236

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naturezas. Explica que música armorial são músicas que já existiam antes mesmo do movimento, chamadas por ele de músicas nordestinas com influências mouras, indígenas e árabes. Através de artistas pontuais, continua, Ariano Suassuna criou um estilo, uma linha de música com o intuito de elevar a música e a cultura populares, que ficou muito forte (CAMPELO, 2015). Há na cena pernambucana muitos outros grupos que são classificados como armoriais como oQuadro e Rosa Armorial, além de diversos artistas. Já se ouve falar novamente de uma Orquestra de Câmara Armorial no Conservatório Pernambucano de Música. É comum ver músicos se intitularem armoriais, ou dizerem que realizam este tipo de música. Mas o que seria exatamente o armorial, a sua música? Um estilo? Um gênero? Um modo musical de viver a vida artística ou até mesmo uma maneira de se afirmar como músico/artista nordestino, pernambucano? No decorrer da pesquisa pretendemos ter contato mais direto com um maior número de grupos, com mais artistas, inclusive aqueles que foram importantes para a construção da música armorial em seu início como Antônio Madureira e Antônio de Nóbrega, por exemplo, para buscarmos ampliar nossas observações e termos uma compreensão melhor de toda influência que pode haver desta música no Nordeste e no estado de Pernambuco, principalmente. Referências ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz de. O engenho anti-moderno: a invenção do nordeste e outras artes. 507f. Tese de doutorado em História. Uniiversidade Estadual de Campinas. Campinas, 1994 ANDRADE, Maria do Carmo. SaGRAMA. In Fundação Joaquim Nabuco. Biblioteca Blanche Knopf. 2011. Acesso em: 04 de agosto de 2014. Disponível em http://basilio.fundaj.gov.br/pesquisaescolar/index.php?option=com_content&view=article &id=870:sagrama&catid=53:letra-s&Itemid=1 ASKEW, Kelly Michelle. Arts of governance. In . Performing the nation: Swahili music and cultural politics in Tanzania. Chicago: Chicago Press, 2002, p. 1 – 26. BAUMAN, Zygmund. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. CAMPELO, Sérgio. Entrevista à autora, dia 12, fevereiro, 2015. CHAUÍ, Marilena. O que é ideologia?. São Paulo: Brasiliense, 1980. COSTA, Luís Adriano Mendes. Movimento armorial: o erudito e o popular na obra de Antonio Carlos Nóbrega. 157f. Dissertação de mestrado em literatura e interculturalidade. Universidade Estadual da Paraíba, Campina Grande, 2011. 237

/ Belém – 2016 Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.

HALL, Stuart. A identidade na pós-modernidade.. Rio de Janeiro: DP&A, 2005. MORAES, Maria Thereza Didier de. Emblemas da sagração armorial: Ariano Suassuna e o movimento armorial 1970/76. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2000. 218 p. NÓBREGA, Ariana Perazzo da. A música no movimento armorial. Anais da Anppom, 2007. SILVA, Débora Borges da. O movimento armorial e os aspectos técnico-interpretativos do concertino para violino e orquestra de câmara de César Guerra-Peixe. 63f. Dissertação de mestrado em práticas interpretativas – violino. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2014. VENTURA, Leonardo Carneiro. Música dos espaços: paisagem sonora do nordeste no movimento armorial. Natal/RN, 2007. 200f. Dissertação de mestrado em história. Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2007.

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SESSÃO 3 Coordenação: Ricardo Smith

A prática do Carimbó no Espaço Cultural Coisas de Negro: por uma etnomusicologia colaborativa. Carina Malaquias de Lima UFPA – [email protected]

Liliam Barros Cohen PPGARTES - UFPA- [email protected]

Resumo: Trata-se de uma pesquisa Etnomusicológica colaborativa que faz parte do projeto Arte em Toda parte. Esta pesquisa descreverá a trajetória de vida e a pratica musical do Mestre Negoray, compositor de carimbó, músico e proprietário do Espaço Cultural Coisas de Negro, localizado no distrito de Icoaraci Belém, Pa. Em Icoaraci No Coisas de Negro há mistura de culturas, no qual fica evidente na prática musical, quando os instrumentos tradicionais utilizados no carimbó se misturam com instrumentos utilizados nos ritmos modernos. O Carimbó é uma prática de nossa região, que tem sido estudada por muitos pesquisadores e este trabalho busca compreender esta prática musical que acontece no Coisas de Negro. O objetivo desta pesquisa é documentar a trajetória de vida do mestre, o trabalho realizado por ele, e a prática musical, para sua autobiografia. A partir disto, foram feitas entrevistas e coletas de materiais, para a produção de seu livro, além de gravações de vídeo e áudio que podem ser consultados no Laboratório de Etnomusicologia da Ufpa (LabEtno). A pesquisa com a elaboração do texto para o livro está completa. Este material contribui como mais uma fonte de conhecimento de o nossa cultura para a comunidade. Palavras-chave: Etnomusicologia colaborativa; Prática musical; Mestre Nego Ray

1. Introdução A Etnomusicologia colaborativa é um trabalho de pesquisa que atende a comunidade de acordo com a sua necessidade. Há no Brasil várias pesquisas desenvolvidas como o trabalho de Cambria (2004), que desenvolveu uma pesquisa etnomusicológica participativa no Rio de Janeiro. No qual observou-se a importância da pesquisa ser trabalhada em conjunto da ação, teoria e prática. O artigo de Tygel (2005) trata-se de uma 239

/ Belém – 2016 Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.

reflexão crítica das metodologias usadas em projetos de pesquisa, abordando a coleta de dados para produção de acervos musicais, valorizando a cultura e a prática musical da comunidade parceira do projeto. O artigo de Nogueira (2008), fala dos pontos sobre conceitos e possibilidades ressaltando a prática compartilhada de pesquisa. A pesquisa por ser compartilhada, gera uma nova visão. Uma prática que poderia ser esquecida, mas com os trabalhos desenvolvidos, começam a ficar em evidencia, despertando a curiosidade e atraindo novas pessoas. “A etnomusicologia permitiu que se construísse aos poucos uma visão diferente de música” (LUHNING, 2014, p.14)). Ou seja, a Etnomusicologia busca estudar a prática musical da comunidade, produzindo conhecimentos culturais do local/região a partir de um olhar interdisciplinar e contextual. Através destes projetos, são construídos acervos musicais, livros, alguns deles tem a produção de DVD. São materiais que ajudam a manter a cultura daquele local/região viva, evidenciando suas práticas. Utilizando como meio de conhecimento da etnomusicologia colaborativa, desenvolveu-se um trabalho junto ao mestre de carimbó Nego Ray, proprietário do Espaço Cultural Coisas de Negro. Local onde acontece a manifestação do carimbó todos os domingos. Buscou-se coletar material para a produção de seu livro “Andanças e Cheganças”. 2. Breve Histórico do Espaço Cultural Coisas de Negro A vida do mestre Nego Ray sempre esteve ligada as manifestações culturais, com isso surgiu o Espaço Cultural Coisas de Negro local onde se predomina pratica do Carimbó. Através da pesquisa desenvolveu-se uma etnografia da prática musical e da história do mestre Negoray. O Espaço Cultural Coisas de Negro surgiu no dia 11 de abril de 1992, está localizado no distrito de Icoaraci, na Av. Lopo de Castro, 1082. É uma organização não governamental, que se mantém através do público que frequenta o espaço. O nome Coisas de Negro surgiu a partir de uma experiência vivida pelo proprietário do local, mestre Nego Ray.

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/ Belém – 2016 Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares. Fotografia 01 – Espaço Cultural Coisas de Negro

Fonte: Carina Lima

O Espaço Cultural Coisas de Negro é referência na manifestação cultural do carimbó, todos os domingos acontece a roda de carimbó. “No dia 19 de janeiro no ano de 2000 nós começamos a fazer essa roda aqui no Coisas de Negro” (Mestre Nego Ray,2015) A roda de carimbó do “Coisas de Negro”, já nasceu misturada a várias propostas musicais que tinham todas em comum a identificação como setores marginalizados da sociedade: antes da roda, o espaço tocava hip-hop e reggae, e não deixou de tocar para dar lugar ao carimbó. Como se sabe, hip-hop e reggae não são estilos musicais típicos do Pará. Mas a presença dos ritmos não causou constrangimento ao carimbó, porque reggae e hip-hop também são “coisas de negro” (NEVES et all, 2007, P. 8) Fotografia 02 – Roda de Carimbó no Espaço Cultural Coisas de Negro

Fonte: Carina Lima

Cada lugar e/ou pessoa tem uma forma diferente de fazer música, devido a sua história vivida. Isso faz com que a música seja diversificada, chamando a atenção das pessoas. “A definição de música como um sistema de comunicação enfatiza suas origens e 241

/ Belém – 2016 Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.

destinações humanas e sugere que a etnografia não somente é possível, mas é uma abordagem privilegiada no estudo da música.” (SEEGER 2008, p. 239). O Carimbó não apenas uma música, mas sim forma de vida em sociedade. A prática musical como um processo de significado social, capaz de gerar estruturas que vão além de seus aspectos meramente sonoros, embora estes também tenham um papel importante na sua constituição é de extrema importância neste contexto. A execução, com seus diferentes elementos (participantes, interpretações, comunicação corporal, elementos acústicos, texto e significados diversos) seria uma maneira de viver experiências no grupo. (CHADA, 2007, p. 5)

3. Metodologia A pesquisa foi desenvolvida por entrevistas realizadas com o mestre Nego Ray, no Espaço Cultural Coisas de Negro, buscou-se ao máximo obter conhecimento sobre a vida dele e o surgimento do Espaço. As entrevistas foram todas realizadas no Espaço Cultural Coisas de Negro. Fotografia 03 – Mestre Nego Ray

Fonte: Carina Lima

Durante todo o ano de 2015, foram coletados materiais de extrema importância sobre o mestre, além de realizações audiovisual, e fotografias, que encontra-se disponível no Laboratório de Etnomusicologia da Ufpa (LabEtno) Para elaboração do textos das entrevista, foram realizados levantamento bibliografia sobre história oral, como o texto de Verena Alberti (2013) “Manual de História Oral” explica o processo de como gravar e fazer uma entrevista, procurando saber mais sobre o mesmo, para melhor desenvolvimento em campo. E o artigo de Júlia Matos e Adriana Senna (2011) “História Oral como Fonte: problemas e métodos” que fala sobre

a

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questão do que seria uma história oral. Relatos de vida do entrevistado, lembranças que serão passadas para o papel, como escrever a transcrição para uma agradável leitura. Todo esse processo foi realizado em conjunto com o mestre Ray. Para que as composições do mestre Nego Ray pudessem ser expostas no livro, precisou fazer os registro em cartório. Foram todas registradas na Universidade Federal do Pará – UFPA. 4. Resultados O projeto desenvolvido através da Etnomusicologia colaborativa, reuniu materiais que proporcionaram maior conhecimento sobre a vida do mestre Nego Ray, o Espaço Cultural Coisas de Negro e as atividades desenvolvidas no local. Gerando novos conhecimentos sobre uma prática musical paraense executada pelo Mestre Nego Ray que ocorre dentro e fora do Espaço Cultural Coisas de Negro. 5. Considerações finais O projeto foi de extrema relevância para a comunidade, no caso, o Mestre Nego Ray. Pois atendeu devidamente as expectativas do mesmo, para a organização do seu livro. O livro está dividido em três capítulos. Contendo lembranças que ficaram marcadas na vida do mestre Nego Ray. Projetos como estes desenvolvidos junto à comunidade, enriquece o conhecimento do pesquisador e da comunidade, evidenciando suas práticas e levando este conhecimento a outras pessoas. Referências ALBERTI, Verena. Manual de História Oral. Edição 3, FGV. 2013. Disponível em: Acesso em: 04/05/2015 CAMBRIA, Vicenzo. Etnomusicologia Aplicada e “Pesquisa ação participativa”. Reflexões Teóricas Iniciais para uma Experiência de Pesquisa Comunitária no Rio de Janeiro. In: V Congresso Latino-Americano da Associação Internacional para o Estudo da Música Popular. Anais... 2004 P. 1-9. CHADA, Sonia. A Prática Musical no Culto ao Cabloco nos Candomblés Baianos. In. III Simpósio de Cognição e Artes Musicais, 2007, Salvador. Anais... Salvador: EDUFBA, 2007, p.137-144. 243

/ Belém – 2016 Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.

LUNING, Angela. Temas emergentes da Etnomusicologia brasileira e seus compromissos sociais. In: Música em perspectiva. V.7, n. 2, dezembro 2014. P.7-25 MATOS, Júlia; SENNA, Adriana. História Oral como fonte: problemas e métodos. In: História, Rio Grande, 2(1): 95 – 108, 2011. NEVES, Alan; FAUSTO, Antônio; CAMPOS, Fernanda; LOPES, Timóteo; MALCHER, Maria. Coisas de negro: raízes na tradição, asas na experimentação. In: VI Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação da Região Norte, 20 a 22 de junho de 2007, Belém/Pa. Anais... GT 5. Belém: 2007, P. 1-15. NOGUEIRA, Júlia. Etnomusicologia participativa: alguns pontos sobre conceitos e possibilidades. In: XVIII Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação (ANPPOM). Salvador. Anais... Salvador, 2008. P 240-244. SEEGER, Anthony. Etnografia da música. In: Caderno de Campo. P. 237 – 259. São Paulo, nº 17. 2008. TYGEL, Júlia. Etnomusicologia Aplicada: Uma reflexão crítica sobre as metodologias de dois projetos de pesquisa e ação. In: ANPPOM – Décimo Quinto Congresso. 2005. P 731738.

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/ Belém – 2016 Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.

O acervo de TCC’s da UEPA.

Bárbara Lobato Batista PIBIC/UFPA - [email protected] Sonia Chada PPGARTES/UFPA - [email protected]

Resumo: O acervo de TCCs da UEPA é um subprojeto de Práticas Musicais no Pará, executado através do PIBIC/UFPA. Está vinculado ao Grupo de Estudos sobre a Música no Pará e ao Laboratório de Etnomusicologia da UFPA. Investigar, analisar e classificar as práticas musicais já abordadas em Trabalhos de Conclusão de Curso da Licenciatura em Música, da Universidade do Estado do Pará é o objetivo principal desta pesquisa. Foi realizada a seleção e coleta dos documentos disponíveis neste acervo e, posteriormente, foram analisados, classificados e organizados. Atualmente os documentos integram os acervos do LabEtno, à disposição dos interessados. Palavras-chave: Música no Pará. Práticas Musicais no Pará. Pesquisa em Música no Pará.

1. Práticas Musicais no Pará Prática Musicais no Pará é o projeto principal do Grupo de Estudos sobre a Música no Pará – GEMPA, vinculado ao Laboratório de Etnomusicologia da UFPA – LabEtno. A proposta é contínua e abriga vários subprojetos e ações, orientados e/ou coordenados pela professora Sonia Chada. Visa investigar as diversas práticas musicais existentes no Estado do Pará, à luz da Etnomusicologia, seguindo, especialmente, os caminhos propostos por Blacking (2000), Nettl (2005 e 2006) e Seeger (2004) para o estudo de música e, considerando, conforme o caso, as relações entre música e cultura, música e religião, música e educação, música e contextos urbanos, música e tradição oral, entre outros. Prática musical é definida aqui como: um processo de significado social, capaz de gerar estruturas que vão além de seus aspectos meramente sonoros, embora estes também tenham um papel importante na sua constituição (...). A execução, com seus diferentes elementos (participantes, interpretação, comunicação corporal, elementos acústicos, texto e significados diversos) seria uma maneira de viver experiências no grupo. Assim, suas origens principais têm uma raiz social dada dentro das forças em ação dentro do grupo, mais do que criadas no próprio âmago da atividade musical. Isto é, a sociedade como um todo é que definirá o que é música. A definição do que é música toma um caráter especialmente ideológico. A música será então um

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/ Belém – 2016 Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares. equilíbrio entre um "campo" de possibilidades dadas socialmente e uma ação individual, ou subjetiva (CHADA, 2007, p. 13).

Pela importância e abrangência, o tema requer além de estudos historiográficos acurados, um maior esforço para sua compreensão. Os dados hoje disponíveis sobre o que se denomina “cultura musical paraense”, embora esforços estejam sendo realizados, estão longe de representar o universo musical diversificado produzido no Estado do Pará. Partindo do suporte dado pelo pensamento etnomusicológico e pelos estudos culturais, o projeto propõe investigar as diversas práticas musicais existentes nesse contexto. Não obstante, para além deste limite, vai-se além do que Alberto Ikeda (1998) chama de musicografia, ou seja, a mera descrição dos objetos musicais. Aqui o estudo de música é pensado como muito mais do que o estudo puramente do som musical. Assim, por meio de análises interpretativas, busca-se compreender como essas diversas práticas musicais se coadunam no contexto sociocultural paraense, conformando uma identidade plural. 2. Plano de trabalho Práticas Musicais no Pará: o acervo de TCCs da UEPA é um subprojeto do Projeto Práticas Musicais no Pará, executado através do Programa Institucional de Iniciação Científica da UFPA – PIBIC. O objetivo deste subprojeto é investigar, analisar e classificar as práticas musicais já abordadas em Trabalhos de Conclusão de Curso da Licenciatura em Música, da Universidade do Estado do Pará - UEPA. Os específicos: captar e registrar aspectos do saber musical contido nas diversas práticas musicais já abordadas em TCCs do Curso de Licenciatura em Música da UEPA, cadastrar as informações coletadas contribuindo com o banco de dados sobre práticas musicais paraenses do LabEtno e sobre os mestres e grupos a elas relacionados e, contribuir para o desenvolvimento de estudos sobre a cultura musical paraense. Este subprojeto teve seu inicio em setembro de 2015. O acervo que vem sendo constituído e ampliado pelo LabEtno tem gerado hipóteses e informações sobre valores da cultura paraense, manifestações musicais ainda não referenciadas, de termos, expressões, gêneros musicais relevantes, de produções de músicos e agentes sociais que perfazem o contexto das manifestações, informações que podem ser utilizadas por outros pesquisadores e podem servir de base para futuros estudos sobre a música no Pará.

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/ Belém – 2016 Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.

O desenvolvimento das atividades se fixam em três eixos articulados: o primeiro consta das atividades do GEMPA; no segundo, o bolsista atua na coleta de dados, análise, organização e classificação dos dados referentes às práticas musicais paraenses já referendadas nos TCCs do Curso de Licenciatura em Música da UEPA; o terceiro eixo refere-se à produção intelectual do bolsista, incluindo publicações e relatórios de pesquisa, assim como apresentação dos resultados em eventos da área. Como parte das atividades intelectuais, o bolsista foi encarregado de fazer leituras da bibliografia especializada, relacionadas ao seu plano de trabalho. Estas o habilitam a tabular os dados coletados em campo, na sistematização destes dados e na análise do material coletado. 3. Resultados Em 1989 foi criado o Curso de Educação Artística com Habilitação em Música, na Faculdade de Educação do Pará, hoje, Universidade Estadual do Pará – UEPA e, posteriormente, foi criado o curso de Licenciatura em Música da UEPA. Assim, parte dos trabalhos de conclusão de curso foi defendida no Curso de Educação Artística com Habilitação em Música e, outra parte, no Curso de Licenciatura em Música. A organização e arquivamento dos TCCs do Curso de Licenciatura em Música é feita da seguinte maneira: Os TCCs com nota máxima são depositados na biblioteca da universidade e, os demais, com conceito abaixo de excelente, são devolvidos para os alunos, procedimento esse que gera uma perda significativa de material para pesquisa, já que não há uma relação disponível para consulta englobando todos os TCCs defendidos no curso. Diante desse fato, não há como quantificar os trabalhos já defendidos neste curso. Todavia, os funcionários da coordenação do curso arquivam, desde o ano de 2011, todos os TCCs defendidos, inclusive os que não alcançaram a nota máxima. Assim, conseguimos relacionar apenas 34 trabalhos que abordam práticas musicais no Pará neste contexto. Como o acervo de TCCs da biblioteca é apenas liberado para consulta na própria biblioteca, não podendo ser emprestado, um scanner portátil foi utilizado para a cópia desses trabalhos. Os TCCs arquivados pela coordenação do curso, que estão em CDs ou impressos, puderam ser facilmente copiados ou escaneados, para posterior análise. Os 34 TCCs coletados fazem referência a práticas musicais de apenas 11 municípios paraenses:

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/ Belém – 2016 Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares.

TABELA 1: Municípios contemplados em TCCs da UEPA Quantidade de TCC’S 19 04 03 02 02 01 01 01 01

Localidade Belém Marapanim Bragança Soure Vigia Barcarena Cametá Ourém Capanema São Caetano de Odivelas Santarém

01 01

A maior incidência de trabalhos foi na cidade de Belém. Entre as pesquisas realizadas nesta cidade, quatro estão relacionadas a bairros: dois sobre prática musical no Bairro do Guamá, um no Bairro do Umarizal e um no Bairro do Tenoné. Se considerarmos que

o

Estado

do

Pará

possui

144

municípios

(Cf.), os trabalhos de conclusão do referido curso nos fornecem informação sobre práticas musicais em apenas onze (11) municípios. Aproximadamente 7,6 % dos municípios paraenses foram contemplados nos trabalhos de conclusão de curso da Licenciatura em Música da UEPA. Desses, dois municípios se localizam na mesorregião de Belém (Belém e Barcarena), sete na mesorregião nordeste (Bragança, Cametá, Capanema, Marapanim, Ourém, São Caetano de Odivelas, Vigia), um na mesorregião Marajó (Soure) e um na mesorregião do baixo Amazonas (Santarém). As mesorregiões sudeste e sudoeste não foram contempladas nesses trabalhos. Vejamos o mapa a seguir:

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/ Belém – 2016 Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares. Figura. 1: Mapa do Estado do Pará.

Fonte: Guia Internet Brazil. Disponível em: .

As práticas musicais abordadas nesses trabalhos foram as constantes na tabela abaixo: TABELA 2: Práticas musicais abordadas em TCCs da UEPA Prática Musical Carimbó Personalidade Paraense Bandas de Música Música Religiosa Boi Bumbá Capoeira Choro Xote Bragantino Auto das Pastorinhas (Releitura) Batuque Brega Boi de Mascaras Eco Marajoara (Releitura) Desfeitera Guitarrada/Lambada Jazz Lundu Marajoara Maçarico

Quantidade de TCC’S 08 07 03 03 02 02 02 02 01 01 01 01 01 01 01 01 01 01 249

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Marujada Música Indígena Pretinhas D’angola Retumbão Samba do Cacete Siriá

01 01 01 01 01 01

Vejamos na tabela abaixo os grupos musicais encontrados nos TCCs da UEPA: TABELA 3: Grupos encontrados em TCCs da UEPA. Prática Musical Carimbó

Capoeira

Bandas de música

Boi-bumbá

Música religiosa Auto das pastorinhas (Releitura) Lambada/Gu itarra Boi de mascarás

Nome dos grupos Os Boioaras (Mestre Venâncio) Nativos de Marudá Associação de Capoeira Senzala Pará (Mestre Walcy) Grupo Vitória Régia (Mestre Ferro de Pé) Arte Ginga Brasil (Mestre Docinho) Berimbal de Ouro (Mestre Abil) Quilombo dos Palmares (Mestre Bimba) Associação de Capoeira Luta Nossa Pará (Mestre Chaguinha) Banda do Corpo da Polícia Banda do Arsenal de Marinha Banda de Música dos Bombeiros Banda da Aeronáutica Banda de Música do Lauro Sodré Banda de Música do CEFET/PA Flor de Todo Ano Garantido Arraial do Pavulagem Boi Malhadinho Coral da Igreja Evangélica Assembleia de Deus Coro Cênico da Unama

Mestres da Guitarrada Boi Ribanceira Boi Beiçudo Boi Faceiro Boi Tinga Boi Resolvido 250

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Technobrega

Bode Montês Aparelhagens: SuperPopSom Crocodilo Ciclone Rubi

Os nomes de representantes dessas práticas musicais estão expostos na tabela a seguir: TABELA 4: Representantes das práticas musicais contidas nos TCCs da UEPA. Prática Musical Carimbó

Capoeira

Personalidades paraenses

Nomes de representantes Mestre Duvalino. Mestre Favacho Mestre Lucindo (Lucindo Rabelo da Costa) Mestre Pelé (Domingos da Silva) Mestre Pinduca (Aurino Quirino Gonçalves) Mestre Tatá (Otávio Fonseca) Mestre Venâncio Mestre Verequete (Augusto Gomes Rodrigues) Nazaré Pereira Mestre Bimba (Manuel dos Reis Machado) Mestre Pastinha (Vicente Ferreira Pastinha) Mestre Waldemar (Waldemar da Paixão) Mestre Bezerra (Antônio Bezerra dos Santos) Mestre Romão (Júlio Romão) Mestre Walcy Mestre Ferro do Pé Mestre Docinho Mestre Abil Mestre Bimba Mestre Chaguinha Tó Teixeira Helena nobre e Ulisses nobre Raimundo Pinto de Almeida 251

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Filinésio Soares Nego Nelson (Nelson Batista Ferreita) Elienay de Carvalho Adamor do Bandolim Choro

Adamor do Bandolim Yuri Guedelha Nego Nelson Gilson Borges Rodrigues

Technobrega

Gaby Amarantes DJ Gilmar Santos Dj Elison

Guitarra/Lambada

Beto Barbosa Pio Lobato Minni Paulo Ziza Padilha (Emerson Coelho) Tynnôko Costa (Antônio Carlos Vieira Costa)

Jazz

O único TCC relacionado à música indígena discorre sobre as músicas da tribo Kayapó. O processo de digitalização e cópia destes TCCs já foi finalizado. Após isso o material coletado foi analisado, classificado e organizado para a geração de informações para o relatório final da pesquisa. Atualmente esses documentos integraram os acervos do LabEtno, à disposição dos interessados. 4. Conclusões A quantidade de TCCs disponíveis no acervo do Curso de Licenciatura em Música da UEPA é menor do que o esperado. Contudo, o material coletado é importante pela sua qualidade e pelos vários dados que disponibiliza. Os trabalhos de conclusão trazem informações preciosas sobre a diversidade e a riqueza de manifestações musicais existentes no Estado paraense, informações sobre mestres e grupos relacionados a essas práticas musicais, grande parte ainda não abordada em pesquisas sobre a música no Pará. O acervo que vem sendo constituído e ampliado tem gerado hipóteses e informações sobre valores fundamentais da cultura paraense, manifestações etnomusicológicas até aqui não completamente referenciadas, de termos musicais êmicos relevantes, de

expressões 252

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musicais paraenses, de gêneros musicais, de produções de músicos e agentes sociais que perfazem o contexto das manifestações, de instituições importantes na vida musical paraense, utilizáveis por pesquisadores, músicos, estudantes de música e o público em geral, inclusive de outras áreas de conhecimento, servindo de base para futuros estudos sobre a música no Pará. Referências BLACKING, John. How musical is man? 6a ed. Seattle: University of Washington, 2000. CHADA, Sonia. A Prática Musical no Culto ao Caboclo nos Candomblés Baianos. In: III Simpósio de Cognição e Artes Musicais, 2007, Salvador. Anais... Salvador: EDUFBA, 2007. Pp. 137-144. IKEDA, Alberto. Pesquisa em música popular urbana no Brasil: entre o intrínseco e o extrínseco. Atas do III Congresso Latino-americano da Associação Internacional para o Estudo da Música Popular. Disponível em. NETTL, B. The Study of Ethnomusicology: thirty-one issues and concepts. Urbana e Chicago: University of Illinois Press, 2005. . O estudo comparativo da mudança musical: estudos de caso de quatro culturas.In: Revista ANTHROPOLÓGICAS, ano 10, vol. 17 (1), 2006. SEEGER, Anthony. Etnografia da música. Giovanni Cirino (Trad.). In Sinais diacríticos: música, sons e significados, Revista do Núcleo de Estudos de Som e Música em Antropologia da FFLCH/USP, n. 1, 2004.

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Mapeando cenas e cenários musicais no bairro do Guamá, em Belém-PA. Jucélia Estumano Henderson Universidade Federal do Pará - [email protected] Sonia Chada Universidade Federal do Pará - [email protected] Resumo: Este trabalho apresenta resultados de um levantamento preliminar realizado no bairro do Guamá, da cidade de Belém-PA, efetuado por alunos da disciplina Introdução à Etnomusicologia, do curso de Licenciatura Plena em Música da UFPA, em 2013. A proposta da disciplina, ação do Projeto Práticas Musicais no Pará, vinculado ao Laboratório de Etnomusicologia da UFPA, proporciona aos alunos fundamentos teóricos sobre a área da Etnomusicologia, a experiência de realização de um trabalho de campo, reflexões sobre a diversidade de práticas musicais existentes na cidade belenense, ampliando a formação dos futuros licenciandos em música. Palavras-chave: Mapeamento musical. Práticas musicais. Educação musical.

1. Considerações iniciais O relato que ora segue diz respeito à experiência vivenciada com a turma de 2013 da disciplina de Introdução à Etnomusicologia, do Curso de Licenciatura Plena em Música, da Universidade Federal do Pará. O desenvolvimento da disciplina foi dividido em dois momentos: primeiro os alunos receberam a fundamentação teórica em sala de aula, a partir da discussão de textos e vídeos sobre temas diversos; no segundo momento, os alunos realizaram incursões em campo para levantamento de dados, sendo o bairro do Guamá o local escolhido, por ser este o bairro onde se localiza a universidade em questão. O objetivo deste trabalho foi proporcionar aos alunos fundamentos teóricos da disciplina Introdução à Etnomusicologia, para o reconhecimento e compreensão de práticas musicais diversas e sua inserção no ensino de música, assim como observar cenas e cenários musicais no bairro do Guamá, buscando proporcionar, além da ligação vivencial do trabalho de campo, a compreensão do cotidiano sonoro que os cerca. 2. Sobre a disciplina Introdução à Etnomusicologia Introdução à Etnomusicologia é disciplina obrigatória do curso de Licenciatura Música da UFPA, ofertada no quarto semestre do curso. As turmas são compostas por cerca de 30

alunos. A disciplina apresenta carga horária de 68 horas semestrais, das quais 254

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17 horas são destinadas a atividades práticas ou laboratoriais e 51 horas são destinadas a seminários e aulas teóricas. Desde a implementação da nova grade curricular do curso, em 2008, esta disciplina, juntamente com a disciplina Sociologia da Música, tem sido um espaço de oportunização de contato com outros saberes musicais e de pesquisa e reflexão, bem como vivências de práticas musicais não vinculadas às práticas musicais ocidentais. O conteúdo programático da disciplina tem discutido conceitos básicos sobre o histórico da disciplina; a etnomusicologia no Brasil e no Pará, música e sua relação com a cultura e sociedade, métodos de trabalho de campo, transcrição e análise, disciplinaridade e interdisciplinaridade na etnomusicologia, etnomusicologia aplicada, sistemas culturais e sistemas musicais, questões éticas e de propriedade intelectual na etnomusicologia, mudança cultural e mudança musical, tópicos em música indígena e, tópicos em música afrodescendente. Os autores utilizados para essa finalidade foram Bastos (1999), Blacking (1973), Merriam (1964), Nettl (1983) e (2003), Piedade (1998 e 2000); Seeger

(1980 e

1997); Queiroz (2005, 2006 e 2013) e Lago (2010). A partir dessas leituras foi possível subsidiar o lado prático da mesma. 3. Resultados de um exercício Como mencionado anteriormente, um dos exercícios propostos no âmbito da disciplina foi a observação de cenas e cenários musicais no bairro do Guamá. A tarefa central era sair às ruas e perceber onde a música poderia ser encontrada. Os passos sugeridos foram: a) escolher um lugar para realizar a observação; b) fazer um registro escrito do que foi observado (o registro deveria conter: o lugar onde a música acontece; o que as pessoas fazem com a música; o que se pode aprender com a cena); c) que reflexões emergiram a partir da observação das cenas observadas. A turma saiu a campo para realizar coletivamente o exercício de observar a realidade e as cenas musicais do bairro do Guamá, procurando descrever a cena observada em um diário de campo. Ao final da disciplina os alunos deveriam entregar um artigo com a organização de suas observações em campo, correlacionando às bibliografias discutidas em sala de aula, assim como expor tal experiência. Sobre o que aprenderam com a experiência de observar onde a música se faz presente naquele bairro, os alunos Carlos Santos, Brenda e Kemuel apresentaram um mapa com o trajeto percorrido por eles no bairro do Guamá: 255

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Mapa 1: Percursso percorrido pelo grupo no bairro do Guamá

E os seguintes comentários: (...) escolhemos caminhar pela Avenida José Bonifácio e Rua Paes de Souza (...). Quanto mais saíamos da área do comércio, mais silêncio e tranquilidade eram encontrados, ambientados em um clima bem residencial. Em boa parte de nossa caminhada passamos sem escutar músicas tocando, apenas sons de carros que passavam. (...). Na esquina da Rua Paes de Souza com a Tv. 14 de Abril foi o momento em que escutamos um carro tocando Melody (...) Na esquina desta mesma travessa encontramos uma escola estadual de ensino fundamental, chamada Profª. Ruth Rosita de Nazaré Gonzales. Nesta escola há uma banda de fanfarra (...). Nós estranhamos bastante o silêncio, pois pensávamos que ouviríamos bem mais músicas. (...). Subindo a Rua Silva e Souza, dobrando à direita da Rua Barão de Mamoré, por este percurso escutei um forró gospel bem baixinho. Nessa rua encontramos a Escola Estadual de Ensino Fundamental Barão de Mamoré, uma escola grande que apresentava banda de fanfarra (...) o que pude constatar foi uma paisagem sonora muito agradável, onde os sons da natureza se fazem presente, o som das folhas das árvores, dos pássaros, as vozes das crianças brincando, um clima bastante agradável de presenciar. (SANTOS, 2013: p.2).

Na citação acima está contido o relato desses alunos a partir das cenas observadas. A seguir, excerto de algumas entrevistas realizadas pelos mesmos: Com o propósito de entrevistar os moradores e cobrir uma maior área, iniciamos as pesquisas pela Rua Silva Castro, subindo em direção à Tv. 14 de Abril, lá encontramos uma casa onde funcionava um bar e um lava-jato. Entrevistei um rapaz que morava na casa (...) perguntei que tipo de música mais se ouvia no bar, ele falou baile da saudade e pagode. Perguntei a ele sobre sua preferência musical e ele me respondeu que era o pagode. (...). Quase em frente ao bar pude entrevistar a moradora (...) que me informou que gosta de todos os estilos, menos

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/ Belém – 2016 Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares. pagode, relatou que o gênero musical mais escutado pelos vizinhos é o Melody e não sabe de grupos de produção musical que atuam na área. (...). Subindo a 14 de Abril, próximo à Rua Paes de Souza, entrevistamos o Sr. Fabiano de Cristo. Ele relatou que não tem o hábito de ficar escutando música, pois nem rádio possui e nem sai de sua residência, devido ser deficiente das pernas. A música que ele escuta é de uma igreja Assembleia de Deus que fica próximo à sua casa. (...). Na Tv. Caripunas com a Tv. 14 de Abril, encontramos uma mercearia, onde entrevistei o senhor Manoel Ricardo. Ele relatou escutar rádio o dia todo e escuta um pouco de tudo, preferindo um pouco mais o pagode. (...). Na Tv. 14 de Abril com Passagem Silva Castro entrevistei a senhora Denyze que afirmou gostar de todos os tipos de música e que adora dançar. (...) Na Rua Paes de Souza, eu encontrei a Casa de Santo Antônio, onde entrevistei Márcio Pereira, porteiro do local e que relatou ali ser um lugar de pouca movimentação musical devido estar na rua do cemitério. (SANTOS, 2013: p.3).

As considerações desses alunos sobre essa experiência foram as seguintes: Por meio da pesquisa de campo, que foi uma grande experiência e aprendizado sobre o Bairro do Guamá pudemos mudar nossa opinião sobre o bairro, pois notamos que sua paisagem sonora é de grande diversidade, de gosto diferente entre um morador e outro. Apesar de na área percorrida encontrarmos mais residências, pudemos notar que há respeito sonoro entre os moradores na hora de escutarem suas músicas. (...). Há no bairro uma grande diversidade de gêneros e gostos musicais apresentando uma paisagem musical bem diferente daquela que pensávamos encontrar. (SANTOS, 2013: p.4).

Os alunos Daniel Pinho Sant’Ana, Jonatas Araújo Batista de Abreu, Elioenai Andrade da Luz e Walter Soares de Oliveira Junior também apresentaram o mapa percorrido por eles no bairro do Guamá, onde conseguiram mapear outros cenários musicais: Durante a pesquisa realizada no bairro do Guamá (...) catalogamos alguns lugares como igrejas, uma associação carnavalesca, um terreiro de mina e um curral de boi-bumbá. O que foi uma surpresa, pois pensamos que fôssemos encontrar o brega como gênero musical primordial no gosto dos moradores guamaenses (...). Na Avenida José Bonifácio encontramos duas igrejas e entrando na Passagem Pedreirinha nos impressionamos com a diversidade cultural concentrada nesta rua: duas Igrejas, duas Associações carnavalescas e um Terreiro de mina. (SANT’ANA. ABREU. LUZ e OLIVEIRA JUNIOR. 2013: p.4).

Os alunos, além de apresentarem as suas percepções acima, também elaboraram um questionário com 07 (sete) perguntas, juntamente com as entrevistas que foram de grande importância para nortear a produção do trabalho de pesquisa nos lugares dantes citados (igrejas, terreiro de mina e o Boi Bumbá Malhadinho). Sobre a pesquisa ocorrida nas quatro igrejas do bairro: Igreja Universal do Reino de Deus, Assembleia de Deus Tradicional, Assembleia de Deus do Avivamento Pentecostal 257

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Brasa Viva e Congregação Cristã do Brasil, os alunos disseram que todas as igrejas usam a música com um sentido “espiritual, de louvor e adoração a Deus”, e que apesar de serem todas evangélicas, possuem características, costumes e maneiras diferentes de utilizarem a música nos seus cultos. Por exemplo: Na Igreja Universal do Reino de Deus foi encontrado um grupo denominado FORÇA JOVEM, dentro desse grupo funciona um coral chamado CORAL CANTA PARÁ, o qual é usado como inclusão social para a comunidade do bairro, nos cultos oficiais da igreja acontecem participações de cantores solos que utilizam o recurso do playback na execução de hinos mais atuais. (...) não possui tradição musical, sua principal temática são programações de forte apelo emocional, tendo os pregadores como os únicos protagonistas frente ao grupo. (...) A prática musical nessa igreja possui apenas um pequeno papel de coadjuvante (...). A Igreja Assembleia de Deus Tradicional, que tem Belém do Pará como berço de seu surgimento, além de valorizar de forma bastante expressiva a prática musical, possui uma liturgia com uma organização muito clara, que define de forma muito objetiva sua prática cultural musical. A igreja em questão possui coral, banda base com bateria, teclado, guitarra, violão, baixo e vocais e se ocupa em executar músicas gospel estilo pop que se destacam nos veículos de comunicação, e oferecem projetos musicais para a comunidade do Guamá. (...). A igreja Assembleia de Deus do Avivamento Pentecostal Brasa Viva, vertente da Assembleia de Deus tradicional, também trabalha com grupo coral (...) que faz apresentações em festas de casamentos comunitários e festas de aniversário da igreja. Esse coral é de extrema importância para a Igreja, pois, segundo o relato dos próprios membros, através da adoração e meditação, ele faz a ligação deles com a pessoa de Deus. (...). A Congregação Cristã do Brasil, (...) se diferencia das demais igrejas em quase tudo, funcionando com um padrão musical único praticado em todas as igrejas pertencentes a sua denominação. Eles não utilizam amplificação e nenhum tipo de tecnologia sonora. A igreja utiliza uma orquestra composta por instrumentos de sopro e cordas friccionadas que ficam à disposição da igreja durante o culto. (...) utilizam hinos tradicionais a quatro vozes e bem antigos, muitos, oriundos da época da reforma protestante. A igreja possui um hinário próprio com mais de quinhentos hinos, sendo o único livro de música usado por eles. (SANT’ANA. ABREU. LUZ e OLIVEIRA JUNIOR. 2013: p.3).

Além de perceber as igrejas, os alunos também notaram outros cenários musicais como o Boi-bumbá Malhadinho que acontece na quadra junina, o Terreiro de Mina Dois Irmãos e a Associação Carnavalesca Bole-Bole. Sobre o Boi-bumbá malhadinho os alunos discorrem: O Boi-bumbá Malhadinho se apresenta no período de junho a agosto, durante a quadra Junina. No bairro do Guamá ocorrem práticas culturais provenientes das brincadeiras juninas, onde o Boi-bumbá Malhadinho é convidado a dançar em festas de aniversários e sair nas ruas do bairro para a brincadeira. (SANT’ANA. ABREU. LUZ e OLIVEIRA JUNIOR. 2013: p.5).

Sobre o Terreiro de Mina Dois Irmãos e a Associação Carnavalesca:

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/ Belém – 2016 Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares. (...) O Terreiro de Mina Dois Irmãos, localizado na Passagem Pedreirinha (...). No local do prédio ocorrem práticas religiosas afrodescendentes perpetradas pela senhora Luíza Winja da Costa Ribeiro (Mãe Lulu). A reza acontece à noite ao som de tambores, agogôs e cantos. (...) A associação carnavalesca Bole-bole foi fundada em 2 de fevereiro de 1984, começou como bloco carnavalesco conquistando 6 títulos, 2 no grupo especial das Escolas de Samba de Belém, lá, funcionam projetos sociais com oficinas de percussão nos ritmos samba e carimbó, originado do Baixo Tocantins, resgatando crianças e adolescentes da rua. A Escola de Samba Bole-Bole desenvolve atividades culturais, sendo referência na Passagem Pedreirinha. As oficinas e ensaios ligados ao projeto Xequerê iniciou-se nas dependências da Escola de Samba Bole-Bole assim como os ensaios e oficinas musicais ligados ao projeto cultural Boi Bumbá Malhadinho do Guamá. (...) A Associação carnavalesca Bole-Bole (...). Localizada na Pedreirinha, o Bole-bole é uma escola de samba com várias práticas musicais, projetos sociais e conta com aproximadamente 2 mil participantes. (SANT’ANA. ABREU. LUZ e OLIVEIRA JUNIOR. 2013: p.2).

A seguir as considerações desses alunos: Ao final de nossa pesquisa ficamos surpresos e profundamente encantados com os resultados obtidos, pois a princípio tínhamos uma visão um tanto preconceituosa sobre a música no bairro do Guamá. A diversidade musical encontrada no trecho de ruas que andamos é consideravelmente diversificada e marcante. Por fim, entendemos a importância da etnomusicologia por possuir em seu centro de ação o estudo da música em diferentes contextos culturais. (SANT’ANA. ABREU. LUZ e OLIVEIRA JUNIOR. 2013: p.7).

Outro grupo, formado pelas alunas Anderlene Maria Lima Figueiredo, Brenda Nazaré Trindade e Carina Malaquias de Lima, relatou que nas ruas visitadas durante a pesquisa havia casas onde se percebia nitidamente atividade sonora, constatando situações de respeito e desrespeito pelo consumo e/ou prática musical do outro. Observou-se também que havia uma grande diversidade no modo como é distribuída a prática musical na área pesquisada, conforme mostra o quadro 1 elaborado pelas alunas:

Quadro 1: Cenários e Cenas Musicais

Nome de rua/passagem/avenida R. Paes de Souza

Tv. Quatorze de Abril Pass. Silva Castro Al. Mamoré R. Barão de Igarapé Miri Pass. Paulo Cícero

Práticas Musicais Banda Fanfarra (E. E. E. F. M. Profª Ruth Rosita de Nazaré Gonzales; Atividades musicais “Casa de St° Antônio – Centro 3ª Idade”). Igreja Evangélica “Assembleia de Deus”). Igreja Evangélica “Quadrangular”; 3 Bares – não identificados. Banda Fanfarra e Grupos de Capoeira e Carimbó. E. E. E. F. M. Barão de Igarapé Miri. Ministério de Música (Primeira Igreja Batista do Guamá). Grupo de Boi-Bumbá (Grupo Folclórico Juventude Curumim Tabatinga).

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Durante a pesquisa de campo, o que mais chamou a atenção dessas alunas foi o grupo Boi Juventude Curumim Tabatinga, com sede na Rua Paulo Cícero. Segundo elas, o boi é uma manifestação popular, considerada a mais antiga na cidade de Belém, e existem vários desses grupos no bairro do Guamá, como por exemplo: Estrela Dalva (54 anos); Flor do Guamá (38 anos); Malhadinho (38 anos); Flor de Todo Ano (31 anos); Flor da Juventude (13 anos); Encanto da Juventude; Rei do Campo e Veludinho, que pertencem ao mesmo dono, e Boi Juventude Curumim Tabatinga. Em entrevista realizada com o responsável pelo grupo, as alunas mencionam: Entrevistamos João de Castro, também conhecido na comunidade como “João do Boi”, responsável pelo Grupo Folclórico Juventude Curumim Tabatinga. Ele nos relatou sobre seu primeiro contato com grupos de boi, aos oito anos de idade, e forneceu dados sobre o grupo que é composto de 68 brincantes e possui uma diretoria. Para a confecção de suas fantasias e a construção dos seus adereços, são utilizados materiais recicláveis que todos os anos são renovados. Os próprios integrantes confeccionam também seus instrumentos musicais, reaproveitando materiais recicláveis. A parte instrumental que acompanha suas melodias é composta de instrumentos de percussão. Os mais usados são: barrica, xequexeque e pandeiro. (...) O bumba-meu-boi ou boi-bumbá preserva a cultura popular, isto através de pessoas, que em grupo se dispõem a resgatar essa história. (TRINDADE. FIGUEIREDO e LIMA. 2013: p.4).

As considerações dessas alunas são apresentadas a seguir: O bairro do Guamá (...) possui suas peculiaridades. Concentra grande número de grupos folclóricos, dentre eles, um de manifestação bem antiga, os grupos de bumba-meu-boi. Estes, além de manter viva a tradição e cultura, também repassam à sociedade uma consciência ambiental ao se utilizarem de material reciclável para a construção de seus ornamentos e instrumentos musicais, além de proporcionar uma vivência entre a comunidade, estabelecendo harmonia e respeito mútuo. (TRINDADE. FIGUEIREDO e LIMA. 2013: p.4).

4. Breves considerações Um dos aspectos interessantes para a área de ensino de música é a sua relação com a cultura, sempre em processo dinâmico de estabilidade e mudança. A música, por estar conectada a diversos aspectos - etnicidade, ideologia, religião, entre outros, pode aumentar essa compreensão do mundo. Ela pode ajudar a compreender quem somos e, assim, nos comunicar com os outros (SOUZA, 2007, p. 19). A disciplina Introdução à Etnomusicologia busca oferecer suporte crítico, metodológico e teórico para a compreensão das relações entre música e sociedade e as relações entre música e os diversos domínios da cultura. Tais atividades curriculares 260

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buscam oportunizar reflexões, vivências e produção de conhecimento acerca das mais diversas práticas musicais existentes no Estado paraense. Possibilita aos alunos a percepção de que há várias maneiras de pensar, sentir e fazer música, que, com certeza, o auxiliarão como futuros professores de música. A proposta é que o ensino de música inclua a diversidade musical existente e aguce o os olhares não somente para uma música específica, mas para a totalidade de músicas. Talvez, assim, possa ser possível formar professores de música criativos e conscientes, compreensivos e tolerantes em relação à diversidade de práticas musicais que constituem o panorama musical atual, com mentalidade aberta para as diferenças existentes. Temos aprendido muito uns com os outros e ainda temos muito a aprender (NETTL, 2010). Referências: BASTOS, Rafael José de Menezes. A musicológica Kamayurá: para uma antropologia da comunicação no Alto Xingu. 2. ed. Florianópolis: UFSC, 1999. BLACKING, John. How Musical is Man? Seattle: University of Washington Press, 1973. LAGO, Jorgete. A prática do boi bumbá em Belém: uma breve apresentação. Caderno de colóquio, v.10, nº1 Belém, 2010. MERRIAM, Alan P. The Anthropology of Music. Evanston, Ill: Northwestern University Press, 1964. NETTL, Bruno. The Study of Ethnomusicology: Twenty-nine Issues and Concepts. Urbana and Chicago: University of Illinois Press, 1983. NETTL, Bruno. Music Education and Ethnomusicology: A (usually) Harmonious Relationship. MinAd: Israel Studies in Musicology Online, v. 8, n. 1/2, 2010. PIEDADE, Acácio Tadeu de C. Música Yepâ Masa: Por uma antropologia da música no Alto Rio Negro. 1998. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Santa Catarina. . Música e Sociedade Tukano: sobre dois gêneros musicais Ye`pâ-masa. In: LUCAS, Maria Elizabeth; BASTOS, Rafael Menezes (orgs.). Pesquisas Recentes em Estudos Musicais no Mercosul. Porto Alegre: UFRGS, 2000 p. 11-26. (Série Estudos, 4). QUEIROS, Luiz. Pesquisa em etnomusicolgia: implicações metodológicas de um trabalho de campo realizado no universo musical dos Ternos de Catopês de Montes Claros. Em Pauta n. 26, Porto Alegre, 2005. . Pesquisa Quantitativa e Pesquisa Qualitativa: Perspectivas para o campo da etnomusicologia. Claves n. 2, Bahia, 2006 . Ética na pesquisa em música: definições e implicações da contemporaneidade. Belo Horizonte, 2013.

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SANTOS, Carlos Henrique Cascaes dos. Paisagem Musical do bairro do Guamá. Artigo apresentado à disciplina Introdução à Etnomusicologia. Belém, 2013. Trabalho não publicado. SANT’ANA, Daniel Pinho. ABREU, Jonatas Araújo Batista de. LUZ, Elioenai Andrade da. OLIVEIRA JUNIOR, Walter Soares de. Diversidade cultural no bairro do Guamá. Artigo apresentado à disciplina Introdução à Etnomusicologia. Belém, 2013. Trabalho não publicado. SEEGER, Anthony. Os índios e Nós: Estudo Sobre Sociedades Tribais Brasileiras. Rio de Janeiro: Campus, 1980. . Cantando as canções dos estrangeiros: índios brasileiros e música de derivação portuguesa no século XX”. In: CASTELO-BRANCO, Salwa El-Shawan (coord.) Portugal e o Mundo: o encontro de culturas na música. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1997. SOUZA, Jusamara. Cultura e diversidade na América Latina: o lugar da educação musical. Revista da ABEM, n. 18, p. 15-20, 2007. TRINDADE, Brenda Nazaré. FIGUEIREDO, Anderlene Maria Lima. LIMA, Carina Malaquias de. Práticas Musicais no Guamá: os grupos de boi. Artigo apresentado à disciplina Introdução à Etnomusicologia. Belém, 2013. Trabalho não publicado.

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Olhar e escutar com atenção: transmissão e assimilação do saber nas práticas musicais do povo Ka'apor. Hugo Maximino Camarinha UEPA – MPEG - [email protected] Claudia Leonor López Garcés MPEG - [email protected] Resumo: Neste trabalho procuramos discorrer sobre os métodos particulares entre a transmissão e a apreensão musical dos Ka'apor, povo falante de língua do tronco Tupi, família Tupi-guarani, que vive no estado do Maranhão, na Terra Indígena Alto Turiaçu. Trabalhos sobre transmissão musical em contextos socioculturais específicos, debatidos em disciplinas como antropologia, etnomusicologia e educação, serviram para a melhor compreensão dos cenários da aprendizagem musical deste povo. A posterior seleção de elementos etnográficos no relato da experiência de campo, correlatos aos aspectos da transmissão musical foram no sentido de evidenciar os modos de aprender musicalmente entre os Ka'apor. No caso dos aspectos educativos do contexto musical, pensamos a consequência de seus atributos no sentido da criação e da perpetuação cultural. A transmissão e apreensão musical protegem a cultura, de modo que, ao ser transmitida, a tradição permanece e se fortifica. Palavras-chave: Transmissão de saber. Povo Ka'apor. Etnomusicologia.

1. Introdução e metodologia Neste trabalho procuramos discorrer sobre os métodos particulares sobre transmissão e apreensão musical entre o povo Ka'apor. Intento resultante de indagações que surgiram no transcurso da pesquisa122 – e que tiveram em parte, réplica preliminar em consequência de algumas observações e relatos feitos em campo, nomeadamente, durante nossas visitas às aldeias Xié e Paracuí na Terra Indígena Alto Turiaçu – mediante o contato com as manifestações musicais, objeto de nossa investigação. De que forma é feita a transmissão musical aos mais jovens indígenas, referente a todos os eventos onde a cultura musical Ka'apor é aplicada, sobretudo aquela executada nas práticas rituais deste povo? Procuramos colocar as reflexões a partir deste questionamento norteador, com base no relato da experiência de campo, através do método etnográfico, considerando aspectos relacionados diretamente com a transmissão de conhecimentos no interior do cenário musical Ka'apor.

Projeto: Música e Xamanismo Ka’apor. Uma abordagem etnomusicológica da medicina ameríndia. Tabalho de pesquisa desenvolvido no ambito do Programa Institucional PIBIC, do Museu Paraense Emílio Goeldi – MPEG (2015/2016) 122

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O universo das práticas musicais deste povo está inserido e é desenvolvido, em grande parte, no ato ritual. Contudo, deve-se ditinguir entre a práxis musical que apresenta finalidade terapêutica e a que se desenvolve com fim propiciatório. Por sua vez, essas práticas não emergem, mas só se desenvolvem segundo padrões específicos

de

transmissão de conhecimentos. As práticas de aprendizagem musical fora do âmbito escolar, em contextos socioculturais específicos, são tema debatido academicamente e transita entre disciplinas das áreas de antropologia, etnomusicologia e educação. Nesse sentido buscamos nessas fontes, alguns subsídios que achamos pertinentes para descorrer sobre os modos de passar e adquirir conhecimento musical entre os Ka'apor. 2. Transmissão musical e a abordagem etnomusicológica Em seu livro “The Anthropology of Music”, Merriam (1964, p. 145 -146) afirma que "cada cultura molda o processo de aprendizagem para lidar com as suas próprias ideias e valores"; postulou que "a forma mais simples e indiferenciada de aprendizagem de música ocorre através da imitação" segundo o autor a imitação é um recurso importante no aprendizado musical e afirmou que esse pode ser um procedimento inicial nesse processo. Tal assertiva (MERRIAM, 1964, p. 147, 305), parece ter sido firmada muito

por

influência de algumas etnografias sobre música, por exemplo, sobre os povos indígenas norte-americanos e os modos de aprender entre as crianças Venda da África do Sul, respetivamente: [A] aprendizagem de canções acontece, no canto para as danças, os jovens "sentam com os cantores junto ao tambor e aprendem as canções dessa maneira." Eles estão autorizados a bater sobre o tambor com o outros, e cantam baixinho até aprender as melodias (DENSMORE 1930, p. 654 apud MERRIAM, 1964, p. 147). (tradução do autor)

Sobre a aprendizagem musical das crianças Venda, Blacking afirma: […] as crianças Venda têm todas as oportunidades para imitar as canções e danças de adultos, [...] Os seus esforços para imitar os adultos e crianças mais velhas são encorajados e admirados ao invés de abafados, [...] embora as melodias estejam lá para ser imitadas, crianças pequenas fazem pouca ou nenhuma tentativa de cantar, e estão em primeiro lugar somente dispostas a imitar o movimento motor (BLACKING, 1957, p. 02 apud MERRIAM, 1964, p. 305). (tradução do autor)

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Como aponta Queiroz em sua tese (2005), referências teóricas provenientes dos estudos etnomusicológicos propiciam a compreensão dos vários cenários onde acontece a aprendizagem musical. Esses estudos enfatizam a necessidade de compreendermos corretamente as bases desses sistemas musicais, por exemplo, Nettl afirma: "I do belive that the way in which a society teaches its music is a matter of enourmous importance for understanding that music [...]." (NETTL, 1992, p. 3 apud QUEIROZ, 2005, p. 122) Menezes Bastos (1999, p. 214-220) observou entre os Kamayurá (grupo tupiguarani), momentos para escutar o “Maraka'ỳp – legítimo proprietário da música […]”. Quando a música na posse deste não é negociável (relação econômica) ela é transmitida. A transmissão musical Kamayurá é “linear” e “paralela” (divisão por gêneros, onde os homens seguem o estilo musical “de seu pai e irmãos do pai” e as mulheres seguem a “de sua mãe e irmãs da mãe”) e se divide no campo “formal” (isolada ou coletivamente) e “participacional” (no ritual) . Olhar e ouvir são fundamentais para a assimilação do aprendizado musical do Catopês, manifestação expressiva do universo do Congado (Queiroz 2005, p.129). A transmissão musical acontece coletivamente, se aprende com o ato de praticar, experimentar, prestar atenção e imitar os que têm domínio nas práticas musicais. Esses momentos de aprendizagem musical ocorrem durante as performances (QUEIROZ, 2014, p. 6). Apesar de alguns destes contextos culturais se mostrarem diferentes do foco de nossa pesquisa, entendemos que a maior parte dos processos de transmissão acima citados são os mesmos usados na transmissão musical entre os Ka'apor, posto que, no contexto ritual ou entre as performances isoladas, como veremos, também se fazem presentes alguns desses aspetos. 3. Modos de aprendizagem musical entre os Ka'apor 3.1 Assimilar e praticar com a performance do tambor Numa de nossas visitas ao território Ka'apor, depois da habitual reunião com a comunidade, a título de encerramento, tivemos o privilégio de assistir à performance rítmica por meio do tambor. O filho do cacique foi quem tomou a iniciativa. Um indígena adulto que domina as técnicas performáticas relativas à prática de tal instrumento e que, 265

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nesse contexto, para os neófitos da aldeia, serviu de referência. Em seguida pudemos presenciar várias crianças Ka'apor querendo também pôr em evidencia o resultado de seu progresso no aprendizado do instrumento. Aquele se tornou efetivamente, um momento para “praticar e experimentar, prestar atenção e imitar” (QUEIROZ, 2014, p. 6) e como referido, expor seus ganhos na prática instrumental. Cada criança, por sua vez e aleatoriamente, atravessava uma parte da ramada tocando e pulando sempre na intenção da execução mais próxima da performance “matriz”, perpetrada pelo indígena adulto, mestre na performance do tambor. Logicamente, os jovens adolescentes, por fatores como, agilidade e mais tempo de prática, concretizavam com mais propriedade que as crianças. Por mais que a performance do tambor apresente características complexas na sua execução, as crianças, mesmo longe de atingir o grau de execução dos mais velhos, nunca desistiram. Pelo contrário, estimuladas pelo desempenho destes últimos, observando com muita atenção cada detalhe de suas ações percussivas, foram as crianças as que mais tempo despenderam na prática do tambor durante aquele final de manhã. Esta síntese da transmissão e apreensão musical na performance do tambor foi pontual, aconteceu fora do contexto ritual. Já as manifestações musicais nesse contexto, entre os Ka'apor (onde os aspectos performáticos têm outra dimensão), se convertem, em paralelo com outros propósitos, no principal cenário da aprendizagem. Em tais eventos acontece aquilo que Ingold chamou de “educação da atenção” onde os neófitos procuram “sintonizar o movimento da sua própria atenção ao movimento da ação do outro" (INGOLD, 2001, p.144 apud MEDAETS, 2011, p. 12). 3.2 Transmissão e apreensão musical na Festa do Cauim Uma vez por ano, durante a lua cheia de Outubro acontece a festa do cauim Ka'apor (akaju kawĩ ta’yn muherha). Trata-se de um acontecimento segmentado ritualisticamente que reúne: a nominação das crianças, o menarca (ritual de passagem das moças), os casamentos, a posse dos novos caciques (LÓPEZ GARCÉS et al., 2014, p. 9). A bebida ritual desta festa é o suco de caju fermentado (akaju rukwer), preparado no período que antecede a celebração e repartida nessa ocasião. Mulheres e homens separadamente entoam cânticos nas danças de forma circular (em sentido anti-horário), e em momentos predominantemente assumidos pelos pajés, onde todos tomam cauim. Este é o principal evento cerimonial deste povo e que se converte também, num enorme palco para a 266

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transmissão e apreensão musical. Todos os aspetos performáticos são presenciados pelos mais novos, no entanto, os modos de transmissão e apreensão musical na contextura ritual não são evidentes, mas estão sim implícitos nele. Albuquerque, (2010) considera as beberagens dos antigos índios Tupinambá, como manifestações socioeducativas. Relativamente a tais práticas rituais, a autora nos diz: [...], encerram dimensões simbólicas e educativas, configurando-se como estratégias de entendimento das formas como homens e mulheres ordenam o mundo e lhe atribuem sentido. Durante as beberagens, sob o poder de cuias e cuias de cauim, discursos eram proferidos em altos brados, rememorando a força e a valentia dos guerreiros. Nelas, toda a cultura se expressava na forma de discursos, do canto, da dança, da ostentação de instrumentos e ornamentos plumários e corporais. As beberagens revestiam-se, portanto, de um sentido essencialmente estético e pedagógico, posto que transmitiam a memória coletiva, incutiam valores, perpetuavam a tradição, além de promoverem a resistência indígena aos ditames da colonização. [...] Contudo, a despeito dos preconceitos e das perseguições sofridas, tais práticas de consumo de bebidas fermentadas sobreviveram no tempo, estando presentes, ainda hoje, no século XXI, entre inúmeros grupos indígenas brasileiros, entre eles, os falantes das línguas tupiguarani […]. (ALBUQUERQUE, 2010, p. 70,71).

Severiano (2014), sobre a transmissão musical no contexto ritual Tupinambá aponta o contexto das celebrações como “o momento onde um conjunto de saberes era transmitido às gerações mais novas pelas mais velhas, sendo um locus de circulação e apropriação de saberes, dentre eles os saberes musicais” (2014, p. 137). E acrescenta: [...] A música funcionaria como um passeurs culturels, mediando tempos e espaços diversos e contribuindo na elaboração e circulação de representações e do imaginário. Constato que a música era muito presente nos rituais e eventos cotidianos dos Tupinambá, tendo grande contribuição para a constituição e organização desta sociedade. Verifica-se que a educação musical entre os Tupinambá ocorria nas práticas socioculturais (SEVERIANO, 2014, p. 137,141).

Por serem remanescentes dos Tupinambá, os Ka'apor (RIBEIRO; NEPOMUCENO, 2010, p. 80), conservam elementos da expressão cultural dos primeiros, presentes “ainda hoje” na celebração do cauim. Esse é um fenômeno que provem e muito se deve ao universo da transmissão. Contributo importante para que a cultura se perpetue (com as suas devidas (re)significações), subsista e perpasse de geração em geração e se mantenha presente hoje. Olhar, escutar com atenção é o principal exercício das crianças, que perambulando na área da cerimonia e mediante suas perceções, vão apreendendo aspetos do

ciclo 267

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cerimonial do cauim. As crianças de colo, nas tipóias junto a suas mães, integram e vão se familiarizando com as várias etapas do ritual sendo o ponto culminante de sua participação (mesmo que passivamente), a fase da nominação. Os jovens mancebos depois de assimilarem previamente os cantos, através do testemunho de performances pontuais dos cantadores da aldeia e as vivências rituais passadas, vão integrando o desempenho musical dos adultos durante a ritualística. Por vezes, por não terem domínio do repertório musical, os mais jovens imitam os mais velhos e paulatinamente aperfeiçoam suas técnicas na performance durante a festa. O Pajé também é amplamente observado em sua intervenções durante a cerimonia, em parte por ter domínio no repertório relativo à cantoria. 3.3 O aspirante a pajé e o aprendizado do legado xamânico (apontamentos preliminares123) No xamanismo deste povo, mais propriamente nos processos de formação do jovem aspirante à arte da pajelança, a transmissão musical é crucial, pois é por meio da música que sucede a mediação fronteiriça entre os agentes de doença e cura. Nesse contexto, não se pode conceber a ausência musical, pois desse modo tal evento não ocorreria. Se espera do aprendiz ter por meta o domínio das práticas (musicais) xamanísticas, isto é, com o tempo, erigir certos aspectos, por meio da música, que levem enfermos à obtenção de cura. Nem todos são aptos a percorrer esse caminho. Aqueles que demonstram indícios específicos para tal, são normalmente considerados pelo pajé (ou por agente não-humano), possíveis candidatos ao desenvolvimento de tais conhecimentos. Inicialmente o aprendiz assiste aos rituais, olha e escuta com atenção as ações musicais e os movimentos do pajé, pode passar por jejuns, retiros, dietas específicas e, de forma progressiva, mediante a sua inserção e domínio de tais técnicas, vai assumindo protagonismo no ritual de cura. Nessa conjuntura, é parte preponderante do processo de aprendizagem a vontade de querer “ser” do aprendiz. Os processos de transmissão aqui abordados nos remetem ao que em antropologia e etnomusicologia se conhece como "observação participante", um dos artifícios do método etnográfico. A "observação participante" é também um processo de apreensão

de

123 Este

trabalho tangencia uma inserção mais criteriosa relativa ao aprendizado xamanístico, justamente por não ser o foco de nossa abordagem neste artigo e principalmente porque (segundo os dados coletados), o tema exige uma descrição densa e detalhada que por razões de espaço não podemos aqui alcançar. Não obstante, esse tema será tratado futuramente.

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conhecimento, pelo menos, seria esse seu objetivo. A diferença está, obviamente, no receptor. Uma falta, um lapso, um desacerto na clareza da observação, proveniente de uma perspetiva contaminada de conceitos e métodos, versus a nitidez perceptiva de uma criança indígena na apreensão do saber. Quanto à eficácia na apreensão de tal conhecimento, a partir dos distintos pontos de vista, parece estar em vantagem aquela que é a antítese do olhar inquieto do pesquisador participante, a do neófito indígena. Considerações finais Os processos de transmissão e apreensão de conhecimento numa determinada cultura poderiam ser objeto que antecede qualquer outro objetivo de estudo nas longas incursões em campo, uma vez que dessa forma, o "observador (pesquisador) participante" faria suas posteriores considerações com base em observações perpetradas com mais proximidade a tais processos de transmissão. Em nossa opinião, tal procedimento privilegiaria uma construção de conhecimento mais fidedigna, pelo menos mais próxima da forma de apreensão do saber daquela determinada cultura. Ingold (2015, p. 7) em artigo recente, fazendo-se valer de metáforas ao estilo Geertziano, nos apresenta um “dédalo” e um “labirinto” análogos a dois sentidos distintos de educação (respectivamente: a formal e a educação pela experiência, no caminhar). Os modos de transmissão musical Ka'apor se assemelham então ao “labirinto”, onde para o aprendiz “sua ação deve estar acoplada de modo próximo e retido com sua percepção [...] prestar atenção onde pisa, e também ouvir e sentir. [...] o conhecimento é relativo ao seu ambiente cultural.” (INGOLD, 2015, p. 7, 8). Entre os Ka'apor, os processos de aprendizagem musical acontecem nas experiências de performances isoladas e coletivas e principalmente no ritual, onde os elementos musicais (e análogos) são evidentes. “É através da experiência continuada, em primeiro lugar como observador ativo [...], em seguida como praticante cada vez mais experimentado" (MEDAETS, 2011, p. 10). Os jovens, convidados a integrar os rituais, para chegar ao nível performance musical pretendida, vão gradualmente alcançando tal intento “através da imitação124” (MERRIAM, 1964, p. 146) daqueles que demonstram domínio performático. Momento de atenção para a prática dos elementos

musicais

124 Entre

os Kamayurá no “plano didático-pedagógico” a imitação das ações dos mais velhos pelas crianças e jovens é constante (Bastos, 1999, p. 218).

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aprendidos previamente até a integração plena no ritual. Relatamos uma dessas performances isoladas com o tambor, onde as crianças protagonizaram momentos elementares do processo de transmissão/assimilação como: observar e escutar com atenção, imitar, praticar, explorar, experimentar, exercitar, demonstrar e brincar. No aqui abordado, percebemos a Festa do Cauim como o ápice para o aprendizado coletivo das crianças e dos jovens, onde se mostram concentrados nos aspetos musicais e na cadeia intersemiótica125 da performance ritual. Ao aproximarmo-nos de alusões à expressividade cultural Tupinambá, em particular de suas beberagens e identificar que os Ka'apor conservam ainda hoje traços culturais desse povo, podemos entender que esse fato resulta em parte de processos de transmissão de conhecimento que ocasionaram e ocasionam, que esses elementos perpassem e perdurem de geração em geração e estejam presentes hoje na ritualística Ka'apor. Verificamos que o xamanismo deste povo tem um de seus alicerces na transmissão musical, onde perante indícios específicos do jovem e o transcorrer entre aspirar ser ou ser designado, o neófito é inserido numa formação que, entre outras, o leve a ter domínio nos aspetos musicais da medicina tradicional, para chegar a assumir ,um dia, o lugar de pajé. Se as práticas rituais, a exemplo do xamanismo, se vão desvanecendo, pode muito bem tal situação ser atribuída ao fato da transmissão desses saberes ter cada vez menos facilitadores, menos mestres da cultura xamânica, fato que pode gerar falta de interesse dos mais novos no aprendizado dessas práticas. Sem referências visuais e auditivas do xamanismo, os aspirantes a desenvolver tais saberes ficam limitados ao desinteresse e disponíveis a outros apelos. Margarete Arroyo (2000, p.15), observa as práticas de ensino e aprendizagem de música como “reprodutoras e produtoras de significados, [que lhe] conferem […] um papel de criador de cultura". No caso dos aspetos educativos do contexto musical que aqui abordamos, pensamos a consequência de seus atributos dessa mesma forma, mas não só no sentido da criação como aponta a autora, mas também no sentido da perpetuação cultural. A transmissão e apreensão musical mantem, salvaguarda e protege a cultura no sentido em

125

O aprendizado não é exclusivamente musical abrange também a cadeia intersemiótica do ritual (Menezes Bastos, 1999, p. 214-220). O mesmo autor (2012) sobre os Kamayurá “[…] estabelece a música como um sistema pivot que intermedia, no ritual, as artes verbais (poética, mito) com aquelas plástico-visuais (grafismo, iconografia, sistema de adereços) e com as coreológicas (dança, teatro)” (2012, p.14).

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que ao transmitir, passar, conduzir transferir a memória musical comum ao povo, grupo ou coletivo, a tradição permanece e se fortifica. Assim como Montardo (2009, p. 272) verificou, entre os Guarani, a “música desempenha um papel fundamental na formação da pessoa”. Com base em nossas preposições, postulamos também no mesmo sentido, relativamente à importância da música na formação da pessoa Ka'apor. Referências: ALBUQUERQUE, Maria Betânia Barbosa. Beberagens Tupinambá e Processos Educativos no Brasil Colonial. Revista Cocar v. 4, n. 7, p. 49–62, 2010. Acesso em: 4 abr. 2016. BASTOS, Rafael José de Menezes. Audição do Mundo Apùap II – Conversando com “Animais”, “Espíritos” e outros Seres. Ouvindo o Aparentemente Inaudível. Antropologia em Primeira Mão v. 134, p. 21, 2012. BASTOS, Rafael José de Menezes. Capítulo 4: Sociomusicologias Kamayurá. A Musicológica Kamayurá: Para uma antropologia da comunicação no Alto Xingu. 2a Ed. ed. Florianópolis: Ed. da UFSC, 1999. p. 197–240. BLACKING, John. The role of music amongst the Venda of the Northern Transvaal. Johannesburg: International Library of African Music. 1957 apud MERRIAM, Alan P. Chapter VIII Learning. The Anthropology of Music. 1st. ed. Evanston, Illinois: Northwestern University Press, 1964. p. 145–164. DENSMORE, Frances. Peculiarities in the singing of the American Indians. American Anthropologist 32, p. 651-60.1930 apud MERRIAM, Alan P. Chapter VIII Learning. The Anthropology of Music. 1st. ed. Evanston, Illinois: Northwestern University Press, 1964. p. 145–164. LÓPEZ GARCÉS, Claudia et al. Textos - Exposição “Ka’apor Akaju kawĩ yta muheryha ” “A Festa do cauim do povo Ka’apor". [S.l.]: MPEG. , 2014 INGOLD, T. From transmission of representation to education of attention. Londres e Nova Yorque: Berg Publishers, 2001. apud MEDAETS, Chantal Vitória. Práticas de Transmissão e Aprendizagem no Baixo Tapajós. n. ANPEd, 2011. INGOLD, Tim. O Dédalo e o Labirinto: Caminhar, Imaginar e Educar a Atenção. Horizontes Antropológicos v. ano 21, n. 44, p. 99, 2015. Acesso em: 22 mar. 2016. MARGARETE ARROYO. Um olhar antropológico sobre práticas de ensino e aprendizagem musical. Revista da ABEM v. 8, n. 5, p. 13–20, 2000. MEDAETS, Chantal. “Tu Garante?” Reflexões Sobre a Infância e as Práticas de Transmissão e Aprendizagem na Região do Baixo-Tapajós. XI Congresso Luso Afro Brasileiro de Ciências Sociais n. UFBA, p. 15, 2011. Acesso em: 22 mar. 2016.

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MEDAETS, Chantal Vitória. Práticas de Transmissão e Aprendizagem no Baixo Tapajós: Contribuições de Um Estudo Etnográfico para Educação do Campo na Amazônia. 34a.Reunião anual da ANPEd: Educação e Justiça Social. Natal. n. ANPEd , 2011. MERRIAM, Alan P. Chapter VIII Learning. The Anthropology of Music. 1st. ed. Evanston, Illinois: Northwestern University Press, 1964. p. 145–164. MONTARDO, Deise Lucy Oliveira. Através do “Mbaraka”: música, dança e xamanismo Guarani. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2009. P. 304 NETTL, Bruno. Ethnomusicology and the teaching of world music. In: LEES, Heath. Music education: sharing musics of the world. Seoul: ISME, 1992. apud QUEIROZ, Luis Ricardo Silva. CAPÍTULO 5 Transmissão musical nos Ternos de Catopês. Performance musical nos ternos de catopês de Montes Claros. Salvador: UFBA, 2005. QUEIROZ, Luis Ricardo Silva. CAPÍTULO 5 Transmissão musical nos Ternos de Catopês. Performance musical nos ternos de catopês de Montes Claros. Salvador: UFBA, 2005. Tese v. p. 122–134. QUEIROZ, Luis Ricardo Silva. Educação musical e cultura: singularidade e pluralidade cultural no ensino e aprendizagem da música. Revista da ABEM v. 12, n. 10, 2014. RIBEIRO, Darcy; NEPOMUCENO, E. Meus índios, minha gente. Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro, 2010. 106 p. 80. SEVERIANO, Rafael. Música indígena e processos de educação: saberes musicais da sociedade Tupinambá na Amazônia do Brasil Colonial. Anais do 3o Simpósio Internacional de Música na Amazônia. Manaus – Amazonas: Editora da Universidade Federal do Amazonas, EDUA, 2014. Pp. 132–140.

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Os Tupinambá no Brasil colonial: saber-fazer instrumentos musicais. Rafael Severiano UFPA – [email protected] Liliam Barros UFPA – [email protected] Resumo: Neste texto, pretendemos apresentar e discutir aspectos da confecção e uso de alguns dos instrumentos musicais dos Tupinambá no Brasil colonial descritos em fontes históricas. Duarte (2014) fala sobre um saber-fazer instrumentos musicas nas sociedades indígenas. Assumindo tal perspectiva, a pergunta que guiou este texto foi: como seriam os aspectos desse saber-fazer instrumentos musicais entre os Tupinambá? O objetivo geral é o de investigar e descrever o saber-fazer instrumentos musicais entre os Tupinambá no Brasil colonial, a partir de fontes históricas. Realizamos diálogos com outros estudos etnomusicológicos sobre outras sociedades indígenas, a fim de enriquecer a discussão. As conclusões evidenciam que, entre os Tupinambá, a transmissão dos conhecimentos necessários à confecção dos instrumentos musicais era transmitida dos mais velhos aos mais novos, processo iniciado ainda na infância. Palavras-chave: Tupinambá. Instrumentos musicais. Saber-fazer.

1. Introdução Entre as sociedades indígenas das terras baixas da América do Sul (TBAS), os saberes musicais, estariam para além dos sons, envolveriam também conhecimentos para a confecção dos instrumentos musicais. Rodrigues aponta que fazer música, cantar, tocar instrumentos musicais, assim como confeccioná-los, são processos aprendidos dentro de um grupo social e cultural, daí a compreensão de que podemos entender os processos de ensino-aprendizagem envolvidos na confecção de instrumentos musicais (2015, p. 174).

Duarte (2014), ao tratar do conhecimento indígena para a confecção de instrumentos musicais, fala de um “saber-fazer” (ibid., p. 41), que seria transmitido de geração para geração, por um longo processo de aprendizado que se inicia bem cedo, ainda durante a infância. As fontes históricas sobre os Tupinambá apontam como os diversos saberes eram transmitidos pelas gerações mais velhas às gerações mais novas, processo iniciado ainda na infância e que se estendia até a vida adulta. De acordo com Fernandes, os adultos envolviam os mais jovens em “suas atividades ou estimulavam a reprodução de situações análogas entre as crianças, promovendo dessa forma sua iniciação antecipada nas atitudes, nos comportamentos e nos 273

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valores incorporados à herança sociocultural” (1976, p.73). Segundo Fernandes, “o pai se tornava o modêlo do filho, e seu mestre por excelência adestrando-o e preparando-o para a vida de adulto” (1989, p. 227). E, “como os pais em relação aos filhos, as mães tornavamse ao mesmo tempo mestras e modelos das filhas” (idem). Abbeville relatou que os Tupinambá “são muito engenhosos e ativos na fabricação de tudo o que precisam para a caça, a pesca ou a guerra. [...] sabem fazer os instrumentos de que se servem habitualmente” (ABBEVILLE apud FERNANDES, 2009, p.68). Podemos supor que os instrumentos musicais estariam contemplados nesta fabricação que Abbeville fala (idem). Assumindo que haveria um saber-fazer instrumentos musicais entre os Tupinambá, a pergunta que norteia este texto é sobre como seriam os aspectos de tal saber-fazer. O objetivo geral deste texto é investigar e descrever o saber-fazer instrumentos musicais entre os Tupinambá no Brasil colonial. 2. Os instrumentos musicais O maracá, instrumento musical classificado como idiofone, era fabricado do fruto de uma árvore, com tamanho e forma a de um ovo de avestruz, ao qual furavam, esvaziavam e colocavam dentro pedrinhas, grão de milho ou semelhantes, atravessando-o pelo centro com um pau (LÉRY, 1961). Eram ornamentados com pinturas, penas, plumas e outros adereços (idem). Segundo Duarte (2014), o maracá – chocalho globular – é encontrado em quase todas as sociedades indígenas das TBAS, com formatos e funções que variam de acordo do grupo. Soma-se a esses formatos e funções diversas variações de nome. Os materiais utilizados na confecção do mbaraka,126 “chocalho de mãos” Guarani, é semelhante ao utilizado pelos Tupinambá: “é feito de porongo (lagenaria) com sementes iva’ü (preta, de pequenas dimensões) dentro e com cabo de madeira” (MONTARDO, 2002, p. 168 e 169).

126

Entre os grupos Guarani, mbaraka pode ser utilizado para designar outros instrumentos musicais (MONTARDO, op. cit.).

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Figura 1: Maracá tupinambá

Fonte: STADEN, 1930, p. 153. Thévet (1978 [1557]) descreve uma árvore chamada cohyne (Crescentia

cujeste).

Era com o fruto desta árvore (fig. 2) que os Tupinambá confeccionavam o maracá. Figura 2: Árvore cohyne

Fonte: THÉVET, 1558, p. 105.

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Figura 3: Crescentia cujeste. Família Bignoniaceae

Fonte: Imagem da internet.127 O maracá era utilizado em diversos contextos sociais, era executado por um só indivíduo e também por diversos indivíduos em grandes ajuntamentos; em eventos que antecediam (fig. 4)128 e precediam as guerras, inclusive durante estas; nas cerimônias que envolviam o preparo dos prisioneiros para o ritual antropofágico e nos eventos que envolviam este ritual; enfim, nos momentos de cantos e/ou dança, havia a execução do maracá. Somente os homens podiam executá-los, e cada indivíduo possuía o seu. As fontes não relatam a partir de qual idade era permitido aos homens portar e executar o maracá. Acreditamos que seria somente após o casamento, pois era só após este marco que o homem de fato era considerado um adulto, isto a partir dos 25 anos, aproximadamente. O maracá possuía forte ligação com o mundo sobrenatural: através dele os espíritos dos ancestrais e divindades comunicavam aos xamãs profecias sobre de diversos acontecimentos. Era através do sopro do petum (fig. 4)129 dos grandes pajés que os maracás recebiam este caráter profético.

127

www.plantsofasia.com/index/crescentia_cujete/0-573 Cerimônia que precedia as expedições guerreiras relatadas por Léry (op. cit.) e Staden (op. cit.). 129 Há três indivíduos ao centro. Os dois das extremidades estão soprando petum. 128

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Figura 4: Pajés e guerreiros tupinambá

/Fonte: DE BRY apud MÉTRAUX, op. cit., p. 86. Izikowitz (1935) menciona o caráter sagrado do maracá, apontando como os Tupinambá tinham esse instrumento como refúgio de um espírito, e como acreditavam que o seu som era a voz de um espírito. Segundo Izikowitz, o maracá não era sagrado até a aplicação de um medicamento (idem), o petum, soprado pelos grandes pajés. Para Veiga (2004), os cronistas consideraram, confusamente, que os Tupinambás seriam um povo idólatra, por acreditarem que cultuava o maracá como um ídolo. Segundo Veiga (op. cit.), o caráter sagrado do instrumento não pode ser negado. Entretanto, não se pode confundir essa virtude com culto (idem). Figura 5: Chocalho de cabaça Tembé, Tupi-guarani

Fonte: IZIKOWITZ, op. cit., p. 102.

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O uaí é descrito nas fontes como guizo ou chocalho de pés. Era confeccionado a partir do fruto de determinada árvore, fruto este semelhante a uma castanha d’água. Esvaziavam os frutos, os preenchiam com pequenas pedras ou grãos, e uniam diversos deles a um fio de algodão que era, então, atado aos tornozelos. O som desse instrumento, segundo os cronistas, era semelhante a sinos. Figura 6: Confecção de uaí

Fonte: THÉVET, 1558, p. 66v. Entre os Kamayurá, o idiofone yaku’iakãmit`y é semelhante ao uaí Tupinambá: um chocalho em corda. O yaku’iakãmit`y é confeccionado com castanhas de pequi em forma de terço (MENEZES BASTOS, 1999). Figura 7: Yaku’iakãmit`y, Chocalho de pés kamayurá

Fonte: MENEZES BASTOS, 1999, p. 165. 278

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Para Veiga (op. cit.), o uaí, em certas cerimônias, estabeleceria comunicação com o mundo sobrenatural. Segundo Izikowitz (op. cit.), os chocalhos de tinir [jingle rattles], que são confeccionados a partir de conchas de frutas, são mais comuns na América do Sul, em especial no rio Amazonas. Esses chocalhos são confeccionados a partir dos frutos de uma árvore chamada thevetia (idem). Izikowitz (op. cit.) aponta que tais chocalhos também ocorrem na parte oriental do Brasil e na costa, entre os Tupinambá. Figura 8: Jingle rattles of fruit shell. Etnia Parintintin

Fonte: IZIKOWITZ, op. cit., p. 51.

É bem provável que o uaí fosse confeccionado com os frutos da thevetia, ou árvore da mesma família. A imagem de Thévet (op. cit., loc. cit.) permite essa suposição, pois a árvore da imagem é semelhante à thevetia. E há ainda um outro fato: os frutos da árvore de onde se confeccionavam o uaí eram venenosos, como os da thevetia.

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Figura 9: Thevetia peruviana. Família das apocynaceae

Fonte: Imagem da internet.130 O matapu era uma grande concha, com uma boca, que os Tupinambá perfuravam e queimavam no ápice, e que soava mais alto do que uma buzina (SAMPAIO apud VEIGA, op. cit.). Figura 10: Cassis tuberosa

Fonte: Imagem da internet.131

130

http://www.amigadasflores.blogspot.com.br/2008_05_15_archive.html

131 www.gastropods.com

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É provável que o matapu tupinambá fosse um zunidor, pois o fato dele ser usado no pescoço sugere que fosse preso por uma corda, permitindo assim que fosse girado produzindo esse som tão forte quanto uma buzina. Entre os Mehinako, o zunidor matapu é um dos espíritos-donos das plantações, o qual é alvo de importantes rituais de três dias (DUARTE, op. cit., nosso grifo). Entre os Wauja, a família das flautas sagradas inclui um zunidor matapu (PIEDADE, 2004, nosso grifo). Observamos o nome do zunidor mehinaki e wauja, semelhante ao matapu relatado por Staden (op. cit.). Assim, não seria surpreendente se o matapu tupinambá fosse realmente um zunidor, assim como o matapu dos Wauja e dos Mehinako. 3. O saber-fazer instrumentos musicais Na figura 2 é possível identificar três indivíduos: um homem colhendo os frutos, uma criança auxiliando este homem, e uma mulher realizando uma etapa diferente com o fruto, provavelmente preparando-o para a confecção do maracá. Entre os Araweté, o aray e o fumo são os principais emblemas do xamã (VIVEIROS DE CASTRO, 1986). Segundo Viveiros de Castro (ibid.), esse instrumento corresponderia ao maracá dos Tupinambá. O processo de confecção da estrutura interna do aray é realizado pelas mulheres e o processo de acabamento pelos homens (idem). No caso dos Tupinambá, talvez houvesse trabalhos femininos e masculinos na confecção do maracá. A imagem sugere dois processos, o homem colhendo e a mulher realizando outra atividade com o fruto. É possível dizer ainda que a criança está auxiliando o homem, provavelmente seu pai, na colheita dos frutos para posterior confecção do maracá. Na figura 6, é possível identificar três indivíduos: um adulto, portando um maracá e com uaí nas pernas; um segundo adulto unindo os frutos da árvore em uma linha, provavelmente de algodão; o terceiro indivíduo, nitidamente uma criança do sexo masculino, está auxiliando o segundo adulto na confecção do instrumento. A criança aparenta estar com os braços flexionados segurando um uaí parcialmente confeccionado. A criança, nas imagens 2 e 6, seria um Kunumy, entre sete e quinze anos, aproximadamente, pois era nesta fase que os indivíduos do sexo masculino acompanhavam os pais, aprendendo os conhecimentos necessários à vida social. 281

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4. Conclusão As análises aqui feitas demonstrariam um “saber-fazer” entre os Tupinambá: a transmissão dos conhecimentos necessários à confecção dos instrumentos musicais pelos mais velhos aos mais novos, transmissão iniciada na infância, assim como proposto por Duarte (op. cit., loc. cit.), Não compreendi este parágrafo. Soa-me truncado. Ao falar da importância dos objetos musicais dos Apinayé, bem como da transmissão do conhecimento em relação à sua confecção de como confeccioná-los, Rodrigues aponta de que modo estes artefatos “fazem parte da manutenção social e sobrenatural e do fortalecimento cultural deste povo” (op. cit., p. 194). A partir da leitura das fontes sobre os Tupinambá que revelam alguns aspectos do saber-fazer os instrumentos musicais, fica claro que entre Apinayé (RODRIGUES, op. cit., loc. cit.), assim como entre os Tupinambá os instrumentos musicais faziam parte da manutenção social e sobrenatural, bem como do fortalecimento cultural deste povo. Referências DALLANHOL, Kátia Maria Bianchini. Jeroky e Jerojy: por uma antropologia da música entre os Mbyá-Guarani do Morro dos Cavalos. 153f. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social). Departamento de Antropologia, Universidade Federal de Santa Cantaria, Florianópolis, 2002. DUARTE, Edir Lobato. Instrumentos musicais indígenas: a arte e a coleção etnográfica Curt Nimuendaju do Museu Paraense Emílio Goeldi. Belém: Fundação Carlos Gomes: Museu Paraense Emílio Goeldi: Imprensa Oficial do Estado, 2014. FERNANDES, Florestan. A organização dos Tupinambá. São Paulo: HUICITEC, 1989. . Aspectos da educação na sociedade Tupinambá. In: SCHADEN, Egon (Org.). Leituras de etnologia brasileira. São Paulo: Companhia editorial nacional, 1976. p. 63-86. IZIKOWITZ, Karl Gustave. Musical and other sound instruments of the South America Indians. Gotenburgo: Elander Boktryckeri Aktiebolag, 1935. LÉRY, Jean. Viagem à terra do Brasil. Tradução integral e notas de Sérgio Milliet segundo a edição de Paul Gaffárel, com o Colóquio na língua brasílica e notas tupinológicas de Plínio Ayrosa. Biblioteca Do Exército - Editora, 1961. MENEZES BASTOS, Rafael José de. A musicológica Kamayurá: para uma antropologia da comunicação no Alto Xingú. 2ª ed. Florianópolis: UFSC, 1999. MÉTRAUX, Alfred. A religião dos Tupinambás. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1979. 282

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MONTARDO, Deise Lucy Oliveira. Através do mbaraka: música, dança e xamanismo Guarani. 277f. Tese (Doutorado em Antropologia Social) Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002. PIEDADE, Acácio Tadeu de Camargo. O canto do kawoká: música, cosmologia e filosofia entre os Wauja do alto Xingu. 254f. Tese (Doutorado). Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade Federal de Santa Cantarina, Santa Catarina, 2004. RODRIGUES, Walace. O processo de ensino-aprendizagem Apinayé através da confecção de seus instrumentos musicais. 240f. Tese (Doutorado em Humanidades). Faculdade de Ciências Humanas, Universidade de Leiden, Leiden, Holanda, 2015. STADEN, Hans. Viagem ao Brasil. Versão do texto de Marpurgo de 1557 por Alberto Löforen. Revista e anotada por Theodoro Sampaio. Rio de Janeiro: Officina Industrial Graphica, 1930. STEIN, Marília Raquel Albornoz. Kyringüé mboraí: os cantos das crianças e a cosmosônica Mbyá-Guarani. Tese (Doutorado em Música). 309f. Programa de Pós-Graduação em Música, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2009. THÉVET, André. Les singularitez de la France antarctique. Paris: Chez les Heritiers de Maurice de la Porte, 1558. . As singularidades da França antártica. Tradução de Eugênio Amado. Belo Horizonte: Itatiaia, 1978. VEIGA, Manuel Vicente Ribeiro. Toward a Brazilian Ethnomusicology: Amerindian phases. University of California, Los Angeles. In: BLANCO, Pablo Sotuyo (org.) et. al. Por uma etnomusicologia brasileira: festschrift Manuel Veiga. Universidade Federal da Bahia. Programa de Pós-Graduação em Música. Bahia, 2004. VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Araweté: os deuses canibais. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1986.

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SESSÃO 4 Coordenação: Jucélia Henderson

A engenharia de som e a autoria da obra fonográfica em música popular. Ricardo Smith UFPA- [email protected] Sonia Chada [email protected]

Resumo: O presente artigo problematiza questões a respeito da autoria e de classificação do fonograma como uma forma autônoma de expressão musical, levando em conta a atuação dos procedimentos da engenharia de som e a maneira como os mesmos contribuem para o resultado estético do produto em questão. Palavras-chave: Engenharia de som. Produto fonográfico. Música popular.

1. A Arte da Gravação A motivação inicial deste artigo partiu da reflexão do autor acerca de suas atividades como compositor, músico e produtor musical em estúdio de gravação; observando as complexas relações entre essas funções quanto ao resultado final da obra fonográfica. Entende-se por fonograma toda fixação de sons de uma execução ou interpretação ou de outros sons, de ou de uma representação de sons que não seja uma fixação incluída em uma obra audiovisual (cf.inciso IX do art. 5º da Lei 9.610/98 – Lei Autoral). Este projeto tem como propósito, observar a atuação da “engenharia de som”, termo referido aqui, a técnica aplicada nos métodos de gravação, edição e manipulação do som, em relação à produção musical da indústria “fonográfica”, destinada aos grandes meios de comunicação. Para um melhor entendimento do assunto em questão, precisamos primeiramente compreender a “obra” fonográfica como uma expressão de arte autônoma e não uma mera reprodução (cópia) de uma performance musical: A partir do final do século XIX, a invenção e o desenvolvimento de novos meios e instrumentos de reprodução, transmissão e produção de sons passam a alterar

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/ Belém – 2016 Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares. profundamente a percepção sonora (incluindo-se a musical), que desde então deixa de estar intrinsecamente ligada ao aqui-e-agora dos eventos sonoros. Estas grandes transformações – tanto tecnológicas quanto perceptivas – podem ser unificadas através de uma característica comum: a escuta mediada por altofalantes. (FREIRE, 2004, p.46).

Vários autores se manifestaram quanto a difusão da música por meio de aparelhos. Pierre Schaeffer discorre amplamente sobre o assunto, declarando que essa reprodução causa distorções e mutilações na maneira como os sons são percebidos, ficando muito aquém da manifestação original, afirmando que “é impossível ao cinema e ao rádio, não mudar alguma coisa no objeto que se incumbem não só de imitar, mas de transmitir”.(SCHAEFFER,

2010,p.63).

Walter

Benjamin

(1955),

contesta

a

reprodutibilidade da obra de arte em função da sua autenticidade, a ausência do elemento “aqui e agora” da obra de arte, a destruição de sua “aura”, uma figura singular, composta de elementos espaciais e temporais. O fato da gravação musical não ser aceita como arte para alguns autores, devido a sua incapacidade de reproduzir todas as nuances de uma performance ao vivo, pode nos levar a conclusão de que não seria essa a cópia, a repetição da prática musical tradicional, sua função, e sim, se fazer valer como instrumento de uma expressão totalmente nova. Essa técnica, traz consigo todo o tipo de deformações e limitações. Não se conseguiu ainda extrair dela nem possibilidade nem forma, tudo o que ela parecia prometer revela-se decepcionante: ela deveria renovar tudo; só é capaz de uma imitação lamentável. (SCHAEFFER, 2010, p.53).

É claro que essa renovação, citada por Schaeffer, chegou, na forma de sua música concreta, através de seus conceitos de acusmática1, e escuta reduzida. Através do conhecimento dessas tecnologias (engenharia áudio visual)

foi

permitido a consolidação do rádio e do cinema como os grandes meios de comunicação, a disseminação da “indústria cultural”, transformando a arte em produto, sujeita às leis de mercado (ADORNO, HORKHEIMER, 1995, p.63), preparando o terreno para o que veio a se tornar a “música popular”. Vale ressaltar também, a diferença entre música ao vivo e gravada (fonograma). A primeira acontece no tempo e no espaço a partir da interação entre um músico, seu instrumento, o ambiente e o ouvinte, uma vez que, o gestual, a intenção do movimento, se faz presente na performance ao vivo. A segunda é a execução através do alto-falante de uma “imagem sonora” capturada (gravada) a partir de uma execução ao vivo, logo, a arte da produção fonográfica consiste justamente nos processos de captura e 285

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manipulação do som, resultando no que se pode chamar de obra fonográfica. Para Macedo (2007), os processos de produção em estúdio sofreram diversas modificações ao longo da história da indústria fonográfica, estando intimamente ligado ao desenvolvimento das tecnologias de produção e reprodução do som, um exemplo disso são os primeiros gravadores de som que não permitiam muita interferência da técnica em relação ao material gravado. Com o surgimento da fita magnética, o processo de gravação foi se tornando cada vez mais dependente de operações realizadas após o registro do som. Em primeiro lugar, permitiu que se fizessem edições de gravações realizadas em diferentes momentos, selecionando os melhores trechos de cada take, para montar a versão definitiva. O próximo passo foi dado pelo surgimento do overdub – ou overdubbing –, técnica que possibilita “gravar um novo material, ao mesmo tempo que se ouve (sem apagar) o material já gravado. Em seguida vieram os gravadores multipistas, ou multitrack, que permitem que cada instrumento seja gravado independentemente. Esta técnica ofereceu uma grande flexibilidade ao processo de produção, possibilitando que várias decisões, antes tomadas durante a gravação, pudessem ser adiadas para outras fases do processo: a edição, a mixagem e a masterização. (MACEDO, 2007, p. 11)

Nesta óptica, o registro fonográfico existe em virtude da tecnologia. O som que se ouve saindo dos alto-falantes é um ponto de vista, um “enquadramento” proporcionado pelo microfone, em relação à execução que deu origem a gravação. Partindo desse material pode-se alterar seus parâmetros sonoros. Cabe à engenharia de som definir o aspecto, a sonoridade geral da obra através de procedimentos como: edição; corte, seleção e até ajustes de tempo e afinação das partes gravadas com o objetivo de montar uma versão definitiva, equalização; realce e/ou supressão de determinadas frequências, compressão; controle da dinâmica, reverberação; ambiência. Interessante observar que de alguma maneira essa manipulação do som gravado, se assemelha as práticas de um compositor de música concreta, ou eletroacústica. Tanto a arte da composição quanto a da engenharia de som estão sujeitas a criatividade e a reflexões analíticas em suas respectivas funções. Se à primeira cabe a elaboração das melodias, ritmo, harmonia, poema, ou seja, do “conteúdo” apresentado no referido produto, à segunda compete a organização, o controle de cada elemento da peça musical, a equalização ideal dos instrumentos, elegendo hierarquias de timbre, de intensidade, até de espaço, dentro da limitada “tela” bidimensional proporcionada pelos alto-falantes. É da engenharia de som, a responsabilidade da “impressão estética” do produto fonográfico, que transmitirá a marca sonora da obra logo nos primeiros momentos 286

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de audição, despertando o interesse do ouvinte (um consumidor em potencial), agregando o sentido do conteúdo. Entendendo o produto fonográfico como obra, na qual, muitos de seus atributos advêm da manipulação da engenharia de som, o uso dessas técnicas torna-se um instrumento pelo qual se pode interagir com a imagem sonora de uma composição, cabe a reflexão quanto à possibilidade daquele que se vale desse instrumento, seja produtor e/ou engenheiro de som, assumir o status de interprete em relação a obra. Ainda, cabe expor que a manipulação do material sonoro sugerindo o caráter de seu conteúdo, lhe atribuindo até “qualidade”, é o objetivo da obra fonográfica, e, ocorre em um nível tão abrangente, por parte da engenharia de som, que à esta poderia se creditar a coautoria da obra em questão. 2. Autoria Se faz de grande relevância, visto que, a abordagem principal questiona os conceitos em relação à própria definição de obra fonográfica, incluindo sua dissociação, quanto à performance ao vivo. (...) já não pode haver mais dúvidas de que as pré-condições para o desenvolvimento de um gênero artístico independente de igual estatura estão presentes aqui – um gênero que irá muito além de uma “reprodução” mais ou menos perfeita de conquistas artísticas anteriores (...). (WEILL apud IAZZETA, 2009, p. 18)

Gravação e concerto são coisas diferentes, que jamais devem se misturar. (PFEIFFER apud KATZ, 2005, p. 07). A reflexão sobre a autoria da obra fonográfica conduz diretamente à questão da propriedade intelectual da obra. Uma vez se entendendo que a engenharia de som, como atividade artística, chega a níveis comparados aos de autoria e interpretação em relação à obra fonográfica. A primeira grande mudança trazida pela gravação elétrica foi que “a máquina de gravação podia agora ser retirada do mesmo espaço ocupado pelos executantes, criando assim o design do estúdio de gravação moderno, com sua sala de controle separada, que se tornou o domínio do engenheiro”. Mas o principal foi que “não demorou muito para que se tornasse possível usar vários microfones e mixá-los durante a gravação, compensando assim, como então se dizia, os desequilíbrios.” Assim surgiu “a ideia de reprodução do som como criação de uma imagem, uma forma de projeção como o cinema: em outras palavras, uma forma de ilusão”. (CHANAN. 1995, p. 26).

Ainda sobre os procedimentos pertinentes à engenharia de som: 287

/ Belém – 2016 Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares. Os procedimentos técnicos de gravação propiciaram o surgimento de uma nova modalidade de reprodução musical, que poderia ser caracterizada como transmissão (ou tradição) aural. Nela não só os ouvintes passam a ter um contato direto e quase exclusivo com gravações, como também as obras musicais passam a portar uma arca sonora específica, definida em estúdio. Nessa situação, o trabalho de intérpretes, arranjadores e técnicos é mais valorizado e tem mais visibilidade que o do próprio compositor. (FREIRE, 2004, p. 17).

Os procedimentos da engenharia de som foram se transformando com a evolução das tecnologias de gravação. Proporcionando uma intervenção cada vez mais radical no processamento dos sinais gravados. A adoção de gravadores com fita magnética pelos estúdios de gravação no final dos anos 1940 forneceu novas ferramentas para a “construção” de uma performance musical. Com a fita abriram-se as possibilidades de corte e montagem de trechos de diferentes execuções de uma mesma obra, procedimentos que passaram a contribuir para a construção de uma execução musical perfeita. Segundo Glenn Gould, “a grande maioria das gravações atuais consiste em uma coleção de segmentos de fita com durações variáveis a partir de um vigésimo de segundo”. Esta prática altera substancialmente a execução musical voltada para a gravação, que passa a se concentrar não mais na obra completa, e sim em seus trechos. Mas mudanças significativas na prática instrumental já podem ser detectadas mesmo antes da utilização de gravadores com fitas. (FREIRE, 2004, p 86)

Cabe àqueles artistas empenhados na arte de combinar os sons - que invariavelmente se fazem valer de meios fonográficos em virtude da divulgação de suas produções, e que por ventura não se depararam conscientemente com as questões relativas à engenharia de som- reflexões no tocante à esses procedimentos em relação ao resultado estético final de seu trabalho. Já a partir do final da década de 1920 estas questões estão presentes dentro das escolas de música; começa-se também a pensar em uma música "radiofônica", que alimente diretamente o aparelho emissor (...). (FREIRE, 2004, p. 92) Compositores descobriram novas fontes de inspiração musical através das gravações; eles descobriram o drama timbrístico, possibilidades rítmicas, e contrapontística, passando a tratar o som gravado como matéria-prima e os equipamentos de reprodução como instrumentos musicais; e através de gravações, alcançaram ouvintes inacessíveis. Finalmente, a própria noção de beleza musical e do que constitui uma vida musical se alteraram com a presença de gravação. (KATZ, 2005, p.53).

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Universo de si: o canto e a fotografia como fontes de identidade. Yvana Crizanto Universidade Federal do Pará - [email protected]

Resumo: Os sons e imagens do próprio corpo, mesmo aquelas já esquecidas, fazem parte do que somos. Um passeio pela própria identidade é a Experimentação de Canto e Fotografia – Universo de Si, um encontro e os seus diálogos com o ser. Como você vê a si mesmo? O que canta no chuveiro? Como fotografa? Como é seu café da manhã? Como fazer fotografia sem uma câmera? Como é a música para você? De onde vem a luz? Trata-se de uma experiência em construção por meio de oficina experimental realizada em espaço de arte independente de Belém - o Casulo Cultural - reunindo fotógrafos, jornalistas, educadores e artistas interessados na busca de possibilidades expressivas que habitam entre a imagem e o som. Os encontros ocorrem semanalmente, nos meses de abril e maio deste ano, para uma vivência com o canto e fotografia sob a perspectiva da identidade. Temas como paisagens sonoras e autorretrato, além de técnicas de canto e fotografia, são utilizados em dinâmicas, conversas teóricas e práticas das duas expressões de forma a motivar um diálogo com a individualidade. Durante o processo surgem poesias, músicas, imagens, gravações de áudio que, de alguma forma, representam a identidade de cada um, como forma de compartilhar o seu ser com os outros. Um mostra criativa está prevista para o final da experimentação, para trocas com o público. Palavras-chave: Canto. Fotografia. Identidade.

Objetivos Esta proposta tem como objetivo geral uma reflexão sobre a própria identidade, a partir das expressões do canto e da fotografia. Como objetivos específicos promover a difusão da criação artística como forma de reflexão sobre identidade, colocar em pauta o saber teórico produzido de forma independente como forma de contribuição à produção acadêmica nas universidades e promover processos criativos livres. Metodologia A oficina experimental realiza encontros semanais, com foco em dinâmicas e conceitos das expressões em estudo, o canto e a fotografia. Trata-se de uma vivência coletiva abordando produções individuais, resultados de reflexões acerca da identidade. Para a experimentação foram convidadas a artista visual e professora de Artes Visuais Renata Aguiar, e a professora de canto Angela Rika, como forma de abordar técnicas de canto e fotografia junto às dinâmicas de descoberta de identidade.

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O plano de trabalho: 2.1. Reflexão/Provocação Trata-se da fase de reconhecimento de si mesmo e do outro, por meio de dinâmicas de contato, de gravações de áudio e experimentações de imagem. Cantar e ouvir a si mesmo, se auto-fotografar, relatar experiências e impactos na própria perspectiva. Para esta fase foram previstos: dinâmicas de apresentação, diálogo sobre “Paisagem Sonora” e “A fotografia como revelação de si mesmo (Autoretrato)”, dinâmicas sobre “Luz”, “A voz executa o trabalho do Ser Humano - Diagnóstico de tipos de vozes”, “Cantar com voz, corpo e alma”, exercícios de respiração diafragmática. De prática individual houve gravações de paisagens sonoras e do próprio canto, e produção de autorretrato. 2.2 Produção artística Vivências dinâmicas são seguidas de momentos de livre criação artística do canto e da imagem, em momentos individuais e coletivos, de modo a construir juntos a mostra criativa que encerra a experimentação com pesquisa de repertório, construção de ideias, curadoria de imagens. 2. 3. Compartilhamento Uma mostra criativa será realizada ao final da oficina de experimentação de modo a compartilhar o processo criativo e os resultados. Para isso será realizada uma performance do grupo, assim como uma exibição multissensorial de todo o material produzido durante a vivência, em canto e fotografia. A música, o corpo, a imagem: elementos de identidade Os sons e imagens do próprio corpo, mesmo aquelas já esquecidas, fazem parte do que somos. Um passeio pela própria identidade é a Experimentação de Canto e Fotografia, uma experiência em andamento, que propõe um encontro e os seus diálogos com o ser, o universo de si mesmo. Voltado para a descoberta da voz e do olhar, a iniciativa se propõe a utilizar de recursos técnicos, mas também intuitivos e de visão subjetiva. Isso tem movido a proponente nas suas vivências mais recentes com a música e a fotografia, mas também em diálogos mais remotos, como com a infância em que cantava e registrava o mundo sem 291

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compromissos estéticos. A oficina é uma aventura de expressão, que está sendo registrada em áudios e imagens, para uma posterior experiência sensorial. A experimentação do som x imagem é uma proposta alinhada ao nosso tempo em que as culturas digitais superlativam a imagem, e possibilitam uma onda de informações constantes e instantâneas. Com o aparato de dispositivos móveis que mantem a todos conectados sempre, o indivíduo é levado a confrontar-se cada vez menos com a voz, com o contato direto, com os sons espalhados no ambiente, com a luz que não se vê de olhos abertos. Assim, a experimentação coloca em paralelos o som e imagem, duas expressões de naturezas diversas: A audição não é como a visão. O que é visto pode ser abolido pelas pálpebras, pode ser impedido pelo paravento ou pelo reposteiro, pode se tornar imediatamente inacessível pela muralha. O que é orelha não conhece nem pálpebras, nem paraventos, nem reposteiro, nem muralhas. Indelimitável, dele ninguém pode se proteger. (QUIGNARD, 1996, p. 65.)

3.1. A identidade e o som: multiplicidade e vibração A experiência das relações, do compartilhamento, do enfrentamento, de ver-se como ser complexo integrado apresentam-se nesta proposta como ambiente favorável à expressão individual: um contexto plural e multidisciplinar proporcionado pelo canto e a fotografia. O fato de estar exteriormente “protegido pelas formas sociais (...), não implica que esteja protegido da multiplicidade interior que o cinde intimamente e o impele a voltar ao desvio que representa a identidade com o mundo exterior”. (JUNG, 1961, p. 408.). No próprio corpo e no mundo externo existe o se chama de som. Qualquer coisa que se mova, em nosso mundo, vibra o ar. Caso ela se mova de modo a oscilar mais de dezesseis vezes por segundo esse movimento é ouvido como som. O mundo então está cheio de sons. Ouça. Abertamente atento a tudo que estiver vibrando, ouça. (SCHAFER, 1991, p.124.)

O despertar da voz no corpo e como expressão de si move diversas dinâmicas ao longo da experimentação, como formas de provocar a audição destes sons, reconhecê-los, relacioná-los e observar o impacto que causam na construção da própria identidade e convívio social. Quais seriam os primeiros ruídos e imagens que registramos conscientes e quais emoções trazem consigo. Em seu “pequeno tratado”, Pascoal Quignard (1996) se refere a ”panos” que envolvem antigas vozes apagadas, esquecidas, inaudíveis até para si mesmo: o canto, o som e a fala. 292

/ Belém – 2016 Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares. Nós envolvemos de panos uma nudez sonora extremamente ferida, infantil, que permanece sem expressão no fundo de nós mesmos. (...) Com o auxílio desses panos, do mesmo modo que tentamos subtrair aos ouvidos alheios a maioria dos ruídos do nosso corpo, subtraímos ao nosso próprio ouvido alguns sons e alguns gemidos mais antigos. (QUIGNARD, 1996, p. 9.)

O exercício de respiração, no canto, é um retorno às origens. É despertar para os sons de nós mesmos. A hora marcada, o trânsito, os alertas no celular, os prazos, o frisson da vida moderna, mas também nossos costumes e influências a partir do ambiente que nos circunda, transformam nossa respiração e aquele ritmo inicial. Antes embalada pelo diafragma, transferimos nossa respiração essencialmente para peito, os pulmões, e passamos a respirar na ansiedade, no tempo que não para. É comum ao iniciar exercícios sentir uma tontura, um esforço para retornar à nossa respiração natural. A música que vamos construindo ao longo da vida traz muito de nossas relações, do entorno social e cultural, da mesma forma como habilidades e o gosto musical de uma banda são uma convenção da sua própria sociedade. A música não está sujeita a regras arbitrárias como os jogos: tem muito a fazer com sentimentos humanos e experiências na sociedade, muito frequentemente padrões são gerados pelas explosões surpreendentes de atividade mental inconsciente. Muitos dos processos musicais essenciais, senão todos, estão na constituição do corpo humano e em padrões de interação entre corpos humanos na sociedade. Consequentemente, toda a música é, estrutural e funcionalmente, música popular.132 (BLACKING, 2006, p.25)

A imagem e o som: paisagens sonoras e transdisciplinaridades A sonoridade do ambiente e do próprio corpo cria paisagens. Fechando os olhos é possível perceber sons com outra perspectiva. A oficina experimental está dispondo de dinâmicas que interpõem a percepção do que se vê a partir do que se ouve. Muito dessas técnicas foi inspirado em vivências na Associação Fotoativa, na oficina De Olhos Vendados e no grupo de trabalho Fototaxia, em busca do Elo Perdido, este último voltado para educadores e multiplicadores desse conhecimento. A luz como elemento vital e objeto de estudo propicia leituras e abordagens transversais que potencializam a implementação de práticas pedagógicas transdisciplinares, que contribuem na formação de pessoas mais sensíveis, estimuladas a perceber o meio e que possam buscar soluções aos problemas do cotidiano com criatividade. (SITE FOTOATIVA.ORG, 2016)

132 Tradução

de Yvana Crizanto

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Assim, o desafio de conectar as expressões de canto e fotografia se encontrou na identidade de si, no estado natural do ser humano, ser criativo e potência de energia. Quanto mais eu me envolvo com educação musical, mais percebo a inaturalidade básica das formas de arte existentes, cada uma utilizando um conjunto de receptores sensitivos, com a exclusão de todos os outros. As fantásticas exigências feitas para se alcançar a virtuosidade, em qualquer forma de arte, têm resultado em realizações abstratas, às quais podemos aplicar o tema “inatural”, uma vez que não correspondem à vida, tal como a experimentamos nessa Terra. Beethoven não perdeu a audição, como comumente se supõe – perdeu a visão. São os pintores cujos trabalhos povoam os espaços silenciosos dos museus, que perderam a audição. (SCHAFER, 1991, p.290.)

Em uma infinidade de receptores sensitivos abertos ao artista, porque não se permitir ao “inatural”? Pluralidade. Sinestesia. Quando somos crianças, bem coloca Schafer, arte é vida e vida é arte. Porém, quando essas crianças vão à escola passam a tratar expressões artísticas conhecidas como em porções: música pelas manhãs, e pintura às terças pela tarde. O pensamento aqui então passa a ser arte é arte, vida é vida. Até que ponto estamos limitando possibilidades de sentidos em nós mesmo? Na nossa vida e criação artística? Nossa arte-vida e vida-arte. 4. Resultados parciais 4.1. Primeiro encontro Dinâmicas de apresentação que valorizaram os sentidos da audição e tato. De olhos vendados o grupo contou histórias sobre objetos de afeto e experimentou reconhecer o outro pelo toque. “Sem a fala e a visão, tivemos de tocar o outro, respeitando seus limites”, afirmou o antropólogo Rafael Salles.

Imagem 2 – Dinâmica de reconhecimento do outro pelo tato Fotografia: Yvana Crizanto (2016)

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O encontro tratou, em segundo momento, de paisagens sonoras, construídas a partir de imagens construídas a partir do que se ouve. “Gravei o vendedor de tapioca que passa todos os dias às cinco da tarde, diz Shamara Fragoso, jornalista e fotógrafa. O grupo compôs pinturas utilizando a técnica pincel de luz, a partir do tema “sua paisagem sonora”.

Imagem 3: Pinturas em pincel de luz durante a oficina. Fotografia: Yvana Crizanto (2016)

4.2. Segundo encontro Quem somos? O que faz parte de nós? Como nos vemos no espelho? E como nos veem? Para iniciar nossos diálogos sobre a identidade, o nosso segundo encontro teve como pauta as nossas construções pessoais. Em um diálogo sobre autorretrato, o grupo foi convidado a produzí-lo, individualmente durante a semana, para posteriormente compartilhar com todos. A proposta foi superar limites para mostrar-se: quem sou eu? “Conhecer-se, explorar-se, sair da sua zona de conforto e encontrar o outro, confrontar-se com o inesperado. O incômodo pela exposição de si foi recompensada pela explosão de sensações e autoconhecimento”, afirma a advogada e cantora, Ellen Cruz. Assim, algumas imagens foram produzidas e produzidas e foram objetos de conversas do próximo encontro. Aqui algumas delas:

Imagem 4: Autorretrato de Nathália Lobato (2016) Imagem 5: Autorretrato de Helton Lobão (2016) 295

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4.3. Terceiro encontro Deitados no chão, nos barulhos do próprio corpo, ouvimos e sentimos nossa respiração. Sentindo o diafragma, sentido a barriga subir e descer, em doses profundas de ar. Um retornou às origens do respirar, de quando nascemos e ganhamos um ritmo que toma outras formas ao longo da vida: cada um tem um ritmo só seu ao nascer. Os sons que a criança ouve não nascem no instante do seu nascimento. Muito tempo antes que ela possa ser seu emissor, ela começa obedecendo à sonata materna. (…) A polirritmia física, cardíaca, depois gritante e respiratória, depois esfaimada e chorosa, depois motriz e balbuciante, depois linguística é tanto mais adquirida quanto parece ser espontânea. QUIGNARD, 1999, p.64.

O antes também diz muito de nós mesmos, quando conhecemos o mundo sonoro sem a capacidade de expressão de retorno, sem apreensão ou qualquer retorno verbal. Respirando, o grupo deu o ponto de partida para o conhecimento da própria voz e mais, o ouvir o outro, cantar em conjunto.

Imagem 6: Exercício de respirar e sentir a respiração do outro. Fotografia: Yvana Crizanto (2016)

4.4. Quarto encontro Os participantes foram convidados a contar ao outro, divididos em pares, qual a canção de seu afeto, aquela que traz relações com sentimentos e que fazem parte de si. Dessa forma, o grupo experimentou ouvir na boca do outro o canto de sua canção de afeto. “Eram canções de ninar que cantava para meus filhos, momentos especiais que tenho vivido nos últimos anos”, afirma a professora de Arte, Walquiria Guedes, participante da oficina.

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Imagem 5: Troca de canções de afeto em dinâmica Fotografias: Yvana Crizanto e Angela Rika (2016) No quarto encontro também houve a apresentação de uma composição musical feita pela estudante de graduação em Música, Nathália Lobato, homônimo à oficina experimental: Acho engraçado o homem descobrir outras galáxias/ Sabe que tem vida em marte e pisou na lua/ Mas existe um universo tão imenso a descobrir/ E a distância daqui pra lá/ Basta os olhos fechar/ O universo de si/ O universo de mim/ Um universo/ Ao inverso tentamos nos descobrir/ Mas a reverso é o caminho/ Escrevo em versos sobre esse mundo/ Que como astronauta estou a descobrir/ O universo de si/ O universo de mim/ O universo 5. Considerações finais Este projeto é um convite a perder-se no complexo da própria identidade. Quando se fala da alma humana e seus reflexos no universo concebido pelo que é possível ver pelos raios de luz ou a vibração do ar, depara-se com o complexo e os limites do conhecimento a seu respeito. Também dizem que vivemos no mundo da complexidade e na sociedade do conhecimento, mas raramente essas afirmações são desdobradas e multiplicadas em análise que privilegiem as relações onde, quero crer, se estabelecem a complexidade. Paradoxalmente, quanto mais falamos de complexidade e de conhecimento (pelo menos nos muros da universidade), mais nos fechamos nos escaninhos disciplinares, de época, de linguagem, de autor etc. Dessa maneira, panoramas são reduzidos e a indiferença pelo horizonte impede, inclusive a adequada percepção do território onde se habita. (MEDEIROS, 2012, p. 13)

Dessa forma, o saber acadêmico não deve ser a única referência, sobretudo quando o assunto em pauta é arte. O estudo Universo de si: o canto e a fotografia como fontes de identidade” tem sido linha paralela à experimentação, como forma de contribuição à produção teórica sobre o assunto. Uma iniciativa independente que pretende interações as 297

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mais diversas com as universidades – participação em eventos acadêmicos, publicações, etc. Essas contribuições são mais próximas da área de Etnomusicologia, a qual pretende-se aprofundar conceitos e experimentações no sentido de mergulhar cada vez no universo da própria identidade, a partir do que se ouve e vê. Além de mostra criativa com performance musical-imagética, esta oficina poderá resultar ainda em uma versão compacta, possível de realizar-se em escolas e comunidades, levando a arte e o saber acadêmico à esfera da sociedade, de forma direta e próxima. Todo o processo é compartilhado via internet, aberto ao público, em www.universodesi.wordpress.com Referências: BLACKING, John. Hay musica en el hombre? Edición Española. Madri: Alianza Editorial, 2006. FOTOATIVA.ORG. Disponível em: http://www.fotoativa.org.br/?page_id=3858. Fotoaxia em busca do Elo Perdido. Acesso em: 01 mai. Fotoaxia em busca do Elo Perdido. Veiculado em: 2014. JUNG, Carl Gustav. Memórias, Sonhos e Reflexões. Edição Especial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012. LOBATO, Nathália. Disponível em: https://nathylobato.wordpress.com/. Universo de Si. Acesso em: 01 mai. Universo de Si. Veiculado em: 20 abr 2016. MEDEIROS, Afonso. A arte em seu labirinto. Belém: IAP, 2012. QUIGNARD, Pascal. Ódio à música. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1999. SCHAFER, Murray. Ouvido Pensante. Edição brasileira. São Paulo : Fundação Editora da Unesp, 1991.

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Música Smart: um estudo etnográfico sobre a escuta musical em dispositivos móveis José Ruy Henderson Filho UEPA – [email protected] Resumo: Os avanços tecnológicos têm mudado significativamente as formas como as pessoas ouvem e se relacionam com a música. A partir da criação do fonógrafo, em 1877, por Thomas Edison, quando foi possível, pela primeira vez, apreciar músicas sem estar presente fisicamente no mesmo espaço que os executantes, essa relação vem se modificando drasticamente. Desde os cilindros de cera até o armazenamento virtual de áudio/música, passaram-se muitas outras formas de registro musical, como o disco de vinil, a fita cassete, os CD´s e os leitores de mp3. Nos dias atuais, com a proliferação e popularização dos smartphones, como se dá essa relação? Esta pesquisa visa compreender as mudanças ocasionadas pelo uso de smartphones nas formas como as pessoas ouvem e se relacionam com a música. Palavras-chave: música, tecnocultura, smartphone

1. Introdução Este trabalho apresenta um projeto de pesquisa intitulado “Música Smart: um estudo etnográfico sobre a escuta musical em dispositivos móveis”, que tem como objetivo compreender como esses dispositivos são utilizados no processo de escuta musical de jovens estudantes de música. A pesquisa tem como base os estudos relacionados à Música e Tecnocultura, bem como à Etnografia da Música (SEEGER, 2008). Para Andrew Ross (apud LYSLOFF e GAY 2003, p. 2), tecnocultura “refere-se a comunidades e formas de prática cultural que surgiram em consequência das mudanças na mídia e nas tecnologias da informação, formas essas caracterizadas pela adaptação tecnológica, evasão, subversão ou resistência”. De uma perspectiva etnomusicológica pode-se pensar a tecnocultura como um agente modificador e modelador de práticas musicais contemporâneas. No entanto, Lysloff (2003, p. 238) vai mais além, ao ver a tecnologia “não apenas como a intrusão do hardware científico sobre a experiência ‘autêntica’, mas como um fenômeno cultural que permeia e informa quase todos os aspectos da existência humana – inclusive formas de conhecimento e práticas musicais”. Segundo Caroso (2009), a Etnomusicologia passou a se interessar pela relação música e tecnocultura ainda em 1995, quando a Society for Ethnomusicology (SEM) apresentou, em seu encontro anual, uma pré-conferência com o tema “Music

and

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Technoculture”133. Com os avanços tecnológicos, associados ao aumento significativo e constante das velocidades de acesso à Internet, dados audiovisuais com qualidade tornaram-se possíveis, o que provocou a propagação de práticas musicais em comunidades virtuais. Alguns autores (LANGE 2001; STEPNO 1998; KIBBY 2000; REILY 2003) já vêm discutindo as modificações que ocorrem nas práticas musicais ocasionadas pelos meios virtuais. No entanto, no Brasil, e mais especificamente no Pará, esse é um mundo ainda pouco estudado, mas profícuo à pesquisa etnomusicológica. Desde o final do século XIX, com a criação do primeiro dispositivo de gravação de áudio (o fonógrafo), cada um dos que lhe sucederam vem mudando significativamente os modos de escuta e fazer musical. Com a popularização dos smartphones, que são telefones móveis com diferentes funções integradas, um novo cenário se configura. A cada dia, novos aplicativos são desenvolvidos e disponibilizados aos usuários que buscam tirar proveito de seus recursos, seja para entretenimento, estudo ou trabalho. A música não fica de fora desse cenário. Há no mercado uma quantidade significativa de aplicativos dedicados à área musical, de gravação, de reprodução, de treinamento auditivo, rítmico, de edição de partituras, jogos, entre outros. A função de telefone passou a ser coadjuvante no universo de funções que um dispositivo carrega. Os aplicativos de mensagens instantâneas, que também permitem o envio de áudio, já superam em muito as ligações efetuadas pelo usuário na função telefone. Compreender como o processo de escuta musical ocorre nesse contexto tecnocultural é o interesse central desta pesquisa. A pesquisa encontra-se ainda em fase inical de seu desenvolvimento, sendo apresentado aqui uma exploração inicial do tema e suas perspectivas metodológicas. O texto encontra-se dividido em três partes, sendo a primeira dedicada a um breve panorama sobre a evolução dos dispositivos de gravação e reprodução sonora, desde a criação do fonógrafo até o smartphone. Na sequencia, é apresentado o conceito de “música smart”, termo utilizado para expressar a música que se escuta e se produz em dispositivos móveis. A seguir, são apresentados os percursos metodológicos da pesquisa e, em seguida, as considerações finais, onde são discutidas as possíveis contribuições da pesquisa.

133 Ver

em http://www.ethnomusicology.org/?page=Conf_Past

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2. Do fonógrafo ao smartphone: o ouvinte e sua relação com a música Os avanços tecnológicos têm mudado significativamente as formas como as pessoas ouvem e se relacionam com a música. Desde a criação do fonógrafo, em 1877, por Thomas Edison, quando foi possível, pela primeira vez, ouvir música sem estar presente fisicamente no mesmo espaço em que os executantes estivessem, essa relação vem se modificando drasticamente. Segundo Iazzetta (1997), a partir do fonógrafo, a “música podia ser reproduzida em épocas e contextos totalmente diferentes daquele onde ela fora gravada originalmente, eliminando assim aquilo que chamamos de condição de performance”. Desde os cilindros de cera até o armazenamento virtual de áudio/música, passaram-se muitas outras formas de registro musical, como o disco de vinil, a fita cassete, os CD´s e os leitores de mp3. De acordo com Gomes (2014), ao realizar uma análise cronológica do processo de transformação dos meios de gravação e reprodução sonora desde a invenção do fonógrafo até o MP3, (...) fica evidente o modo como os avanços científicos e tecnológicos impactaram e continuam impactando a música em todos os seus aspectos e dimensões, gerando modelos estéticos e econômicos que são continuamente reconstruídos ao longo do tempo (GOMES, 2014, p. 81).

O desenvolvimento das chamadas tecnologias móveis, destacando-se aqui os smartphones, é um novo estágio desse processo evolutivo. Até durante a era dos discos de vinil, a escuta de gravações musicais se restringia a espaços fixos, que dispunham de toca discos, com pequena possibilidade de deslocamento de um local para outro utilizando-se as vitrolas portáteis. Foi, no entanto, a partir dos toca-fitas portáteis (Walkman), lançados em 1979, que a música passou a acompanhar o ouvinte aonde quer que ele fosse. Desde então, surgiram diferentes tecnologias que foram substituindo a fita cassete. Cinco anos após o lançamento do toca-fitas portátil, surge o primeiro CD-Player portátil (Diskman). Mas foi com o surgimento do formato de compressão digital de áudio, denominado mp3, que a tecnologia móvel pode realmente expandir as possibilidades de escuta musical em movimento, em qualquer lugar. Com o mp3 player, criado em 1998, as mídias físicas como fita cassete e CD foram colocadas em desuso, principalmente na escuta musical móvel.

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Com o mp3, inicialmente criado com a intenção de comprimir o áudio para possibilitar a transmissão pelas redes de dados limitadas em velocidade, e com a redução gradual dos preços dos dispositivos reprodutores, iniciou-se um processo revolucionário na escuta musical. Já em 1999, com o lançamento do primeiro celular com suporte ao formato de áudio mp3, dá-se início ao processo de desenvolvimento de tecnologias móveis, integrando diferentes funções e sendo colocadas à disposição do usuário. Com um celular em mãos, era possível fazer/receber ligações e também ouvir música. Também no final da década de 1990, começam a ser desenvolvidos os primeiros smartphones (telefones inteligentes), e conforme foram evoluindo, em características e funções, cada vez mais a música foi ganhando espaço nesse universo. Com a popularização crescente desses aparelhos entre as diferentes camadas da sociedade, chama-nos atenção o modo como as pessoas vêm fazendo uso dessas tecnologias para ouvir música. É comum presenciarmos cenas do cotidiano em que as pessoas estejam com fones de ouvido: caminhando, em uma viagem de ônibus, de avião, na sala de espera de clínicas e hospitais, na sala de aula, e em muitos outros espaços e momentos. O que essas pessoas escutam? Como escutam? Que tipos de músicas? Qual a função dessa escuta? Estas questões orientam a pesquisa e definem os caminhos metodológicos a serem percorridos. 3. Música Smart Smart é um adjetivo em inglês e cuja tradução para o português significa inteligente ou esperto. O termo vem sendo associado a tudo aquilo que apresenta funções avançadas, geralmente associadas a novas tecnologias e possibilidades de comunicação em rede. Com base neste conceito, podemos encontrar as chamadas smart home, smart car, smart school, entre tantas outras. Mas é o smartphone o conceito com o qual estamos mais familiarizados, pois ele se encontra, cada vez mais presente, em nosso cotidiano. O smartphone apresenta funções integradas em um mesmo aparelho, contemplando computador, reprodutor de mídias, câmera fotográfica e de vídeo, localizador geográfico, jogos, e é claro, o celular. A integração dessas diferentes funções em um único aparelho, aliada ao custo de aquisição cada vez mais acessível à população, constituem motivos que favoreceram a popularização dos smartphones. Diante desse cenário smart, e o trazendo para o universo da música, podemos perceber, em muitas situações, pessoas com seus fones de ouvido conectados a 302

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smartphones. Mas, como é a relação do ouvinte com a música nesse contexto? Esta pesquisa pretende desvendar as formas de ouvir e se relacionar com a música, delimitando a pesquisa inicialmente aos estudantes da graduação em música, especialmente os licenciandos. A pesquisa visa compreender o que esses estudantes escutam e quais os gêneros e as funções dessa escuta. Ou seja, escutam com finalidade de aprendizagem? Como estratégia para obter maior concentração? Como entretenimento? A escuta musical, muitas vezes, pode estar associada à imagem, por meio de vídeos que reproduzem performances musicais, disponíveis em sites de compartilhamento de vídeos ou em aplicativos de dispositivos móveis para compartilhamento/reprodução de vídeos e/ou músicas. O conceito de música smart adotado neste trabalho faz referência a essa música que se ouve e se produz por meio de dispositivos móveis; música que acompanha o ouvinte, e até mesmo o músico executante ou o compositor, seja para onde for. Os recursos tecnológicos digitais vêm proporicionando instrumentos digitais cada vez mais eficazes para produção e reprodução musical móveis, marcando uma nova era da música. É essa música, presente nos dispositivos, que interessa a esta pesquisa, por sua vez focada no ouvinte e nos seus modos de escuta. Compreender esse universo, seus significados, suas particularidades, implica num processo de diálogo com os atores nesse cenário. 4. Percursos metodológicos A pesquisa tem como foco um grupo de estudantes de um curso de graduação em música que utilizam dispositivos móveis (smartphones) para ouvir e fazer música. O grupo é constituído de alunos de duas turmas em meio de curso (5º/6º semestres)134. Tal escolha partiu de um contato prévio com tais alunos, por ocasião de disciplina ministrada durante o ano 2º semestre de 2015, e levando-se em conta, por parte dos alunos, a expressiva utilização de smartphones com finalidade de reprodução de músicas. Esta pesquisa faz uso da observação participante e da entrevista semi-estruturada. A observação participante consiste na interação, descrição e interpretação dos fatos observados. Com base nesta técnica, o pesquisador necessita de convivência direta com a 134 O

curso de licenciatura ao qual os alunos participantes da pesquisa estão vinculados possui um total de 8 semestres.

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“comunidade”, em favor de desenvolver a capacidade de alteridade e buscar conhecer e entender, de maneira mais aprofundada possível, o contexto em que está inserido, as relações hierárquicas de poder e a estrutura social e política. Consiste também de coleta de material teórico com o objetivo de fundamentar a discussão sobre os achados da coleta de dados empíricos. As entrevistas serão realizadas concomitantemente às observações, uma vez que buscar-se-á conhecer as formas por meio das quais os estudantes utilizam os dispositivos móveis para suas atividades musicais, com ênfase na escuta. Ao dialogar com os entrevistados, os mesmos discorrerão sobre o processo de escuta musical em seu dispositivo, demonstrando e fazendo uso de aplicativos, sites entre outros recursos possíveis. As entrevistas serão gravadas e transcritas, de modo a subsidiarem a compreensão e a descrição, durante as entrevistas e observações, de todos os eventos. Por conseguinte, serão também aproveitadas na escritura de relatórios de pesquisa e demais textos escritos decorrentes desta investigação. Consideracoes finais Como já mencionado, a pesquisa encontra-se em fase inicial de desenvolvimento, em que se realiza a exploração inicial do tema, definindo suas bases conceituais. Embora não apresente ainda os dados a que se propõe investigar, este artigo se propôs a refletir sobre os caminhos a serem percorridos, incluindo a definição de "música smart", que fundamenta o trabalho em sua dimensão mais ampla. A partir desta exploração preliminar será possível delinear o referencial teórico, que servirá de anteparo, por sua vez, à análise dos dados coletados. Referências CAROSO, L. Por uma etnomusicologia no ciberespaço: extratextualidade, virtualidade e materialidade. In: IV Congreso de la CiberSociedad, 2009. Anais... acessado em 10/04/2016. Disponível em: http://www.cibersociedad.net/congres2009/es/coms/por-umaetnomusicologia-no-ciberespaso-extratextualidade-virtualidade-e-materialidade/612/. GOMES, Rodrigo M. Do Fonógrafo ao MP3: Algumas Reflexões sobre Música e Tecnologia. Revista Brasileira de Estudos da Canção. Natal, n.5, jan-jun 2014. pp. 77-82. Disponível em: www.rbec.ect.ufrn.br.

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IAZZETTA, Fernando . O Fonógrafo, o Computador e a Música na Universidade Brasileira. In: X Encontro Nacional da ANPPOM, 1997, Goiânia, GO. Anais... Goiania: ANPPOM, 1997. v. 1. p. 161-165. KIBBY, Marjorie. 2000. Home on the Page: A Virtual Place of Music Community. Popular Music 19, no. 1, pp. 91-100. http://www.jstor.org/stable/853713. LANGE, Barbara. Hypermedia and Ethnomusicology. Ethnomusicology 45, no. 1, 2001, pp. 132-149. Acesso em: 12/04/2016, disponível em: http://www.jstor.org/stable/852637. LYSLOFF, René. Musical Community on the Internet: An On-line Ethnography. Cultural Anthropology 18, no. 2, 2003, pp. 233-263. LYSLOFF, René, e Leslie GAY. Introduction: Ethnomusicology in the Twenty-first Century. In: René LYSLOFF e Leslie GAY, Music and Technoculture. Middletown: Wesleyan University Press, 2003, pp. 1-22. MOREL, Leo. Música e tecnologia: Um novo tempo, apesar dos perigos. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2010. REILY, Suzel. Ethnomusicology and the Internet. Yearbook for Traditional Music 35, 2003, pp. 187-192. Acesso em: 12/04/2016, disponível em: http://www.jstor.org/stable/4149330. STEPNO, Bob. You be the ethnomusicologist: Life in a virtual community of computermediated Folk. 1998. Acesso em: 12/04/2016, disponível em: http://www.stepno.com/unc/folktalk.html. SEEGER, Anthony. Etnografia da música. Cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 1-348, 2008. TRIVINHO, E. 2007. Cibercultura e existência em tempo real. Contribuição para a crítica do modus operandi de reprodução cultual da civilização midiática avançada. E-Compós, 9. Acessado em: 10/04/2016, disponível em: http://www.compos.org.br/seer/index.php/ecompos/issue/view/9.

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A hierarquia como método: equidade na produção da música de concerto, um relato etnográfico.

Hudson Cláudio Neres Lima PPGM- UFRJ - [email protected]

José Alberto Salgado

Resumo: A pesquisa utiliza o método etnográfico para investigar a produção das temporadas de espetáculos destinados à difusão da música de concerto e fundamentar a abertura de possíveis questões sobre suas práticas, aplicação e relação entre os músicos de orquestra, mantenedores e a plateia. A metodologia é composta por levantamento bibliográfico, que registra as práticas da música de concerto sob a perspectiva da Antropologia e da Etnomusicologia, assim como através o olhar do pesquisador nativo, que documenta o exercício das comissões artísticas e do público freqüentador dos espaços, nos quais estas manifestações são exercidas. No diário de campo o contato direto com os membros de diversas orquestras sinfônicas da cidade do Rio de Janeiro, foram observados discursos ligados ao mundo sinfônico na escuta do público ouvinte, incluindo mantenedores. Colabora como ferramentas para a investigação em campo os conceitos de "Mundos Artísticos" e "Tipos Sociais" de Howard S. Becker (1977), de “lugar” e “espaço” de Michel de Certeau (1984), e as contribuições de Pierre Bourdieu (1989) em "As Formas de Capital" e o conceito de biopoder, de Michael Focault (1970) em “História da Sexualidade vol. I. Este artigo pretende mostrar o caminho teórico e metodológico percorrido na elaboração da investigação sobre as representações da música de concerto e da difusão do trabalho através da experiência de profissionais que trabalham em instituições públicas e privadas, naquilo que esta experiência abriu de possibilidade de um diálogo entre os diversos espaços de interação, incluindo os virtuais. A trajetória profissional do pesquisador adquire relevância para um pensamento reflexivo sobre os resultados parcialmente obtidos. Palavras-chave: Etnografia. Música de concerto.Equidade

Introdução Esta pesquisa pretende mostrar o caminho teórico e metodológico percorrido na elaboração de uma investigação sobre representações da música de concerto, difusão do trabalho, mantenedores e plateia, através da experiência de profissionais que trabalham em instituições públicas e privadas, naquilo que esta experiência abriu de possibilidade de para um diálogo entre a Etnomusicologia e a Antropologia a partir da trajetória profissional do pesquisador. Pesquisar é uma forma de buscar conhecimentos, resolver problemas ou abrir novas indagações. Vários são os caminhos possíveis quando se procura aquilo que se pretende conhecer, o que implica diferentes pressupostos teóricos e

metodológicos. 306

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Portanto, compartilhar e explicitar as trilhas que o pesquisador percorreu até chegar aos resultados, sempre provisórios, é parte fundamental desse processo investigativo. O que é Música? A pergunta era irrelevante para um sujeito que no ano de 1997 trazia em suas mãos o sangue à mostra e os calos entre os dedos frutos das horas exaustivas sobre as cordas de um violoncelo, instrumento à época disponibilizado por empréstimo através de uma instituição pública. “Alegria, formosa centelha divina, filha do Elíseo, Ébrios de fogo entramos em teu santuário celeste! Tua magia volta a unir o que o costume rigorosamente dividiu.” (SCHILLER Friedrich, 1824) esta era a tradução mais fiel do texto alemão escrito por Friedrich Schiller escutado pelas certezas que compreendia a música de concerto alemã como o modelo mais importante para traduzir o que significava a Música. Marginal - pertencente ou relativo à margem - talvez fosse a palavra mais apropriada a quem, através do seu percurso particular e sua singularidade, encontrasse o exótico de um campo no qual a pluralidade de gêneros e manifestações era proibida. Um efeito claro da humilhação é a morte da subjetividade. Homogeneizar era uma Lei na qual todos os sujeitos deveriam estar inseridos, uma massa. Como os versos dos MC's Vinicius e Andinho “Massa funkeira não me leve a mal, vem com paz e amor curtir o festival (...) vamos todos fazer do mundo um lugar onde a paz e o amor possa reinar” (Ibdem,1994). A gênese da pesquisa Nas imediações do complexo da Pedreira, região da zona norte carioca, onde vigora um coletivo de favelas cuja existência se faz através de poderes paralelos ao Estado, ouvese nas margens um micro rádio de pilhas sintonizado na única estação de rádio que à época difundia Música de concerto. Soava daquele aparelho um "Óde alegria", "An Die Freude", no dial do Rádio a sintonia na Rádio Mec. Misturavam-se as mais diversas polifonias de uma zona periférica da cidade, coro e orquestra agrupavam-se na composição mais complexa de sirenes, pagode e tiros; a escuta atenta treinava-se para ignorar o cotidiano, a violência era apenas parte do cenário diário que incluía o aviltamento dos transportes coletivos, os asfaltos mal pavimentados e o teatro distante. O programa acaba e no mesmo dial Beethoven, muito generosamente, cede lugar a um Dvoràk, o violoncelista russo Mistislav Rostropovich executa seu concerto em Si menor. Ao ouvinte não restava mais dúvidas, seria um alemão forjado ou um russo cover, mas seria violoncelista.

Sua 307

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nacionalidade era apenas o detalhe supérfluo da qual a gênese já o fazia estrangeiro. Inadequado. "Massa não me leve a mal", serei erudito e tocarei em uma Orquestra Sinfônica. Em 1997 a internet ainda engatinhava no Brasil, o acesso era escasso em seu território, as informações eram recebidas com morosidade. Violoncelos não eram vendidos na Rua da Carioca (famosa Rua do Centro da cidade do Rio de Janeiro, conhecida pelo número abundante de lojas que comercializam instrumentos musicais). Nesse mesmo ano, 1997, o predestinado músico, ingressa em uma escola pública de formação técnica para músicos: Escola de Música Villa-Lobos. Na instituição, após um semestre de formação exclusivamente teórica, ingressa em uma fila na qual o destino era uma secretária efusiva que anotava o instrumento escolhido pelos alunos para que pudessem cursá-lo no semestre seguinte. Ao ser arguido, o músico regurgita a resposta mais passional que poderia dar: violoncelo (mesmo após segundos de dúvida sobre a viola, pois monetariamente possuía um valor menor, mais acessível). Primeira aula. Os alunos procuram seus professores de instrumento pelos corredores da instituição. O estudante é recebido por uma jovem senhora, olhos azuis e vigor nas ações. A professora toma-lhe as mãos negras e observa atentamente: a anatomia seria o destino. Segundos depois é ouvida uma sentença: "é, dá para tocar . Primeira aula segunda-feira às 15h.” Sem o instrumento o estudante dependia do espaço, da instituição e do instrumento por ela fornecido para ingressar nos primeiros passos. As aulas eram coletivas e estudantes de classes sociais distintas reuniam-se ambiciosos por quaisquer informações que pudessem dar-lhes a titulação "Músico". É relevante citar que nem todos os alunos possuíam o mesmo tempo de aulas, pois este era distribuído diante do arbítrio do docente, no qual o critério parecia escolher os mais qualificados para o exercício profissional, critérios nos quais não dava prioridade ao empenho técnico na execução dos instrumentos, mas o capital social acumulado, conceito cunhado por Pierre Bourdier em “As Formas de Capital”. O uniforme de escola pública (que não era utilizado por todos) garantia o acesso aos coletivos, que percorriam lotados pela Avenida Brasil, uma das principais vias de acesso que liga a Zona Norte Carioca ao Centro. O desafio das aulas não comportava apenas à predisposição ao aprendizado do instrumento, mas a capacidade de cada sujeito portar um currículo familiar que lhe conferisse uma posição social condizente com o lugar de futuro músico profissional. 308

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A professora de violoncelo, por ser regente, era a mesma que portava a chave para ingresso na orquestra da instituição - uma pequena orquestra voltada para o ensino da prática e leitura - seus integrantes eram os mais diversos, mas em sua maioria jovens em busca de qualificação profissional. A instituição através de convênios promovia intercâmbios, um deles dava como destino a França. Apenas alguns selecionados pela instituição brasileira segundo critérios jamais esclarecidos pela comissão organizadora geraram suspeitos de favorecimento. Música e preconceito não poderiam ser conceitos consonantes, Música e violência pareciam conceitos desarmônicos. O percurso era longo, era necessário alienar-se para seguir adiante no compromisso de não desafinar e o ritmo da música nem sempre era condizente com o ritmo da vida. Os instrumentos de cordas, vermelhos, fabricados na China sem a assinatura da produção manufaturada de um luthier eram chamados ironicamente de "maçã do amor", em alusão às frutas caramelizadas vendidas nas festas infantis. Esses instrumentos eram muito mais baratos, porém só chegavam ao Rio de Janeiro através de encomendas em lojas de outras cidades. Assim, muitos estudantes adquiriam suas principais ferramentas de trabalho, os instrumentos considerados inapropriados iam parar nas oficinas dos profissionais especializados na manutenção. No ano de 1998 a cidade possuía apenas 3 três, atualmente o número aumentou, são 4 quatro. Não há escola de lutheria para a construção de violinos, violas, violoncelos e contrabaixos no Rio de Janeiro. Após ajustes os instrumentos chineses faziam soar as cordas de uma relevante parcela da orquestra dos estudantes brasileiros, que interpretavam repertório nacional, alemão, norte-americano e russo. Os músicos com instrumentos de outras origens, que não chinesas, carregavam dentro do seu case o capital necessário para afirmarem-se como os mais engajados, afinal eram instrumentos mais caros, com a fabricação e assinatura de um luthier. O estudante, com seu instrumento, estava seguro que possuía um material melhor que os industriais, conquistando olhares mais confiáveis de possíveis contratantes. A partir de 1999 surgem no Rio de Janeiro novas orquestras para jovens músicos vinculadas a empresas que experimentavam projetos voltados para o ensino da prática orquestral, na busca de um capital cultural, jovens se predispunham a participar desses projetos sem remuneração ou por um valor monetário muito baixo. Esses cachês eram chamados de "bolsa". Por falta de oportunidades no mercado de trabalho, as orquestras que se formavam eram híbridas, com músicos qualificados tecnicamente (segundo as normas 309

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para o mercado profissional carioca), porém, assalariados, mesmo atuando em espaços nos quais os músicos profissionais participavam e com as mesmas responsabilidades. Música e leis trabalhistas deveriam ser consonantes. Certamente a música de concerto carrega em sua história fatos relevantes de discriminação em nome da performance. Poder avançar e sair das observações mais óbvias é contribuir qualitativamente para que novas estruturas possam surgir e reforçar as práticas musicais engajadas com as questões sociais e os problemas de uma cidade. Até a segunda metade do século passado, músicos que possuíam a necessidade da utilização de óculos eram impedidos de participar do processo seletivo de algumas orquestras europeias, mulheres não podiam cobiçar o cargo de spalla ou maestrina. Nas orquestras brasileiras um capital social relevante ainda é a formação no exterior, músicos que tenham estudado somente no Brasil têm dificuldades em comprovar suas qualificações, mesmo estando aptos tecnicamente para a função. A presença de negros declarados nas orquestras profissionais ainda é escassa, sobretudo no naipe das cordas, embora políticas de incentivo já apareçam em concursos de orquestra pública. O instrumento utilizado também é um fator relevante no momento da seleção, grifes famosas deixam em vantagem intérpretes que pleiteiam uma vaga. Exponho essas considerações neste ensaio concluindo momentaneamente nesse percurso em 17 anos de atuação em Orquestras Sinfônicas, Orquestras de cordas e de câmera e Grupos camerísticos, que a música de concerto carrega exigências para a sua realização assim como quaisquer outras atividades que convoquem um engajamento prioritário para sua realização, mas compreendo a partir de uma análise particular que a Música de concerto ainda está muito distante do poema de Schiller que afirma entre os compassos da nona sinfonia de Beethoven "que a alegria volta a unir o que o costume rigorosamente dividiu”, unir, promover a equidade com alegria e entusiasmo são os vetores que conduzem essa pesquisa. Cabe ressaltar, nesta investigação, que, para o etnógrafo, as tensões entre o familiar e o estranho se fazem presentes durante todo o processo de pesquisa. O estranhamento, imprescindível para o desenvolvimento do trabalho etnográfico, implica um ato de pensamento reflexivo, no sentido de problematizar e estranhar categorias de pensamento, práticas, representações, relações (TORNQUIST, 2007). É significativo o esforço do pesquisador no processo de estranhamento do familiar, na assunção de uma perspectiva 310

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estritamente analítica (VELHO, 2003), processo esse que é difícil e doloroso, uma vez que implica um descentramento do olhar que traz mudanças irreversíveis à forma de ver do pesquisador. Uma orquestra sinfônica é constituída por quatro grandes naipes, a saber, cordas, sopros madeiras, sopros metais e percussão. Dentro dos naipes há grupos menores, como por exemplo, o naipe das cordas que é composto por cinco naipes - primeiros violinos, segundos violinos, violas, violoncelos e contrabaixos - os outros naipes seguem formações semelhantes com instrumentos separados por natureza diferentes de timbre e formato. Cada pequeno naipe é dividido segundo modelos de hierarquia próprio a cada grupo de músicos. As posições no espaço físico em que o instrumentista está localizado definem o poder e o grau de decisão, como exemplo, músicos da primeira estante tem uma representação política maior que os da segunda estante, e assim sucessivamente até chegar aos músicos das extremidades. Em algumas orquestras há rodízios entre as estantes, havendo mais de um líder, porém com maior raridade. No naipe da percussão é o instrumento executado durante o concerto que definirá a liderança do naipe, o percussionista que executa o tímpano será o dotado de maior prestígio. Embora compreenda em sua estética uma homogeneidade, muitas vezes reforçada por uma uniformização que engloba desde o vestuário utilizado aos movimentos dos arcos ou respirações dos intérpretes, a Orquestra Sinfônica possui em seu corpo sujeitos que divergem em opiniões, posicionamentos políticos e são oriundos de classes sociais completamente distintas. Ao analisar essa instituição é imprescindível considerar que um naipe não é um agente, mas um conjunto de agentes que interagem em busca de uma produção em comum, que está em acordo com as decisões de outros colaboradores tais como o maestro, comissão artística, publico ouvinte, mantenedores entre outros. Nesta perspectiva, pode-se afirmar que um naipe não pode ser interpretado como um sujeito, e sim como um grupo de sujeitos muitas vezes com objetivos divergentes, polifônicos. Ao divulgar a pesquisa para músicos que atuam profissionalmente em sinfônicas obtive a colaboração de uma parcela que levantou questões pertinentes as possibilidades de investigação dos conflitos, embora outros não consideraram relevante por desconsiderar a produção textual acadêmica importante para a prática profissional do músico.

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Hierarquia e relações de poder no espaço sinfônico Relatar que um espaço social é estruturado significa considerar que as posições deste não se equivalem, e não são harmônicas. Os conflitos só podem ser relatados formalmente durante os ensaios através dos seus mediadores, os líderes de naipe, sujeitos escolhidos através de concurso ou eleição; agentes aos quais são atribuídas responsabilidades majoritariamente musicais, trata-se da responsabilidade de transmitir o “saber fazer”, todos os executantes precisam fazer soar a mesma Música. Todos precisam soar iguais, mesmo que em suas origens os instrumentos musicais possuam timbres diferentes e a técnica dos executantes não tenham a mesma origem. A liderança de um maestro só é possível através das lideranças nos naipes. A escolha dos lideres de naipe não é baseada somente em uma qualificação técnica, mas também nas somam-se a isso algumas habilidades a respeito de autoridade, na qual o escolhido possa ter de exercer uma autoridade, posicionar seus objetivos com clareza diante dos demais é outro quesito importante. Esse atributo é uma exigência sine qua non ao analisar o discurso dos grupos relatados. Vale esclarecer que estas considerações é uma construção entre os sujeitos envolvidos no ritual, uma leitura coletiva, na qual o músico compreende uma visão do próprio “saber fazer” que é influenciada por uma crítica que seus pares promovem sobre as suas habilidades. Por isso, em algumas performances, um sujeito pode sair ofendido de uma interação, esse evento ocorre porque o sujeito investiu ao longo de sua vida, muita energia e tempo para construir um referencial técnico-artístico e quando alguém abala essa construção laboriosa há uma percepção de ofensa. Sobre esses líderes de naipe a pesquisa constata que são agentes responsáveis pelos movimentos dos arcos dos demais músicos da fila, no caso dos instrumentos de cordas, o momento da respiração no caso dos instrumentos de sopro ou mesmo a escolha dos instrumentos na qual o músico se apresentará durante a execução de um concerto no caso do naipe dos percussionistas, além de organizar possíveis "folgas" aos músicos que não estejam escalados para um determinado repertório Assim, pode-se convocar o conceito de biopoder em Focault para colaborar com a análise. O conceito de biopoder (e biopolítica) foi cunhado originalmente por Michel Foucault, no primeiro volume de História da

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Sexualidade. Esta ideia complementou as reflexões sobre as práticas disciplinares, ambas as técnicas de exercício de poder, particularmente a partir do século XVIII e XIX. As disciplinas se voltavam para o indivíduo, e para o seu corpo, para a sua normatização e adestramento através das diversas instituições modernas que esse indivíduo atravessava durante a sua vida. Eram instituições que docilizavam os corpos e os tornavam aptos à produção industrial vigente enquanto produção central nessa fase do capitalismo. Segundo Foucault, as disciplinas centravam-se “no corpo como máquina: na ampliação de suas aptidões, na extorsão de suas forças, no crescimento paralelo de sua utilidade e docilidade, na sua integração em sistemas de controle eficazes e econômicos”. O poder disciplinar age através da inscrição desses corpos em espaços determinados, do controle do tempo sobre eles, da vigilância contínua e permanente, e da produção de saber e conhecimento, por meio dessas práticas de poder. (FOUCALT, 1988 pág. 151) Conclusões A pesquisa constatou através do recolhimento dos discursos durante os ensaios e as apresentações que é possível categorizar enunciados recorrentes entre os músicos que praticam a música de concerto. Tais enunciados apontam que a construção de uma categorização é possível devido aos critérios estabelecidos nos atos de fala em encontros formais ou informais, pude através da análise dos discursos constatar que o reconhecimento dos pares ocupa um lugar central na qualificação técnica dos músicos, frases proferidas em rotina de trabalho "toca bem","toca mal" inscrevem no mercado profissional os que adquirem mais frentes de trabalho, chamado entre os populares urbanos de "gigs" . Essas avaliações tomam como referenciais aspectos objetivos e subjetivos, como aspectos objetivos é possível apontar capacidade técnica de afinação dos instrumentos e a disponibilidade do músico adequar-se aos tempos métricos durante a execução em conformidade aos demais integrantes, como aspectos subjetivos podemos atribuir o contexto da performance que agrada a maioria dos ouvintes ou mesmo capitais sociais adquiridos no decorrer da trajetória do músico. Algumas frases coletadas durantes os ensaios: “Aqui ninguém se mexe, apenas eu”, maestro ao se dirigir à orquestra devido a um incômodo com relação aos movimentos 313

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corporais dos líderes de naipe; “para tocar bem, se inspirem em mim” maestro antes do concerto dirigindo-se à orquestra; “meu instrumento não foi feito para tocar esse tipo de música “ líder de naipe ao interpretar música contemporânea brasileira; “ toque bem pois tem gente ao seu lado querendo pegar o seu lugar” maestro dirigindo-se a um líder de naipe. Por fim cito a Prof. Dra. Márcia Tiburi em uma publicação recente, “Filosofia Prática” (2014): “Aquele que consegue sentir-se dentro e confortável nas circunstâncias sociais, econômicas e imaginárias de nossa sociedade talvez tenha feito manobras radicais de autoengano, ou nunca tenha pensado sobre o que significa viver” (TIBURI, 2014, pág. 144). Referências ARAÚJO, Samuel. “Entre muros, grades e blindados: trabalho acústico e práxis sonora na sociedade pós-industrial”. El Oído Pensante, vol. 1, n. 1, 2013. . A violência como conceito na pesquisa musical: reflexões sobre uma experiência dialógica na Maré, Rio de Janeiro. Trans. Revista Transcultural de Música, n. 10, dic. 2006. Disponível em: . Acesso em: 04 jul. 2014. BECKER, Howard S. "Mundos artísticos e tipos sociais" BECKER, Howard. Uma teoria da ação coletiva. Rio de Janeiro: Zahar, 1977. BECKER, Howard. Art Worlds. Berkeley e Los Angeles: University of California Press, 1982. BORDIEU, Pierre. Questões de sociologia. Algumas propriededades do campo , Rio de Janeiro: Ed. Marco Zero, 1983. FOUCAULT,Michel. História da Sexualidade: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988. FREUD, S. Totem & Tabu (1913). In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. XIII. Rio de Janeiro: Imago, 1996. TIBURI, Márcia. Filosofia Prática. Rio de Janeiro, São Paulo, Editora Record, 2014 TORNQUIST, C. S. Vicissitudes da subjetividade. In: BONETTI, A.; FLEISCHER, S. Entre saias justas e jogos de cintura. Florianópolis; Santa Cruz do Sul: Mulheres; EDUNISC, 2007. VELHO, Gilberto. Arte e Sociedade: ensaios de sociologia da arte. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1977, p. 9-26.

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SESSÃO 5 Coordenação: Dayse Puget

Pesquisa em música: metodologia em história oral. Tainá Maria Magalhães Façanha [email protected] – PPGArtes UFPA Resumo: Este artigo é resultado de uma palestra ministrada no II ciclo de palestras do LabEtno UFPA. Buscou-se apresentar uma abordagem metodológica com base na história oral, apresentando o pensamento que norteia a pesquisa de onde emerge este artigo, assim como o detalhamento em etapas do desenvolvimento da mesma. Por fim, este artigo almeja contribuir para diversas pesquisa em música que tenham como base narrativas orais e que busquem compreender determinado contexto a partir de quem fala, investigando os processos pelos quais esses depoimentos são construídos/formados. Palavras-chave: Pesquisa em música. Metodologia em história oral. Formação da Subjetividade.

De onde emerge esta pesquisa Este artigo surge de uma palestra que foi, por mim, ministrada no II Ciclo de Palestras do Laboratório de Etnomusicologia (LabEtno) da Universidade Federal do Pará (UFPA), desenvolvida a partir da metodologia de minha pesquisa de mestrado intitulada ‘Memórias de professores de Arte/Música: concepções, “estratégias” e objetivos na educação musical em escolas estaduais de educação básica em Belém – Pa.’, cujo principal objetivo é compreender o sentido do ensino da música nessas escolas e, especificamente, analisar as concepções, “estratégias” e os objetivos de professores de ACte/Música nas escolas de educação básica na Estadual no distrito de Belém – PA e relacioná-las observando as abordagens de educação musical na educação básica. Tendo como problemáticas iniciais a efetivação do ensino da música por meio da lei nª 11.769/08 – que já tem sido um tema muito debatido na atualidade por pesquisadores, como pode ser verificado nos periódicos e anais da Associação Brasileira de Educação Musical – e as questões relacionadas a formação e atuação do professor de música, além de outras discussões, acerca destes temas, que surgem e destaco nesta pesquisa, ainda em fase inicial.

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O foco principal, entretanto, é o processo de formação do professor de música, buscando por meio de suas memórias – aqui entendida “como fato, como algo que pode incidir sobre a realidade e causar mudanças” (ALBERTI, 2004, p. 11) – desvelar os aspectos que constituem suas concepções, suas escolhas metodológicas (“estratégias”) e seus objetivos educacionais. Levando em conta que este professor é sujeito de um contexto social e que, dialeticamente, compõe este contexto. Assim, para este artigo, é importante que sejam definidos alguns pontos que delimitam a construção do caminho metodológico da pesquisa descrita acima, para o entendimento da proposta que realizo neste texto. Desta forma, inicialmente, na construção de minha pesquisa de mestrado, entendo que o processo de formação do professor de música é fundamental para compreensão do sentido do ensino da música no ambiente escolar e, que o mesmo determina a atuação do professor. Defino aqui o processo de formação não apenas no período em que o professor está no meio universitário/graduação, mas também os momentos que antecedem seu ingresso na universidade e os momentos posteriores, na sua prática docente. Ou seja, as experiências musicais de vida e a formação do seu gosto musical; o ensino superior e a estrutura curricular na qual foi formado; e as experiências de sala de aula dialogando com sua formação teórica, onde o mesmo irá exercer, na prática, o ato de ensinar música. Guattari observa que esse processo de experiências institucionais, coletivas e individuais do ser humano caracteriza a sua formação da subjetividade. Esta subjetividade é aqui entendida como: Pelo menos três tipos de problemas nos incitam a ampliar a definição da subjetividade de modo a ultrapassar a oposição clássica entre o sujeito individual e sociedade (pois entende que a mesma é diretamente ligada a essas duas instâncias formativas) e, através disso, a rever os modelos de inconsciente que existem atualmente: a irrupção de fatores subjetivos no primeiro plano da atualidade histórica, o desenvolvimento maciço de produções maquínicas de subjetividade e, em último lugar, o recente destaque de aspectos etológicos e ecológicos relativos à subjetividade humana. (2012, p. 11-12 grifo meu)

Dialogando, mais especificamente, esta subjetividade do professor de música pode ser relacionada com a teoria de saberes docentes, a partir dos estudiosos do tema como Guattier (1998), Tardif e colaboradores (2002), Lee Schumman (1986 e 2004) e Pimenta (2002) que generalizando, classificam em categorias de saberes da experiência, saberes da formação, saberes disciplinares e saberes pedagógicos. Assim também, com o que Esperidião (2012) apresenta como saberes pedagógicos musicais docentes: 316

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Mas como identificar essas experiencias de construção da subejtividade e desses saberes?

História Oral como metodologia Em um primeiro momento, entrevistas semi-estruturadas seriam de suficiente eficácia para indentificar os objetivos já expostos, entretanto como aponta Esperidião (2012): [...]cada professor, durante suas trajetória pessoal e profissional, seleciona e utiliza elementos diversos com os quais vai constituindo seus saberes, atualizando-os de acordo com as exigências dos contextos nos quais atua. Afirmam, ainda, que no discurso dos professores são percebidos muitos tipos de “vozes” – distantes, prócximas ou anônimas – , representadas por pessoas diferentes, materiais de trabalho ou experiências acumuladas. Essas “vozes” também são consideradas tipos de saberes que podem ser apropriados pelos docentes, conforme manifestado em suas falas, por meio de uma relação ativa quando reproduzem, descartam, reformulam ou criam novos saberes determinando suas práticas. (ESPERIDIÃO, 2012, p. 101 [grifo meu])

Sendo assim, esse discurso e essas “vozes” que são manifestadas através da fala do professor, permitem emergir esses saberes adquiridos e formulados pelo profissional. Para conhecer de maneira mais profunda e, de certa forma, próxima, esse discurso faz-se necessária uma metodologia que traga essas experiências de vida e de formação mais evidente, o que é muito bem explorado pela metodologia em história oral. São essas experiências de vidas que irão determinar o que elegem e legitimam como melhor modo de atuação, ressaltando então que não é possível atingir diretamente esses fatos passados, mas é viável atingi-lo por meio das histórias, “quando queremos nos apropriar de nossa vida, nós a narramos”. (DELORY-MOMBERGER 2008) Portanto, uma maneira de identificar essas experiencias de construção da subejtividade e desses saberes é por meio da análise e interpretação das narrativas dessses professores. Evidenciando, portanto, a fala das pesssoas pesquisadas. A entrevista em história oral Meihy e Holanda (2014) ressaltam que “como método, a história oral se ergue segundo alternativas que privilegiam as entervistas como atenção essencial dos estudos” ou seja, as narrativas constituem ponto fundamental deste tipo de pequisa. As análises e interpretações sempre derivam dos depoimentos dos entrevistados.

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Dessa forma, alguns pontos são cruciais para o desenvolvimento e validação da pesquisa em história oral, aqui descrita em três etapas: fase pré-entrevista, desenvolvimento das entrevistas e pós-entrevistas. Cada uma delas descritas logo a seguir. a) Fase pré-entrevistas: Para o densenvolviemento conciso da entrevista é necessário que se tenha bem definido quais os objetivos do projeto, público estudado e contexto que se localiza o projeto, sendo assim é primordial a definição do projeto para Meihy e Holanda: [...] é o instrumento norteador que ajuda a planejar o trabalho de pesquisa, delineando a proposta a ser desenvolvida, a justificativa/fundamentação, os meios operacionais, a questão da forma e evidência dos objetivos por meio de hipóteses de trabalho.

Posteriormente a elaboração do roteiro será o guia básico na realização das entrevistas, sendo construido a partir dos objetivos elencados no projeto. Entretando, o mesmo não será rígido e engessado de modo que as entrevistas sejam monôtonas e retritivamente iguais a todos os entrevistados (caso haja), esse roteiro temático é o que vai conduzir a entrevista, mas não tem por objetivo tirar a liberdade e conforto do entrevistador e entrevistado. Lembrando que tudo deve ser bem planejado e que essa liberdade diz respeito à fala e à confiança entre ambas às partes. b) Fase do desnvolvimento das entrevistas: Nesta fase de realização é importante devida atenção quanto à conduta do entrevistador, levando em conta a postura ao se portar e, principalmente, o respeito a fala dos entrevistados. Outro ponto é saber conduzir essas entrevistas de maneira que envolva os entrevistados e os deixe confortavéis em dividir informações por vezes muito pessoais, mostrando que se interessa e se importa com os depoimentos. c) Fase pós-entrevista Passagem do oral para o escrito: I Transcrição: Fase que se configura em escrever, na íntegra, a entrevista. Todos detalhes serão levados em consideração, dos barulhos no ambiente aos risos e falas emocionadas. II Textualização: retirada das perguntas, correção dos erros gramaticais, retirados ruidos descritos na transcrição e organização da narrativa por temas. (MEIHY e HOLANDA, 2014, p. 142) 318

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III Transcriação: se constitui no texto “apresentado em sua versão final e depois de autorizado [pelo colaborador] deve compor a série de outras entrevistas do mesmo projeto” (idem, p. 143). A escrita é construída como uma narrativa na qual as ideias fluem para a melhor compreensão do leitor. Interpretação e Análise dos dados: “A verdade não está no passado, mas há sempre uma verdade sobre o passado” (HACKING, 2010, p. 249-250)

Essa fase não é necessária na pesquisa em história oral, mas como se trata de uma pesquisa acadêmica, será posteriormnte definida qual abordagem teórica melhor atenderá essa análise e interpretação dos dados. Como afirma o autor o objetivo aqui não se trata de revelar uma verdade absoluta acerca dos objetivos aqui definidos e sim compreender esse olhar do presente para um passado recente e como essa formação da subjetivdade contribui para formação do professor de música. Considerações Essa pesquisa encontra-se na fase de campo, onde se objetiva realizar um levantamento de dados sobre os professores de arte que compõem o quadro docente das escolas envolvidas e acerca da estrutura dispostas para o ensino de música nas mesmas. Em seguida serão contactados os professores para o desenvolvimento das entrevistas. Por fim, buscou-se aqui apresntar uma metodológia que, para além da educação musical especificamente, possa contribuir para desenvolviemto de pesquisas que tomem como ponto de partidas as narrativas dos sujeitos envolvidos. Entendendo que os depoimentos coletados não são apenas em gravações aleatórias, mas que devem ser entendidos como fontes documentais, que juntos somarão várias vozes. Assim, contribuindo com a compreensão de comportamentos e ideologias de grupos culturais a partir de como eles narram suas impressões sobre si próprios, de contextos-históricos e sociais diversificados e muitos outros aspectos que integram essa rede.

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Referências: ALBERTI, Verena. Ouvir, Contar: textos em história oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004. DELORY-MOMBERGER, C. (2008). Biografia e educação: figuras do indivíduo-projeto. Natal, RN: EDUFRN; São Paulo: Paulus. ESPERIDIÃO, Neide. Educação Musical e Formação de Professores: suíte e variações sobre o tema. 1 ed. São Paulo. Globus, 2012 GAUTHIER, Clermont et al. Por uma Teoria da Pedagogia: pesquisas contemporâneas sobre o saber docente. Ijuí, RS: UNIJUÍ, 1998. GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético. Trd: Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. Ed. 34, São Paulo, 1992. MEIHY, José Carlos Sebe B. e HOLANDA, Fabíola. História oral: como fazer como pensar. 2 ed. São Paulo. Contexto, 2014 PIMENTA, Selma Garrido, (org.). Formação de Professores: identidade e saberes da docência. In. Saberes Pedagógicos e Atividade Docente. São Paulo: Cortez, 2002, pp. 1534. SHULMAN, Lees. Those who Understand: Knowldege Growth in Teaching. Educational research, v. 17, n. 1, p. 4-14, 1986. TARDIF, M. Saberes docentes e formação profissional. Tradução de Francisco Pereira. Petrópolis: Vozes, 2002.

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A Guitarrada e Mestre Vieira: dois casos de conversão semiótica.

Saulo Christ Caraveo Escola G2 Muhsica - Email: [email protected] Resumo: Este trabalho analisou a vida de Mestre Vieira e do gênero musical que o consagrou: a guitarrada. Esta análise baseou-se na relação simbólica que envolve a região amazônica, um saber e prática musical tipicamente paraense e seu criador. Neste sentido buscou-se encontrar o momento da concepção da guitarrada e em que contexto Joaquim de Lima Vieira torna-se o conhecido Mestre Vieira, ou seja, o momento da transformação simbólica de Vieira e sua guitarrada: a conversão semiótica. A respeito da metodologia busquei, através da pesquisa bibliográfica, o levantamento de dados significativos em torno dos conceitos de semiótica, em especial trabalhos acadêmicos envolvendo a Música, bem como artigos, teses, monografias que pudessem elucidar e comprovar a conversão semiótica de Vieira e da guitarrada. Palavras-chave: Guitarrada; Guitarra Elétrica; Mestre Vieira.

Introdução A região amazônica em sua imensidão territorial, cultural, de típico saber cotidiano e imaginário mítico nos revela uma força artístico-criativa que veio se fomentando ao longo de sua história. Diante deste cenário podemos observar também a amplitude desta criatividade na Música paraense. Sua diversidade de gêneros musicais como o carimbó, siriá, lundu e a própria formação da Música Popular Paraense (MPP) nos fazem refletir a respeito do valor simbólico em torno dos atores envolvidos na construção desta cultura musical. Neste trabalho destaquei a trajetória de Joaquim de Lima Vieira na MPP, o gênero musical que o consagrou: a guitarrada. Localizei dados significativos que possam melhor embasar a transformação da figura de Vieira como criador do gênero musical guitarrada no sentido em que é considerado Mestre dos Mestres das guitarradas. Apresentei também conceitos em torno da semiótica, de Charles Sanders Peirce e o conceito de Conversão Semiótica de João de Jesus Paes Loureiro. Foram três os problemas que alimentaram esta pesquisa: Qual a trajetória de Mestre Vieira na Música Popular Paraense? Como se deu o processo de criação do gênero musical Guitarrada? Como podemos entender a transformação semiótica em torno de Vieira e do gênero musical Guitarrada?

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A metodologia foi de pesquisa bibliográfica. A internet foi ferramenta fundamental para a localização de outros trabalhos que pudessem proporcionar dados significativos em torno desta proposta. O trabalho foi organizado em três seções. A primeira nos mostra a história de Joaquim de Lima Vieira no contexto da formação da MPP. Na segunda, pode-se verificar o contexto histórico-social de criação do gênero Guitarrada. Na terceira apresentarei os conceitos de Semiótica e de Conversão Semiótica. O trabalho conta ainda com considerações finais, nas quais apresento as conclusões em torno da proposta do trabalho.

1.

Joaquim de Lima Vieira e a guitarra elétrica Joaquim de Lima Vieira (1934), nascido em Barcarena, município ribeirinho do

Pará, mais conhecido como Mestre Vieira, hoje com 82 anos de idade, é considerado o criador do gênero musical Guitarrada e o maior expoente do referido gênero. É possível localizar outros artistas que se destacam na cena musical das guitarradas, como relata Mesquita (2009, p.147), Falar da guitarrada nos impõe quase que obrigatoriamente considerar a figura do compositor e guitarrista paraense Mestre Vieira. É fato que o estilo da guitarrada possui outros expoentes e praticantes notórios. Artistas como Solano, Aldo Sena, Oséas, Marinho, André Amazonas, Chimbinha, Mário Gonçalves e, mais recentemente Curica e Pio Lobato compõem o time dos praticantes da guitarrada.

Ainda a respeito de Vieira, Fábio Fonseca de Castro135, em seu artigo As Guitarradas Paraenses: Um olhar sobre a música, musicalidade e experiência Cultural136 (2012, p.433-434) diz “O marco referencial do gênero foi o álbum “Lambada das quebradas”, de Joaquim Vieira (Mestre Vieira), gravado em 1976 nos estúdios Rauland, em Belém, e lançado dois anos depois, pela Continental”. Na juventude, Vieira tocou violão, cavaquinho, banjo, bandolim e sax, sua aptidão musical possibilitou o aprendizado destes instrumentos, porém, foi com a guitarra elétrica que Vieira escreveu seu nome na história da música paraense.

135

Professor e pesquisador do Programa de Pós-graduação Comunicação, Cultura e Amazônia, da Universidade Federal do Pará. Doutor em sociologia pela Universidade de Paris. 136 Trabalho originalmente apresentado no Grupo de Trabalho Comunicação e Cultura do Século XXI Encontro da Compôs, na Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, de 12 a 15 de junho de 2012.

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No fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), com sua economia fragilizada, os EUA propõe o intercâmbio cultural com países latino-americanos (política da boa vizinhança) possibilitando a abertura do mercado (exportações e importações). Os produtos envolvendo tecnologia musical chegaram significativamente ao Brasil. Assim podemos destacar que Esse momento da vida de Vieira corresponde exatamente ao final da década de 50, período do pós-guerra e do crescimento urbano-industrial do Brasil. A modernização do país era uma meta a todo custo [...]. É aqui que a face da cultura moderna do pós-guerra se mostra ao jovem Joaquim. A novidade da música e do cinema americano fascina Vieira que neste momento vê pela primeira vez aquele que se tornaria seu principal instrumento: a guitarra (MESQUITA, 2009, p.152).

Segue um trecho da entrevista de Mestre Vieira cedida a Mesquita (2009, p.152). “Eu fui no [sic] cinema Universal, lá no Largo São João em Belém. De tarde meu irmão falou: “olha ta só música americana tocando.” Aí eu vi um cara com uma guitarra, né! Aquele pedaço de pau tocando. Aí eu fiquei assim pensando: “Pô um instrumento desses é um pedaço de pau”.137

A respeito do aprendizado da história através da oralidade, prática comum nas regiões ribeirinhas do Pará, podemos destacar segundo Alberti (2005, p.165) que “Uma das principais riquezas da história oral está em permitir o estudo das formas como as pessoas ou grupos efetuaram e elaboraram experiências, incluindo situações de aprendizado e decisões estratégicas” (SILVA, 2012, p.3). Apesar da abertura entre os EUA e o Brasil as condições para as classes sociais mais baixas continuaram difíceis. A primeira guitarra elétrica de Vieira não foi comprada por ele e sim um presente de uma amiga. Logo depois Vieira recebe de presente de uma amiga uma guitarra que, depois de consertada por seu irmão, estava pronta para o uso. Não fosse a falta de cordas apropriadas e dos amplificadores. Vieira conta que foi necessário colocar cordas de violão e improvisar a parte da amplificação montando um amplificador à pilha, que alimentava em baterias de automóvel. As dificuldades existiam, mas não eram nada de tão grande que a criatividade e vontade de Vieira não desse jeito (MESQUITA, 2009, p.152).

Sobre o acesso a tecnologia, Castro (2012, p.435) diz que

137

Entrevista realizada em 25-05-2009.

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/ Belém – 2016 Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares. No início dos anos 1970 chegou à guitarra e, de uma forma inventiva, não convencional, à guitarra elétrica. Inventiva em função do fato de que, vivendo numa vila sem energia elétrica, Barcarena, fabricou ele próprio, com autofalantes de rádios desmontados, alimentados por baterias de caminhão, um amplificador caseiro.

A trajetória de Mestre Vieira está ligada a formação da MPP, é o que diz Mesquita (2009, p.147-148), O músico paraense conhecido como Mestre Vieira inicia sua trajetória musical no período de formação da música popular paraense, no contexto de modernidade da região amazônica nas décadas de 50 e 60. Sua musicalidade transpassa vertentes e fontes musicais variadas desembocando em criações instigantes que ainda não se tornaram centro de uma reflexão séria e aprofundada. Influenciado pela música afro-latino-caribenha, pelo choro e pela jovem guarda, notabiliza-se pelo criativo resultado artístico que consegue dar a esta fusão.

Oliveira (2008) considera que a cultura se define como um lugar onde se articulam os conflitos sociais e culturais, onde se atribuem diferentes sentidos às coisas do mundo através do corpo, do imaginário, do simbólico, da participação, da interação, da poesia e no cotidiano. Nela se constituem os sujeitos e a sua identidade. Podemos dizer que Joaquim de Lima Vieira, ao unir sua musicalidade particular com influências musicais externas, gera na Arte uma nova prática musical e cultural, tornando-se um agente da cultura construído sua identidade e transformando a identidade local. Castro (2012, p.435) diz ainda que “Mestre Vieira ocupa uma posição, no imaginário local, de mestre dos mestres da guitarrada”. E que “O instrumento constituiu um grande impacto local, e foi reproduzido em toda a região, tornando seu criador bastante conhecido”. Neste sentido podemos considerar a guitarra elétrica como elemento fundamental transformador, o qual tornou possível a mudança de valor simbólico em torno de Vieira, no imaginário e cultura local.

2.

Guitarrada: um gênero musical É possível reconhecer a diversidade de gêneros musicais paraenses e que a

formação desta música recebeu influência de culturas externas.

324

/ Belém – 2016 Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares. A música afro-latino-caribenha em Belém, a capital do estado do Pará, ocupou nossos esforços neste trabalho. Tivemos como objeto principal o estudo da guitarrada e, consequentemente, como a inserção da música afro-latinocaribenha influenciou sua formação através da absorção criativa realizada pelo músico e compositor Mestre Vieira. Tal estilo é conhecido por apresentar uma suposta, e ainda não estudada, semelhança com a musicalidade afro-latinocaribenha (Mesquita, 2009, p. 1).

Neste aspecto as guitarradas surgem em meio a um contexto social, político e cultural no qual é possível observar a influência musical de outras culturas. Este movimento cultural sugere experiências sociais que vão marcar a identidade, regar novos valores simbólicos e transformar o imaginário coletivo local. Neste contexto, Castro (2012, p. 431) diz que Qualquer sociedade possui experiências coletivas em torno da música, com processos de sociabilidade e dinâmicas intersubjetivas próprias. Neste sentido, a cena musical que envolve as guitarradas não se configura como um processo social original e não deve, assim, ser compreendido. Porém, é possível observar alguns elementos de diferenciação que lhe dão um caráter próprio, em relação, num plano mais aberto, as outras cenas musicais contemporâneas e, num plano mais fechado, a outras cenas culturais e musicais amazônicas.

O gênero musical guitarrada é concebido então, dentro de uma realidade local, com características peculiares e valores culturais intrínsecos que serão recriados ou transformados a partir de influências culturais externas. Neste momento surge uma nova cultura, uma nova forma de compor, de fazer e de se pensar música, uma nova forma de se tocar guitarra: a guitarrada.

3.

A Semiótica e a Conversão Semiótica A Amazônia é um universo imensurável de símbolos, de rico folclore e de inúmeros

mitos os quais fazem parte da formação cultural e do imaginário coletivo da região. Quando falamos em símbolos nos remetemos a sua representatividade, no significado os quais estes símbolos (signos) são submetidos. Para entendermos melhor o conceito de signo, Peirce (1839-1914), em sua teoria, afirma que um signo “é algo que está no lugar de alguma coisa para alguém, em alguma relação em alguma qualidade” (FERNANDES, 2011, p.168). A ciência que estuda de maneira significativa os signos, levando em consideração as variadas dimensões os quais estão submersos é chamada de semiótica. 325

/ Belém – 2016 Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares. A Semiótica é a ciência que tem por objeto de investigação todas as linguagens possíveis, ou seja, que tem por objetivo o exame dos modos de constituição de todo e qualquer fenômeno como fenômeno de produção de significação e de sentido (SANTAELLA, 2007, p.2).

E ainda A teoria semiótica nos permite penetrar no próprio movimento interno das mensagens, no modo como elas são engendradas, nos procedimentos e recursos nela utilizados. Permite-nos captar seus vetores de referencialidade não apenas a um contexto mais imediato, como também a um contexto estendido, “pois em todo processo de signos ficam marcas deixadas pela história, pelo nível de desenvolvimento das forças produtivas econômicas, pela técnica e pelo sujeito que as produz” (SANTAELLA, 2005 Apud FERNADES, 2011, p.168).

A semiótica como estudo geral dos signos, é uma ciência concebida recentemente. Assim podemos destacar que Antes de tudo, cumpre alertar para uma distinção necessária: o século XX viu nascer e está testemunhando o crescimento de duas ciências da linguagem. Uma delas é a Linguística, ciência da linguagem verbal. A outra é a Semiótica, ciência de toda e qualquer linguagem (SANTAELLA, 2007, p.1).

Neste sentido podemos dizer que a Música, se apropria de variadas formas de linguagem, sugerindo vários campos para estudos e análises em torno da semiótica. Não obstante a Música é parte integrante de qualquer cultura e nesta direção Considerando-se que todo fenômeno de cultura só funciona culturalmente porque é também um fenômeno de comunicação, e considerando-se que esses fenômenos só comunicam porque se estruturam como linguagem, pode-se concluir que todo e qualquer fato cultural, toda e qualquer atividade ou prática social constituem-se como práticas significantes, isto é, práticas de produção de linguagem e de sentido (SANTAELLA, 2007, p. 2).

Entendamos a ascensão da guitarrada como um fenômeno cultural que propõe um nível de comunicação através da linguagem musical que cria e recria o valor simbólico e do imaginário em torno de si. Entendendo-se por fenômeno qualquer coisa que esteja de algum modo e em qualquer sentido presente à mente, isto é, qualquer coisa que apareça, seja ela externa [...], seja ela interna ou visceral [...], quer pertença a um sonho, ou uma ideia geral e abstrata da ciência, a fenomenologia seria, segundo Peirce, a descrição e análise das experiências que estão em aberto para todo homem, cada dia e hora, em cada canto e esquina de nosso cotidiano (SANTAELLA, 2007, p. 7).

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João de Jesus Paes Loureiro (2007) propõe um novo conceito que diz respeito à mudança de valor dos signos quando submetidos a diferentes perspectivas culturais: a Conversão Semiótica. Loureiro (2007, p.35 e 36) diz que “A conversão semiótica significa o quiasmo de mudança de qualidade do signo, na significação de um objeto ou ação, no ato do percurso de mudança de sua localização na cultura, no momento mesmo dessa transfiguração”. Podemos dizer que Joaquim de Lima Vieira, a partir de sua própria realidade, apropria-se de influências culturais externas, transformado-as, sugerindo desta forma novas significações para sua vida. Neste aspecto Loureiro (2007, p.11) afirma que O homem vive a remodelar de significações a vida, a fazer emergir sentidos no mundo em um processo de criação e reordenação continuada de símbolos intercorrente com a cultura [...] O homem cria, renova, interfere, transforma, reformula, sumariza ou alarga sua compreensão das coisas, suas idéias, por meio do que vai dando sentido à sua existência.

Não devemos nos omitir da relevância das ideias e pensamentos transformadores de Vieira e que nele podemos encontrar um caso metamórfico, que através da gênese da sua arte transformou sua realidade, o imaginário e costumes locais e a si próprio. Neste aspecto Loureiro diz que A conversão semiótica resulta em um modo de compreender a realidade de forma dinâmica e concernente a seu sistema processual de mudanças. Trata-se, inicialmente, de uma forma de recepção compreensiva e, si depois, transforma-se em condição explícita. Está vinculada intrinsecamente à práxis vivencial transformadora do homem e de sua realidade (LOUREIRO, 2007, p. 16).

Tomamos como conclusão, neste sentido, que Mestre Vieira é um caso de conversão semiótica, bem como o gênero musical criado por ele: a guitarrada. Considerações finais Neste trabalho pudemos verificar a trajetória de Joaquim de Lima Vieira no contexto da formação da Música Popular Paraense e a influência afro-latino-caribenha sofrida por ela. Vieira, nascido em uma ilha da região ribeirinha chamada Barcarena, transformou sua arte em um gênero musical mais tarde reconhecido como guitarrada. Verificou-se também que existem outros atores em torno da prática da guitarrada, porém, 327

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Vieira é considerado o criador e Mestre dos Mestres da Guitarrada: o Mestre Vieira. O trabalho elucidou fatos em torno do gênero guitarrada como prática artística e de atividade sociocultural, o que causou transformações significativas no cenário musical e no imaginário coletivo local. Levando em consideração a atmosfera simbólica criada em torno de Vieira e sua obra, encontrei em Charles Sanders Peirce conceitos que melhor elucidassem a ideia de signo e de semiótica a fim de respaldar a ideia principal desta pesquisa. Através do conceito de conversão semiótica, criada por João de Jesus Paes Loureiro, o qual diz respeito da mudança de significado do signo quando revelado em variadas perspectivas, pude concluir que Joaquim de Lima Vieira é um caso de conversão semiótica no momento em que é considerado e chamado de Mestre Vieira. Esta mudança no valor simbólico não transforma tão somente na figura de Vieira, mas também a sua realidade e o imaginário local. Esta transformação só é possível a partir do momento da concepção do gênero musical atribuído a ele: a guitarrada. Neste sentido a própria concepção da guitarrada configura um caso de conversão semiótica. Referências CASTRO, Fábio Fonseca. As Guitarradas Paraenses: Um olhar sobre a música, musicalidade e experiência Cultural / Fábio Fonseca de Castro – 2012. FERNANDES, J. D. C.. Introdução à semiótica. In: Ana Cristina De Sousa Aldrigue; Jan Edson Rodrigues Leite. (Org.). Linguagens: Usos e Reflexões V. 8. 1ed. João Pessoa: Editora da UFPB, 2011, v. 8, p. 1-185. LOUREIRO, João de Jesus Paes. A Conversão Semiótica: na arte e na cultura / João de Jesus Paes Loureiro. – Edição Trilíngue – Belém: EDUFPA, 2007. MESQUITA, Bernardo Thiago Paiva. A guitarra de Mestre Vieira: a presença da música afro-latino-caribenha em Belém do Pará / Bernardo Thiago Paiva Mesquita.- 2009. OLIVEIRA, Ivanilde Apoluceno de (Org.) Cartografias Ribeirinhas: saberes e representações sobre práticas sociais cotidianas de alfabetizandosamazônidas. 2. Ed. Belém: Eduepa, 2008. SANTAELLA, Lucia. O que é semiótica? São Paulo: Brasiliense, 2007. (Coleções primeiros passos;) SILVA, Rosa Maria Mota da. O Cordão de pássaro corrupião: uma prática musical Bragantina - Salvador: UFBA / Escola de Música, 2012. Sites visitados

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Disponível em http://www.revistaeletronica.ufpa.br/index.php/ensaio_geral/article/viewFile/169/94. Acessado em 08.04.2016 às 15:13. Disponível em http://www.teatro.ufba.br/gipe/arquivos_pdf/anais.pdf/ Acessado em 08.04.2016 às 15:24.

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Pontos rituais: a religiosidade afro-brasileira nas composições de Waldemar Henrique

Edson Santos da Silva UFPA/ PPGARTES- [email protected]

Sonia Chada UFPA/PPGARTES- [email protected]

RESUMO: O presente artigo apresenta um estudo sobre as sete músicas do compositor paraense Waldemar Henrique (1905-1995), compostas no período de 1937 a 1965, que apresentam relação com as religiões afrobrasileiras, e que são classificadas pelo compositor como “Pontos Rituais”. O objetivo principal é compreender de que forma e quais vertentes das religiões afro-brasileiras estão presentes nestas composições e quais fatores motivaram o compositor a utilizar em sua obra temas relacionados aos orixás e à liturgia das religiões afro-brasileiras. Palavras-chave: Waldemar Henrique. Pontos Rituais. Religiosidade afro-brasileira.

A circulação de negros nas principais cidades brasileiras já era uma realidade desde os primeiros séculos da colonização portuguesa, porém a população negra só começou a ter maior liberdade de se locomover nas cidades e consequentemente maior possibilidade de integração entre si, por volta da segunda metade do século XIX, quando negros libertos, e mesmo alguns que ainda não gozavam de total liberdade, podiam agregar-se juntamente com outros afrodescendentes em residências coletivas nos bairros urbanos, onde também ganhavam o seu sustento e assim juntar-se com outros negros, com quem poderiam compartilhar tradições e até mesmo falar a mesma língua, especialmente no caso daqueles que chegaram em períodos próximos à abolição da escravatura no Brasil, que ocorreu ao ano de 1888. Neste período, segundo Reginaldo Prandi, “Criou-se no Brasil o que talvez seja a reconstrução cultural mais bem acabada do negro no Brasil, capaz de preservar-se até os dias de hoje: a religião afro-brasileira” (PRANDI, 2000:59). Estas religiões, que se refizeram na Bahia e em outras localidades do país, foram responsáveis não apenas pela reconstrução das crenças e dos cultos aos deuses africanos, mas de muitos outros aspectos da cultura africana original, que acabaram espalhando-se pelo Brasil e até

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influenciando no surgimento de outras cultos, como a Umbanda no Rio de Janeiro e a Pajelança na Amazônia. Com a abolição da escravatura no final do século XIX e a consequente vinda de grande contingente de negros na condição de escravos libertos para as principais cidades em busca de trabalho, onde passaram a desenvolver atividades como artesãos, carregadores e os mais diversos tipos de ocupações, e que também passaram a reunir-se em associações com o objetivo de celebrar suas tradições, dentre elas suas crenças e costumes que passaram a ser preservados. Assim, a cultura africana vai se diluindo na formação da cultura nacional, abrangendo a língua, a culinária, a música e a religião entre outros aspectos culturais.Porém, para Reginaldo Prandi, Embora em muitos aspectos, sobretudo no campo das artes, possamos identificar no final do século XIX e no início do século XX manifestações culturais caracteristicamente negras, sua sobrevivência dependia de sua capacidade de ser absorvida pela cultura branca. É o caso exemplar da música popular brasileira, em que os ritmos e estruturas melódicas de origem africana sobreviveram na medida em que passaram a interessar os compositores brancos ou consumidores da cultura branca. Assim, o lundu negro abria caminho para o choro branco; a música dos candomblés dos negros pobres fornecia matriz para o samba nacional das classes médias. Em outras palavras, a preservação daquilo que é africano requeria apagar ou disfarçar exatamente a origem e a marca negra, num processo de branqueamento que atingiu todas as áreas, do qual a umbanda é o exemplo emblemático (PRANDI, 2000:59).

Neste sentido, as práticas culturais e a cultura afro-brasileira passaram a ser objeto de investigação de intelectuais e artistas que buscaram entender tanto a origem étnica dos povos trazidos da África para o Brasil, como diversos aspectos da cultura dos mesmos, dentre estes aspectos, uma atenção especial foi dada a religiosidade, como podemos observar em obras como: “A raça africana e seus costumes na Bahia” (1916), de Manuel Querino (18851-1923); “O negro brasileiro: etnografia religiosa” (1934), de Artur Ramos (1903-1949); “Religiões negras” (1936) e “Candomblé da Bahia” (1948), de Edson Carneiro (1912-1972); e “Notes sur le cultdes orisa et vodun” (1957), de Pierre Verger (1902-1996). Alguns desses autores também abordaram aspectos ligados ao folclore e a música, como Artur Ramos em seu livro “Folk-Clore negro no Brasil” (1935), entre outros. Porém, um dos trabalhos mais significativos sobre a música e religiões afro-brasileiras no século XX, foi o Livro “Música de feitiçaria no Brasil” (1933), de Mario de Andrade (1893-1945).

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Muitos compositores brasileiros do início do século XX munidos das informações disponibilizadas pelos intelectuais brasileiros, e mesmo europeus, em livros e artigos publicados sobre as religiões negras e impulsionados pela curiosidade e interesse em conhecer esta cultura que cada vez mais se tornara evidente, sobretudo na periferia das grandes cidades, passaram a produzir músicas voltadas à temática das religiões de matriz africana, que inclusive faziam referência aos orixás no tema de suas obras. Entre os compositores brasileiros que abordaram esta temática podemos citar: Heitor Villa-Lobos (1887-1959), que compõe em 1919 a série “Canções Típicas Brasileiras”, na qual consta a canção “Xangô”; Luciano Gallet (1893-1931) que compõe “Canto de Xangô” em 1929; José Siqueira (1907-1985), com a composição “O Rei é Oxalá”; Brasílio Itiberê (18961967) que escreveu a suíte para piano intitulada “Suíte Litúrgica Negra” (1937), com três movimentos: “Xangô, Ogum e Protetor Exu”; e o paraense Jayme Ovalle (1894-1955) com a composição “Xangô”, para citar apenas alguns. Waldemar Henrique da Costa Pereira (1905-1995), compositor paraense que a partir do ano de 1933 passa a residir no Rio de Janeiro e assim a acompanhar de perto as principais tendências da música brasileira do início do século XX, também parece seguir esta orientação, compondo obras direcionadas às religiões de matriz africana e que em seus temas fazem referência aos orixás e personalidades da liturgia dos cultos afro-brasileiros, como: “Min Orixá Xangô” (1934); “O que ôro não arruma” (1934) e “Mãe de terreiro” (1936). Porém, o que mais chama atenção no conjunto de suas obras que estão voltadas às religiões afro-brasileiras é o conjunto de sete composições que o musicólogo José Claver Filho, em seu catálogo de obras do compositor paraense, registra como “Pontos Rituais”. O que nos incentivou a elaborar as seguintes questões:Quais motivos levaram Waldemar Henrique a utilizar elementos da religiosidade afro-brasileira em suas composições? Quais vertentes das religiões afro-brasileiras são evidenciadas nestas composições? Pontos Rituais As composições que Waldemar Henrique classificou como “Pontos Rituais” são sete, embora alguns autores tenham destacado apenas três destas composições. A musicóloga Lenora Brito, em seu livro “Uma leitura da obra de Waldemar Henrique” (1986), apresenta uma análise de três dos sete pontos rituais, que ela chama de “A trilogia dos Pontos Rituais” (Sem-Seu, Abá-Logum e No jardim de Oeira); o musicólogo Vasco 332

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Mariz, em seu livro “Vida Musical” (1997) também destaca apenas as três composições analisada por Lenora Brito; o que também se repete no livro “Música em questão” (1914), onde o musicólogo Sérgio Bittencourt-Sampaio destaca entre as músicas que fazem referência às religiões afro-brasileiras os “Três pontos Rituais: Sem-Seu (Candomblé de Ilhéus), Abá-Logum (Louvação de Xangô) e No Jardim de Oeira (Ponto ritual de Umbanda) (Valdemar Henrique)” (BITTENCOURT-SAMPAIO, 2014:180). O que pode levar alguns leitores a compreender que as composições classificadas como pontos rituais sejam três ao invés de sete, como nos apresenta Claver Filho em seu catálogo, como podemos observar no quadro a seguir: Quadro 1 – Quadro dos Pontos Rituais TEMA Yan-san (1937) Abaluaiê (1948) No jardim de Oeira (1948) Sem Seu (1952) Abá-Logum (1954) Abaluaiê-cô (1960) Canto de Obá (1965)

GÊNERO Ponto Ritual Ponto Ritual Ponto Ritual Ponto Ritual Ponto Ritual Ponto Ritual Ponto Ritual

Fonte: Catálogo de Obras de Waldemar Henrique (CLAVER FILHO, 1978: 105-15).

Estas composições foram elaboradas para canto e piano. A primeira obra que Waldemar Henrique compõe relacionada aos pontos rituais do Candomblé foi produzida no ano de1937, neste ano o compositor paraense, em uma breve passagem pela Bahia, faz a harmonização do ponto de candomblé Yan-san. É interessante perceber que neste mesmo ano acontece na Bahia o “II Congresso Afro-brasileiro”, que teve a coordenação de Edson Carneiro e a participação de vários pesquisadores das religiões afro-brasileiras, além da divulgação de uma das principais obras sobre as religiões de matriz africana, o livro “Religiões Negras” publicado no ano anterior (1936) e “Negros Bantos” (1937), todos de autoria Edson Carneiro. A partir deste ano, Waldemar Henrique demonstra certo entusiasmo pelo estudo das religiões afro-brasileiras, chegando a realizar uma excursão para a Bahia no ano de 1939, onde realizou um recital no dia 14 de março, juntamente com sua irmã Mara. Neste ano, Waldemar Henrique realizou fecundas pesquisas sobre o folclore baiano. Sobre estas pesquisas, o compositor faz as seguintes considerações em entrevista ao jornalista João Carlos Pereira: Com isso nós andamos por todas aquelas “Menininhas do Gantois”, todas que tinham por lá; o Joãozinho da Goméia e não sei quê, eu achei um espetáculo

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/ Belém – 2016 Etnomusicologia na contemporaneidade: diálogos disciplinares e interdisciplinares. maravilhoso também aquelas coisas; e colhi uma quantidade enorme de apontamentos, daqueles candomblés (PEREIRA, 1984:56).

Estas informações que a primeira vista pode parecer sem grande relevância para o estudo da obra do compositor, são na realidade importantes direcionamentos para a melhor compreensão das composições que Waldemar Henrique produz relacionadas às religiões afro-brasileiras, pois nos revelam as relações que o compositor estabelece com pessoas e com as nações de candomblé da Bahia. Não podemos esquecer as recomendações de autores como Gilbert Durand, antropólogo francês que nos adverte sobre “a importância da investigação do trajeto antropológico do artista ao analisarmos sua obra” (2001:41); as ideias de Béhague, que postula que “o foco central da compreensão e do estudo da criação de ser o compositor em suas múltiplas dimensões sociocultural, e estético-ideológicas” (1992: 6). Neste sentido, não podemos esquecer a definição de Merriam (1964:7): “A música é um produto do comportamento humano e possui estrutura, mas sua estrutura não pode ter existência própria se divorciada do comportamento que a produz”. Personalidades como Mãe Menininha e Joãozinho da Gomeia são ícones importantes das nações do candomblé baiano. Maria Escolástica da Conceição Nazaré (1894-1986), ou “Mãe Menininha dos Gantois, como ficou conhecida, foi uma das Ialorixás mais importantes da Bahia e do Brasil” (BARBOSA JUNIOR, 2011:13), foi também uma das lideres mais influentes do Candomblé da nação queto. João Alves de Torres Filho (1914-1971), mais conhecido como Joãozinho da Gomeia, foi um polêmico sacerdote do Candomblé Angola que também transitava pelos terreiros do Gantois, sob os cuidados de Mãe Menininha. A relação de Waldemar Henrique com Joãozinho da Gomeia e sua importância como orientador do compositor paraense no que se refere a religiosidade afro-brasileira são também evidenciadas no texto de sua biografia: “O compositor realizou fecundas pesquisas folclóricas sob a orientação de Carlos Chiaccio, dos irmãos José e Clarival Valladares, de Silva Campos e do Pai-de-santo Joãozinho da Gomeia” (Claver Filho, 1978: 31). Da convivência e aprendizado que Waldemar Henrique estabeleceu com estas pessoas nos terreiros das religiões afrobrasileiras da Bahia de outros estados brasileiros surgiram as canções que o compositor classificou como Pontos rituais, sobre as quais apresentaremos algumas considerações a seguir: 334

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Yan-San (1937) O primeiro ponto ritual que Waldemar Henrique compôs, faz referência a Orixá Yan-san ou Iansã, “Orixá guerreira, senhora dos ventos, das tempestades, dos trovões e dos espíritos descarnados” (BARBOSA JR, 2014: 101), que segundo Reginaldo Prandi, significa “Mãe de nove filhos” (PRANDI, 2001: 294). Esta composição é uma das obras desaparecidas de Waldemar Henrique, foi composta no ano de 1937, porém, não foi possível encontrar sua partitura, nem tão pouco seu registro em LP; CD’S ou outro tipo de registro sonoro. Abaluaiê (1948) É o segundo ponto ritual composto por Waldemar Henrique.Para José Claver Filho, “é um arranjo que entrelaça a melodia original de um ponto ritual de Candomblé de Ilhéus (Bahia) a outros motivos folclóricos” (CLAVER FILHO, 1978: 36). Esta composição teve sua primeira audição no dia 2 de setembro de 1948, no auditório da ABI- Associação Brasileira de Imprensa, do Rio de Janeiro, em um evento em homenagem a esposa do Jornalista Roberto Marinho, que foi de grande relevância para a projeção do compositor no cenário nacional e internacional, sendo classificado pela imprensa carioca como um dos três eventos mais importantes do Ano de 1948 (CLAVER FILHO, 1978: 36). Esta composição pode ser consultada em sua versão original, localizada na Divisão de Música e Arquivo Sonoro da Fundação Biblioteca Nacional sob o registro M784. 3H-I24, ou através de uma fotocópia, que se encontra na biblioteca do Instituto Estadual Carlos Gomes. Nesta edição, que aparece como dedicada À Madeleine Grey138, constam as seguintes informações: Abaluaiê ou Obaluayê é grande orixá Do Candomblé nagô. Médico, por excelência, identifica-se com S. Sebastião, S. Salvador e S. Roque Seu traje: longo funil de palha Cobrindo-lhe a cabeça e os hombros, não deixando vêr sua fisionomia. Sua dança: passos rápidos para um lado e para outro; braço, em ângulo obtuso, apontando. Suas cores: preto e vermelho. Seu alimento: galo, porco, bode, Pipocas Seu dia: 16 de agosto. 138

Jovem cantora que Waldemar Henrique conheceu em Paris.

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Ilustração de Capa: Duas “ekédes” Invocando Abaluaiê.

No Jardim de Oeira (1948) Trata-se da harmonização de ponto ritual de Umbanda do Rio de Janeiro (CLAVER FILHO, 1978:109). Esta composição fez grande sucesso e também apresenta um relevante número de gravações. A música está composta em duas partes (A e B), onde na parte A os versos fazem referência as lembranças da infância do compositor em Portugal e na parte (B), utilizando-se de sincopas acentuadas, de um andamento mais animado, o compositor reforça o quadro da negritude que emana de um terreiro de Umbanda. Sem Seu (1952) A quarta composição do gênero pontos rituais é uma harmonização de motivos de candomblé de Ilhéus (Bahia), dedicada a Radamés Gnattali; Sem Seu “é entidade inferior desconhecida que se materializa numa pedra” (CLAVER FILHO, 1978: 113). Nesta composição, os versos trazem uma mistura de palavras da língua portuguesa e de línguas africanas, que embora de difícil tradução, mostram evidente relação com o Candomblé (Aruanda; Yemanjá; Ori) e outras que parecem sugerir a ideia de lugar (Congoricó ; Maionguê e Bujanjo). A música inicia com quatro compassos executados na parte mais grave do piano, com um caráter percussivo que lembra a batida dos tambores rituais, dando à música um caráter misterioso e ritualístico.

Abá-Logum (1954) Quinta composição de Waldemar Henrique neste gênero, apresenta um arranjo realizado no ano de 1954, de dois temas folclóricos registrados por Capiba e Camargo Guarnieri, respectivamente; dedicado a Edgar de Fabrie. “Abá-Logum é entidade festejada nos Xangôs de Recife” (BRITO, 1986:39). Nesta composição que apresenta sua letra toda em língua africana, a parte referente ao piano parece ter a intenção de reproduzir, os motivos rítmicos dos tambores rituais, em um “ostinato” que está presente desde o início da peça , até o 25º compasso e termina com um grande crescendo, que parece ser uma fervorosa louvação de Xangô.

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Abaluaiê-Cô (1960) Este ponto ritual encontra-se registrado no catálogo de Claver Filho (1978:105), que o identifica como Tema de Candomblé da Bahia arranjado no ano de 1960. Porém, esta composição não aparece na discografia do compositor, o que leva a crer que se trate de mais uma obra do compositor que ainda está desaparecida. Canto de Obá (1965) Que é a ultima composição do gênero pontos rituais, faz referência ao Xangô do Recife, esta composição teve sua partitura publicada recentemente pela Secretaria de Cultura do Estado do Pará, no livro “Waldemar inédito e raro Henrique” (2005:25), que teve a orientação de Lenora Brito. Nesta música o compositor faz referência à Orixá Obá, divindade do rio Níger, irmã de Iansã, que é a terceira e mais velha das esposas de Xangô, cultuada por alguns como um aspecto feminino de Xangô (BARBOSA JR, 2014:154).

Considerações Finais As composições classificadas como Pontos Rituais demonstram o interesse e o conhecimento de Waldemar Henrique das divindades e até mesmo da liturgia das religiões afro-brasileiras como o Candomblé, o Xangô e a Umbanda. Nestas canções, o compositor parece interessar–se mais pelos aspectos sonoros dos rituais das religiões afro-brasileiras, deixando o aspecto ritual em segundo plano, embora tenha tratado destes temas de forma digna e com o respeito que merece. Porém, Waldemar Henrique se declarado católico e devoto de São José. O que também é curioso, pois percebermos que no conjunto de sua obra não existem canções em homenagem aos santos católicos, à Virgem de Nazaré e tão pouco ao Círio de Nazaré,a maior festa religiosa do Brasil e um dos maiores eventos religiosos do mundo. Referências BARBOSA JÚNIOR, Ademir. O essencial do Candomblé. São Paulo: Universo do Livro, 2011. BÉHAGUE, Gerard. Fundamento Sócio Cultural da Criação Musical.Art19 (ago), p.5-17, 1992. BITTENCOURT-SAMPAIO, Sérgio. Música em questão. Rio de Janeiro: Mauad X, 2014. BRITO, Maria Lenora Menezes. Uma leitura da música de Waldemar Henrique. Belém: Conselho Estadual de Cultura, 1986. 337

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CLAVER FILHO, José. Waldemar Henrique: O canto da Amazônia. 2ª ed. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1978. DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário: introdução à arquetipologia geral. Tradução de Hélder Godinho. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001. MERRIAM, Alan P. the Anthropology of Music. Evans, Illinois: Northwestern University Press, 1964. PEREIRA, João Carlos. Encontro com Waldemar Henrique. Belém: Falangola, 1984. PRANDI, Reginaldo. De africano a afro-brasileiro: etnia, identidade, religião. Revista USP, nº 46, p.52-65, junho/agosto, 2000. . Mitologia dos Orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

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A presença dos pontos de raiz da Umbanda e do Candomblé na M.P.B.

Dayse Maria Pamplona Puget UFPA - [email protected] Resumo: A Música Popular Brasileira conhecida pela sigla MPB se apresenta em uma variedade de gêneros e subgêneros. Entre esses existem alguns provindos dos rituais da Umbanda e Candomblé que extrapolam o ritual e conseguem atingir um público que, embora não tendo conhecimento das suas origens e significados, os tocam, cantam e dançam em outros contextos. As músicas desses gêneros são conhecidas no ritual como música “de raiz,” ou “pontos”. A abordagem deste trabalho de pesquisa se estabelece nos fundamentos da Etnomusicologia, por se inserir em um contexto cultural. Esta pesquisa pretende: mostrar alguns textos de algumas destas músicas, relacionando seus significados, a origem destas religiões e de alguns orixás com seus símbolos. A metodologia se fundamentou em leituras sobre Etnomusicologia, Umbanda, Candomblé e Música Popular Brasileira. Para conhecimento de algumas destas músicas fiz um levantamento destes gêneros interpretados por intérpretes conhecidos na mídia. Concluí que existe a necessidade de maior abrangência deste estudo em busca de mais subsídios deste segmento da Música Popular Brasileira.. Palavras-chave: Pontos Rituais. Religiosidade afro-brasileira. Música Popular Brasileira.

A música popular brasileira (MPB) se apresenta em uma diversidade de gêneros que vem se constituindo ao longo do tempo. Os gêneros e estilos se distribuem em todo território brasileiro havendo alguns que vieram a se constituis como característicos de determinadas regiões, como o carimbo no Pará, o Axé na Bahia o Maracatú em Pernambuco. Dentre as músicas que fazem parte deste grande manancial em que se constitui a MPB encontra-se a música do ritual, que ultrapassando os limites da religiosidade e dos locais do culto, migram para música popular. Muitas delas se apresentam com outras instrumentações e gêneros, mantendo vivo, porém, o texto. Na manutenção do texto se revelam alguns vocábulos de significação própria ao ritual, sendo deste modo talvez não compreendido em seus significados por aqueles que a consomem. Um dos pontos a se considerar neste não entendimento se refere ao preconceito conforme esta afirmação. Uma das bases do preconceito (talvez a mais visível) é a ignorância. Literal e etimologicamente, ignorar significa ‘não saber’. O que não conhecemos nos provoca medo. Nos campos da Espiritualidade e da Religião não deveria haver espaço para o medo, mas, sim, para o respeito e o diálogo, seja interna ou externamente (BARBOSA JUNIOR, 2014, p.313).

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O fato é que estas músicas fazem parte do repertório da M.P.B. se inserindo no contexto cultural e a partir desta inserção passa a fazer parte dos estudos e análises da Etnomusicologia porquanto são construídas culturalmente. A função da música na sociedade humana, o que a música faz em último caso, é controlar o relacionamento da humanidade com o sobrenatural, intermediando pessoas e outros seres, e dando-lhe suporte à integridade dos grupos sociais individuais. Isso é feito expressando os valores centrais relevantes da cultura em formas abstratas... Em cada cultura a música funciona para expressar, de uma forma particular, uma série de valores particulares (NETTL, 1983, p.159).

A música do ritual como objeto de estudo da Etnomusicologia é analisada em seus diversos elementos constitutivos; em relação ao repertório e composição é importante terse conhecimento que: (...) músicas tradicionais do candomblé cujo estilo e repertórios têm funções litúrgicas bem definidas, onde seria impensável substituir um canto tradicional por uma nova composição, considerando a estreita relação estabelecida entre um canto, uma melodia e sua letra e o efeito litúrgico desejado e esperado. Portanto, em casos como este, o sentido da tradição é praticamente inalienável (BÉHAGUE, 1992, p. 12).

As músicas que fazem parte dos rituais da Umbanda e Candomblé obedecem a padrões diversos daqueles observados entre os compositores da MPB. As composições do ritual são realizadas de modo inconsciente e muito embora pouco se saiba a cerca do mecanismo do que poderia vir a ser composição inconsciente, ela “representa uma das fontes mais poderosas de revelação ou criação musical...” (BÉHAGUE, 1992, p. 8). É grande o número de músicas presentes na MPB que se pode incluir como provindas dos rituais da Umbanda e do Candomblé. Prandi (2005)139 catalogou 761 letras da MPB referente ao período de 1902 a 2000 que fazem referências a orixás e a elementos diversos destes rituais. É importante neste contexto, ressaltar a relação da música com o sobrenatural. Se a função da música é controlar as relações de um grupo com o sobrenatural, precisamos saber por que os membros de um grupo usam a música para exercer tal controle e por que um gênero particular de música, enquanto distinto de todos os outros, pode ser empregado para outros fins (NETTL, 1983, p.159).

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Fonte: Reginaldo Prandi (USP http://www.fflch.usp.br/sociologia/prandi/orixampb.pdf

e

CNPQ).

Disponível

em:

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Estas manifestações contudo, não escapam ao conhecimento destas religiões visto que são classificados em: pontos de raiz, que são aqueles que vêm da espiritualidade e pontos terrenos, que são aqueles criados por encarnados e que posteriormente são ratificados em suas apresentações à religião (BARBOSA JUNIOR, 2014). Esta afirmação parece que enquadra o aparecimento dos pontos em outros momentos que não o ritual. Entretanto, para encontrar as causas deste fenômeno, são necessárias análises que ainda esbarram em dificuldades que segundo Nettl (1983) derivam da “... separação entre busca por funções, que requerem muito pouca atenção à música, e a busca pelas estruturas sonoras” (SEEGER, 2008, p. 250). O aparecimento desses gêneros musicais no Brasil oriundo das práticas religiosas dos negros escravos que através de várias gerações foram criados em diferentes épocas e costumes através de dinâmicas das relações sociais, foram evoluindo para se tornar entretenimento e formas lúdicas também dos brancos (SIQUEIRA, 2012).

No ritual as músicas são conhecidas como pontos. Os pontos apresentam diversas funções “os pontos cantados impregnam o ambiente de determinadas energias enquanto o libera de outras, representam imagens e traduzem sentimentos ligados a cada vibração...” (BARBOSA JUNIOR, 2014, p.40). Algum conhecimento a cerca das origens da Umbanda e do Candomblé é necessário para que se possam compreender alguns significados. A Umbanda considerada uma religião genuinamente brasileira, é instituída no Rio de Janeiro em 15 de Novembro de 1908, mas segundo consenso de alguns teóricos não neste ano, mas em 1920 com uma concepção de variada procedência, entre essas: a índia, a negra e a branca, é conhecida como “Senhora da Luz Velada”. (...) marcada pela busca de uma legitimação diante da sociedade e do Estado brasileiro. Apresenta características próprias, suas canções, danças, oferendas, trabalhos, representando um papel importante na vida religiosa das pessoas que a praticam. É uma religião essencialmente urbana desde o seu surgimento associado aos fenômenos de industrialização e urbanização, até os dias de hoje (BORGES, 2006, p. 226).

A Umbanda é encontrada em todo território brasileiro e procura sua legitimação e institucionalização dentro da sociedade. O termo procede de duas línguas africanas: o umbundo e o quimbundo designando: arte de curandeiro, ciência médica, medicina (BARBOSA JUNIOR, 2014). 341

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Esta religião apresenta uma adaptação ao contexto de onde se localiza, apresentando ramificações segundo uma maior ou menor aproximação com os elementos étnicos, branco e negro. A variação se daria em três vertentes principais, quais sejam: A branca, a preta e a mista. A Umbanda Branca caracteriza-se pela adoção da doutrina espírita kardecista e pela negação das origens e influências negras. A Umbanda Mista caracteriza-se pela mistura das vertentes branca e negras, isto é, apresenta elementos do Kardecismo e do Catolicismo associados a algumas práticas emprestadas das religiões afro brasileiras. E na Umbanda Preta predomina a associação com os cultos afro-brasileiros... (SERRA, 2001, p. 221, apud BORGES, 2006, p. 226).

Esta matriz africana não é a única “é um sistema religioso formado de diversas matrizes, com diversos elementos cada” (BARBOSA JUNIOR, 2014, p. 24). Estes elementos seriam segundo este autor: o Africanismo; o Cristianismo; o Indianismo; o Kardecismo; e o Orientalismo. Percebe-se desta forma que o ecletismo e o sincretismo são elementos constitutivos desta religião, Com relação ao Candomblé, suas origens no Brasil se iniciam nas senzalas, porém muito antes os africanos que foram escravizados no Brasil já tinham suas crenças em sua terra de origem. O fato de na África Ocidental todos os atos do dia-a-dia regerem-se por vontade natural, o que subordinava os homens a constantes encantamentos e sortilégios, levou os africanos a desenvolverem um complexo ritual de vida que exigia, para a praticamente cada ação desempenhada, uma invocação especial, através de cantos ou danças. (TINHORÃO, 2008, p.123).

Este teórico afirma a esse respeito, que o canto e a dança não se faziam presentes só nos ritos, mas em momentos que eram marcantes na vida deles “nascimento, puberdade, casamento, morte... cataclismos, lutas de guerra, vitórias, caçadas, confraternizações... as canções de trabalho.” (TINHORÃO, 2008, p. 123). Para cultuar os Orixás que no Brasil eram tidos pela comunidade católica como associados ao mal e ao Diabo, os africanos faziam seus cultos de uma forma velada, passando a cultuar os diversos Orixás em um mesmo culto (BARBOSA JÚNIOR, 2014). O uso da metáfora ocultava o sentido dos cantos e só era possível o seu entendimento de uma forma hermética entre os componentes do grupo. Desta forma, seus cultos, deram origem ao sincretismo, associando a cada santo da Igreja Católica, um Orixá (TINHORÃO, 2008). 342

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A música, portanto é um dos elementos de extrema importância no ritual (também conhecido como gira) da Umbanda e do Candomblé. (...) os pontos cantados são alguns dos responsáveis pela manutenção da vibração das giras e de outros trabalhos. Verdadeiros mantras, mobilizam forças da natureza, atraem determinadas vibrações, Orixás, Guias, Entidades (BARBOSA JÚNIOR, 2014, p.40).

No Candomblé como na Umbanda usam-se diversos instrumentos musicais percussivos e cada casa utiliza os instrumentos conforme seu ritual140. Entretanto, o que se percebe quando presentes na MPB, é que estes pontos podem ou não vir com instrumentação percussiva e também com outros instrumentos que não os usados no ritual. Referente a Oxum141, este ponto foi gravado por Maria Bethânia no CD Olho D’Água em 1992. Cantado na tonalidade Si menor, ad libitum em ritmo 4/4, em gênero funk lento tem instrumentação com voz, violão e efeitos percussivos. Ponto de Oxum Nhem, nhem, nhem Nhem, nhem, ô xorodô Nhem, nhem, nhem. É o mar, é o mar Fê, fê, Xororô Xangô vivia em guerra Conhecia toda terra Tinha ao seu lado Iansã para lhe ajudar Oxum era rainha Na mão direita tinha O seu espelho onde vivia A se mirar Os Orixás na Umbanda tem o significado de “divindade que habita a cabeça” (BARBOSA JUNIOR, 2001, p. 42). Explicando mais pormenorizadamente: cada Orixá relaciona-se a um elemento da natureza e também representa pontos de força; Visto que o ser humano e seu corpo estão em estreita relação com o ambiente (o corpo humano em funcionamento contém em si água, ar, componentes associados à terra, além de calor, relacionado ao fogo), seu Orixá tratará de cuidar para que essa relação seja a mais equilibrada possível (BARBOSA JUNIOR, 2014, p. 42).

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Fonte: https//o candomblé.wordpress.com/2009/23.instrumentos e ritmos-e rimos Fonte:Gonçalves, You Tube. Filosofia Espiritualista

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Oxum é um Orixá feminino, da fertilidade e da feminilidade, relacionado às águas doces, águas das cachoeiras, águas dos rios, das lagoas, de águas que não são de pântano e em algumas situações, também às águas da beira. Sua feminilidade se apresenta através de joias, perfumes, pulseiras, colares e também com espelhos. Oxum é Orixá ligado à comunicação, presságios, sentimentos que inspiram o amor união e a fraternidade. Seu sincretismo está associado a várias formas de Nossa Senhora. Suas cores são o azul e o amarelo, seus símbolos são a cachoeira e o coração. Sua saudação é Ora ye ye o! A ie ie u ! (Salve Mãe das Águas). Seu dia é comemorado em 12 de Outubro (BARBOSA JUNIOR, 2014). Outro ponto que faz sucesso na MPB é do Orixá Oxóssi. Gravado por Maria Bethânia em 2002 no CD De A a Z, na tonalidade Ré Maior, compasso binário, gênero baião, Instrumentação: voz, naipe de metais, efeitos percussivos. Ponto de Oxóssi Galo cantou Tá chegando a hora Oxalá tá me chamando Caçador já vai embora Esse Orixá é da caça e da fartura, tem como um dos objetivos o equilíbrio da natureza através das ações do homem, evitando os males que agridem a natureza, agindo com ela de forma harmônica. Rege a linha dos caboclos da Umbanda e desta forma “pode aproximar-se mais do índio do que do negro africano” (BARBOSA JÚNIOR, 2014, p. 67). O sincretismo de Oxóssi é São Sebastião, suas cores são verde e azul celeste claro, seus símbolos são o arco e flecha, sua saudação é Okê Arô (Salve o Rei que fala mais alto) seus pontos da natureza são as matas e seu dia é 20 de Janeiro (BARBOSA JUNIOR, 2014). Os pontos que são cantados para Exus e Pombagiras aparecem também na MPB. O “ponto” a seguir é para o Exu Tranca Rua ou Tranca Ruas142 que faz parte do trabalho do compositor e cantor Martinho da Vila. Este se encontra no CD Festa de Umbanda. Foi gravado na tonalidade Ré maior, compasso binário, gênero batuque, com voz, coro, atabaques e efeitos.

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Fonte: www.youtube.com/watch/v=wZINno-kdyY

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O Sino da Igrejinha O sino da igrejinha faz Belém blem blom O sino da igrejinha faz Belém blem blom Deu meia noite o galo já cantou Seu Tranca Rua que é o dono da Gira Ô Corre Gira que Ogum mandou

Consideradas entidades “de esquerda”, estes espíritos tiveram vida difícil enquanto estavam no corpo físico, relacionada à prostituição, cabarés e a outros locais similares. Na espiritualidade agem na prática do bem e embora nas trevas executem a Lei, desta forma, praticam a caridade (BARBOSA JUNIOR, 2014). (...) é Orixá bastante controvertido e de difícil compreensão – o que certamente o levou a ser identificado como o Diabo cristão. Responsável pelo transporte das oferendas aos Orixás e também pela comunicação dos mesmos é, portanto, seu intermediário. Como reza antigo provérbio, Sem Exu não se faz nada (BARBOSA JUNIOR, 2014, p. 137).

As suas cores são o preto e o vermelho, seu símbolo é o tridente, seus pontos de natureza são as encruzilhadas, sua saudação é Laroiê, Exu Exu, Mojubá. O sincretismo relaciona-se a Santo Antonio de Pádua e seu dia é comemorado no dia deste santo, isto é, 13 de Junho (BARBOSA JUNIOR, 2014). Com relação à Pombagira ou Pombogira, são Exus do sexo feminino. O texto da música a seguir é para essas figuras femininas. Tem arranjo e interpretação de Martinho da Vila no CD Festa de Candomblé, gravado na tonalidade Ré Maior, compasso binário, gênero batuque, instrumentação: voz e coro, atabaques e efeitos. Exus. Exu laroy é Mojuba Mojuba cojuba exu afonagera (laroy exu) Oi sete, oi Sete Encruzilhada Toma conta e presta conta No romper da madrugada Ninguém pode comigo eu posso com tudo Lá na encruzilhada ela é Veludo Pomba-gira Jamukangê iaiá Pomba-gira Jamukangê iaiá

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Os “caboclos” fazem parte de uma linha da Umbanda “... formam verdadeiras aldeias e tribos na Astral, representados simbolicamente pela cidade Jurema...” (BARBOSA JUNIOR, 2014, p. 206). Conclusão Este trabalho se propõe a mostrar algumas músicas oriundas de “pontos” da Umbanda e Candomblé que foram sendo incorporados ao repertório da Música Popular Brasileira, a origem destas religiões e os significados dos Orixás a elas relacionados. Estas músicas fazem parte do contexto cultural estando inseridas nos estudos da Etnomusicologia. Na metodologia fiz um levantamento bibliográfico em Etnomusicologia, em obras sobre Umbanda e Candomblé e outras relacionadas à MPB. Para conhecer algumas destas músicas fiz um levantamento discográfico que inclui intérpretes consagrados na MPB. Constatei que esta vertente se apresenta em vários gêneros musicais, estruturas variadas tanto em ritmo como também em melodia, harmonia, e instrumentação. Por fazer parte do repertório da Música Popular Brasileira, estas músicas egressas de rituais se apresentam como um campo fértil para análises mais abrangentes, não só no campo da Etnomusicologia, mas também em outras áreas do conhecimento que se interagem com a música. Referências: BARBOSA JÚNIOR, Ademir. O Livro Essencial de Umbanda. São Paulo, Ed. Universo dos Livros, 2014. BEHÁGUE, Gerard. Fundamento Sócio Cultural da Criação Musical. Art 019, In Revista da Escola de Música UFBA 5-17. Agosto 1992. BORGES, Mackely Ribeiro. Umbanda e Candomblé: pontos de contato em Salvador Bahia. XVI Congresso da Associação de Pesquisa e Pós Graduação em Música (ANPPOM) Brasília, 2006. NETLL, Bruno. The Study of Etnonomusicology: twenty nine issues and concepts. Urbana of Illinois Press, 1983. SEEGER, Anthony. Etnografia da música. In Cadernos de Campo: revista dos alunos de pós-graduação em Antropologia Social da USP. Vol. 1, n.1 São Paulo, 2008. SIQUEIRA, Magno Bissoli. Samba e identidade nacional: das origens à era Vargas. 1.ed.. São Paulo: Editora UNESP, 2012. TINHORÃO, José Ramos. Os Sons dos Negros no Brasil. Cantos, danças, folguedos: origens. São Paulo, Ed. 34, 2008.

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