Desejo de Imagem: notas sobre \"cultura\" e três cineastas indígenas

July 26, 2017 | Autor: Guilherme Cury | Categoria: Cinema, Comunicação Social, Antropología, Indígenas
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS COMUNICAÇÃO SOCIAL HABILITAÇÃO EM PUBLICIDADE E PROPAGANDA

DESEJO DE IMAGEM Notas sobre “cultura” e três cineastas indígenas.

José Guilherme Cury Pansanato

Belo Horizonte 2014

DESEJO DE IMAGEM Notas sobre “cultura” e três cineastas indígenas. José Guilherme Cury Pansanato

Monografia apresentada ao curso de Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial à obtenção do título de bacharel em Comunicação Social.

Orientador: Roberta Oliveira Veiga Co-orientador: Paulo Roberto Maia Figueiredo

Belo Horizonte 2014  

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RESUMO

Nos processos de formação em cinema em aldeias indígenas, brotaram questões em torno do conceito de “cultura”, que serão trabalhadas no decorrer dos três momentos desse ensaio monográfico, correspondentes a três etnias indígenas: Yanomami, Guarani e Xakriabá. Em cada um dos casos houve a importante participação de um cineasta; Morzaniel Iramahi Yanomami, Alberto Alvares Guarani, e Edgar Corrêa Xakriabá. Eu retornarei aos diários de campo, filmes e rememoração das seis oficinas que participei como formador. A princípio, a pergunta que vai amalgamar e nortear os casos é: Qual o “desejo de imagem” de cada pesquisador? Palavras-chave: filme etnográfico, desejo de imagem, cineastas indígenas, “cultura com aspas”

ABSTRACT

In the proceeding of cinema workshops on indigenous villages, some questions around the concept of "culture" came up and they wich will be worked throught three moments in this monographical essay, corresponding to three indigenous etnies: Yanomami, Guarani e Xakriabá. With the important participation in each case of a film maker; Morzaniel Iramahi Yanomami, Alberto Alvares Guarani and Edgar Corrêa Xakriabá. I will return to the notes, movies and memories within the six workshops that I participated as instructor. At first, the question that will amalgamate the cases and give them direction will be: What is the "image desire" of each researcher?

Keywords: Etnographic films, image desire, indigenous movie makers, “culture with quotation marks

 

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AGRADECIMENTOS

Primeiramente gostaria de agradecer aos meus amigos Alberto Alvares, Edgar Corrêa e Morzaniel Iramahi por me acompanharem nessa pesquisa, pelas vivências e trocas de saberes incríveis que passamos juntos que levarei para minha vida. Gostaria de agradecer também a todas pessoas das comunidades indígenas que me acolheram durantes as formações em cinema: Terra Indígena Guarani (Pataxó), Romildo e sua família na aldeia Imbiruçu; Terra Indígena Xakriabá (MG), Joel na aldeia Sumaré, Nei Leite e Hilário na aldeia Barreiro Preto; Terra Indígena Biguaçu (SC) à toda família do seu Alcindo e dona Rosa na aldeia Yynn Morothi Wherá. [Aqui um agradecimento especial a seu Alcindo, que aos 105 anos de idade, não cansa de ajudar/curar os outros e me ensinou o quanto devemos agradecer a Nhanderu por estarmos vivos a cada do nascer do sol (Yamandu Mirim).] Não poderia de deixar de agradecer os sábios da minha família, meus avós, que fundamentam meu modo de vida. Salim Cury (Gide) por me ensinar a beleza de ter uma vida simples e próxima dos cantos dos pássaros; a minha querida avó Palmira (Site) que me ensinou a “fazer-se um” com o outro sempre; a minha mentora vó Lola, que me protege, abre meus caminhos e se faz presente sempre através do cheiro de uma arruda; ao meu vó Gelim, que me despertou para enxergar a beleza no silêncio do rio quando me levava para pescar. Aos meus pais queridos, Neife e Sylvio, que acreditaram nos meus sonhos e me deram suporte para voar longe. A minha companheira Juliana, que além de me orientar no texto, acompanhou com muita cumplicidade a difícil gestação das minhas ideias. Gostaria de agradecer também aos meus amigos de Recife, Cainã, com seu conhecimento holístico da biologia e filosofia de vida; Tiê que me proporcionou uma qualidade de vida na mata cercada de discos vinil; O grande Fernando Beiramar, o Rei do Açaí, mistura viva afro-indígena que me possibilitou grandes ensinamentos sobre as matas, as trilhas e o açaí em Dois Irmãos, além de ter sido a personagem do meu primeiro curta documentário; ao grande mestre de capoeira Junior “Bob Marley” e a todo amigos da produção do documentário (Simões, Çarungaua, Gibran e Lucas) que me ensinaram sobre direção, fotografia e iluminação. Agradeço a todos “chegad@s” de BH, Dan Ferreira que compartilha comigo o fazer cinema e a complexidade de ser “paulineiro”, Abu meu mano, que com ritmo e poesia acompanhou as vivências na FAFICH e ao psicólogo da Subsolar, Olavinho e tantos amig@s outros que agradeço pelos encontros, músicas e D.A. Gentileza. Um mega salve para meu  

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“cumpadi” Pedro Bomba que despertou na minha pesquisa um olhar político e na minha vida bombas de poesia marginal. Aos companheiros de trabalho do OEEI – UFMG e militantes pelos direitos a educação diferenciada indígena, Ana Gomes, Marina França, Paulo Maia, Silvia, Henrique Teixeira, Aninha, Helder e aos pesquisadores indígenas Ye’kuana, grande guerreiro Mauricio e Viviane grande artista. Aos querid@s parceiros de formações em audiovisual, Portella e Julinha Bernstein, por me mostrarem uma maneira incrível de compartilhar o conhecimento. Aos professores da UFMG, que proporcionaram uma mudança de paradigma dentro da comunicação social, em especial a Regina Mota que me ensinou a fazer a antropofagia moderna, ao Nísio Teixeira que além de me indicar o trabalho do OEEI, ajudou em muitos processos burocráticos quase durante toda minha graduação. A Roberta Veiga, que se motivou a me orientar pelo projeto envolver uma paixão e me instigou a pensar novas maneiras de escrever. Para finalizar, agradeço principalmente a todos incantos da floresta, que mantêm meu pensamentos e corpo alinhados. Okê Arô.

 

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Tanto faz como tanto fez (Pedro Bomba) “Tanto faz Tupã, como tanto fez Nhanderu, Kaiowá, Tupinambá, Xucuru, Xocó, Truká, Tucako. Olha só que engano esse livro de história Tá vendo lá? Olha lá! Brasília virando aldeia, Takape Burduna Semeia Uma flechinha certeira da mão do guerreiro E no instante de repente A flechinha faz um buraco no peito da presidente E ai tanto faz como tanto fez Se a primeira vez, Foi o português Porque agora não adianta mais de nada Você viu lá a Esplanada? Foi toda retomada, Os ministros nem quiseram crer, Mas acredite Era o caboco no poder”

Dedico minha monografia a todos os indígenas que estão na luta por suas terras tradicionalmente ocupadas e a todos que tombaram nesta guerra que ainda faz muitas vítimas no Brasil.

 

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .08 Encontro com os Pataxó: primeiras indagações sobre “cultura” e imagem

MOMENTOS I. Filme-documentário com potencial jornalístico. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .21 Estudo de caso yanomami - Pesquisador Cineasta Indígena: Morzaniel Iramahi

II. O desejo em “apre(e)nder” a cultura. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .35 Estudo de caso guarani - Pesquisador Cineasta Indígena: Alberto Alvares

III. A câmera como uma arma que caça imagens . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .47 Estudo de caso xakriabá - Pesquisador Cineasta Indígena: Edgar Nunes Correa Kanaykõ

CONSIDERAÇÕES FINAIS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .58

CADERNO DE IMAGENS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .61 REFERÊNCIAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .71

 

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Encontro com os Pataxó: primeiras indagações sobre “cultura” e imagem

Em uma despretensiosa disciplina eletiva de Turismo de Base Comunitária, no segundo semestre de 2010, tive o primeiro “encontro”1 com indígenas através da etnia Pataxó, na aldeia Imbiruçu, município de Carmésia – MG. Em Minas Gerais, os Pataxó vivem em seis comunidades, das quais três – Imbiruçu, Sede e Retirinho - estão localizadas na Terra Indígena Fazenda Guarani. As comunidades de Minas Gerais se formaram, indiretamente, a partir do episódio do “Fogo de 51”2 no Sul da Bahia. Foi nesse “encontro” que começaram a surgir alguns questionamentos sobre como se dá a construção de um discurso no momento do fazer cinematográfico. A pergunta que nos guiava era: qual o “desejo de imagem” dos indígenas? De certa forma essa reflexão acompanharia toda minha trajetória acadêmica e me levaria a pesquisar a relação entre cinema e antropologia. ∆∆∆∆∆ Depois de duas horas de viagem, saindo de Belo Horizonte, após o município de Carmésia, a placa “Bem vindos a Imbiruçu” aparecia na estrada. Chegamos no “campinho de futebol” da aldeia em um ônibus da UFMG, com aproximadamente 20 alunos acompanhados da Prof.ª Fabiana Bernardes. De cima de um barranco, Romildo Alves, cacique da aldeia, acenava para subirmos para casa de Dona Rosa, mais tarde descobriríamos que ela era a moradora mais antiga da aldeia e que sua união com o falecido Seu Bastião deu origem as mais de vinte famílias daquela comunidade. Adentramos em sua casa, praticamente uma “porta do encontro”, onde ela nos esperava com um sorriso raro, quase infantil. Naquela tarde de chuva, aquela senhora não se                                                                                                                 1

O conceito da palavra “encontro” foi influenciada pela relação Eu-Tu desenvolvida na antropologia filosófica de Martin Buber. Na disciplina de Turismo de Base Comunitária, tivemos um breve contato com a perspectiva buberiana no texto: “Sobre o sentido da proximidade. Implicações para um turismo situado de base comunitária” de Roberto Bartholo (2009). Nosso trabalho de campo desenvolvido em Imbiruçu, buscou a partir dessa referência uma troca de conhecimentos pela experiência, assim, não nos restringimos à proximidade espacial, mas ao sentido dessa proximidade, vivenciado no “entre” das relações do tipo Eu-Tu, que elucida um “encontro face a face”. “... o ente que é invocado nesta relação é inefável porque o Eu fala com ele, não fala dele.(...)Falar com ele é deixar que ele realize sua própria alteridade. A relação Eu-Tu, portanto escapa do campo gravitacional da Eu-Isso, no qual o objeto internalizado permanece cativo”. (Lévinas in Bartholo, 2009: 48) 2 O motim conhecido como “Fogo de 51”, no qual foram envolvidos os Pataxó da Aldeia de Barra Velha, resultou em violenta repressão por destacamentos policiais de Porto Seguro e Prado, na morte de um indígena e dos dois líderes não indígenas, na prisão de 38 índios, entre os quais o capitão pataxó Honório Borges. O incêndio da aldeia provocou a dispersão dos demais em desespero.  

 

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satisfez enquanto não viu todos sentados, como que sob suas asas, a nos esquentar. Já acomodados naquela sala “maternal”, o cacique Romildo, filho de D. Rosa, se apresentou ao nosso grupo, que tentava expressar quais eram as intenções com aquele contato. Romildo, como se lesse as intenções no ar, expôs qual seria o sentido da visita para ele: “Nós ensinamos as nossas brincadeiras e vocês nos ensinam alguma coisa de sua cultura”. A troca, o “encontro com o outro”. Aquele contrato foi selado por um símbolo da unidade e força pataxó, ele nos trouxera o Timbéro – cachimbo composto por uma mistura de ervas medicinais, raízes, sementes e a resina de árvore. O Timbéro, quando fumado em roda, representa para os Pataxó a proteção dos antepassados e dos espíritos da natureza. A tarde se findara em conversas, e antes de despedirmos fomos acompanhados pelo cacique até o Mongongá – lugar sagrado onde se realizam a maioria dos seus rituais. No caminho, disse ao Cacique que fazia Comunicação Social, ele logo relacionou a “troca”, que havia falando mais cedo na casa de sua mãe, e então, me convidou para realizar o documentário sobre a “Festa das Águas”. A “Festa das Águas” é uma comemoração realizada pelos povos da etnia Pataxó, para a fartura dos alimentos e a chegada das águas no mês de outubro, quando anualmente acontece o ritual. Em Imbiruçu a festa teve início em outubro de 1991, e se manteve por muito tempo com a participação interna, vinte anos mais tarde, a comunidade abriu a festa para os não-indígenas. Não sabia ao certo por onde começar, apenas tinha aceitado, e nesse acordo criou-se uma forte relação de cumplicidade com os integrantes da Aldeia Imbiruçu. Em minhas visitas à aldeia, procurava entender como eles pensavam sua cultura através de imagens, que concepção de cinema 3 teriam. Na época, iniciando minha formação em audiovisual, eu buscava referências nos documentários, tanto do ponto de vista técnico, quanto no sentido relacional de se fazer imagem sobre e com o “outro”. Meu olhar era guiado pela tentativa de acolher o que os indígenas tinham para compartilhar. Nessas idas e vindas da aldeia, se formou uma equipe de amigos, que em alguns feriados, sem qualquer vínculo institucional, levava equipamentos de filmagem para Imbiruçu. ∆∆∆∆∆ Em 2011, uma semana antes da festa, fomos para aldeia acompanhar os preparativos.                                                                                                                 3

Busco nesse caso considerar uma acepção ampla de cinema, como um dizer sobre a produção e a relação entre as imagens, sem a separação de suporte ou veículo de transmissão.  

 

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O cacique Romildo e o vice cacique Soĩ, sugeriram filmar algumas “pílulas” de filmes, convidando as pessoas para a Festa das Águas, buscando compartilhar seus rituais e suas brincadeiras. Logo pela manhã, próximo ao Mongongá, as mulheres e os homens faziam os preparativos da festa e as crianças brincavam de descer um barranco em uma tampa de caixa d`agua. Foi nesse contexto que filmamos essas “pílulas”. Mesmo resumindo as falas das lideranças, em função do curto tempo de duração do filme, elas carregavam em si um valor documental sobretudo nos corpos e falas do cacique e vice cacique. Através de um plano sequência, essas imagens acolhiam de certa forma vestígios do que Manuela Carneiro da Cunha (2009)4 chama de a “cultura em si” ou “cultura sem aspas”: os sons das crianças brincando, Kayano, professor de plantas medicinais, passando ao fundo do plano carregando lenha, informações quase imperceptíveis no vídeo. No entanto, o que estava no primeiro plano, era mediado pelo uso reflexivo da noção antropológica de cultura por eles politicamente apropriado, configurando a “cultura para si”, ou seja, “cultura com aspas”. “De todo modo, não resta dúvida de que a maioria deles adquiriu essa última espécie de “cultura”, “a cultura para si”, e pode agora exibi-la diante do mundo... essa é uma faca de dois gumes, já que obriga seus possuidores a demonstrar performaticamente a “sua cultura”.” (CUNHA, 2009: 313)

O que foi capturado pela câmera era exatamente o entrecorte de duas diferentes noções da cultura, de certa maneira a cultura e a “cultura”, se entrelaçam no ato da filmagem. No momento em que Romildo e Soĩ elaboravam esse próprio conceito de “cultura” falando sobre a importância da festa, a preservação da natureza e costumes, demostravam performaticamente diante da câmera o que é “cultura com aspas” pataxó. Enquanto isso, em menor escala de interferência nas imagens, o som das crianças brincando, junto das machadadas de Kayano e o canto do camburé, compunham a trilha sonora do que seria a “cultura em si”(sem aspas). Os frutos dessa troca foram quatro filmes, em um formato “pílula”, pensado para ser veiculado no Youtube, e o que mais chamou atenção, foi justamente a possibilidade de colher essas impressões sobre o discurso gravado. Num dos filmes5, o cacique Romildo explica a festa: “Nessa data festiva, nos mostramos nossas músicas, nossas brincadeiras, nossos

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Cf. “Cultura com aspas” de Manuela Carneiro da Cunha (2009) Ver filme descrito “Festa das Águas Pataxó” (2011) Link: http://youtu.be/DsBWUgMJKbE?list=UUBfx0YA3-ksYWb26O5j1F7A - Acessado a última vez em 10 de novembro de 2014

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cânticos, mas tudo em cima do ritual, tudo no indígena mesmo. Todo mundo caracterizado, pintado. É o momento que nós estamos invocando os espíritos, todos espíritos da mata, os protetores da floresta, como Pai da Mata, Hamay, Txopai que é o Deus da Água. Então a gente faz esse ritual para que a nossa comunidade possa se fortalecer cada vez mais na nossa cultura.” (trecho transcrito do vídeo Festa das Águas Pataxó. 2011)

Durante todo o processo, incomodava a necessidade que tinham de se auto afirmar: que se pintam, que dançam e fazem o ritual, para serem reconhecidos como tais. A “cultura em si” já não deveria lhes garantir os direitos como povos tradicionais? Infelizmente, a resposta é não, já que é uma produção imagética, simbólica que carrega significados e vestígios. Nesse sentido, quando se aperta o “rec”, a “cultura com aspas” é acionada como argumento cosmopolítico. Os símbolos carregam sentidos, e se apropriando disso, os indígenas já pensam na recepção da sua própria imagem pelos não-indígenas. Sendo assim, os filmes podem ter as possíveis leituras: valoriza a natureza, é índio. Usa roupa, esse não é índio. Faz uma festa para a chegada das águas, é índio. Fala português, não é índio. Trata-se de uma forma de essencializar os indígenas, alimentando estereótipos. Quando o cacique Romildo e o vice cacique Soĩ falam sobre conservação da cultura e do meio ambiente, diz respeito em certa medida, em manter as tradições e fazer um uso consciente dos recursos naturais para sempre poder usá-los, porém ao mesmo tempo, a aldeia de Imbiruçu e muitas aldeias pelo Brasil tem grandes problemas ambientais, como por exemplo a destinação de resíduos. O tema da conservação do meio ambiente sempre permeia o discurso indígena, e isso se deve a uma cadeia de mal-entendidos, como aponta Manuela Carneiro da Cunha (2009). Em um capítulo do seu livro, dedicado a conservação e populações tradicionais, ela problematiza questionando se os povos tradicionais são de fato conservadores, afimando que o discurso essencialista sobre populações tradicionais é algo histórico no Brasil: “Durante muito tempo existiu entre antropólogos, conservacionistas, governantes e as próprias populações uma essencialização do relacionamento entre as populações tradicionais e o meio ambiente.” (Cunha, 2009: 287). A ideia do “bom selvagem ecológico”(Redford & Stearman 1991,1993), por exemplo, é uma das bases dessa cadeia e se concretizou com a chamada reunião de Altamira - PA em 1988, com a união dos Povos da Floresta (Seringueiros e Indígenas) contra o projeto de represa no Xingu. Manuela aponta para esse mal-entendido, considerando primeiramente que não se pode afirmar que alguém seja naturalmente conservacionista.

 

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“Um conjunto de ideias que imaginam os grupos indígenas como sendo “naturalmente” conservacionistas resultou no que tem sido chamado de “mito de bom selvagem ecológico” (Redford & Stearman 1991,1993, in CUNHA, 2009: 287)

É fato que terras indígenas hoje tem índices de menor desmatamento e impacto no meio ambiente6, mas isso não está diretamente relacionado com a ideia de conservação. O conservacionismo é muito importante para ser analisado, pois quando projetado nos povos indígenas, parece não se relacionar apenas à conservação do meio ambiente, mas também a um tipo de conservação cultural, como no caso Pataxó de Imbiruçu. Isso esbarra novamente na essencialização dos indígenas, que toma a cultura como algo fixo e imutável. Após a experiência da festa de 2011 com os Pataxó, continuei indo para a Aldeia de Imbiruçu e, a cada ano, a “Festa das Águas” se transformava, contradizendo uma visão hegemônica de que a cultura indígena deve permanecer “parada” (conservada) num passado distante. A partir de 2012, me envolvi no processo de formação em audiovisual para indígenas e durante esses processos de troca de saberes com indígenas de algumas etnias, essa questão sobre a transformação/invenção da cultura retornava de diferentes maneiras. Nas aldeias por onde passei o “desejo de imagem” dos pesquisadores cineastas, muitas vezes, era guardar os discursos dos mais velhos para mostrar para as crianças, a fim de conservar sua cultura, conservar a língua e tradições. Ao mesmo tempo, havia um consenso de que a cultura se aprende na prática, na oralidade como sempre foi, e não através de um material guardado em determinado tempo/espaço, o filme, por exemplo. O filme parecia ter outros tipos de significado dependendo do contexto de exibição. Quando exibido nas aldeias, por exemplo, parace acompanhar essa transformação/invenção da cultura, pois lá a imagem se relaciona com o entretenimento, com o ato de compartilhar o que está acontecendo com os parentes e também o fortalecimento da língua indígena. Quando exibido fora das aldeias, surge algo que não é exatamente a valorização das práticas culturais indígena, mas sim com sua divulgação e o reconhecimento que dela decorre. Trata-se de um gesto conservacionista que não expõe a cultura em sua transformação, ainda que seja um uso político da “cultura com aspas, ou seja, uma estratégia para que os não-indígenas valorizem a cultura indígena. “O que se vê hoje, portanto, é uma relação negociada e, tantas vezes, conflituosa, entre os conceitos metropolitanos de cultura e a maneira como os índios concebem a imagem da própria cultura. Se de um lado, ao se voltarem “para dentro” da aldeia, os filmes expõem para um povo os traços, as marcas, os aspectos ritualísticos e cotidianos de sua cultura, ao se voltarem “para fora”, em circuitos de visibilidade mais amplos, os filmes – e os índios – precisam lidar com a imaginação limitada dos

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Ver noticia da Funai. 2014. http://www.funai.gov.br/index.php/comunicacao/noticias/2914-terras-indigenasapresentam-o-menor-indice-de-desmatamento-na-amazonia-legal

 

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brancos, com aquilo que eles chamam de cultura e com aquilo que concebem como “cultura indígena”.” (BRASIL, 2012: 102)

Em certa medida, essa questão é contraditória, ao mesmo tempo que a cultura se transforma, ela se cristaliza de alguma maneira em um filme. Essas questões vão tendo diferentes desdobramentos à medida em que os indígenas vão se apropriando dessas tecnologias, cada caso de maneira específica. ∆∆∆∆∆

No Brasil, a relação entre imagem e os povos tradicionais teve início no começo do século XX7, com os vídeos feitos pelo Serviço de Proteção aos Índios(SPI), e já na segunda metade do século, feito por antropólogos, mas ainda sobre os indígenas. Só nas últimas décadas esses povos tradicionais vêm se apropriando das tecnologias para fazer um uso político, a fim de serem reconhecidos e terem seus diretos garantidos. Hoje é crescente a demanda das comunidades indígenas pela apropriação dos registros e meios de comunicação. Essa apropriação já tem certa repercussão nos meios acadêmicos e em diferentes festivais de cinema etnográfico, como aponta Ruben Caixeta de Queiroz (2008), no seu artigo sobre “Cineastas indígenas e pensamento selvagem”8. Importantes críticos e realizadores do cinema documentário como, Eduardo Escorcel, Eduardo Coutinho e Jean-Claude Bernardet, bem como um dos maiores nomes da antropologia, Claude Lévi-Strauss9 teceram notas sobre os filmes do Projeto Vídeo nas Aldeias (VNA)10 que, sob a coordenação de Vincent Carelli,                                                                                                                 7

“No Brasil, se os índios foram filmados desde o início do século XX, pelos cinegrafistas do Serviço de Proteção aos Índios, só na década de 1970 apareceram os primeiros antropólogos e cineastas dispostos a filmar o ponto de vista nativo do interior, na tentativa de revelar as imagens que um povo faz de si mesmos.” (Caixeta de Queiroz, 2008: 104) 8 Em artigo para revista Devires, Ruben Caixeta Queiroz, descreve algumas experiências do Projeto Vídeo nas Aldeias, considerando a ontologia do cinema e a ontologia indígena e, por fim, discute o pensamento e a matéria do cinema em comparação com o pensamento selvagem e a materialidade do cinema indígena. (Caixeta de Queiroz, 2008) 9 Trecho da correspondência enviada a Vincent Carelli (cineasta do VNA) em 2006 por Claude Lévi-Strauss, falando sobre o filme O amendoim da cotia (2005). “O DVD que você me emprestou gentilmente é, de longe, o melhor filme que eu já vi sobre os índios da América do Sul. Tudo ali é bem-sucedido: a escolha dos temas, os lugares, os enquadramentos e a qualidade das imagens é admirável; temos constantemente o sentimento de sermos levados a ver do interior a vida indígena. (...) A cura xamânica é um pedaço de antologia”. (Lévi-Strauss in Queiroz, 2006: 101) 10 A ONG Vídeo nas Aldeias, vem atuando no cinema indigenista desde 1987, sob a coordenação de Vincent Carelli, o projeto teve duas fases, como relatado por Vincent no livro de 25 anos da produtora (2012), a primeira fase teve uma produção de filmes de curta duração feitos por não-indígenas sobre os povos tradicionais. A partir de 1997, iniciaram as oficinas de formação, coordenadas pelo cineasta Vincent Carelli e pela antropóloga Mari Correia, em cinema documentário. A princípio essas formações era em fotografia e direção, fazendo com que o filme fosse uma produção compartilhada, com a realização e filmagem dos indígenas e montagem, finalização e

 

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há 25 anos vem produzindo material em conjunto com os indígenas de diferentes etnias. No inicio da VNA, como relatou Vincent Carelli (2004), a proposta era de popularizar os conhecimentos acerca das populações indígenas, até então restrito as comunidades acadêmicas de antropologia, sem, no entanto, reforçar os clichês provocados pela grande mídia. Quando começaram, os filmes eram fotografados e dirigidos por Vincent Carelli e montados por Tutu Nunes, com um caráter de denúncia e político. Ambos tinham saído de uma escola narrativa ligados a televisão, isso influenciava diretamente os produtos finais. O próprio Vincent Carelli em texto escrito junto com Dominique Gallois (1995) defende a ideia da escolha como diretor: “Eu sempre tive a preocupação de produzir algo de atrativo para o público: isto é, uma bela fotografia, cortes no movimento, uma montagem acelerada para um público habituado a uma cultura visual elaborada no estilo televisual. Um toque de humor é sempre fundamental” (CARELLI, 1995, in CAIXETA DE QUEIROZ, 2008)

A partir de 1997, o VNA se voltou para as formações dos indígenas, com influências metodológicas trazidas por Mari Correa do Ateliers Varan, escola francesa de cinema documentário criada por Jean Rouch, ligada diretamente as concepções do cinema compartilhado. Nesse momento, no Brasil, se inicia a passagem da câmera para os que historicamente foram observados. Agora eles tem a possibilidade de se observarem, o “olhar interno” poderá refletir em qual é o “desejo de imagem” deles. A partir disso, a apropriação das tecnologias foi se polinizando entre diferentes etnias no Brasil, já não mais ligadas apenas ao projeto VNA. Na última década, começam a surgir diversos coletivos de cinema indígena, projetos de pontos de cultura indígenas, grupos de pesquisa e ONG’s que trabalham diretamente com diversas modalidades de imagem. Hoje é possível buscar em novos meios de comunicação, informações sobre os povos indígenas sob um olhar interno que se contrapõe ao discurso hegemônico da grande mídia.

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É meio-dia na capital de Minas Gerais. Uma TV ligada no jornal do almoço atrai a atenção dos clientes nas notícias sobre a copa do mundo. Ao final da notícia a voz do âncora, anuncia: “Veja agora outras notícias em destaque nesta terça-feira:

Indígenas invadem

fazenda no Mato Grosso do Sul”, “A Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), que reúne mais de 200 parlamentares, declara guerra contra os indígenas e manda fechar rodovias federais com toneladas de soja, cana e eucalipto em todo Brasil, o protesto é contra a demarcação de terras indígenas.” Na contramão desse discurso predominante surge, na tela do celular, um vídeo- denúncia postado no Youtube, onde aparecem dois “jagunços” da fazenda Cachoeira, município de Iguatemi, MS, apontando uma arma

na direção das crianças,

mulheres, idosos e jovens do Tekoa Pyelito Kue, aldeia Guarani Kaiowá. O vídeo foi postado dois dias após esta tentativa de etnocídio, no canal do Youtube, Aty Guasu11, com a seguinte descrição: “No dia 07 de abril de 2014, às 8 horas da manhã, em pleno dia, os pistoleiros grupo de milícia armada contratados pelos fazendeiros da fazenda Cachoeira cercaram e atacaram as crianças, mulheres e idosos Guarani e Kaiowa do acampamento Pyelito kue. Um indígena conseguiu filmar. Esses mesmos pistoleiros barraram a equipe médica que atende a comunidade indígena de Pyelito kue. Até o dia 09/04, passados dois dias, a polícia federal não compareceu ao local do ataque. Pedimos justiça. Essa é a realidade em que sobrevive os povos indígenas Guarani Kaiowa. ” (Descrição do vídeo da Aty Guasu no Youtube.)

Esse vídeo também foi compartilhado na página Aty Guassu no Facebook, e dessa forma, tornou pública ao mundo a atual situação dos povos Kaiowá. Considerando o território nacional, o etnocídio vem acontecendo de diferentes maneiras com os povos tradicionais, historicamente oprimidos no Brasil. Como consequência, hoje eles retomam as terras que lhe foram tiradas, reivindicam seus corpos que nos dizem extintos; suas línguas, que ainda resistem; seus mitos, que foram roubados, e autonomia para recontar, reconstruir e resistir. A câmera estava ali, em Pyelito Kue (2014), como instrumento eficaz de registro e comprovação dos tiros; estava em São João das Missões (2014), quando os Xakriabá retomaram suas terras no Peruaçu como também estava testemunhando o “Encontro Binacional: Brasil e Venezuela” (2014) dos povos indígenas Yanomami. A câmera não estava sozinha ou na mão de um estranho, estava na mão dos parentes, estava na escolha pelos enquadramentos mediados por sua cosmovisão desses eventos. Os filmes feitos pelos próprios indígenas, além de permitir a eles a elaboração de um pensamento reflexivo sobre suas culturas, principalmente em relação a outra (não-indígena), possibilita analisar um tipo de                                                                                                                 11

A Aty Guasu é a grande assembleia indígena dos povos Guarani e Kaiowá, que vem produzindo informações e noticias contra-hegemônicas pela internet. Link: https://www.facebook.com/aty.guasu?fref=ts  

 

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produção audiovisual, que trabalha no limite de gêneros narrativos, e que de maneira holística, podem transitar entre o documental, ficcional, jornalístico, musical, educacional, dentre outros.

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Sensibilizado por esta questão e em busca de novas perspectivas tanto de cinema quanto de possibilidade etnográfica, o Fórumdoc.BH12 (Festival do Filme Documentário e Etnográfico) me impulsionou pesquisar a relação entre o uso da imagem e o homem. Em 2010, o festival fez uma curadoria específica em torno do torno do cinema-direto e cinema político-experimental. Desde seu início o forumdoc flertava com os filmes do cinema-direto, porém nesse ano foram escolhidos mais de 50 filmes com esse tema para uma mostra especial. Me lembro muito bem das sensações de proximidade com o outro quando assisti o filme de Zezinho Yube Hunikui, “Kene Yuxí, As voltas do Kene” (2010), no catálogo do festival esse era o único filme dirigido por um indígena naquele ano. Esse filme especificamente carrega em si um registro documental exibido num contexto de festival etnográfico, está diretamente ligado ao potencial educacional na circulação interna das escolas Hunikui. Essa modalidade de filme vou retomar no segundo estudo de caso da pesquisa. A primeira questão que havia sido levantada na experiência junto aos Pataxó, sobre a construção do discurso dos indígenas no momento do fazer cinematográfico, de certa maneira se intensificava nesse festival de filme etnográfico. Após os filmes haviam muitos debates entorno do cinema contemporâneo e clássico, sempre voltado para uma discussão acadêmica, com alguns pensadores que depois de um tempo reencontrei na academia. O primeiro “encontro” foi com as notas escritas por Jean-Louis Comolli, no livro “Ver e Poder” (2008) que despertaram um olhar sensível sobre a relação entre aquele que filma e aquele que é filmado no cinema documentário. E justamente em “Notas sobre a mise-en-

                                                                                                                12  Festival de cinema documentário e etnográfico (Fórumdoc.BH), que acontece na cidade de Belo Horizonte/MG desde 1997. Este evento se notabilizou por trabalhar com realizadores indígenas, indigenistas, antropólogos e etnólogos, de suas primeiras edições até os dias atuais.  

 

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scène documentária”13, Comolli aponta para um certo controle da imagem e do discurso daqueles que filmamos no ato da filmagem. “Aqueles que filmamos são, antes de tudo, tomados em suas palavras, e é com essas palavras, com a língua e com a fala deles , que eles se sabem apreendidos pela câmera.” (COMOLLI, 2008: 55)

Quando Comolli fala sobre a importância da palavra está sugerindo para “aquele que filma” direcionar sua sensibilidade mais para a audição do que para a visão. Nas palavras do autor: “Colocar-se à escuta da fala das pessoas, aquelas que nos propomos a filmar, no momento mesmo da filmagem, escutá-las, sugerir-lhes que se coloquem a partir disso, do fato bem simples de que há escuta… Que eles atuem, então, apartir de suas próprias palavras, ouvidas por nós, aceitas, acolhidas, captadas” (Comolli, 2008: 55). Nesse sentido, por se saber apreendido pela câmera em suas palavras, aquele que é filmado começa a refletir sobre seu discurso para fazer um uso político dessas intervenções. Isso se relaciona diretamente com a perspectiva de Manuela Carneiro da Cunha (2009) que trás um entendimento político do uso de “cultura”. O encontro com os conceitos elaborardos por Manuela a cerca de “cultura com aspas”, fundamenta a questão sobre qual é a relação de construção e controle de um discurso/imagem que o dispositivo cinematográfico gera naqueles que são filmados, e de que maneira ele é acionado pelos indígenas como uma arma política para conquista de seus direitos enquanto povos tradicionais. O conceito de cultura foi introduzido nas comunidades daí surge uma nova categoria, a “cultura”. “Noções como “raça”, e mais tarde “cultura”, a par de outras como “trabalho, “dinheiro” e “higiene”, são todas elas bens (ou males) exportados. Os povos da periferia foram levados a adotá-las, do mesmo modo que foram levados a comprar mercadorias manufaturadas... Do mesmo modo, a “cultura”, uma vez introduzida no mundo todo, assumiu um novo papel como argumento político e serviu de “arma dos fracos”, o que ficará particularmente claro nos debates em torno dos direitos intelectuais sobre conhecimentos dos povos tradicionais.” (CUNHA, 2009: 312)

Uma vez que a categoria de “cultura” foi introduzida e o “desejo de imagem” geralmente gira entorno do tema da valorizar a cultura, surgem alguns apontamentos: em que medida os filmes são apenas máquinas de produzir “culturas com aspas” 14 ? Existe a                                                                                                                 13

A primeira parte do livro “Ver e Poder” (2008) de Jean-Louis Comolli é dedicada ao documentário, ao espectador e ao espetáculo. É nessa parte que o autor tem o capitulo Aqueles que filmamos: notas sobre a miseen-scène documentária. 14 “A aproximação do cinema indígena ao conceito de Manuela Carneiro da Cunha já havia sido aventada por Ruben Caixeta, em sua intervenção no I Seminário Cinema, Estética e Política, organizado pelo grupo Poéticas da Experiência, na UFMG, entre 12 e 15 de abril de 2011. Ali, o autor se refere aos filmes indígenas como “máquinas de produzir cultura com aspas e de inventar realidades”.” (BRASIL, 2012: 102)  

 

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possibilidade de surgir vestígios do que é a “cultura sem aspas”?

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Em 2012, ao voltar da mobilidade acadêmica da Universidade Federal de Pernambuco, ingressei no projeto de pesquisa e extensão da Faculdade de Educação - UFMG, Observatório da Educação Escolar Indígena (OEEI)15. Este projeto desenvolve pesquisas sobre novas metodologias de ensino em “escolas diferenciadas” indígenas; conta com a participação de pesquisadores das etnias Baré(AM), Yanomami(RR), Ye’kuana(RR), Guarani Mbya(RJ), Xakriabá(MG) e Maxacali(MG), e pesquisadores com vínculo acadêmico das áreas de antropologia, educação, linguística e comunicação. O grupo desenvolve pesquisas sobre “Ritual e Cotidiano”16 e além disso, com algumas etnias realiza oficinas de formação de cineastas para os pesquisadores indígenas, das quais participo como um dos coordenadores, junto com Pedro Portella e Julia Bernstein. Essas formações acontecem de maneiras distintas durante o ano. Num primeiro momento são feitas nas cidades próximas ou nas aldeias de cada pesquisador; em seguida uma formação é realizada em Belo Horizonte com os pesquisadores de diferentes etnias juntos. Nas formações buscamos compartilhar os conhecimentos sobre narrativas, com relação a fotografia cinematográfica, (em certa medida transmito os conhecimentos ensinados por Camilo Soares, professor de direção de fotografia e iluminação da Universidade Federal), sobre o manejo de câmeras, metodologias de enquadramentos (elaboradas pelo russo Leon Kuleshov em 1947) 17, sobre a relação com o filmado (a partir da perspectiva de Jean-Louis Comolli, 2008), sobre o uso de ferramentas de montagem, transcrição; sempre com o intuito                                                                                                                 15

O projeto do OEEI tem um espaço físico com ilhas de edição, chamado Laboratório de Metodologias, que fica na Faculdade de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais, em Belo Horizonte. O Observatório trabalha com diferentes subprojetos baseados em diferentes objetivos: “Calendário Sócio Cultural”, “Políticas Educacionais”, “Bilinguismo” e “Ritual e Cotidiano”. 16 Projeto de Pesquisa “Ritual e cotidiano”, sob a coordenação da profª Ana Rabelo Gomes, profº Paulo Maia e profª Karenina Andrade, é desenvolvido dentro do projeto Práticas de conhecimento e práticas de convivência: explorando perspectivas transdisciplinares da educação diferenciada nas escolas indígenas e quilombolas do Programa Observatório da Educação Edital 049/2012/CAPES/INEP (2013-2017). 17 Metodologia de formação analisada por Pedro Portella em tese de mestrado.“Para facilitar o aprendizado dos alunos, no que diz respeito a composição do quadro em uma filmagem, adotei parte da metodologia do realizador russo Leon Kulechov, cuja didática é centrada na linguagem visual. Kulechov pede para os leitores analisarem suas próprias fotografias, ilustrando em seguida alguns erros básicos de composição, que provavelmente eles encontraram nas mesmas. Ao invés de falar para o indígena: "atenção, sua imagem está torta", passei a ler essas páginas com os alunos, para que essa noção, do que é linha vertical no quadro, fique inteligível.”(MACEDO, 2014: 60)

 

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de possibilitar a autonomia nos processos de registros e documentações dos pesquisadores indígenas. Durante as formações,

processos de troca de “saberes” estão o tempo todo

acontecendo entre os participantes. Isso gera uma relação de cumplicidade além de propiciar importantes reflexões sobre a atual produção de imagem entre os indígenas participantes. A partir dessas experiências nas formações, “brotaram” questões que serão trabalhadas no decorrer dos três momentos desse ensaio monográfico, que corresponde a três etnias indígenas: Yanomami, Guarani e Xakriabá. Com a importante participação de um pesquisador em cada momento; Morzaniel Iramahi no Yanomami, Alberto Alvares no Guarani, e Edgar Corrêa no Xakriabá; retornarei aos diários de campo e rememoração das seis formações18 que participei. A princípio, pergunta que vai amalgamar e nortear os casos é: Qual o “desejo de imagem” de cada pesquisador? A partir dessa pergunta pretendo analisar cada caso pensando: Qual a influência que o contexto de cada pesquisador desempenha na sua produção? De que maneira esses filmes fortalecem a cultura indígena ou alimentam um estereótipo de “cultura” sobre os indígenas? E para além da recepção desses vídeos, quais outros possíveis formatos podem ser gerados com filmes, além de documentários? Há o limite entre gêneros? Não há a pretensão de fazer um estudo sistemático sobre as produções audiovisuais dos Guarani, Xakriabá ou Yanomami, a principal intenção de relatar, descrever e refletir a cerca desses diferentes casos é justamente o contrário: constatar que não existe um “cinema indígena” ou um “cinema guarani” como se fosse uma escolha narrativa específica a se seguir. O que existe é um cinema plural feito pelos indígenas, com a singularidade de cada pesquisador, que é diretamente influenciada pelo contexto que está envolvido, e isso trás, de certa forma, uma materialidade nas diferentes modalidades de filme (documentário, ficção, reportagem, educacional, etc). Além disso, pretendo pensar sobre o “desejo de imagem” relacionando-o ao uso político do discurso como forma de produção reflexiva da cultura, ou seja, a relação entre a escolha de um tema e o uso das aspas nas cultura. No caso yanomami, por exemplo, é crucial atualmente propormos uma reflexão sobre a pesquisa de Morzaniel Iramahi Yanomami, que nasceu e vive aldeia do Watoriki (Demini) em Roraima, e sobre seus filmes que se situam num entre-gêneros e que estou identificando como uma reportagem com potencial documentário. Morzaniel possui uma extensa produção                                                                                                                 18

Das seis oficinas de formação que devo retornar as anotações foram: duas na TI. Xakriabá (2013 e 2014); uma em Boa Vista (2013) com pesquisadores das etnias Ye’kuana, Yanomami e Wapixana; e três formações em Belo Horizonte (2012 e 2013) com os pesquisadores das etnias Guarani, Xakriabá, Ye’kuana e Yanomami.

 

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de filmes de curta duração e faz “uploads” de suas reportagens no Facebook. Os filmes tem uma edição parecida com uma reportagem jornalística que noticia eventos importantes na Terra Indígena Yanomami e Ye’kuana. Um aspecto interessante dessa produção é que os vídeos não tem tradução da língua yanomami para o português, contudo, a compreensão da temática dos filmes é composta nos comentários com a participação de outras pessoas da etnia Yanomami que “traduzem” os fatos mostrados. No momento guarani proponho uma reflexão sobre a pesquisa de Alberto Alvares da etnia Guarani Nhandeva, nascido no Mato Grosso do Sul, aldeia Porto Lindo, que desenvolve trabalhos como professor da língua guarani na Universidade Federal Fluminense (UFF) no Rio de Janeiro, onde mora atualmente. Alberto já realizou diversos trabalhos como ator, em comerciais de TV, em filmes nacionais e até em parcerias entre produtoras internacionais no caso do filme “Rouge Brasil” (2013). Além dessas produções, hoje em dia, a partir das formações realizadas pelo OEEI, começou suas próprias pesquisas, que se iniciaram em 2012 no Encontro de Tradições Indígenas (ETI) e em 2014 finalizou seu primeiro longa-metragem, Karai ha’egui Kunhã Karai ‘ete (Os verdadeiros lideres espirituais), filme no qual participei como formador e também na montagem compartilhada. A ideia é explicar em que medida esse filme se configura como um documentário que apesar de ensaístico tem um potencial educativo. No caso xakriabá, junto à importante participação de Edgar Correa Kanaykõ, pretendo analisar de que maneira os projetos culturais dos quais participam, influenciam nos filmes produzidos, que acabam se caracterizando por um discurso institucional que limita as potencialidades do documentário. E em que medida tal limitação é consciente e surge como um desconforto nesse tipo de produção, interferindo diretamente no “desejo de imagem”. Nesse momento da pesquisa pretendo fazer uma análise sobre alguns vídeos produzidos pela AIXABP (Associação Indígena Xakriabá Barrero Preto) no Ponto de Cultura Loas pensando em dois tipos distintos de circulação das imagens: a circulação interna da T.I. Xakriabá e a externa para editais.

 

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Filme-documentário com potencial jornalístico19 Estudo de caso yanomami Pesquisador Cineasta Indígena: Morzaniel Iramahi

“Wei kami yanomae ya, ihi yane thepe utupe thai” “Sou Yanomami e eu estou registrando imagens do meu povo” (Morzaniel Iramahi Yanomami)

A partir de uma reflexão sobre a atual realização cinematográfica de Morzaniel Iramahi Yanomami, da aldeia do Watoriki (Demini) - Roraima, busco entender de que maneira o “desejo de imagem” é influenciado pelo contexto onde ele está inserido? E qual característica de filmagem e de construção de narrativa que diferencia Morzaniel de outros realizadores indígenas? Com uma extensa produção de filmes de curta duração, Morzaniel faz upload desse material em sua página pessoal do facebook20. Alguns desses filmes carregam em certa medida elementos que fogem para um novo gênero, que nesse contexto vou chamar de “filme documentário com potencial jornalístico”, pois além cumprirem um papel informacional, com                                                                                                                 19

Afim de elaborar um termo que dê conta de uma modalidade específica do “fazer imagem”, busco definir com o título do caso, um estilo que nos ajude a refletir sobre a atual produção de conteúdo feita por Morzaniel Iramahi Yanomami dentro da TIY, em Boa Vista-RR e até fora do Brasil. A partir disso pensar: em que medida a produção de Morzaniel, mesmo carregando um caráter jornalístico de reportagem, consegue fugir dos moldes de produção de imagem herdada da televisão, acolhendo aqueles que são filmados como num documetário. 20 Link do facebook de Morzaniel para o acesso dos filmes produzidos por ele nessa plataforma: https://www.facebook.com/morzaniel.yanomami/media_set?set=vb.100003767281763&type=2

 

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pauta pré-definida pela associação indígena Hutukara, acolhem, aspectos socioculturais da vida na Terra Indígena Yanomami (TIY). Morzaniel observa, coleta, organiza e editada esses filmes, com um cunho de pesquisa etnográfica sobre sua própria etnia. O talento de Morzaniel em produzir esses materiais audiovisuais com modalidades hibridas de gênero, se contrapõe diretamente a “grande mídia” (fazer externo), pois os jornais tradicionais, além de não acompanhar as demandas de pauta sobre os povos indígenas, quando fazem, costumam estereotipar os mesmos. Dessa forma, os filmes que o cineasta faz, se destacam por terem relação intima com os filmados, nesse sentido é no “fazer interno” que Morzaniel registra eventos importantes, reuniões, atos políticos e festas dentro da Terra Indígena Yanomami (TIY).

Uma característica especifica desses filmes é que eles não

possuem tradução da língua yanomami para o português, sendo assim, a noticia se completa quando você “corre os olhos” para os comentários, que em certa medida “traduzem” a narrativa desenvolvida por Morzaniel. Após uma analise sobre o contexto de produção onde Morzaniel está inserido, focarei em quatro filmes compartilhados no facebook, em função da sua importância temática. As anotações que seguem, surgiram a partir de duas formações em audiovisual que foram realizadas uma Boa Vista, RR (junho de 2013) e a outra em Belo Horizonte, MG (novembro de 2013). Na formação em Boa Vista participaram 4 Yanomae da Aldeia Watoriki, (Morzaniel Iramahi, Nilson Yanomae, Dário Kopenawa e Edmar Yanomae), 2 Yanomama da Aldeia Paapiu (Alfredo Himotona e Arokona), 3 Ye’kuana da Aldeia Auaris (Mauricio, Júlio e Viviane) e um Wapixana (Aldenir). Vou citar a participação de algumas pessoas durante o caso, mantendo como fio condutor a produção de Morzaniel.

 

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Participantes da formação no ISA em Boa Vista21

O encontro com o outro Conheci Morzaniel 2013, quando fui pelo OEEI em parceria com Hutukara Associação Yanomami (HAY), junto com Pedro Portella, para Boa Vista, realizar a formação em audiovisual no Instituto Socioambiental (ISA) 22 para alunos das etnias Yanomami, Ye’kuana e Wapixana. Durante duas semanas no inverno amazonense, levantamos bem cedo para irmos até a sede do ISA, apreender sobre diferentes histórias e ensinar manejo das câmeras, das narrativas e das imagens. Essas oficinas são realizadas com o intuito de dar formação aos pesquisadores indígenas do OEEI para que eles tenham autonomia ao realizarem projetos audiovisuais. Nesse sentido elas são realizadas compartilhando inicialmente conceitos de fotografia cinematográfica, em seguida conhecimentos sobre transcrição e tradução do material filmado e para fechar o ciclo, passa-se ao uso de softwares de montagem, finalização e distribuição do produto final.                                                                                                                 21

Em baixo da esquerda para direita: Aldenir Wapixana, Nilson Yanomae, Alfredo Himotona, Viviane Ye’kuana, Pedro Portella, Edmar Yanomae, Arokona Yanomama, Julio Ye’kuana e Dário Kopenawa. Em cima da esquerda para direita: Guilherme Cury, Mauricio Ye’kuana e Morzaniel Iramahi. (Fotografia do autor) 22 O Instituto Socioambiental (ISA) é uma organização da sociedade civil brasileira, sem fins lucrativos, fundada em 1994, para propor soluções de forma integrada a questões sociais e ambientais com foco centra na defesa de bens e direitos sociais, coletivos e difusos relativos ao meio ambiente, ao patrimônio cultural, aos direitos humanos e dos povos. (Fonte: http://www.socioambiental.org/pt-br/o-isa Acessado pela última vez em 31/10/2014.)

 

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Logo no primeiro dia da formação, fomos convidados por Morzaniel, para irmos até a sede da HAY, conhecer Davi Kopenawa, importante liderança indígena, filosofo e pajé yanomami. A sede da associação fica próxima a do ISA – Boa Vista, na beira do Rio Branco, aquele espaço era a antiga casa da fotografa Claudia Andujar23. Quando chegamos lá, encontramos Davi no terreiro com um sorriso que demostrava confiança no nosso trabalho; naquela tarde fazia muito calor com chuva torrencial, então ele nos convidou para conversar em sua sala. Depois de nos apresentarmos, Davi logo iniciou sua fala comentando a importância das formações de audiovisual para que os jovens yanomami se apropriem esse aparelho do “branco” (napë), e mostrem suas próprias narrativas, rituais e problemas políticos das aldeias. O xamã fez uma analogia do horoma24 com a câmera, disse que ele é como um lápis que escreve uma história, e como as câmeras que gravam os pensamentos. Em seguida, Pedro falou sobre o filme que estava editando junto com Morzaniel, Curadores da Terra-Floresta (2014), que tem como fio-condutor os encontros de Xamãs realizado na comunidade Watoriki em 2011 e 2012, mesmo evento sobre o qual os napë fizeram o filme Xapire (2013). Nesse momento Davi levantou, nos deu duas copias do filme Xapire, e disse: “Esse eu já sei como é. Agora eu quero o nosso. O meu pensamento é que o Morzaniel faça o filme sobre o nosso Xapiri. Agora não quero mais do jeito dos napë. Os jovens, o Morzaniel, tem que aprender o português correto, para os napë perderem o preconceito. Para os napë entenderem o que é o Xapiri. Nós sabemos o que é o Xapiri. Não é deus, não é anjo, não vem do céu. Vem com o vento, do Watoriki, Monte Roraima, Pico da Neblina. Vem das montanhas de pedra. Temos que explicar isso para todos entenderem.” (Davi Kopenawa - Nota do diário de campo - 11 de junho de 2013 )

Enquanto Davi falava, dava pra ver nele o desejo de que Morzaniel terminasse seu filme considerado por ele o “verdadeiro” filme sobre o encontro dos xamãs. Em seguida falamos para o Davi nossa proposta de formação como um instrumento para ajuda-los a fazer um cinema indígena, onde a câmera possa ser usada como um aplicador de yakoana. Ele respondeu que o artista com a câmera é como o xamã (xapire), ele vê, ouve as imagens.                                                                                                                 23

A fotografa Claudia Andujar desenvolve trabalhos junto dos Yanomami desde 1971 e deu uma importante contribuição para essa etnia quando lutou pela demarcação da Terra Indígena Yanomami com um território grande demarcado e não como as “19 ilhas” de pequenos espaços ao redor das aldeias que era a proposta de governo na época. Claudia doou sua casa onde morava em Boa Vista para que Davi Kopenawa criasse a sede da Hutukara Associação Yanomami em 1992. 24 Horoma é o aplicador do rapé utilizado pelos pajés. O rapé que da visão aos pajé yanomami se chama yakoana, que é feito a partir de uma casca de árvore a partir de um processo complexo. A descrição do processo de feitio e a importância do Yakoana foi feito na introdução do longa metragem de Morzaniel, Curadores da Terra-Floresta (2014).

 

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A partir desse encontro com Davi e durante as duas semanas que passamos em Boa Vista, percebemos que Morzaniel se tornou o responsável por toda a comunicação audiovisual da Hutukara Associação Yanomami, ou seja, o pesquisador do OEEI, por dominar os processos de “feitio” de um filme, foi escolhido para cuidar dos registros nos eventos promovidos pela HAY. Dessa maneira, podemos concluir que o contexto onde Morzaniel está inserido acaba por influenciar seu “desejo de imagem” como cineasta. Da maloca ao facebook Durante aquela tarde ficamos conversando, ouvindo, o que Davi tinha para nos ensinar sobre diversos assuntos como: meio ambiente, a saudade do xamã pelo Demini (sua aldeia), os problemas da cidade, garimpo ilegal de ouro que não tem fim na Terra Indígena Yanomami (TIY), Omama criador de tudo. Nossa conversa era sempre atravessada pelos comentários de Davi sobre a importância dos Yanomami fazerem seus filmes para contar a seu modo suas próprias histórias. Enquanto essa conversa acontecia, Morzaniel silencioso só observava atento as falas de Davi Kopenawa, quando saímos da sala, o cineasta disse que gostaria muito de terminar o filme sobre os pajés, mas também tinha que ter calma porque era um assunto muito importante sobre o xamanismo (xapori) Yanomami. Ele também comentou sobre os filmes de curta duração que estava editando para a Hutukara, naquela ocasião, ainda não tinha visto nenhum dos que já estavam publicados em seu álbum do facebook. Quando perguntei sobre o tempo de edição e publicação, Morzaniel disse que tem momentos em que é importante fazer imagem rápidas de registro, com uma montagem de poucos minutos para fazer o “upload” do filme no youtube ou facebook. O cineasta continuou a explicação falando que esses momentos são, por exemplo: o registro de uma expedição (quando os Yanomami junto com pessoas da FUNAI vão procurar balsas dos garimpeiros ilegais dentro da TIY); a “cobertura” de imagens que mostram áreas retomada de terras pelos Yanomami para garantir os limites da sua terra indígena; ouvir, gravar e acolher a comunidade fazendo uma denuncia sobre a precariedade no auxilio a saúde; entre outros temas demandados pela Hutukara e explorados por Morzaniel. Os produtos audiovisuais desenvolvidos pelo “pesquisador cineasta”, tem um caráter de “experimentação política”, já que sua apropriação do jornalismo/reportagem com estilo de vídeo-denúncia, acolhe os filmados como em um documentário. Essa prática que Morzaniel vem desenvolvendo, chamei de “filme documentário com potencial jornalístico”, por  

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acreditar que trata-se de uma cobertura de encontros e eventos importantes que não são noticiados em nenhuma mídia. O que ele vem fazendo na sua página do facebook são filmes de poucos minutos, com uma montagem cuidadosa, com quadros bem definidos carregados de caráter experimental, com logo da Hutukara Associação Yanomami (HAY) entre outros parceiros. Esses vídeos de alguma maneira deixam escapar vestígios da vida cotidiana entre algumas comunidades Yanomami e a luta dessa etnia pela Hutukara (Terra-Planeta). A escolha do cineasta pelo Facebook no meu ponto de vista é pertinente, pois, além de permitir outro tipo de circulação - que difere das salas de cinema de festivais etnográficos permite comentários nos filmes que são compartilhados. No caso do Morzaniel é muito importante a participação de outros indígenas nos comentários bilíngues que em certa medida explicam o vídeo que não tem legenda em português. O cineasta possui uma extensa produção audiovisual, um longa metragem, Curadores da Terra-Floresta (2014), um curta metragem chamado Casa dos Espíritos 25 (2010) [premiado na mostra Aldeia SP] e seis filmes pílulas que foram postados no Facebook. Cada produto a sua maneira mostra a particularidade/talento de Morzaniel que o diferencia dos demais filmes de produção indígena. No entanto, dentro desse caso, proponho uma reflexão sobre quarto experiências publicados no facebook por seu caráter politico experimental para a HAY, os Yanomami, em última instância para os povos indígenas do Brasil.

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Manifestação Ajarani: parte da saúde Yanomami (10’53”)26 Esse filme foi gravado por Morzaniel no dia 18 de abril de 2013, um dia antes do famigerado “dia do índio”, onde a Hutukara Associação Yanomami (HAY) se mobilizou para ir até a aldeia do Ajarani manifestar sobre a saúde yanomami e falar do território. Longo no inicio das imagens que Morzaniel filmou e montou, ele usou trecho das falas das lideranças como Davi Kopenawa, Dário Kopenawa, entre outras, para compor um manifesto que mostra                                                                                                                 25

Disponível em: http://youtu.be/oJASReyRE0o Acessado pela última vez em 31/10/2014.

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Disponível em: https://www.facebook.com/photo.php?v=291081431027431&set=vb.100003767281763&type=3&theater Acessado pela última vez em 31/10/2014.  

 

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na expressão corporal e em suas palavras em Yanomami, a indignação dos povos indígenas da região em relação a falta de saúde e condições terríveis de vida que estão vivendo dentro da TIY. Esses planos iniciais parecem se relacionar com os quadros jornalísticos pois mantem a câmera fixa enquanto aqueles que são filmados discursam para os outros que participavam da manifestação. Em seguida, Morzaniel faz planos cinematográficos mais ao modo do documentário, onde acompanha os Yanomami seguindo em um dia chuvoso até fronteira da TIY, para colocar uma placa de demarcação de limites da terra protegida. Nesse momento, ele fez um plano muito preciso, no qual de cima de uma caminhonete enquadra os Yanomami vindo em direção à câmera, todos pintados para a guerra, cantando e batendo as flechas. Eles vão caminhando até um carro de som na fronteira da terra indígena, onde Morzaniel fez uma sequencia de planos, acrescentando a narrativa um canto xamânico yanomami.

(Frame retirado do vídeo – Morzaniel Yanomami)

Após esse momento da caminhada, Morzaniel coloca em cena o importante discurso em português do presidente da HAY, Davi Kopenawa, que fala da entrada ilegal do garimpo pelas estradas dentro da TIY e completa tecendo comentários sobre o governo, faz suas falsas leis para não cumpri-las enquanto os povos da floresta tem a sua lei na cabeça. “Estamos aqui para chamar atenção da autoridade, chama atenção da autoridade governo do estado de Roraima, governo estado do Amazonas e o governo grande chefão que está em Brasília, sentado tomando cervejinha tomando banho no praia, ele não esta olhando pra gente. Então nós estamos sacudindo pra ele acorda, pra ele ver o problema que nós estamos enfrentando aqui na fronteira de nossa Terra Yanomami, que nós conseguimos vitória com muito luta, muita briga, nós somos muitos, os napë são muitos, tem muitas pessoas boas tem muita gente ruim. Tem muita pessoa grande que tem dinheiro são muito contra Terra-União.” (Davi Kopenawa)

 

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(Fotografia: Morzaniel Yanomami)

Já compartilhado na plataforma do facebook, os comentários sobre filme de Morzaniel são marcados por importantes reflexões de Alfredo Himotona Yanomami liderança da aldeia Paapiu, que sempre trabalha o bilinguismo em suas participações. Para esse vídeo do Ajarani, por exemplo, os comentários de Alfredo são essenciais para a compreensão do filme de Morzaniel. “ma ani yamaki pata pathema maki yamaki kohipeoma, yamaki urihipe noamamu mahi! yaro!, the yai totihi heriao Morzaniel, muito bom nos luta, vamos consegui a fasta quem qui tá i! na nossa terra yanomami! agradeço todo mundo pela Hutukara Associação yanomami principalmente Morzaniel Iramahi!!” “As mulheres já sabe lutar para saúde yanomami que tinha problema sua comunidade faltar muito medicação de suficiente para os xawara do napepe!” (Alfreto Himotona Yanomama – Aldeia Paapiu - TIY)

 

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“Urihi nõamatima yamaki: Nós somos defensores da terra” - Encontro da HAY na maloca do Papiu comunidade Marahaú (6’25”) 27 “quando eu foi participar encontro regional da Hutukara, eu gostei muito foi bom nosso encontro, só que eu não aguentei para subir morrinho, eu fiquei muito cansado, eu queria sentar mas assim eu cheguei na comunidade Maharau valeu pessoal” (Morzaniel Iramahi Yanomami)

O filme curta metragem, apresenta um encontro realizado na Maloca do Papiu na comunidade Marahaú nos dias 19 e 20 de julho de 2013. Diferente do primeiro filme descrito, esse material carrega um caráter de filme etnográfico mais pulsante, justamente pelo cuidado de Morzaniel em acolher os sujeitos filmados. O cineasta e os que estavam junto com ele são de outra aldeia (Watoriki) e quando foram recebido pelas moradores da comunidade do Papiu, Morzaniel registrou um momento de extrema de alegria e festa ao reencontrar os “parentes”. O filme se inicia com um diálogo cerimonial Yanomami (Himu) de extrema complexidade; nessa conversa geralmente se fala sobre diversos assuntos com o “parente”. Na formação em novembro de 2013, realizada no OEEI em Belo Horizonte, Morzaniel explicou que no Himu se fala sobre casamentos, roça, guerras, colheita, histórias, noticias, com uma pessoa que esteve distante. Com um enquadramento certeiro o Morzaniel, acolhe as lideranças e Xapire durante o Himu em uma tomada de “câmera baixa”.

(Trecho retirado do vídeo)

                                                                                                                27

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“ Este vídeo do Morzaniel e muito legal por isso hoje em dia nos jovens dos povos yanomami se preparando para continua lutar nossa para nossa direitos nos temos defendemos, principalmente o a Terra floresta! Águas! As caças peixes! Culturas! E línguas maternas do povos yanomami!!” (Comentário de Alfredo Himotona Yanomama – Aldeia Papiu – TIY - 05 de novembro de 2013)

Na próxima cena Morzaniel usa um plano sequencia filmado por Arokona Yanomama que contextualiza a comunidade fora da maloca principal mostrando os indígenas que vieram de fora para o encontro se preparando para entrarem na maloca do Paapiu. No final desse plano aparece Morzaniel junto com Davi Kopenawa e outros Yanomami esperando para entrada. Em seguida, segue as filmagens de Arokona, e a montagem nos leva para dentro da maloca novamente para um canto cerimonial das mulheres do Paapiu, que vão cantar para os outros entrarem. Em seguida tem início o canto dos homens no Herea Maharau, fazendo muita festa com muita alegria com a chegada dos parentes vindo da aldeia Watoriki. Na formação de novembro de 2013, Arokona comentou sobre a importância desse encontro realizado pela Hutukara Associação Yanomami (HAY) na sua comunidade no Papiu e explicou sobre a alegria que é o canto do Herea Maharau. Nesse importante registro, Mozarniel escolhe as cenas que compõe uma descrição desse encontro. As imagens tanto de Morzaniel quanto de Arokona acolhem os sujeitos filmados graças a paciência ao fazer o registro de ambos, eles esperam atentos com a câmera na mão fazendo longos planos sequencias. A narrativa se compõe não só dos sujeitos filmados, mas também cantos e belas penas de gavião real que passeiam no cenário; na última cena que mostra Alfredo Himotona cantando e dançando com seus parente.

(Trecho retirado do vídeo)

 

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Além do aparecimento de sua mise-en-scène cantando, Alfredo Himotona, liderança da comunidade do Papiu, esta sempre presente nos comentários mostrando a importância dos vídeos de Morzaniel e em cada frase dos seus comentários a importância da língua yanomama. “Yanomama yamaki noamio wei yamathe pata thaprarema yaro the yai xaari mahi!! (Hutukara Associação ani yanaomama yamaki prauku kohipe mai wei the kua. Kami Papiú theri yamaki urihipe ha thuwe thepeni pisima kiki yai piximai he, Saia kiki yai piximaimihe,pisima kiki kãyõ praiai he tehe the yai totihi mahi!, wãrõ yamaki koruku kamixape makii thuwethepeni Saia kiki piximaimi he kiki xuhuti himai he!” (Alfredo Himotona Yanomama – Aldeia Paapiu – TIY)

Seminário Binacional de Direitos indígenas e políticas nacionais: Analisando o caso dos Yanomami da Venezuela e Brasil” (4’37”)28 Este arquivo tem uma importância particular, pois é um registro de um encontro internacional entre os Yanomami que vivem na Venezuela e os do lado brasileiro. As imagens foram gravadas na cidade de Puerto Ayacucho – Venezuela, entre os dias 07 e 11 de outubro de 2013. Na falta de uma cobertura midiática sobre o importante encontro, Morzaniel cumpre mais uma vez um papel de jornalista que de uma maneira documental registra o evento. Com essas imagens, o cineasta tem o desejo de fazer um longa-metragem, e lançou esse pequeno vídeo no Facebook, uma espécie de pesquisa, como ele disse,

para compartilhar o

acontecimento do Seminário Binacional de Direitos Indígenas e Políticas Nacionais. Nesse encontro se firmou a parceria entre a Hutukara Associação Yanomami (BRA) e Horonami Organización Yanomami (VEN). Mais uma vez de uma maneira diferente do mainstream jornalístico Morzaniel faz um longo plano inicial de canto e dança dos indígenas Yanomami do lado venezuelano. O interessante desse recurso e do processo é que quando o vídeo é exibido para os Yanomami do lado brasileiro é possível que eles reconheçam as semelhanças e diferenças linguísticas entre eles.                                                                                                                 28

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No lado brasileiro já é grande a variedade linguística nos Yanomami, no lado venezuelano também, dessa maneira o vídeo cria relações de união entre povos que antigamente poderiam estar em guerra. Essa união aparece na sequencia junto com os planos de potencial documentário etnográfico, que acolhe a mise-en-scène do pajé (xapire) venezuelano que faz o uso do rapé de Yakuana, trazendo o Xapire (Espirito) para dançar na sala com belos cantos. Para finalizar filme-pílula Morzaniel registrou as lideranças representantes de cada organização, Luiz Shatiwe (secretário da Horonami Organización Yanomami) e Dário Kopenawa (representante da Hutukara Associação Yanomami), falando sobre os problemas que se enfrentam no lado brasileiro e no lado venezuelano.

Comemoração saída dos fazendeiros terra indígena Yanomami – Região do Ajarani Comunidade Serrinha. (5’28”) 29 Esse filme mostra em certa medida o amadurecimento de Morzaniel no formato filme pílula que vinha fazendo, o material foi gravado no dia 31 de maio de 2014 e postado no facebook um mês depois no dia 13 de junho. O vídeo já com uma vinheta montada anteriormente introduz a uma narrativa diferente direcionada a um publico não-indígena. A fala de Davi Kopenawa no primeiro plano já aponta para mudança de publico “alvo”. “Bom dia para todos, pra todos indígena, todos não indígena, que moram em Roraima, Amazonas. Vocês tão vendo agora, chego a hora de nós comemoramos a saída do Paludo, fazendeiro. É muito importante pra nós indígena ficar juntos, lutando por nossos direitos, o direito da terra, o direito do povo indígena Yanomami. Isso é muito importante pra nós, nós estamos muito alegre que lutamos muito, muita luta, muito difícil, e assim conseguimos outra vitória pra ter a nossa terra. A nossa terra é do Yanomami, é por isso que nós estamos falando, com o povo da cidade [nesse momento Davi se refere apontando para câmera], hoje eles vão vê, eles vão escutar que nós estamos falando.” (Davi Kopenawa Yanomami)

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(Trecho retirado do vídeo)

Em seguida a essa introdução de Davi, Morzaniel abre o enquadramento através do zoom out quadro enquanto o xamã segue afirmando que aquela é a terra deles, onde eles nasceram e onde eles moram. O vídeo mostra os guerreiros Yanomami compondo o quadro ao lado da importante liderança e filósofo Kopenawa, em um dia tão importante para os Yanomami da região do Ajarani. A fazenda estava dentro da TIY e o proprietário se recusava a sair. Eles retomaram esse território para levantar uma aldeia Yanomami, onde querem fazer uma escola indígena, um ponto de cultura e centro de formação.

(Trecho retirado do vídeo)

Com esse trabalho de Morzaniel surgiram algumas inquietações a cerca do endereçamento do filme, do retorno dos olhares e em última instância, eficácia do vídeo para compreensão de um modo de vida. Os Yanomami que estão juntos com Davi, focam os  

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olhares a lente de Morzaniel. Pra quem endereçam esses olhares? Quem é que retorna o olhar para eles? Essas questões não são simples de responder, seria necessário um estudo mais sistemático de recepção desse filme no estado de Roraima. Porem o que pretendo problematizar, justificando a escolha desse filme para concluir o caso Yanomami, é a crença descrita no inicio do caso que sugere que a escolha de Morzaniel pelo facebook, possibilita que os filmes circulem em um espaço amplo de interação. Até que ponto a plataforma do facebook contribui para o fortalecimento das realizações independentes indígenas perante a grande mídia? “Todos não indígena, que moram em Roraima, Amazonas”, pra quem Davi endereça esse filme e os Yanomami direcionam os olhares, tem a possibilidade de ver esse material e com isso passar a respeitar os povos indígenas do seu estado? Infelizmente, as nove curtidas e os quatorze compartilhamentos do filme no facebook apontam para o tanto que ainda precisa se trabalhar tanto as formas de compartilhamento do facebook quanto na necessidade de apropriação dos grandes meios para circular essa importante mensagem de Davi Kopenawa, editada e filmada por Morzaniel Iramahi. É uma lastima que a maioria dos não-indígenas não são atingidos pelo plano seguinte da fala do Xamã, onde o cineasta acompanha um guerreiro yanomami cantando em um belíssimo e preciso plano sequencia.

(Trecho retirado do vídeo)

 

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O desejo em “apre(e)nder” a cultura Estudo de caso guarani Pesquisador Cineasta Indígena: Alberto Alvares

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Alberto caminha com Alcindo para “apre(e)nder” a cultura Guarani

No intuito de continuar a aproximar meu projeto dos realizadores indígenas e os contextos em que estão inseridos, nesse estudo de caso, proponho uma reflexão sobre a pesquisa de Alberto Alvares como cineasta, pensando uma característica específica (estilo), que o diferencie dos outros realizadores indígenas e ajude a compor o que pretendo chamar de “desejo de imagem”. O “pesquisador cineasta indígena” desse caso é da etnia Guarani Nhandeva, nascido no Mato Grosso do Sul, aldeia Porto Lindo, atualmente mora no Rio de Janeiro, onde desenvolve trabalhos como pesquisador do OEEI/UERJ-UFMG, além de professor da língua guarani na Universidade Federal Fluminense (UFF). Somado a isso, Alberto participa de projetos realizados pelo Museu do Índio, como o da gravação da série, Povos Indígenas: conhecer para valorizar (2011), entre outros. Em 2014, ingressou no curso de licenciatura indígena na UFMG, o FIEI (Formação Intercultural de Educadores Indígenas).                                                                                                                 30

Fotografia feita pelo autor na aldeia indígena Yynn Morothi Werá em agosto de 2013. Através de um projeto OEEI fomos para aldeia para finalizar o filme de Alberto Alvares, além de realizar uma oficina de cinema na qual participei como formador junto com Julia Bernstein. Para fazer a produção da formação e filmagens contamos com a presença de Marina França, que também desenvolve trabalhos no Observatório e acompanhou Alberto em todas as idas para Biguaçu-SC. Registros fotográficos da formação no link: https://www.facebook.com/media/set/?set=a.152321331641844.1073741834.137735796433731&type=3  

 

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Antes de ir “pra trás das lentes”, Alberto realizou diversos trabalhos como ator, comerciais televisivos31, filmes nacionais32 e até atuou como coadjuvante no filme Rouge Brasil (2013), do diretor canadense Sylvain Archambaud, uma superprodução realizada em parceria com empresas cinematográficas do Brasil, França e Canadá, sobre a história da expedição de Nicolas Durand de Villegaignon ao Brasil por volta de 1550. Além desses trabalhos como ator, a partir das formações realizadas desde 2010 pelo Observatório da Educação Escolar Indígena (OEEI) da UFMG, em parceria com a UERJ, Alberto começou a “dirigir” seus próprios projetos de pesquisa audiovisual sobre a cultura Guarani. Seu primeiro trabalho de edição foi em 2012, sobre o Encontro de Tradições Indígenas (ETI)33 realizado na Serra do Cipó-MG. Com cinco dias de duração, entre os dias 6 e 11 de maio do ano 2012, o evento contava com a presença de 46 convidados de 16 etnias indígenas: Baniwa, Baré, Galibi-Marworno, Guarani-Mbyá, Guarani-Kaiowá, GuaraniNhandeva, Kaingaing, Macuxi, Maxakali, Pataxó, Terena, Xakriabá, Xerente, Xikrin, Yawanawa, Yanomami, Yekuana e uma equipe de apoio “não-indígenas”, entre pesquisadores, professores universitários e bolsistas. Nesse evento Alberto reencontrou Alcindo Moreira, um importante rezador Guarani Mbya - com 103 anos na época - que foi o ponto de partida para sua pesquisa audiovisual. Em agosto do mesmo ano, o OEEI - UFMG, realizou a primeira formação no laboratório de metodologias na FaE/UFMG em Belo Horizonte. Tendo Alberto participando como aluno, essa formação durou duas semanas e foi ministrada por Pedro Portella e Julia Bersntein. O fruto dessa oficina foi o primeiro curta-metragem, de 25 minutos, que Alberto “montou” de mesmo nome do evento documentado. ∆∆∆∆∆ Conheci Alberto, após essa formação, em outubro de 2012 no I Seminário OLEEI/OEEI34, que tinha como temática: A educação escolar indígena e as línguas; esse                                                                                                                 31

 O cineasta atuou nos comerciais para televisão do Canal Futura (2013) e do Banco Bradesco, ainda não veiculado. Link: https://www.youtube.com/watch?v=wFJU1sXg5J4   32  Alberto foi protagonista do filme Como a noite apareceu (2008) com a direção de Alexandre Perim. Link:   http://www.youtube.com/watch?v=wCf_CUqBrLU   33 O Encontro de Tradições Indígenas, foi um encontro realizado pelo Observatório da Educação Escolar Indígena da UFMG em 2012 maio de 2012, na Serra do Cipó, MG. 34 O Subprojeto Observatório Linguístico da Educação Escolar Indígena (OLEEI) junto com o OEEI, se propôs discutir com lideranças e professores indígenas, especialistas, equipe e convidados especiais, as políticas linguísticas e ações que amparam e promovem a língua Guarani, sobretudo no âmbito da educação escolar indígena.  

 

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evento foi direcionado a todos alunos indígenas do FIEI. Já como bolsista do OEEI, fiz o registro fotográfico do evento, além de auxiliar Alberto para sua apresentação na mesa “Contribuição de Pesquisadores Indígenas”. Composta por três indígenas, na mesa se discutia a importância da contribuição de jovens pesquisadores indígenas para o fortalecimento da língua e outras tradições. Nesse contexto, Alberto apresentou seu filme (ETI) e fez comentários sobre a importância dos registros de vídeo nas aldeias: “O audiovisual nas aldeias Guarani ou dizer no mundo Guarani, hoje é uma ferramenta muito importante para comunidade, para guardar a memória, narrativa, cantos, poesia dos mais velhos, jovens e crianças. Que o cinema, muitas vezes leva vocês ao reencontro com sua própria história que muitas das vezes já estava sendo quase esquecida ou guardada lá no fundo da sua alma. Dessa forma faz vocês relembrarem do seu passado para pensar em diante. Essa ferramenta, não só serve para a divulgação da sua cultura ou para a produção de um filme ou documentário ela também serve para fazer denuncia do sofrimento dos seus povos ou suas comunidades, que veem sendo massacrada pelo grande latifundiários ou em uma grande empresa.” (Transcrição da fala de Alberto – Nota retirada do diário de campo do autor. Outubro de 2012)

Durante a semana do seminário pude acompanhar o nascimento da proposta de Alberto de realizar um filme/pesquisa sobre seu Alcindo. Ali, o “desejo de imagem” era acompanhar essa importante liderança espiritual guarani, Karai, acolhendo seus conhecimentos, num filme que seria sobre a busca do cineasta pelo Nhandereko35, o modo de vida guarani. Nascia em Alberto o desejo de “apre(e)nder” a sua própria cultura. Dessa maneira, no final de 2012, emerge o projeto do filme Karai ha’egui Kunhã Karai ‘ete – Os Verdadeiros Líderes Espirituais (2014), que narra a história de vida do seu Alcindo Moreira (Wherá Tupã), o mais velho líder espiritual Guarani, de 105 anos, e de dona Rosa Moreira (Poty Dja), sua esposa de 97 anos. Eles vivem na Aldeia Yynn Moroti Wherá, Terra Indígena de Biguaçu (TIB), em Santa Catarina. Do casal descendem oito filhos (cinco mulheres e três homens), 43 netos, 28 bisnetos e três tataranetos.

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A definição de Alberto para Nhandereko é: “O modo ser guarani 'ete, ele está ligando no mundo da espiritualidade, do canto da reza, espaço e lugar onde moramos, da plantas medicinas, do ar, da mata, do local onde Nhamandu Mirim nasce e onde Nhamandu Mirim se põe, da roça da caça, da chuva, coletividade do trabalho, narrativa dos velhos e da crianças e das mulheres. Tudo isso faz parte do mundo Guarani onde vivemos ou dizer faz parte dos Guarani, ter um pensamento só, para viver alegremente no nosso modo de viver no mundo do nhandereko. (Trecho retirado do diário de campo – Data: agosto de 2013)

 

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Alcindo Moreira (Wherá Tupã) e sua esposa Rosa Moreira (Poty Dja)36

O realizador conheceu Alcindo em 2004 e o contato foi retomado em 2008 a partir de atividades desenvolvidas pelo OEEI - UFMG. A busca do diretor através dessa pesquisa era o registro das narrativas de Alcindo e sua esposa com um foco na oralidade, sabedoria e espiritualidade guarani. Alberto realiza uma espécie de etnografia na qual sua relação com o outro é mediada pela câmera, e essas “anotações” é o arquivo bruto de imagens do filme. Segundo Alberto, no filme editado a montagem funciona como síntese de sua interação com as pessoas da Aldeia Yynn Moroti Wherá. A partir desse filme é possível refletir sobre a relação entre “aquele que filma”/“aquele que é filmado” com o dispositivo cinematográfico. Alberto, aquele que filma, como já explicitado anteriormente, possui uma relação com a imagem, influenciada em certa medida pelos trabalhos como ator, anterior ao filme Os verdadeiros líderes espirituais. Da mesma forma, aquele que é filmado (Alcindo Moreira) já havia participado de 36 filmes de diferentes gêneros fílmicos como ficção e documentários. Essa relação dos sujeitos envolvidos com o dispositivo cinematográfico trouxe ao filme características especificas dos modos de lidar com a presença da câmera. Um dos fatores interessantes durante o processo foi justamente que Seu Alcindo não queria mais ser filmado dado que nos outros projetos que participou não obteve retorno, nem influência sobre o produto gerado com suas imagens. Nesse sentido, o filme só aconteceu porque Alberto aos poucos e com tempo conquistou a confiança de Alcindo, que passou a                                                                                                                 36

 

Fotografia realizada pelo autor em agosto de 2013.

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acreditar que o cineasta poderia ser um bom “contador da cultura guarani” por ser indígena e, ao mesmo tempo, por dominar a “língua do branco”. Seu Alcindo tece esses comentários numa importante passagem do filme: “O Alberto veio de muito longe, ele não viu muito o costume do modo de viver por onde passou, só aqui ele conseguiu ver. Por isso que temos que dar valor a seu filme, só assim os outros vão nos valorizar. Ele fala bem a “língua dos brancos” e pode nos ajudar. São essas as minhas palavras” (trecho retirado do filme Karai ha’egui Kunhã Karai ‘ete - 2014)

Esse depoimento de Alcindo, primeiramente, fornece pistas sobre a busca/caminhada de Alberto pela cultura de sua etnia. O cineasta guarani já morou em diversos lugares em busca do Nhandereko (modo de vida) e da Yvy Marae’˜y (terra-sem-mal), porém, como ele mesmo disse ao Karai em uma das visitas a TIB, só encontrou o conhecimento verdadeiro com Alcindo e Dona Rosa, por isso a opção de chamar o filme, “Karai ha’egui Kunhã Karai ‘ete - Os verdadeiros líderes espirituais”. Outro ponto interessante nesse depoimento de Alcindo é seu pensamento sobre quem é o público “alvo” do filme, os “outros” (nãoindígenas) que precisam ver o modo de vida Guarani para valorizá-lo. Esse “encontro” entre Alberto e a aldeia Yynn Morothi Wherá gerou uma forte ligação de parentesco entre o cineasta e os Guarani da comunidade. Essa relação aparece no filme no modo pelo qual como Alberto chama Alcindo e Rosa, Xeramoi e Xejaryi, “Avô” e “Avó” em Guarani-Mbya. “Eu chama o senhor Alcindo de xeramoi e dona Rosa de xejaryi, pelo respeito que tenho por eles, não só porque eles são mais velhos, mas pelo valor do conhecimento que os dois transmitem no mundo dos Guarani. Ao mesmo tempo, não desvalorizo outros conhecimentos dos velhos Guarani que vivem em outras aldeias espalhados pelo Brasil.” (Trecho retirado do diário de campo – Data: agosto de 2013)

Esta relação se desdobra na maneira como Alberto costura seu estilo e elabora suas perguntas no momento da filmagem. Ele interage com as pessoas da Aldeia Yynn Morothi Wherá como se fossem seus parentes próximos. Justamente a presença do Alberto em cena, no ante-campo37, é um dos fatores que explicitam a relação entre quem filma e quem é filmado. O ante-campo é o que não está dentro do enquadramento da câmera, mas atrás dela. Não é o campo, porém participa como elemento importante que interage e compõe a cena/narrativa. Em muitos filmes indígenas, o                                                                                                                 37

O conceito de ante-campo foi elaborado no artigo “Bicicletas de Nhanderu: lascas do extracampo” (2012), escrito por André Brasil na revista Devires sobre um filme guarani realizado pelo Coletivo Mbya-Guarani de Cinema intitulado “Bicicletas de Nhanderu” (2011).  

 

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ante-campo - entendido como a equipe, o cineasta, enfim, o que está atrás do aparato cinematográfico - é, segundo André Brasil (2012), convocado a participar do campo, ou simplesmente o atravessa. No caso do filme do Alberto, o ante-campo se mostra e se move para o campo através da interação entre o diretor e os sujeitos filmados principalmente durante as conversas. Na maioria das cenas, mesmo que em movimento, Alberto interage com o sujeito filmado através de um enquadramento preciso. Em outros momentos ele observa com admiração os movimentos de seu avô e sua avó, retratando no filme passagens sobre o cotidiano das pessoas da aldeia. “... aquele que está “atrás das câmeras” é constantemente convocado, participa da cena – não por conta de um gesto reflexivo, aos moldes do cinema moderno – mas porque a própria feitura do filme é parte do cotidiano, motivo de debate entre os jovens realizadores e os velhos da aldeia.” (BRASIL, 2012: 111)

À medida em que as perguntas de Alberto não obedecem a um roteiro fixo e préelaborado, o encontro entre a câmera e o filmado está muito mais aberto ao que Comolli (2008) chama “risco do real”. Dessa forma, não só quem é filmado, mas também quem filma está sujeito aos imprevistos e ao descontrole da inscrição verdadeira. Segundo Guimarães e Caixeta (2008)38, essa inscrição é para Comolli a partilha do tempo, de uma duração entre quem filma e quem é filmado. “Diante dessa crescente roteirização das relações sociais e intersubjetivas, tal como é veiculada (e finalmente garantida) pelo modelo “realista” da telenovela, o documentário não tem outra escolha a não ser se realizar sob o risco do real. O imperativo do “como filmar”, central no trabalho do cineasta, coloca-se como a mais violenta necessidade: não mais como fazer o filme, mas como fazer para que haja filme.” (COMOLLI, 2008: 169)

Esse “risco” aparece em menor escala no filme editado em função do controle que se tem na montagem do material bruto, porém durante o processo de fazer o filme, o “risco do real” atravessa constantemente o fluxo das entrevistas pensadas pelo diretor. Durante as primeiras idas em Biguaçu para colher material em novembro de 2012 e janeiro de 2013, o diretor compartilhou da dificuldade em “conversar” (entrevistar) com dona Rosa e os filhos de Alcindo. Foi preciso paciência e tempo por parte do diretor para que os Guarani de

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“A inscrição verdadeira concerne à duração partilhada entre quem filma e quem é filmado, de tal modo que o tempo do filme se compõe com o tempo do mundo, que sempre deixa seu vestígio nas imagens, nos sons e nas falas.” (GUIMARÃES, C.; CAIXETA, R.; in: COMOLLI, J. L. 2008: 44)  

 

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Biguaçu tomassem esse “desejo de filme” e compartilhassem com Alberto a duração e miseen-scène39, ou seja, seus modos de vida, sua experiência.

∆∆∆∆∆

No início do filme, após acompanhar Alcindo roçando um pedaço de mato na entrada da aldeia, Alberto acompanha o Karai em um longo plano sequência. Nesse caminho, em suas perguntas, o diretor faz críticas sobre os comentários dos Juruá (não-indígenas) do Sul que consideram que os Guarani apreenderam a tomar chimarrão com eles. Para responder essa provocação, seu Alcindo conta o mito de origem do mate, falando sobre “aqueles que nos iluminam”, como eles fizeram para deixar o mate para os Guarani.

Alcindo: Essa aqui é a erva mate. Alberto: Qual? Erva-mate? [Alcindo aponta para a erva-mate no meio do mato em que estava roçando.] Alberto: É verdade que a erva mate e a palmeira são nativas da mata e foram batizadas por Nhanderu? Alcindo: É verdade, elas são nativas. Quem gerou a erva mate foi aquele que está nos iluminando. Alberto: Então, foi ele que criou a erva mate e a palmeira? Alcindo: Sim, foram eles. E essas aqui fui eu que plantei. As mudas foram trazidas do rio Pelotas. Alberto: A erva mate existe desde antigamente mesmo? Alcindo: Desde antigamente. A erva mate é antiga mesmo. Alberto: Isso significa que os Guarani tomavam chimarrão desde antigamente, nossos avós? Alcindo: Desde antigamente, nós velhos usamos. A erva mate que tem na mata é grande e alta. Só quem sobe no pé de erva consegue cortar as folhas. Quem não sabia subir derrubava o pé de erva mate. Alberto: Eu escutei, aqui no Sul, os brancos falarem que os Guarani apreenderam a tomar chimarrão com eles. Alcindo: Quando eles foram embora, aqueles que nos iluminam, jogaram as sementes para nascer. De onde conseguiram e de quem conseguiram? Primeiro eles varreram e depois peneiraram. Alberto: Foi assim que surgiu a erva mate? Alcindo: Sim, foi através do conhecimento deles.

                                                                                                                39

“A mise-en-scène é um fato compartilhado, uma relação. Algo que se faz junto, e não apenas por um, o cineasta, contra os outros, os personagens. Aquele que filma tem como tarefa acolher as mise-en-scènes que aqueles que estão sendo filmados regulam, mais ou menos conscientes disso, e as dramaturgias necessárias àquilo que dizem – que eles são, afinal de contas, capazes de dar e desejosos de fazer sentir.” (COMOLLI, 2008: 60)  

 

41  

Da mesma forma, na próxima cena, ao ver D. Rosa enrolando folhas de tabaco para fazer o fumo, Alberto começa a perguntar do processo - desde a retirada das folhas do tabaco até ao modo como se faz para secá-las - ainda desconhecido para ele, e Alcindo mais uma vez, em uma conversa a princípio despretensiosa, conta o mito de como o fumo surgiu na aldeia, conta que foi um presente dado por Nhanderu. O modo espontâneo como a história do mito vem à tona nos remete à referencia a cerca da presença do real no documentário. Segundo Comolli, “O cinema, na sua versão documentária, traz de volta o real como aquilo que, filmado, não é totalmente filmável, excesso ou falta, transbordamento ou limite – lacunas ou contornos que logo nos são dados para que os sintamos, os experimentemos, os pensemos. (2008: 177)” É possível observar nessas cenas que Alcindo (o sujeito filmado) controla e delimita a mise-en-scène e, com ela, o discurso para a câmera, dominando bem a situação e compartilhando apenas o que acha necessário. Alberto como diretor acolhe essa mise-enscène de Alcindo e em nenhum momento tenciona o discurso. Já as cenas que envolvem D. Rosa também demonstram controle por parte do sujeito filmado, porém a interação é completamente oposta. Ela se coloca em cena como uma legítima velha guarani que faz Alberto esperar para refletir sobre suas perguntas nem sempre obtendo respostas. Uma cena que explicita bem essa relação entre a mise-en-scène do sujeito filmado e a do diretor é quando Alberto vai acompanhar D. Rosa e sua filha Sonia no milharal. O cineasta sabia da importância do milho para os Guarani e, portanto, da existência de um canto verdadeiro para o batismo milho,“Awati Mborai”, e pede para D. Rosa entoa-lo, ela responde com silêncio, enquanto ele insiste na pergunta:

Alberto: - Minha Vó, a senhora sabe o cântico verdadeiro do milho? Para cantar só um pouquinho? Enquanto eu estou gravando? [Dona Rosa lança o olhar em direção de um horizonte distante como se com o silêncio iria responder Alberto] Alberto: Eu já escutei o canto que se canta, assim: “Awatxi nhombyte rupi jajerojy’i he’i wa`e” Eu escutei as crianças cantando assim. Após um minuto de silêncio, dona Rosa responde a Alberto falando: “Seu avô canta de outro jeito. Quando o milho está nascendo”. E completa dizendo: “Seu avô sabe mais do que eu.” Alberto: Você pode cantar um pedacinho? Com um sorriso disfarçado D. Rosa diz: Eu quase não sei nada.

 

42  

Diante das perguntas de Alberto, ela silencia e nos ensina que nem tudo pode ser cinema, existem segredos a serem guardados. Durante a exibição dessa cena na casa de seu Alcindo, a gargalhada foi geral. Era engraçado o fato de Alberto não conseguir filmar D. Rosa cantando a importante música do batismo do milho. Um outro momento paradigmático da espontaneidade da relação entre “aquele que filma” e “aquele que é filmado”, que brota na cena, se dá durante as conversas de Alberto com os filhos de Seu Alcindo: Sonia, Geraldo e Fátima. Essas conversas são atravessadas pela auto-mise-en-scène que, segundo Comolli (2008), diz respeito ao desabrochar no momento fílmico a autonomia do sujeito filmado. “... a auto-mise-en-scène seria a combinação de dois movimentos. Um vem do habitus e passa pelo corpo (o inconsciente) do agente como representante de um ou vários campos sociais. O outro tem a ver com o fato de que o sujeito filmado, o sujeito em vista do filme (a “profilmia” de Souriau) se destina ao filme, conscientemente e inconscientemente, se impregna dele, se ajusta à operação de cinematografia, nela coloca em jogo sua própria mise-en-scène no sentido da colocação do corpo sob o olhar, do jogo do corpo no espaço e no tempo definidos pelo olhar do outro (a cena).” (COMOLLI, 2008: 85)

Em outras palavras, o aparecimento da auto-mise-en-scène dos sujeitos filmados, é estimulada a medida em que há descontrole e liberdade da parte de quem filma. Para tanto, é preciso a calma ao acolher a mise-en-scène do outro, só assim, aquele que é filmado (personagem), nas palavras de Comolli, “se destina ao filme..., se impregna dele, se ajusta à operação cinematográfica...” Desde o início do processo, Alberto se dizia receoso em aproximar de Sonia, pois em todas as suas tentativas, ela se mostrava tímida e resistente. Sempre de um jeito muito sério, sua atitude era de “brincar” com a situação. No mesmo dia em que o diretor acompanhou D. Rosa e Sonia no milharal, após algumas perguntas sem sucesso e muito tempo de espera, ele conseguiu se aproximar dela, numa interação que rendeu mais de 40 minutos de material bruto. Ao filmar Sonia pilando o milho para fazer mbojape (pão guarani feito a partir do milho), Alberto começa a se aproximar a medida que o tempo passa e a interação se dá, ambos perdem o controle sobre a mise-en-scène e a cena ganha autonomia, ambos parecem ignorar a presença da câmera ali. Nessa longa conversa, Sonia expõe muitos pensamentos sobre o preconceito que sofre por não ser reconhecida nos processos de cura junto com seu pai. Posteriormente revela  

43  

alguns segredos guarani que dizem respeito a proteção dela. Fala da importância das pulseiras que usa, do esmalte nas unhas e de sua busca por uma vida simples que a afaste dos maus espíritos. Essa sequência é cheia de enquadramentos precisos, bem próximos de Sonia, horizontais e rentes ao chão, o que parece gerar uma intimidade entre ambos. Em várias cenas Alberto se posiciona no lugar de aprendiz, com planos contra-plongée, e nessa cena especificamente, ele enquadra Sonia rente do chão, de maneira parecida com a chamada “câmera baixa” de Yasujiro Ozu e Yasushi Kato, cineastas japoneses.

“Câmera baixa” de Alberto filmando Sonia peneirando o milho40

Frame do filme de Ozu: Tokyo Chorus (1931)

                                                                                                                40

 

Frame retirado do filme Os verdadeiros líderes espirituais (2014).  

44  

Principalmente

Ozu,

conhecido

por

seus

enquadramentos

rígidos,

buscou

sistematicamente em quase toda sua obra ver e criar o estilo de vida japonês dentro do cotidiano. A “câmera baixa”41, posicionamento da câmera que acompanha o cotidiano das refeições e vida japonesas, em certa medida tem relação com os corpos dos povos indígenas com trabalhos realizados no chão. Nas formações que Alberto participou, trabalhamos esta forma de enquadramento, com um pouco de contra-plongée, que “valoriza” seus personagens, e isto se tornou característica específica do estilo do cineasta; este estilo de filmagem vem desde o cinema russo de Pudovkin e se consagrou no cinema japonês de Ozu e Kato. Quando Alberto conversa com Fátima, outra filha do Xeramoi (avô) e Xejaryi (avó), segue um modelo mais convencional de entrevista documentário, através da qual procura saber os significados que envolvem as folhas de Tukã Rexa (olho de tucano), lugar sagrado que apenas as mulheres podem cuidar e onde elas devem sempre andar com seu pytengua (cachimbo religioso guarani) para proteger seu corpo e sua alma. Fátima acompanhada das suas filhas explica que as folhas do olho de tucano junto com e caule do Cipó Ygua (cipó da água) fazem a “medicina” (ayahuasca) hoje em dia utilizadas pelos Guarani como um meio de encontrar Yvy Marae’˜y (terra-sem-mal). Já nas falas calmas de Geraldo, que está em processo de virar um Karai, a história de vida do filho de Alcindo é relembrada em cena no momento em que ele compartilha com Alberto a relação com pai. Geraldo lembra da sua iniciação aos quinze anos onde teve que passar alguns dias caminhando pela mata apenas com seu pai, longe da aldeia, conhecendo as plantas medicinais e os segredos guarani. Em uma de suas respostas a Alberto, Geraldo, dá pistas do modo como busca o conhecimento em Alcindo e Rosa: Alberto: Como se meus avós fossem um caminho e vocês, filhos, vão andando nele. É isso? Geraldo: Isso, é nesse caminho que eu estou... Meus velhos são como se fossem um livro pra mim, é uma biblioteca antiga mesmo, que podem passar muitas informações para nossa vida.

A analogia de pensar os avós como um caminho, sendo necessário andar sobre ele para aprender, aponta para o próprio estilo com que Alberto conduz seu filme. Depois de Geraldo andar pelas matas e aprender sobre as “medicinas” da floresta, ele tem o dever de levar a sabedoria de seu pai para outras aldeias que visita. Da mesma forma Alberto, ao                                                                                                                 41

A “câmera baixa” está descrita no livro Ozu: O extraordinário cineasta do cotidiano (1990), especificamente no texto O estilo de Yasujiro Ozu de Tadao Sato. “A câmera baixa de Ozu fica, basicamente, numa distancia que oscila entre 40 e 50 cm do chão de uma residência típica japonesa assim como a de Kato em locação externas e salas de estilo ocidental. Em sala de estilo ocidental, frequentemente, a câmera fica rente ao tatami.” (SATO, 1990: 69)  

 

45  

caminhar apreendendo imagens, conhecimentos guarani, tem o mesmo trabalho que Geraldo, levar seu filme para as outras Aldeias e para o mundo dos Juruá (não-indígena) para compartilhar o que apreendeu.

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Sem dúvida, o filme Karai ha’egui Kunhã Karai ‘ete (2014), possui uma variedade de experiências, emolduradas em quadros precisos, que acolhe a mise-en-scène de cada sujeito filmado, ora controlada por quem filma, ora por aquele é filmado, ora por nenhum deles, ora por ambos. O “desejo de filme” do diretor se sustenta em dois pilares principais descritos pelo diretor Alberto na introdução do mesmo. Uma das bases “É uma homenagem a Wherá Tupã e Poty Dja - Os verdadeiros lideres espirituais”, e a outra é a busca de Alberto por seguir por esse caminho de conhecimento. O processo de filmagem foi construído durante um processo de muitos anos para primeiramente fortalecer a confiança de Seu Alcindo no pesquisador cineasta desse caso; e depois dois anos inteiros de produção cinematográfica (filmagem, montagem e finalização). Quando Alberto mostrou o filme pela primeira vez na casa de seu Alcindo, o Karai disse que ele deveria ter paciência para fazer um bom trabalho e fez uma analogia com uma caminhada: fazer um filme é como conhecer uma floresta, não podemos sair correndo, pois, senão, não enxergaremos a beleza das coisas, e depois sairemos mentindo para os outros sobre a beleza que não vimos. Dessa maneira, a caminhada se apresenta como algo que diferencia Alberto de outros cineastas indígenas, tanto no sentido simbólico - através do qual o cineasta “caminha” para Aldeia Yynn Morothi Wherá para buscar os conhecimentos sobre o Nhandereko (modo de vida Guarani) e Yvy Marae’˜y (terra-sem-mal) - quanto no sentido literal dos planos sequencias onde Alberto caminha acolhendo a fala das pessoas, interagindo com elas de maneira muito precisa na forma de enquadrar e dirigir.

 

 

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A câmera como uma arma que caça imagens Estudo de caso xakriabá Pesquisador Cineasta Indígena: Edgar Nunes Correa Kanaykõ

“Eu sou morador do mato, sou Xakriabá, gosto de cantar, no mato eu sei entra”42

Nesse caso, a aproximação é com o “pesquisador cineasta indígena”, Edgar Corrêa Kanaykõ, da etnia Xakriabá. O “fio condutor” desse momento segue a proposta elaborada na introdução, a questão comum a todos os casos: Qual a influência do contexto na pesquisa audiovisual do cineasta e como ele dá a ver seu “desejo de imagem”? Assim como cada caso tem uma especificidade, e seus desdobramentos, no caso xakriabá, trata-se da discussão sobre “projetos de financiamento cultural”, questionando até que ponto eles ajudam e fortalecem as comunidades participantes ou limitam os desejos de filme das mesmas, fazendo com que as comunidades sejam máquinas de produzir “cultura” com aspas? Edgar mora na aldeia Barreiro Preto na Terra Indígena Xakriabá (TIX)43, que fica próxima ao município de São João das Missões, norte do estado de Minas Gerais. O                                                                                                                 42

Edgar “caça” uma imagem na aldeia Imbiruçu Pataxó, município de Carmésia, MG. Fotografia realizada pelo autor na formação pelo programa Saberes Indígenas na Escola para etnia Pataxó. Edgar me auxiliou durante essa oficina para a produção de material diferenciado para escolas indígenas. [Legenda da foto é trecho da música Xakriabá] 43 “A Terra Indígena Xakriabá localiza-se no município de São João das Missões, no norte de Minas Gerais, cerca de 700km da capital Belo Horizonte. Foi homologada em 1987 com a extensão de 46.415 hectares, e

 

47  

pesquisador se formou em Ciências Sociais na Formação Intercultural de Educadores Indígenas (FIEI) da UFMG em 2013, e seu trabalho de conclusão de curso (TCC) alavancou uma reflexão sobre o “desejo de imagem” do cineasta. O ponto central de seu TCC foi as histórias e as práticas envolvendo as caças e a “ciência”44 das caças dentro da TIX. O formato final do trabalho foi o filme Histórias e modos de caçar Xakriabá 45 (2014), de curta duração (onze minutos), e

também uma

monografia que dá pistas sobre a importância do tema dentro da cosmologia xakriabá.

“As histórias dos caçadores e das caças – uma forma de entender a cosmologia Xakriabá tem como objetivo analisar e investigar por meio das histórias contadas por antigos caçadores e pessoas que ainda caçam a forma dessa prática e o que ela implica na vida social, procurando entender, a partir dessas atividades, como os caçadores se relacionam com o meio em que vivem, o mato, os bichos, as plantas, e os incantos. Além disso esse estudo pretende entender quais significados são atribuídos pelas pessoas ao ato de ir caçar nos dias atuais e propõe uma investigação de como se da à relação entre homem, animal, (os bichos e os encantos) para os Xakriabá.” (CORRÊA, 2013: 5)

O envolvimento de Edgar em sua TCC diz muito sobre seu “desejo de imagem”, e por consequência, acaba por influenciar seu talento como pesquisador de cinema. Não é por acaso que intitulamos esse momento do nosso ensaio – em refêrencia direta ao ato de caçar imagens - “A câmera como uma arma que caça imagens”. Antes de aprofundar nas hipóteses, é importante entender o processo de formação de Edgar como cineasta, observando como os “projetos de financiamento cultural” foram indispensáveis para sua formação em cinema.

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                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                          posteriormente foi acrescentada a Terra Indígena Xakriabá Rancharia, homologada em 2003 com 6.798 hectares. O povo Xakriabá é a maior etnia do Estado com cerca de 9.196 pessoas (FUNASA, 2010) distribuídos em 32 Aldeias. Atualmente está em curso o processo de revisão de limites do território, com algumas áreas que já estão retomadas pelos Xakriabá. Essa demarcação possibilitará chegar à margem do Rio São Francisco, uma reivindicação do povo ao espaço que corresponde a uma parte do território ancestral Xakriabá.” (CORRÊA, 2013: 6)   44 “O termo Ciência é recorrente entre os Xakriabá para designar alguém que detém uma sabedoria outra, fulano tem ciência, tem que ter ciência para fazer isso, aquilo ou mesmo uma explicação para algo “inexplicável” ou que não pode ser dito, dizendo apenas que aquilo é ou foi uma ciência que aconteceu.” (CORRÊA, 2013: 16)   45  Este filme auxiliei pesquisador, junto de Julia Bernstein, a fazer a finalização com correção de cor e mixagem do áudio para apresentação da monografia de Edgar. Link do filme: http://www.youtube.com/watch?v=PG94umqhOrc

 

48  

Desde 2006, o aprendizado e a prática de Edgar estão relacionados aos diferentes projetos

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desenvolvidos pela Associação Indígena Xakriabá Aldeia Barreiro Preto

(AIXABP). As atividades da associação precisavam ter registros (fotos e vídeos) por dois motivos principais: para circulação das imagens dentro da TIX, para que as outras aldeias soubessem do que vem sendo feito pela AIXABP; e para a elaboração de relatórios. Dentre os projetos em execução, pretendo focar em um especial que é o Ponto de Cultura Loas, que possui uma sede localizada na Aldeia Sumaré. O Loas que existe desde 2011 e se formou a partir de um edital do Ministério da Cultura (MinC) de Ponto de Cultura e Cultura Viva em parceria com a secretaria de cultura do estado de Minas Gerais. O projeto foi formulado pela AIXABP em parceria com a UFMG e o Centro de Agricultura Alternativa (CAA).

“O meu desejo de imagem está ligado diretamente com o desejo da comunidade de registrar, “guardar” as atividades que estavam sendo realizadas, isso se deu através da AIXABP (Associação Indígena Xakriabá Aldeia Barreiro Preto) que desenvolve projetos ligado ao bem comum do povo Xakriabá. Onde desde meus 15 anos de idade tive os primeiros contatos com uma câmera fotográfica e de vídeo através dos projetos da AIXABP.” (Entrevista Edgar Kanaykõ – outubro 2014)

Foi através do Ponto de Cultura que conheci Edgar, quando Joel Xakriabá [professor na Escola Estadual Indígena Bukinuk e diretor do Loas] me convidou para realizar uma formação em audiovisual na TIX, em janeiro de 2013. A oficina durou duas semanas e muito se discutiu sobre possíveis formatos de filmes, enquadramentos (fotografia cinematográfica) e do “desejo de imagem” dos participantes. Foi apenas no final do curso que se introduziu conceitos básicos de montagem. A metodologia das formações desenvolvidas no OEEI47 é baseada principalmente no manejo dos equipamentos pelos participantes associada à teoria. Na oficina do Loas, nos dois primeiros dias, realizamos uma introdução sobre o uso das câmeras e questões conceituais como a relação entre quem filma e quem é filmado, a partir da proposta teórica desenvolvida por Comolli (2008). A partir do material filmado pelos alunos entramos em questões

                                                                                                                46

A AIXABP junto com os parceiros institucionais desenvolvem projetos em todas as aldeias localizadas na TIX. Estes projetos tem como objetivo o fortalecimento ambiental, social e cultural do povo Xakriabá. Os projetos são: “Cercamento de nascentes”, “Casas de Cultura”, “Casa de Farinha”, “Engenho comunitário de Rapadura”, “Casa de Medicina”, “Banco de sementes crioulas” e proteção ambiental na Aldeia Caatinguinha. Link do vídeo filmado e editado por Edgar Kanaykõ: http://www.youtube.com/watch?v=UMEiP2mhOt8   47 A metodologia de formação do OEEI foi desenvolvida a partir da experiência de Pedro Portella em outras oficinas e com adaptações especificas a partir da minha entrada em 2012.  

 

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específicas de fotografia cinematográfica, pensando como a escolha de um quadro influência diretamente na narrativa do filme.  

Formação em Audiovisual (Janeiro de 2013)48

O “desejo de filme” dos alunos foi surgindo durante a formação, e eles escolheram duas situações para serem registradas: pesquisa sobre cerâmica e coleta de imagens para o filme Cerâmica Xakriabá; e documentar o grupo de foliões Zé Delegaria na aldeia São Bernardo para o filme sobre a Folia Reis.

Ante-campo Cerâmica Xakriabá49

                                                                                                                48  Fotografia de Erick Corrêa na sala de edição do Ponto de Cultura Loas.  

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Preparação para o registro da Folia de Reis de Zé Delegaria50

A participação de Edgar nessa oficina foi muito importante, pois ele auxiliou os outros participantes no manejo das câmeras devido a sua relação com os processos de produção de imagem anteriores a formação. Nesse sentido, o ensino para Edgar foi mais específico, trabalhando conceitos mais avançados sobre fotografia cinematográfica, direção e montagem. A relação entre quem filma e o sujeito filmado, a duração e espera do diretor nos planos, os enquadramentos influenciados por Kuleshov (1947), entre outras práticas, foram aprofundadas com Edgar no intuito de despertá-lo para um estilo próprio de fazer cinema em sua comunidade.

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Durante a formação, saímos todos do Ponto de Cultura Loas na aldeia Sumaré para a casa do professor de cerâmica Vanginei Leite (Nei), aldeia Barreiro Preto, onde os alunos da                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                           49

Gravação debaixo de chuva na casa de Vanginei Leite, professor de cerâmica na aldeia Barreiro Preto, com sua mãe Dona Dalzira, para o filme Cerâmica Xakribá. (Pessoas na foto do primeiro plano para o ultimo: Edmar, Erick Corrêa, Edgar Corrêa e Jeann Oliveira). Fotografia realizada pelo autor em Janeiro 2013. 50 Preparação para o registro da Folia de Reis na Aldeia São Bernardo. Na foto da direita para esquerda, respectivamente Edgar Corrêa, Joel Xakriabá e Edmar Corrêa. Fotografia realizada pelo autor em Janeiro 2014.

 

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oficina realizariam filmagens sobre a coleta do barro e também entrevistariam o próprio ceramista e sua mãe Dona Dalzira, (importante ceramista xakriabá) para o documentário sobre a cerâmica xakriabá. Nesta situação, os alunos foram convidados por Nei para irem até o riacho que passa próximo da sua casa onde ele mostraria aos participantes da oficina o melhor barro para as peças de cerâmica. Todos o acompanharam e Edgar, atento aos movimentos no riacho, observou algumas crianças brincando na água e de maneira discreta chegou perto delas para “caçar” o que elas estavam fazendo. As imagens que Edgar colheu nesse encontro foram para o seu filme sobre a caça e estão descritas na sua monografia de conclusão de curso: “Durante o período de chuva tempo das águas, enquanto estávamos fazendo uma gravação do documentário de cerâmica Xakriabá, no riacho próximo onde estávamos gravando a cena de coleta do barro, uma grupo de cinco crianças quatro meninos dentre eles uma menina, com idades entre 5 a 13 anos, pescavam piabas com um saco de nylon que servia de rede nas águas ainda barrentas das enchentes, muitos deles empunhavam estilingue e no pescoço a espera de qualquer passarinho que avistasse por ali. Eu os acompanhei por um tempo no curso d`água no sentido contrário da correnteza em direção a suas casas. Essas crianças estavam se divertindo brincando – ou, como se usa dizer, estavam vadiando – e ao mesmo tempo pescando e caçando o que faria parte do seus almoços, já que a pequena rede estava praticamente cheia de piabas a qual exibiram para a câmera sentindo-se orgulhosos. Eu estava filmando o trajeto, que faziam sem muitas perguntas, e a principio ficaram envergonhados com a minha presença e da câmera, para logo em seguida se sentirem à vontade. Como estavam fazendo o caminho de volta pra suas casas, elas não se preocupavam muito em pescar mais piabas ou outro bicho, mas percebi que andavam sempre atentas aos sons de passarinhos e com cuidado já que estavam dentro d`água barrenta e cheios de buracos. A menina que os acompanhavam, a menorzinha, de vez enquanto caia em um deles, quando não conseguia seguir em frente era pega no colo pelo mais velho. Eles seguindo em frente, e eu atento às cenas que eu via e ao que era captado pela câmera.” (CORRÊA, 2013: 12)

Edgar estava ali praticando a teoria com a formação, acolhendo aquelas crianças no que viria a se tornar seu primeiro curta metragem documental. É possível perceber os cuidados orientados durante a formação, nas imagens feitas pelo diretor, seus planos duram com enquadramentos precisos e sua relação com as crianças se constrói a partir da mise-enscène deles. O cineasta começa perguntando para as crianças se elas pescam sempre naquele riacho, um dos meninos fala que eles vão lá para pegar umas “piabinhas”, Edgar vai acompanhando as crianças a partir da fala delas, então pede pra ver o que eles pescaram. Em meio as risadas das crianças um garoto com um estilingue na cabeça mostra as piabas que havia pegado.  

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Na sequencia Edgar acompanha o menino mais velho que vai dando pistas sobre como a caça nos Xakriabá está viva apesar da falta de animais. O cineasta filma o menino subindo o rio colhendo suas falas: Menino: Então a gente vai pescando e vendo se tem algum passarinho por ai. Parece que não tem nenhum passarinho, só lá pra “arribá”.

O diretor segue o riacho com os meninos sem nenhum roteiro, exposto ao risco do real e isso possibilita a Edgar capturar com a câmera além da importância dessa prática, ensinamento dos mais velho sobre a “ciência” das caças. A ciencia das caças aparece quando as crianças param em um barranco, apontando para o buraco dizendo haver uma cobra ali. “Logo um deles parou num buraco profundo que tinha no barranco, caçando alguma coisa. Chamou o restante dos seus colegas pois ali estava uma cobra e todos foram correndo para ver, ficaram apreensivos e curiosos para saber que tipo de cobra seria aquela.” (CORRÊA, 2013: 12)

A relação das crianças de apreensão e medo quando viram a cobra diz muito sobre a cosmologia Xakriabá ligada a caça, pois a cobra sendo um bicho “ciêncioso” pode trazer malefícios a quem viu a cobra. Essa reação é recorrente no território Xakriabá como argumentou Edgar na sua monografia. “Quem é caçador também sabe que é fundamental ter ciência para não ser picado por cobras, sendo que há um preparo especifico para elas. O encontro despreparado com uma cobra pode acarretar malefícios para a pessoa por isso quase sempre a medida a se tomar é matar e não deixar escapar, pois isso seria uma corrida incessante para a sua captura, já que as cobras principalmente as ditas venenosas podem espiar ir até a casa da pessoa que tentou mata-la para poder se vingar.” (CORRÊA, 2013: 14)

Crianças “vadiando” e ao mesmo tempo pescando e caçando.51

                                                                                                                51

 

Frame da fotografia feita por Edgar, retirado do filme “Histórias e modos de caçar Xakriabá”. (2014)

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Seu filme se divide em três blocos, o primeiro é uma conversa que Edgar teve com os sábios xakriabá no intuito de colher dados para sua monografia, o segundo introduz a relação da caça e as crianças e no terceiro (descrito anteriormente), Edgar acompanha a mise-en-scène – as brincadeiras, a relação com a câmera - das crianças pelo riacho. Na monografia, inicialmente o cineasta relatou em seu texto a dificuldade em realizar entrevistas com os sábios e pajés, pois nem tudo pode ser compartilhado com a presença da câmera. A conversa apenas oferece vestígios do que vem a ser a cosmologia xakriabá ligada a caça. “Mesmo eu sendo parte da comunidade Xakriabá, nem tudo poderia ser dito ou divulgado, principalmente diante de um gravador ou de uma câmera. Passado alguns dias de conversas sobre as caçadas com o pajé Vicente da Aldeia Caatiguinha, ele veio em minha casa e contou muitas histórias sobre seu cotidiano como professor de cultura e enquanto pajé. Ele dizia muitas coisas, dentre elas, falava sobre o segredo, sobre o qual ele me disse: “por isso eu não disse isso aquele dia, porque tava gravando e é segredo”.”(CORREA, 2013: 9)

Por saber da complexidade desse tema, Edgar teve que elaborar metodologias, para pensar como “dizer” algo que não pode ser dito, ou até mesmo tornar visível (imagem/filme) o invisível. No capítulo de sua monografia dedicado as metodologias é possível notar o cuidado que o ele teve ao acolher o depoimento dessas pessoas, e isso só se deu pelo fato do cineasta se colocar no lugar da escuta. Esse lugar é defendido por Comolli como fundamental para realização de um filme documentário.

“Colocar-se à escuta da fala das pessoas, aquelas que nos propomos a filmar, no momento mesmo da filmagem, escutá-las, sugerir-lhes que se coloquem a partir disso, do fato bem simples de que já escuta” (COMOLLI, 2008: 55)

Da mesma maneira, no segundo bloco do filme, o cineasta nos leva a escutar as crianças e refletir sobre suas “brincadeiras” relacionadas às caças. Nessa parte do filme, o cineasta optou por usar um material que não foi filmado por ele. Sua escolha por essas imagens enriqueceu a narrativa, pois de uma maneira descontraída e com um aparato de baixa resolução, as crianças entram em cena: primeiro em cima da árvore catam músicas importantes para cultura Xakriabá relacionadas a caça; em seguida, descem para conferir as armadilhas que espalharam nos gerais para pegar pássaros.  

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Os planos envolvendo as crianças (segundo e terceiro blocos) nos transportam de uma maneira sutil e divertida para a importância cosmopolítica da caça para os Xakriabá, tanto no sentido sociocultural quanto no geopolítico de manejo do território, conforme descritos pelo Edgar em sua monografia. “No Xakriabá, os discursos que se ouvem em reuniões com as comunidades e órgãos externos, principalmente por meio das Associações, são demandas pelo fortalecimento da cultura, das danças, artesanatos, roças comunitárias, geração de renda, sustentabilidade, alimentação de qualidade, etc. Um dos objetivos desta pesquisa é propor, em longo prazo, projetos ligados a manejo de caça, assunto já colocado há algum tempo, mas que ainda não teve andamento. Investigar algo que “parece” cada vez menos recorrente no território Xakriabá - a caça - bem como o que está por trás dessa relação com a caça.” (CORRÊA, 2013: 8)

Nesse sentido, o “desejo de imagem” do diretor está associado ao retorno dessa pesquisa para os Xakriabá, e é ele que revela a importância da realização desse filme. Essa foi uma das questões levantadas por Edgar em seu TCC: Qual o retorno dessa pesquisa para a comunidade. Na sua apresentação ele defendeu que esse filme serviria como uma espécie de pesquisa/roteiro para um “filme maior” que ele gostaria de fazer. “Este é um primeiro trabalho que procura dar visibilidade ao que se refere as “Histórias dos caçadores e das caças” entre o povo Xakriabá, a partir das histórias narradas por antigos e novos caçadores. Este trabalho escrito é uma etapa, parte de um caminho que se está construindo para uma futura continuidade desse tema. Já está em andamento, junto com o trabalho de conclusão de curso (TCC), um vídeo documentário dessas narrativas dos caçadores. As gravações serviram também para coletar as informações para o TCC, bem como este trabalho pode orientar a continuação na produção do documentário.” (CORRÊA, 2013: 22)

No forumdoc.bh 2011 aconteceu uma mostra/seminário com o tema “O animal e a câmera” proposta pelo programa de extensão forumdoc.ufmg. Algumas mesas de debate foram permeadas pela analogia entre caçar e o ato de filmar. Nós participamos desses debates e acompanhamos os filmes da mostra, isso influenciou fortemente o desejo de Edgar em pensar sua monografia sobre a caça usando a câmera como instrumento de registro. Retomamos a conversa sobre esse tema na formação que demos juntos na Aldeia Imbiruçu Pataxó (outubro de 2014), foi ali que compreendi esse talento específico do cineasta, o de filmar como se estivesse caçando imagens. Iniciamos a oficina conversando com os professores participantes sobre como a presença da câmera transforma o ambiente onde é inserida; quais os cuidados ao se colocar em cena? Em seguida Edgar comparou o gesto de filmar com o de caçar, pois em ambos, tem  

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que “saber chegar” para “poder sair”, tem que ter “ciência”, como ele mesmo disse. A partir disso surgiram reflexões entorno das preocupações com câmera como “armadilha” que caça imagens, “prende” os sujeitos filmados; por isso deve se ter cuidado ao capturar a imagem dos outros (ao acolher as mise-en-scènes). Ao mesmo tempo, Edgar também apontou a possibilidade da câmera servir como uma arma política para os povos indígenas. “Vejo que a imagem de fato tem um grande poder de dizer algo, por isso é cada vez mais usada como ferramenta de luta, de ensino, didático e pesquisa. Sendo assim, quem fotografa/grava é como um caçador em busca da presa. Um caçador vai para o mato com sua arma, está a procura do animal para capturar, consumir para sobreviver. Quem fotograva/grava também é um caçador, pois está a todo tempo com sua arma na mão á procura de uma imagem a ser capturada, pois é dela que ele se alimenta. Ambos os caçadores devem ter os seus sentidos apurados e ambos ao ter sucesso na caça deve compartilhar com a comunidade pois todo se alimentam dela.” (Entrevista Edgar Kanaykõ – outubro 2014)

∆∆∆∆∆ Como mencionado no início do caso, a construção do “desejo de imagem” de Edgar só foi possível graças aos projetos desenvolvidos pela AIXABP, que permitiram a formação do mesmo como cineasta. As atividades realizadas pela associação possibilitaram que Edgar ouvisse as pessoas através do registro e entendesse, em certa medida, o desejo de filme das comunidades. O Ponto de Cultura Loas deu o suporte técnico de formações para o cineasta e outros jovens xakriabá para permirti-les registrar os movimentos da cultura. Em virtude disso, os projetos ensejaram a reflexão sobre o registro como “arma” na luta política dos Xakriabá. Porém, uma questão eles é importante aqui: até que ponto as demandas dos projetos pelos filme acolhem o “desejo de imagem” dos próprios realizadores? Foi durante a segunda formação em audiovisual na TIX, um ano após a primeira oficina (janeiro de 2014), que surgiu esta questão; fui chamado para ajudar a finalizar um vídeo institucional sobre o processamento do pequi, fruta tradicional do cerrado brasileiro, pelo CAA (Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas) em parceria com o Ponto de Cultura Loas. O projeto previa a finalização desse produto e distribuição dos DVD`s. A princípio pensei sobre como iria desdobrar a demanda, o produto previsto no projeto, em uma formação em audiovisual que acolhesse o “desejo de imagem” dos participantes. Ao iniciar oficina na aldeia Sumaré, expus meu ponto de vista sobre a proposta de trabalho que teríamos durante as duas semanas, e logo os participantes reforçaram a  

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necessidade de não se limitar aos projetos, pois eles tinham uma “lista” de demandas que gostariam de aproveitar durante a formação. Nesse contexto, o diretor do Ponto de Cultura Loas, Joel Xakriabá, compartilhou sua opinião sobre os projetos que participa e disse que os projetos seguem a lógica do mundo dos não-indígenas e, nesse sentido, limitam as demandas da comunidade, em última instância, o próprio “desejo de imagem” dos Xakriabá. Os participantes da formação concordavam sobre a importância de ter um material sobre o pequi, porém acreditavam que outros temas como a retomada das terras no Peruaçu52, a caça, a folia de reis, dentre outros, também deveriam ser contemplados pelos editais, e serem feitos com recurso e com possibilidade de retorno financeiro para os jovens que participam da realização dos filmes. A importância política desses filmes não se esquiva da necessidade de programas de governo que fortaleçam a cultura indígena e que atendam as demandas das comunidades nas aldeias. Além do suporte no sentido técnico e financeiro, é necessário hoje se pensar nas políticas públicas para distribuição desses produtos gerados pelos pontos de cultura indígenas, para que se faça valer o esforço desses povos em se abrir e compartilhar sua cultura, parte da complexa diversidade étnica do Brasil. A crença no audiovisual como arma política é compartilhada entre os três cineastas abordados em cada caso e esse ponto de vista alimenta o “desejo de imagem” dos diretores ao realizarem seus projetos. Como bem situa Edgar, hoje as tecnologias devem ser usadas cada vez mais em favor dos povos indígenas. “... o meu desejo foi aumentando sempre ligado a questão das demandas da comunidade de que, o audiovisual tem o poder de captar, registrar e transmitir aspectos de nossa cultura para que não se perca no tempo, no qual também é visto como uma ferramenta política e de luta. Tendo sempre em vista que no discurso dos mais velhos á uma preocupação no qual a tecnologia de modo geral tem uma influência muito grande nos modos de vida e cada vez mais deve ser usado ao nosso favor.” (Entrevista Edgar Kanaykõ – outubro 2014)

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A região conhecida como Peruaçu fica no norte do estado de Minas Gerais, próxima ao município de Itacarambi. Nessa região existe o Parque Nacional Cavernas do Peruaçu que é uma unidade de conservação criada em 1999 que tem como principal objetivo proteger este patrimônio geológico e arqueológico existente nesta região. Há registro da presença humana no vale há cerca de 11.000 anos, pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) encontraram amostras de esqueletos humanos na região. A origem do nome Peruaçu remete-se aos índios Xacriabá, habitantes da região que faziam referência à fenda ou buraco (Peru) muito grande (Açu). Esses territórios são terras tradicionalmente ocupadas pelos Xakriabá, porém não fazem parte da TIX, além disso, nos limites do parque existem muitas fazendas nas terras que deveriam ser demarcadas para os indígenas. Por isso, próximo ao rio Peruaçu, houve uma retomada de terras pelos indígenas e no momento o território está em processo de homologação.

 

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Considerações Finais

Nesse processo percebi, bem fortemente, que a atual apropriação das câmeras pelos indígenas tem mostrado cada vez mais as potencialidades políticas do uso da imagem. Cada cineasta a sua maneira nos conduz para antigas narrativas - que se atualizam a cada momento que são contadas – através das imagens/filmes, encharcada de sentidos, cosmovisões que se diferem entre. Os filmes aqui enfocados representam um avanço para compreensão da complexidade étnica que temos no Brasil, porém ao no que diz respeito ao aparato cinematográfico, há limitações na tentativa de acolher a cultura em si, apesar de suas potencialidades política, pois para realização de um filme é necessário se ter escolhas, recortes e montagens de fragmentos da realidade. As lideranças indígenas, por saberem das fragilidades do cinema, incentivam os jovens de suas aldeias a se apropriarem da câmera para que possam contar, ao seu modo, suas próprias histórias. Sendo assim, o filme (produto) muitas vezes tem que lidar com a mise-enscène de uma cultura com aspas, ou seja, construir um discurso que fortaleça a comunidade e suas tradições e que não mais se deixem estereotipar pelos outros (não-indígenas). Portanto, na leitura/analise de um filme, deve se ter em mente que estamos em contato com uma cultura com aspas, que diz muito a respeito das visões políticas das comunidades; e o que pode ser filmado ou não é controlado no processo de realização dos filmes. A partir dos casos descritos anteriormente, podemos perceber que quando o filme – tomado em sua inscrição verdadeira - exposto ao risco do real, podemos ter lampejos do que seria a cultura em si (sem aspas). No entanto, se tomarmos para analise o “filme-processo”, não apenas o “filme-produto”, é possível acolher uma nova perspectiva de entendimento. Um dos elementos essenciais para se colher impressões sobre a cultura em si é analisar o “filme processo”, sendo necessário expandir a analise para um olhar mais atento no making-off dos filmes e formação dos cineastas indígenas, nem sempre compartilhado para além da produção. Outro cuidado que devemos ter é que o chamado “cinema indígena”, como categoria, não existe, o que existe é um cinema plural feito por indígenas, onde cada pesquisador cineasta desenvolve seu modo de olhar e documentar o mundo, sua “cultura”, influenciados diretamente pelo “desejo de imagens” e pelos contextos de produções. A partir da analise dos três casos percebemos a diferença entre as produções de Morzaniel, Alberto e Edgar. O “desejo de imagem” de cada cineasta, somado ao contexto onde germinam seus projetos, se relaciona diretamente com o modo como cada um concebe,  

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atua e dirige suas ideias. A relação entre quem filma e o sujeito filmado mostra a especificidade de cada cineasta indígena, determinando o que chamei de estilo/talento de cada um. No caso yanomami, Morzaniel possui um estilo especifico de produção, faz vídeos de curta duração no intuito de informar e compartilhar os acontecimentos da TIY, geralmente demandados pela Hutukara Associação Yanomami. Além dessa produção, o cineasta realiza filmes com o “desejo de imagem” pelo xamanismo. Morzaniel transforma a câmera no aplicador de rapé (yakoana) como disse Davi

e, em uma soprada desse poderoso rapé

Yanomami, nos leva para uma vivencia na aldeia Watoriki nos filmes Casa dos espíritos (2010) e Curadores da Terra-Floresta (2014). No caso guarani, Alberto de um jeito muito cuidadoso desenvolve seu estilo através da caminhada, andando junto com os filmados sem perder os enquadramentos e caminhando atrás do nhandereko, o modo de vida guarani ‘ete (verdadeiro). Através do cinema, Alberto quer chegar a Terra-sem-Mal (Yvy Marae’y). Seu estilo de lidar com as cenas é diretamente influenciado por seus trabalhos como ator, desenvolvidos antes de se tornar cineasta. Já no caso xakriabá, Edgar de uma maneira única aponta a câmera, mira, faz o foco e caça imagens além de usar a câmera como arma política. Seu desejo de imagem influenciado pela caça xakriabá se desdobra em vários outros tipos de produtos. Por entender a câmera como arma ele desenvolve muitos trabalhos para a comunidade pela Associação Indígena Xakriabá do Barreiro Preto além de outros projetos como o da produção de material paradidático para escolas indígenas. Ele é chamado para todos esses trabalhos por ser o “caçador” da aldeia. Essa embate entre o desejo de cada cineasta e o institucional, revela que a relação entre as demandas das associações indígenas por material audiovisual funciona como um dispositivo que, em sua ambiguidade, ao mesmo tempo em que controla o desejo de cada cineasta direcionando-o em função das demandas da comunidade, é o que possibilita a formação e produção de grande parte dos materiais. Porém, isso não é um problema para os cineastas indígenas, pois é apenas uma mudança de perspectiva, o “desejo de imagem” do cineasta se desloca para o desejo de filme da comunidade. Dessa maneira, o material que proponho ainda é algo em processo, um meio do caminho entre meu desejo de imagem e meu desejo de escrita, entre a experiência vivida nas oficinas de formação, meus diários, e um ensaio que formula as questões que tais atividades me colocaram.

 

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Carrego uma relação forte com a oralidade e a imagem, em certa medida influenciado pelo perspectivismo dos meus alunos indígenas, por isso, ao propor uma monografia ensaística baseada nos diários de campo e filmes, encontrei dificuldades em achar um bom termo para a escrita. Além disso, e é a primeira vez que organizo minhas anotações e pesquisa para uma modalidade de texto acadêmico. Compreendo que o modo de escrever, assim como filmar exige tempo, isso reforça a analogia entre a escrita de um texto e a escrita de um filme; é necessário ver, rever e remontar o material várias vezes, e por ser meu primeiro ensaio, senti dificuldade em “montar” o material bruto (diários) transitando pelas palavras entre as rememorações e as teorias.  

 

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CADERNO DE IMAGENS

Aldeia Imbiruçu Pataxó – MG (2010 – 2011 – 2013)

 

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Tarawi (desejo cineasta); enquadramento das crianças pataxó; cena do filme “Festa das águas – Pataxó”

 

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Morzaniel e Arokona para os passos do Final Cut; formação cimena em Boa Vista - RR(2013)

 

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Morzaniel e Alfredo Himotona; Tradução para Yekuana e Yanomami; Davi Kopenawa na sede da HAY

 

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Alberto nas filmagens na aldeia Bigaçu – SC; Casa de Alcindo; Alberto grava o som direto das matas.

 

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Edição e tradução do filme Karai ha’egui Kunhã Karai ‘ete – Belo Horizonte - MG (2013)

 

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Gravação da Folia de Reis; Edgar e Giusney no Ponto de Cultura Loas TIX MG (2013)

 

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Joel gravando; Nei Leite e sua mãe Dalzira na gravação; Edição do filme Ceramica Xakriabá (2014)

 

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Formação do Observatório da Educação Escolar Indígena (novembro de 2013)

 

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Os três cineastas indígenas da monografia trabalhando no OEEI: Edgar, Morzaniel e Alberto

 

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Referencias Bibliográficas

BRASIL, André. Bicicletas de Nhanderu: lascas do extracampo. In. Devires. Belo Horizonte V. 9, N. 1, P. 98-117, JAN/JUN 2012. COMOLLI, Jean-Louis. Ver e poder: a inocência perdida: cinema , televisão, ficção, documentários / Seleção e organização, Cesar Guimarães, Ruben Caixeta – Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. CORRÊA, Edgar Kanaykõ. A história dos caçadores e das caças. Uma forma de compreender a cosmologia Xakriabá. Belo Horizonte: UFMG, 2013.   CUNHA, Manuela Carneiro. Cultura com aspas e outros ensaios. São Paulo: Cosac Naify, 2009. MACEDO, Pedro Portella. “Essa máquina não caiu do céu”: o nascimento do cinema dos povos originários e notas etnográficas sobre dez anos de formações cinematográficas para indígenas – Belo Horizonte: PPGAN/UFMG, 2014. NAGIB, Lúcia e PARENTE, André (orgs.). Ozu: o Extraordinário Cineasta do Cotidiano. São Paulo, Marco Zero/Cinemateca Brasileira/Aliança Cultural Brasil-Japão, 1990 QUEIROZ, Ruben Caixeta de. Política, estética e ética no Projeto Vídeo nas Aldeias. In Mostra Vídeo nas Aldeias: um olhar indígena. Centro Cultural Banco do Brasil, abr. 2004. ________. Cineastas Indígenas e o pensamento selvagem. In. Devires. Belo Horizonte, V.5, N.2, JUL/DEZ 2008. WAGNER, Roy. A invenção da cultura. Trad. Marcela Coelho de Souza. São Paulo: Cosac Naify, 2010.

 

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Filmografia

Festa das Águas – Pataxó. Direção Romildo Conceição. Fotografia Guilherme Cury. Aldeia Imbiruçu (MG), 2011. (3'20") https://www.youtube.com/watch?v=DsBWUgMJKbE Festa das Águas - Cultura Pataxó. Direção Romildo Conceição. Fotografia Guilherme Cury. Aldeia Imbiruçu, 2011. (2'36") https://www.youtube.com/watch?v=XSGI40XB5WY Manifestação Ajarani: parte da saúde Yanomami. Direção e fotografia Morzaniel Iramahi. Aldeia Ajarani (RR), 2013 (10’53”) “Urihi nõamatima yamaki: Nós somos defensores da terra” - Encontro da HAY na maloca do Papiu comunidade Marahaú. Direção Morzaniel Iramahi. Fotografia Morzaniel Iramahi e Arokona Yanomama. Aldeia Papiu (RR), 2013 (6’25”) Seminário Binacional de Direitos indígenas e políticas nacionais: Analisando o caso dos Yanomami da Venezuela e Brasil”. Direção Morzaniel Iramahi. Venezuela, 2013 (4’37”) Comemoração saída dos fazendeiros terra indígena Yanomami – Região do Ajarani Comunidade Serrinha. Direção Morzaniel Iramahi. Aldeia Serrinha, 2014. (5’28”) Como a noite apareceu. Direção Alexandre Perim. Espirito Santo, 2008 http://www.youtube.com/watch?v=wCf_CUqBrLU Karai ha'egui Kunhã Karai 'ete - Os verdadeiros líderes espirituais. Direção Alberto Alvares. Fotografia Alberto Alvares, Guilherme Cury e Julia Bernstein. Produção OEEI. Belo Horizonte, 2014. (67') AIXABP Associação Indígena Xakriabá Aldeia Barreiro Preto. Direção e fotografia Edgar Nunes Corrêa, Terra Indígena Xakriabá, 2013. (10 ' 37 ") https://www.youtube.com/watch?v=UMEiP2mhOt8&list=UUqlN3LCUUc_6_pVm_kAb4ZQ História e modos de caçar Xakriabá. Direção Edgar Nunes Corrêa, Terra Indígena Xakriabá, 2013. (11' 08" ) https://www.youtube.com/watch?v=PG94umqhOrc&list=UUqlN3LCUUc_6_pVm_kAb4ZQ

 

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