Desenho na Comunicação com Psicóticos

June 19, 2017 | Autor: M. Albuquerque | Categoria: Psychoanalysis, Psychiatry, Psychotherapy and Counseling
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DESENHOS NA COMUNICAÇÃO COM PSICÓTICOS[1]





Marco Aurélio C. Albuquerque*
Odon Cavalcanti Monteiro**



INTRODUÇÃO


Este trabalho descreve a história clínica de um paciente
esquizofrênico internado numa Comunidade Terapêutica, dando ênfase, na
comunicação com ele, aos seus desenhos. Estes são mostrados em quatro
momentos de sua internação, bem como os comentários do paciente. São
feitas também considerações compreensivas do material produzido pelo
paciente.


IDENTIFICAÇÃO


Otelo tem 17 anos, é negro, solteiro, grau de instrução primário,
atualmente cursa a quinta série numa escola profissionalizante onde faz o
curso de serralheiro. Os pais são separados; o pai vive na Restinga Nova
com dois dos filhos, a mãe na Restinga Velha com mais oito filhos e três
netos. É o nono filho de uma prole de treze, o mais velho com 30 anos e o
mais jovem com 7 anos de idade; são oito homens e cinco mulheres. A
família é de baixo nível sócio-econômico, com uma renda aproximada de 3,5
salários-mínimos. Mora na casa de sua mãe, na Restinga Velha. Professa a
religião evangélica mas não é praticante assíduo dos cultos. A família tem
importante histórico de doença mental. O pai é esquizofrênico paranóide e
quatro irmãos de Otelo são esquizofrênicos, incluindo um que se suicidou.


HISTÓRIA CLÍNICA DO PACIENTE


O fator desencadeante do surto foi o suicídio por enforcamento, cerca
de quatro meses antes da internação, de um irmão mais velho (com 25 anos),
esquizofrênico, de quem Otelo gostava muito e com quem se achava muito
parecido.
Depois da morte do irmão foi se tornando progressivamente mais
agressivo. Na escola agredia, de forma autística e violenta, aos colegas
por qualquer pretexto, mesmo dentro da sala de aula. Em casa chegou a
agredir o mais velho dos irmãos também com violência, desprezando o fato de
este ser mais velho e mais forte, a ponto de causar-lhe dano físico.
Manifestava freqüentemente intenções de ir morar na casa onde o irmão
suicida morava, viver como ele vivia e morrer como ele morreu.
Os principais sintomas que apresentou no surto foram os seguintes:
autismo, agressividade, pensamento mágico, sem insight ou juízo crítico
para sua conduta agressiva, afeto rígido, ambivalência, negativismo e
isolacionismo. Foi diagnosticado como esquizofrênico paranóide.
No primeiro mês após a internação, apesar dos estímulos que a
comunidade terapêutica proporciona, continuou a se mostrar arredio,
negativista, autista, agressivo, com ameaças de fuga e rechaço aos
técnicos, não participando de nenhuma atividade da praxiterapia e recusando-
se a participar do grupo de pacientes internos. Recusava a alimentação e a
medicação, que só tomava às custas de muito manejo verbal.


COMUNICAÇÃO COM O PACIENTE


Em face das dificuldades que o paciente apresentou na internação
decidiu-se trabalhar com os desenhos que fazia na praxiterapia. Os
desenhos serão utilizados para mostrar algumas associações do paciente e
como elas foram compreendidas.
Estes desenhos foram feitos em quatro momentos. O primeiro, de
agressividade explícita, o segundo de melhoria e controle dessa
agressividade, o terceiro de recrudescimento da agressividade após uma
visita a casa do pai e por fim, num quarto momento, o retorno da melhoria.


DESCRIÇÃO DAS ETAPAS DO TRATAMENTO ATRAVÉS DOS DESENHOS


Na continuação deste trabalho vão ser projetados os desenhos do
paciente nos quatro momentos de sua internação. Em cada desenho constam os
comentários do paciente e a seguir são feitas considerações compreensivas
dos desenhos e de suas associações.

Desenho 1:



"Este é o desenho da Dra. Madonna, médica do hospital.
São dentes de canibal, eu tenho um desenho original em casa que tem essa
caveira em cima e estes dentes, foi um colega meu que fez.
Servem para morder as pessoas que nem os canibais na África, quando está
com raiva pega e morde, arranca os pedaços"

Pode-se observar neste desenho a nítida expressão primitiva das
manifestações da sua agressividade: imagem fantástica, dentes aguçados, com
uma caveira sobreposta, e com predomínio de cores ligadas ao desespero e ao
luto. O alaranjado é identificado por ele em outros desenhos como cor de
sangue, e portanto compöe o quadro de agressividade.
A figura apresenta ainda as cores preto e marrom, que fazem parte de
uma composição sombria. Embora seja o desenho da doutora vê-se como ele
projeta nela seu caos interior.

Desenho 2:



"O senhor viu só, esse aqui está com a boca cheia de sangue !
E os olhos, um é fechado e o outro só enxerga coisa ruim, só maldade..."

Neste desenho estão presentes os dentes aguçados, o sangue resultante
da agressividade expressa pelos mesmos, as cores reveladoras do estado de
seu mundo interno: preto e vermelho. Aparece aí também a sua dissociação,
a existência de um olho responsável pela maldade e de outro que poderia (na
sua fantasia) não estar tão comprometido assim com essa agressividade.

Desenho 3:



"O senhor tem aí aquele desenho dos três ?
Esse sou eu !
O da direita (do desenho) sou eu, muito brabo, o do meio sou eu normal, o
da esquerda sou eu muito feroz, deste é que eu tenho mais medo porque este
tem um olho só, não enxerga o que está fazendo...
Eu tenho muito medo desse lado, o outro lado não é tão brabo assim, não me
dá tanto medo.
A mão direita é uma cobra, uma jibóia. Ela é capaz de comer um homem
inteiro de uma vez só mas eu tenho mais medo ainda é da outra mão, ela tem
dedos e unhas grandes. Com um mãozaço só destes eu sou capaz de arrancar a
cabeça de uma pessoa, de uma vez só ! O senhor sabe urso ? O urso é capaz
de rachar uma pessoa ao meio só com um tapa daquela mãozona dele..."

Entende-se o medo maior da parte que tem um olho só e dentes
rudimentares porque esta parte representa uma violência implícita,
escondida, da qual ele não tem pleno conhecimento, sendo por isso muito
mais perigosa e fora de controle.
O desenho se passa num mundo sem cores, apenas em preto e branco,
evocando um clima cinza. É curioso como o braço direito, que representa
uma cobra, com todos os significados implícitos de sedução, engano e
peçonha, é para o paciente menos grave do que a violência do outro braço,
destrutivo como um urso, e do qual não se pode esquivar como se poderia
imaginar, talvez, em relação a uma cobra. Embora a cabeça da direita e o
braço de cobra possam parecer mais horripilantes do que as outras, a visão
que o paciente tem de seu mundo interno predomina no dizer qual delas é a
mais assustadora.
Não se pode esquecer, e o paciente lembra, que existe uma terceira
cabeça, que é a esperança da solução dos conflitos representando, quem
sabe, o amor, a saúde, a reconstrução.

Desenho 4:



Este desenho, bem como o quinto, são já da fase de melhoria do
paciente.

"Este é o Tiago" (referindo-se a outro paciente da Unidade)"

Embora a presença do vermelho, amarelo e preto sejam exclusivos, os
dentes já não são afilados e, portanto, menos perigosos, e as feições são
bem menos regressivas. Este desenho foi feito após cerca de 2 meses de
internação, portanto já na fase de melhoria em seu tratamento.
Desenho 5:



"Nesse desenho eu estou de óculos, aí eu vejo melhor...
Da última vez que eu fui em casa eu trouxe os meus óculos, agora eu estou
vendo melhor, eu estava ficando com dor nos olhos de ver TV, agora não."

Este desenho é referido pelo paciente como sendo ele de óculos, e que
pode portanto enxergar melhor. É nítida a melhora expressa neste desenho:
o paciente sorri, existem cores novas como o verde e os traços em geral são
bem mais organizados.
Entende-se isto como a recuperação da capacidade de controlar melhor
seus impulsos agressivos, admitir sua existência e assim poder controlá-
los. Poder usar seus óculos é poder usar sua capacidade de ver melhor os
objetos, tanto internos como externos.
Os desenhos da terceira fase na evolução de Otelo, a recaída,
ocorreram após uma visita do paciente à casa de seu pai, onde seu irmão se
matou, e onde certamente reviveu uma experiência extremamente
desconfortável em contato com o pai, esquizofrênico, e com as lembranças da
morte do irmão, igualmente doente. Entende-se nesse paciente, após este
contato, a emergência de todo seu mundo interno desorganizado.
Nos dois desenhos que se seguem a esta visita retornam os traços
primitivos e agressivos, os dentes ou estão escondidos ou revelam-se
novamente afilados e capazes de matar.

Desenho 6:


"Esse aqui também sou eu, os olhos são cegos, não podem ver. Esse aí sou
eu cego de raiva.
Não posso ver as coisas erradas que tem lá em casa...
Olha aqui no desenho a boca, não tem aqueles dentes."

O desenho 6 mostra os olhos cegos pela raiva, e mostram também uma
divisão interna (um olho é vermelho e o outro não é tão vermelho, embora
para ele o alaranjado tenha o significado de sangue). A impressão global é
a de um morto. É a sua identificação, por culpa, com o irmão suicida.
Porque está morto, não tem sentido a presença dos dentes.

Desenho 7:



"Aí sou eu com raiva também, aqui eu tinha matado alguém e estava preso.
Eu estou com o rosto vermelho de raiva."

Este desenho mostra um rosto pintado de laranja mas que ele traduz
como sendo um rosto vermelho de raiva, dando a noção que para ele a cor
laranja é uma gradação do vermelho, a agressividade em escala talvez um
pouco menor. Os dentes afiados revelam o negativo da depressão, isto é, a
agressão, a presença da vida.
Os próximos desenhos correspondem a aproximadamente dois meses de
internação, quando o paciente apresentava uma nítida melhora em relação à
baixa.

Desenho 8:



"Este aqui sou eu mesmo"

Dava a entender com isso que não precisava mais nada para revelar as
suas condições do momento. Os traços são suaves, arredondados, com
predomínio do verde, e pode-se dizer que há uma expressão de comunicação na
boca que os outros desenhos não tinham.

Desenho 9:



"Acho que é a Dra. Madonna, é, só pode ser ela.
Ela é bonita. O senhor acha a Dra. Madonna bonita ?
Aqui ela está bonita, com os olhos azuis.
Nas mãos eu acho que são luvas pretas."

O desenho 9 é a mesma Dra. Madonna do desenho 1. O paciente revela
uma nova visão da doutora, bem mais organizada, e, na sua própria
expressão, bonita. É óbvio que ainda estão presentes aspectos de seu mundo
revolto, no uso do preto.
Nestes últimos desenhos se surpreendeu que os tivesse feito e só
depois os reconheceu. Entende-se esta surpresa pela ambivalência de seu
mundo interno, agora de uma forma que pode ser mostrada e abordada.


COMENTÁRIOS FINAIS E CONCLUSÕES


Os desenhos que o paciente produziu na praxiterapia mostraram-se
úteis para a comunicação e permitiram ao paciente dialogar com seu
terapeuta sobre nuances dos seus importantes impulsos agressivos. Convém
não esquecer o extremo isolacionismo e reserva deste paciente nas
entrevistas iniciais.
Outro aspecto deste caso revela a possibilidade de se poder
acompanhar a evolução de um paciente ao longo de seu tratamento, que no
presente caso mostrou quatro momentos significativos.
A melhora objetiva (controle dos impulsos agressivos, abandono do
negativismo e do isolacionismo, maior participação na praxiterapia e nas
responsabilidades do grupo) ocorreu de forma perceptível e mais rápida a
partir do uso dos desenhos nas entrevistas.
Para encerrar pode-se mostrar a importância dos trabalhos da
praxiterapia, não só terapeuticamente por permitirem uma livre expressão
motora, mas também por possibilitarem a expressão e a compreensão dinâmica
dos conflitos do paciente. Notou-se que, à medida que os trabalhos foram
usados dinamicamente, aumentou a participação do paciente na praxiterapia e
demais atividades da comunidade, o que por sua vez gerou mais material para
o trabalho dinâmico com o paciente, e a sua subsequente melhora.


*Aluno do curso de Psiquiatria da Fundação Instituto Mário Martins
** Professor do curso de Psiquiatria da Fundação Instituto Mário Martins
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[1] Escrito em co-autoria com Odon Cavalcanti Monteiro e apresentado
na III Jornada Paulo Guedes, da Fundação Universitária Mário Martins, 1992.
Publicado em Arquivos de Psiquiatria, Psicoterapia e Psicanálise, Ano 1,
Vol. 1, nº 1, 1994.
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