Desenho: um certo estado mental

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DESENHO: UM CERTO ESPAÇO MENTAL1 DRAWING: A CERTAIN MENTAL SPACE

Diego Rayck2 Resumo Este artigo aborda a obra Measurement Room (1969) de Mel Bochner, na qual o artista promove, no encontro do desenho com o objeto arquitetônico, a problematização da funcionalidade notacional e nos direciona a uma indagação crítica sobre as formas de perceber o espaço. Questionando uma espécie de transparência que permite naturalizar a operação de medição, Bochner menciona um espaço mental no qual o sensível e o inteligível interseccionam-se e que, considerandose as remissões entre o gráfico e o objeto nos debates sobre o desenho na arte contemporânea, pode se pensado aqui como o próprio desenho. Palavras-chave: desenho, espaço, transparência, medição, arte contemporânea.

Abstract This article deals the Mel Bochner’s Measurement Room (1969), in which the artist problematises notational functionality by banding together drawing and architectural object, leading us to a critical discussion about the ways of perceiving space. Questioning certain transparency that allows the naturalization of measurement operation, Bochner discuss a mental space in which the sensible and the intelligible intersects each other. In the discussions on drawing in contemporary art, considering the mutual references between the graphic and the object, this space can be thought here as drawing itself. Keywords: drawing, space, transparency, measurement, contemporary art.

Medição é uma operação No ano de 1969 Mel Bochner apresenta a obra Measurement Room (Figura 1) na Galerie Heiner Friedrich em Munique. Aplicando fitas e números adesivados sobre as paredes, o artista amplia no espaço uma forma, proveniente do meio gráfico, de anotar as dimensões de um objeto arquitetônico. As linhas são utilizadas conjuntamente com os algarismos para indicar uma situação específica medida (a altura e largura de uma porta, o pé-direito de uma sala, o vão livre em uma passagem, etc) no próprio lugar e sua respectiva dimensão expressa em valor numérico.

                                                                                                                1

Artigo publicado em CIRILLO, José; GRANDO, Angela; BELO, Marcela (org). Anais do VIII Seminário Ibero-americano sobre o processo de criação em Artes. Vitória: PROEX/UFES, 2016. ISBN: 978-85-65276-30-6. 2 É artista e professor do Departamento de Artes Visuais da Universidade Federal do Espírito Santo.

Figura 1. Mel Bochner, Measurement Room. Vista de exposição, Galerie Heiner Friedrich, Munique, 1969. (desenho do autor a partir de registros da obra, 2014)

No final dos anos 60 Bochner estava interessado por uma arte que não resultasse em objeto e tampouco em performance, aproximando-se de uma abordagem de ênfase processual na qual restasse alguma marca (trace) como registro, uma evidência do procedimento 3 conduzido pelo artista. Na série Measurement várias obras caracterizam-se pela inserção deste tipo de sinalização que é provisória e pouco impositiva em relação à solidez e materialidade da arquitetura. Os sinais, e as fotografias realizadas a partir deles, caracterizam-se como esta marca residual da ação de medir, assumida como elemento fundamental em grande parcela da produção do artista: “medição é uma operação. A banalidade de sua aplicação a torna praticamente invisível”4 (Bochner, 2008, p. 98). No ano anterior ele já havia trabalhado com medições fotografadas, como Actual Size (Figura 2 e 3) e a série Singer Lab Measurement, problematizando esta invisibilidade da medição através da relativização das dimensões intrínsecas ao procedimento de ampliação fotográfica. Uma vez projetada a imagem no papel, a correspondência entre as dimensões                                                                                                                 3 O artista destaca esta evidência como uma possibilidade de trocar a expressão “making art” por “doing art”, o que desloca a ênfase da produção de um objeto para a realização de um procedimento (Bochner, 2008. 96-101). 4 No original: “Measurement is an operation. Its commonness of application renders it virtually invisible”. Nas citações a seguir todas as traduções são do autor.

impressas e as dimensões reais dos objetos à qual a fotgrafia se refere é relativa, tão contingencial quanto as circunstâncias de sua posterior veiculação permitirem5. Diante destas constatações sobre a fotografia a investigação sistemática de Bochner sobre a rede que confere apoio ao sistema artístico foi suprimida por uma investigação do sistema em si, o que justificou seu retorno à pintura em 1973 (Skrebowski, 2010). Seja com as medições apresentadas in loco de Measurement Room ou através de fotografias como em Actual Size, Bochner (2008, p. 98) identifica a mencionada transparência da medição como um ponto fundamental a trabalhar: “a medição revela uma nulidade essencial quando é forçada a abandonar sua transparência”6. Quando “a banalidade de sua aplicação” é perturbada, sua conseqüente “virtual invisibilidade” também. Sendo a medição uma operação prática, mas orientada por uma convenção abstrata, Measurement propõe, pela desnaturalização da convenção, a consciência desta abstração7 (Bochner, 2008, p. 158). Como argumenta o artista, se retirarmos da operação de medição o caráter puramente mental de atribuir a uma coisa uma medida, o que resta?8

                                                                                                                5 Bochner (sd) relata sobre seus experimentos no Singer Project para Hans Ulrich Obrist e Sandra AnteloSuarez: “I secretly went around the laboratory measuring things, marking dimensions on the walls and floors with letraset numbers. (…) I had photographs taken of these interventions and when I looked at the photographs the interesting thing was that there was no way to know the actual size of the object in the photograph. So I next drew twelve inches on the wall and photographed myself against it, then gave the negative to the printer and asked him to print it so that the measurement in the print would be exactly twelve inches, or actual size. By doing that the photograph became the index of the index, or a vicious circle. That, for me, was the end of photography.” 6 “When forced to surrender its transparency, measurement reveals an essential nothingness”. 7 “Conventions give us the boundaries of the experience. If you examine the conventions you may find where the holes are, where a leakage exists between ‘is’ and ‘is not’”. 8 “The yardstick does not say that the thing we are measuring is one yard long. Something must be added to the yardstick in order that it assert anything about the length of the object. This something is a purely mental act… an ‘assumption’. If we subtract that assumption (…) what is left?”.

Figura 2. Mel Bochner, Actual Size (Hand), 1968. (desenho do autor a partir de registros da obra, 2014)

Figura 3. Mel Bochner, Actual Size (Face), 1968. (desenho do autor a partir de registros da obra, 2014)

Transparência e reflexividade De forma análoga à medição, ou ao sistema que a determina, a linguagem também é abordada por Bochner em sua transparência. Na obra Language Is Not Transparent (versões 1969 e 1970) estes elementos são emblematicamente evidenciados. Segundo Yve-Alain Bois, este trabalho é um marco na obra de Bochner por contribuir para a consciência da condição dos materiais em sucessão a uma tendência mais tautológica adotada pelo artista no início de sua trajetória (Bois, 2008, p. xv-xvi). Se ao longo das décadas seguintes a linguagem passa a figurar mais centralmente em seus trabalhos, tal protagonismo aponta não apenas para a presença constante do questionamento da transparência, mas também para o aumento proporcional de sua relevância como conceito chave no eixo operativo da obra9. Abalar as transparências parece ser para Bochner uma constante fundamental. Ele declarou que em Measurement Room lhe interessava abandonar a transparência da arquitetura, torná-la visível, fazer perceber o espaço físico: “queria revelar o mistério da arquitetura” (Bochner, 2013). Na época em que o trabalho foi realizado o artista negou que sua obra fosse sobre uma fenomenologia da arquitetura, justificando que não se interessava pelas especificidades de um local, mas buscava “examinar criticamente como a experiência é formada e questionar a importância desta experiência” (Bochner, 2008, p.58)10. Por outro lado, quando indagado atualmente sobre como o desenho explicita a estrutura da arquitetura nessa obra, Bochner (2013) destaca a fenomenologia do espectador considerando a posição central deste em meio ao lugar e ao desenho; uma espécie de retorno após Pollock11. Assumindo, em maior ou menor medida, sua afinidade com a proposta fenomenológica, está evidente na obra de Bochner a preocupação com a experiência e sua comunicabilidade. Sobre Measurements, o artista afirma que “nossa percepção das coisas é                                                                                                                 9

Em 1968 Bochner também inicia uma série intitulada Transparent and Opaque na qual contrata um fotógrafo para produzir fotografias a partir de creme de barbear e vaselina. 10 “Only in the general sense that my work uses the arcuitecture as a support. But it’s not about the specifics of a place. In other words, my work is not about the phenomenology of arcuitecture. What I’m trying to do is to look critically at how experience is formed, and to question the weight of that experience”. Ainda que, na mesma entrevista, Bochner mencione obras que precisam estar em um determinado lugar a um determinado momento. Em entrevista a Hans Ulrich Obrist e Sandra Antelo-Suarez, o artista assente à relação entre o pensamento de Merleau-Ponty e suas idéias a respeito da experiência e sua comunicabilidade no momento no qual elaborava os primeiros Measurements. 11 Em resposta à pergunta que pude dirigir ao artista na ocasião de uma conversa pública sobre sua obra exposta no Museu de Arte Contemporânea de Serralves, Porto, 2013.

determinada pelas idéias que temos a respeito delas” (Bochner, 2008, p. 57) 12. E se (pergunta motora do processo de Bochner – What if...?) nossa percepção das coisas sofre mesmo as constrições de idéias, como Measurement Room contribui para desfazer a transparência destas idéias ou dos elaborados sistemas que as articulam? Como ela pode “revelar o mistério da arquitetura”? A respeito de Measurements, Bochner discorre brevemente sobre “um certo espaço mental que temos simultaneamente para o ver e para o pensar. Gostaríamos de sentir como se eles fossem separados, mas eles não são – eles se sobrepõe. Eles se sobrepõe em nossa concepção das coisas e, conseqüentemente, na nossa experiência delas” (Bochner, 2008, p. 57).

Proponho que a sobreposição, própria deste espaço, de nossas concepções e experiências das coisas está intimamente relacionada à origem da transparência que Bochner cerca com sua obra. Esta descrição do artista distingue tal espaço mental tanto da experiência sensível quanto do pensamento, ao mesmo tempo que aponta para uma confusão entre ambos. Assumindo o desconforto desta confusão, é possível entender as palavras de Bochner como uma acusação contra certa estratégia mental de tornar o agente do desconforto transparente para negá-lo, para desviar-se de sua opacidade e não presenciar sua natureza de intersecção e a promiscuidade que ele abriga. Este recurso permite olhar através deste espaço e ter uma distinção clara entre as partes que nele se imbricam. Isto não implica a negação nem do sensível (ver), nem do inteligível (pensar), mas justamente do problemático espaço no qual um e outro se sobrepõe, se embatem e se confundem (Figura 4). Tensão que tornaria o simples entrar em uma sala em experiência intensa, vertiginosa, que inviabilizaria as situações mais rotineiras, algo a justificar a necessidade da estratégia da transparência da arquitetura a qual Bochner se refere.

                                                                                                                12

“It seems to me that our perception of things is determined by the ideas that we have about them”.

Figura 4. Mel Bochner, Singer Notes, página 43, 1968. (desenho do autor a partir de registros da obra, 2014)

Esta transparência não coincide precisamente com o conceito de transparência que figura na teoria e nos projetos da arquitetura modernista, em direta derivação à propriedade do vidro, e suas duradouras repercussões até o presente. Neste contexto, como analisa Vidler (1992), a transparência13 facilmente transforma-se em seu oposto (obscuridade) ou seu reverso (refletividade). Sua qualidade translúcida torna-se opaca, obscura, no jogo entre o plano e o tridimensional que intermedia, assim como sua superfície reflexiva devolve um reflexo fantasmagórico. Quando isto ocorre “[o sujeito] é suspenso em um momento difícil entre conhecimento e paralisia, impelido a uma experiência de densidade e amorfismo”14 (Vidler, 1992, p. 221). A transparência, sendo um conceito aéreo, afim com os fenômenos da passagem da luz e com a suspensão entre o interno e o externo, antagoniza com a densidade opaca e com a inviabilização da forma pela ausência do vazio e da visibilidade. “Revelar o mistério da arquitetura”, então, pode ser compreendido como a tentativa de provocar esta ruína da transparência, obscurecer a arquitetura, restituir-lhe a opacidade, bloquear-lhe as formas, negar-lhe as distâncias, e assim fazer a experiência de estar preencher totalmente o                                                                                                                 13 Vidler (1992) define a transparência como mito que assombra a modernidade, conceito cujas críticas sucessivas de décadas deram vez novamente à sua evocação freqüente na arquitetura do pós-modernismo. 14 “(...) it is suspended in a difficult moment between knowledge and blockage, thrust into a experience of density and amorphism (...)”.

suposto vazio do seu entorno e interior. Revelar o mistério não é aniquilá-lo, mas justamente mantê-lo misterioso. Isto equivaleria à presenciar novamente a sobreposição do ver e do pensar, problematizar as convenções que regem nossa conduta diante da arquitetura em todo seu espectro.

Ver e pensar Para prosseguir com esta proposição é pertinente observar os registros fotográficos, diagramas e relatos da obra de Bochner. Através destes constata-se que o artista opera como Perseu: a fim de revelar ao sujeito a obscurecida sobreposição de duas componentes da percepção deste, oferece-lhe um reflexo. Tal reflexo reúne simultaneamente duas situações que costumam ser consideradas separadamente: a presença no espaço físico e a investigação no espaço gráfico (em uma equivalência simples, apenas para reforçar a imagem, uma experiência prioritariamente sensorial, tátil, proprioceptiva, e outra prioritariamente abstrata, imagética, assim como os termos “ver” e “pensar” que o artista comenta). O resultado deste jogo de reflexos e sobreposições, desta reunião do que foi separado, é para o sujeito uma suspensão “em um momento difícil entre conhecimento e paralisia”, tal qual o vivido pela medusa logo antes de ser decaptada pelo herói. Para desvendar o mistério que encobre o referido espaço de sobreposição (lembrando que para haver sobreposição é necessário haver distinção), Bochner recorre ao desenho, este artifício que mantém uma estranha relação com a coisa a qual se relaciona, ora apontando-a, ora negando-a, ora confundindo-se com ela. O desenho arquitetônico, neste caso específico a notação técnica das medidas, baseia-se no desencontro e neste movimento de correspondência que, na diferença de escala e de suportes, situa-se entre o grafismo e o seu objeto. Em Measurement Room a operatividade deste sistema notacional é subvertida através do encontro do grafismo e do objeto e pela conseqüente anulação da distância e da diferença de escala. Não apenas a funcionalidade do grafismo como indicador é questionada, tendo sido neutralizada sua distância do objeto, mas o próprio objeto também verte-se para o grafismo, tendo sido explicitada a constituição gráfica de sua natureza. A posição mediadora do desenho, sobre a qual Paixão discorre quando analisa a tradição na qual o desenho “é o ‘campo’ de separação que vive do que põe em relação” (Paixão, 2008, p. 40), confirma a vocação ambígua da linha que lhe é constitutiva: a capacidade de unir e separar. O trabalho de Bochner contribui em denunciar que o objeto e o gráfico também interseccionam-se em um

espaço obscurecido, ou negado, por tal transparência convencional e artificiosa. E a dificuldade em conviver com esta intersecção parece dizer de uma “fratura irreparável” e primordial entre interior e exterior, entre inteligível e sensível, expressa pelos entendimentos, conflitantes entre si, de forma como saber ou de saber como forma, respectivamente manifestos no pensamento de Platão e de Aristóteles (Paixão, 2008, p. 57-58). Tomando o desenho para além das constrições próprias de projetos ideológicos os quais querem impor-lhe instrumentalizações diversas, sobretudo as pautadas pela funcionalidade objetiva, este sinaliza que precede (e que potencialmente regressa, em nós) a referida fratura, o que lhe confere uma posição singular, problemática, por nos ser familiar e simultaneamente inapreensível: algo “a nós íntimo mas nunca nosso” (Paixão, 2008, p. 64).

Referências BOCHNER, Mel. Hans Ulrich Obrist and Sandra Antelo-Suarez interview Mel Bochner. Disponível em http://www.e-flux.com/projects/do_it/notes/interview/i003_text.html Acesso em setembro de 2016. BOCHNER, Mel. Mel Bochner e Jeffrey Weiss, conversa pública no Museu de Arte Contemporânea de Serralves, Porto, julho de 2013. BOCHNER, Mel. Solar System and Rest Rooms – Writings and interviews, 1965-2007. Cambridge, MA: Massachusetts Institute of Technology Press, 2008. BOIS, Yves-Alain. What if... In Solar System and Rest Rooms – Writings and interviews, 1965-2007 (prefácio), Mel Bochner. Cambridge, MA: Massachusetts Institute of Technology Press, 2008. PAIXÃO, Pedro Abreu Henriques. Desenho – A Transparência dos Signos: estudos de teoria do desenho e de práticas disciplinares sem nome. Lisboa: Assírio & Alvim, 2008. SKREBOWSKI, Luke. Produtive Misunderstandings: interpreting Mel Bochner’s Theory of Photography. In Photography After Conceptual Art (87-107), Diarmuid Costello, Margaret Iversen (orgs). West Sussex: John Wiley & Sons, 2010. VIDLER, Anthony. The Architectural Uncanny – Esssays in the modern unhomely. Cambridge, MA: Massachusetts Institute of Technology Press, 1992.

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