DESENHOS DE COISAS : RELATO DE UMA MINI-RESIDÊNCIA

September 14, 2017 | Autor: Cláudia França | Categoria: Processos De Criação, Diários, Desenho Contemporâneo
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DESENHOS DE COISAS: RELATO DE UMA MINI-RESIDÊNCIA1 Cláudia Maria França da Silva2 CONSIDERAÇÕES INICIAIS Este texto trata do relato de uma experiência em Desenho, vivenciada durante uma mini-residência em Belo Horizonte, de 5 a 25 de julho de 2010. O projeto, nomeado “DESENHO;” (Desenho, ponto e vírgula) constou de diversas atividades paralelas em Desenho Contemporâneo, todas no Espaço Cultural Cento e Quatro, dentre as quais aconteceram workshops, conferências e falas de artistas3. Gostaria de relatar aqui especificamente a experiência em que participei como artista convidada: um ateliê coletivo no pavimento superior do edifício, compartilhado com artistas de diversas nacionalidades. Em um intervalo de 17 dias, cada um dos artistas do ateliê coletivo pôde executar um projeto em Desenho, tendo disponível uma área de aproximadamente 15m² para a elaboração de propostas e de trabalho propriamente dito, área essa não delimitada por paredes ou quaisquer outros elementos de separação dos “ateliês”. Nesse sentido, um pressuposto inicial para as ocupações, compreendido de maneira implícita (determinado pela estrutura arquitetônica do pavimento, um vão livre de cerca de 300m²) - foi a interpenetração dos territórios de trabalho, o que facilitou trocas de experiências, observações e diálogos. Para essa experiência, propus a realização de um projeto de intenso registro de observação do cotidiano do espaço como um todo, o que nomeei de “Desenhos de coisas”. Tal proposta trata da interação de identidade, alteridade e estranhamento na constituição de uma subjetividade, além do uso da tipologia do “diário” como maneira de registro, o que será explicitado a seguir.

DESENHOS DE COISAS Trata-se de uma vivência em ateliê coletivo. A partir da determinação de um território específico de habitação naquele espaço físico, dispus no lugar três (03) objetos distintos, com

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Este texto foi apresentado em 2011, no IV Seminario de Cultura Visual, Goiânia. Referências para citação: SILVA, Cláudia Maria França. “Desenhos de coisas: relato de uma mini-residência”. In: GUIMARÃES, Leda Maria (org). Anais do IV Seminário de Pesquisa em Arte Cultura Visual. Ética, estética e metodologia na pesquisa de arte e imagem. Goiânia: UFG, 2011. ISSN:1988-1919. P.549-562. 2 Artista plástica, Professora Adjunta do Instituto de Artes da Universidade Federal de Uberlândia, MG. Doutora em Artes pela UNICAMP; Mestre em Artes Visuais pela UFRGS; Bacharel em Artes Plásticas pela UFMG. Acesso ao Lattes: http://lattes.cnpq.br/3462886315780014 3 O Evento foi organizado pelo CEIA – Centro de Experimentação e Informação de Arte – um grupo de trabalho de Belo Horizonte que tem organizado, durante esta década, importantes fóruns de experimentação e discussão acerca de manifestações em arte contemporânea, como performance, pintura, videoarte e intervenções urbanas. O CEIA foi criado em 2001 e é administrado pelo artista plástico Marco Paulo Rolla e pelo historiador da arte Marcos Hill. Cf. o site www.ceia.art.br

os quais tramei uma relação de “tradução” sujeito/objeto. Os objetos foram um banco de madeira natural, um relógio de parede e uma luminária vertical.

Figuras 1,2 e 3: objetos utilizados em Desenhos de Coisas, 2010. Fotos da autora.

Minha ideia foi dar a estes objetos a condição de “sujeitos”, fornecendo-lhes “voz”. Voz aqui é entendida como qualquer maneira de se comentar o que se passou no entorno do objeto em questão. Isto significa dizer que cada objeto teve um suposto modo de “olhar” para o mundo; eu “funcionei” meramente como tradutora destes modos de olhar ou de se relacionar com o ambiente. Posso dizer também que, nessa função de ter sido “tradutora” daqueles objetos, emprestei minha singularidade de sujeito para que eles, como coisas pudessem adquirir uma condição de suposta subjetividade. As vozes exprimiram-se pela linguagem do desenho, da fotografia e da escrita. Para a minha atuação propriamente dita, utilizei uma câmera fotográfica digital, papeis para desenho (croquis) em formato A4, lápis para desenho, borracha e estilete, bem como uma prancheta de mão para apoio dos desenhos. Trabalhei ainda com um notebook para o registro escrito. O registro em cada uma dessas linguagens partiu do ponto de localização do objeto. Optei por ocupar um espaço central do atelier, relativamente próximo às portas de acesso, determinando sua extensão a partir de uma coluna de base quadrada, que funcionou como o centro de meu território. Essa posição foi estratégica porque, a partir dela, pude observar todo o movimento de entrada e saída do ateliê, bem como as dinâmicas de ocupação dos outros artistas. Cada objeto foi disposto no espaço físico de maneira habitual, nas adjacências da coluna, à exceção do relógio de parede, que foi dependurado na própria coluna.

Na medida em que cada objeto “falante” descreveu, comentou ou refletiu sobre sua relação com o entorno, pode-se pensar que esses relatos assumiram um tom confessional. Cada objeto teve sua “voz” e uma adequação de postura corporal minha que remetesse à realidade do corpo de cada objeto, ou mesmo uma postura corporal adequada à função principal de cada um deles. Ao banco coube o registro desenhado (desenho de observação) do que o objeto “percebia” na movimentação de outros elementos dentro do ateliê. Colocou-se projetado diagonalmente em relação à coluna, a uma distância de dois metros desse centro, voltado para os banheiros do ateliê. O banco “solicitou-me” que não desenhasse pessoas ou fragmentos de corpos, mas os elementos não humanos que consubstanciassem seu campo de visão. Como o banco possui altura de 32 cm, sentei-me no chão e utilizei seu assento como prancha de apoio para a realização dos desenhos. Tal posicionamento veio para que meu olhar coincidisse o máximo com a altura do objeto. Os desenhos têm o chão como espaço prioritário de representação; em função mesmo da altura do banco, foram captados fragmentos inferiores de paredes, pés de mesas, portas, colunas, latas de lixo, o piso de tacos de madeira, assim como pequenos pedaços de papeis ou outros elementos que se encontravam no chão ou em baixa altura, na ocasião de cada registro.

Fig. 4, Cláudia França, desenho de observação a partir do banco, 2010, formato A4. Registro da autora.

A luminária de pé relacionou-se ao registro escrito. É importante relatar que o funcionamento do ateliê era reservado aos turnos diurnos, posto que as noites foram reservadas para conferências e falas de artistas, exibição de filmes e visitas a exposições do circuito. Nesse sentido, a condição de iluminação do ateliê era excelente no sentido de luz natural, não havendo a necessidade de uso de luzes artificiais para a realização dos trabalhos. Assim, criou-se um impasse no “interior” da luminária, tendo em vista que não teria sentido, naquele lugar, de sua atuação como fornecedora de luz. Esse impasse do que ela estaria fazendo naquela vivência determinou que seus textos versassem sobre essa “crise existencial” do objeto, em que ele se questionou, por todo o tempo, o que ele seria quando em situação de “repouso” funcional.

Fig. 5 Cláudia França, relato escrito a partir da luminária, 2010. Formato A4. Registro da autora.

Como a luminária é vertical, regulei-a para que ficasse de minha altura – 160 cm, para que ela então fosse percebida como corpo. Para escrever, valia-me do banco para sentar-me, e sobre meu colo o notebook. Ficava exatamente sob a luminária, como se necessitasse de sua luz, mas durante toda a vivência, ela permaneceu apagada. Essa composição situou-se cerca de um metro de distância da coluna. Já o relógio de parede “fotografou” seu entorno. Foi instalado na própria coluna, em direção oposta ao banco e à luminária, um pouco acima da altura de minha cabeça, em pleno funcionamento. Os ponteiros de minutos forneceram a direção do olhar fotográfico; assim, foram eleitas marcações a cada quinze minutos, a partir da hora inteira, hora e quarto, hora e metade e hora e três quartos. A cada hora inteira, a direção do olhar era o norte; na hora e quarto, a direção era oeste, na hora e meia, sul, e nos três quartos da próxima hora, a direção era leste. Para a direção norte, o campo registrado era o teto e a presença de um globo de luz, sempre apagado; para o sul, a composição era o chão, parte de meu corpo, sempre os sapatos, diferentes a cada dia; para o leste e oeste, as imagens captavam as transformações na ocupação do espaço, bem como o trânsito das pessoas. Nesse sentido, o relógio de parede perfez quatro tomadas fotográficas por hora, utilizando os quatro pontos cardeais. Essa exigência temporal do relógio determinou que os outros registros (os desenhos e os textos) acontecessem nos intervalos da marcação fotográfica, ou mesmo que eles fossem interrompidos a cada quinze minutos para se realizar uma fotografia. Em função de algumas características destes objetos, os registros obedeceram a temporalidades/velocidades distintas, bem como a posturas corporais distintas. Assim, para o banco, fiquei sentada no chão; para a luminária, fiquei sentada sobre o banco e para o relógio, coloquei-me de pé.

Figuras de 6 a 10: Cláudia França, vistas do entorno a partir do relógio, 2010. Registros da autora.

É perceptível ainda que as velocidades dos registros são compatíveis com os elementos a que se relacionam; a velocidade do relógio corresponde à instantaneidade do ato fotográfico; o estatismo do banco, mesmo ele sendo o elemento de maior mobilidade (é autônomo no espaço, não depende de parede ou de energia elétrica para exercer sua função),

corresponde aos desenhos à mão; e o jogo de luzes entre a luminária e o monitor do computador cria uma relação de especularidade entre essas emanações de energia, favorecendo comentários e reflexões sobre identidade e alteridade. Assim, os registros mais lentos foram os desenhos de observação a lápis sobre papel canson.

DIÁRIOS COMO REGISTROS DE VIVÊNCIA Conforme posto anteriormente, considerando-se que os registros foram realizados a partir do ponto de vista do objeto e de sua relação com o entorno, tais registros podem ser considerados como confissões diárias do viver. Estes aspectos temporais dos registros me remetem ao diário como registro de eventos na sucessão dos dias. E foi isso o que cada objeto me solicitou: o registro diferenciado do dia-a-dia, no interior de um ateliê compartilhado. Os diários íntimos são relatos muito próximos ao acontecido ou vão se dando à medida dos fatos. Nesta tipologia, o cotidiano presencia-se na marcação temporal do calendário ou de outra notação temporal. A base de um diário é a racionalização da experiência, por meio de registros da vivência diária, da notação de fatos e pensamentos. As datas e outras notações temporais ordenam os acontecimentos de maneira linear, encaixando-os em uma narrativa de fatos, que solitários, poderiam ser de difícil conexão ou compreensão entre si. Sheila Dias Maciel (2004, s./p.) estipula uma definição para o diário: relato fracionado, escrito retrospectivamente, mas com um curto espectro de tempo entre o acontecido e o registro, em que um “eu”, com vida extratextual comprovada ou não, anota periodicamente, com o amparo das datas, um conteúdo muito variável, mas que singulariza e revela, nas escolhas particulares, um eu-narrador sempre muito próximo dos fatos. O escritor de diários utiliza-se de estratégias como a fragmentação e as elipses, o que nos dá a impressão de uma produção em “estado bruto”. É por esse aspecto que os diários nos dão a ilusão de imediatismo e espontaneidade. A forma dos diários assemelha-se bastante aos documentos processuais de um artista. Entendemos tais documentos como seu caderno de notas, registros materiais de ideias para a realização de um trabalho. Esboços, croquis, maquetes, anotações e outros são materiais com os quais o artista se expressa de imediato, ainda sem uma preocupação patente com a materialização. São ideias que ainda têm de passar pelo crivo da inteligibilidade, exequibilidade e conformidade ao projeto poético do artista. Assim, este vai constituindo uma coleção singular de memórias materiais de insights, esboços para futuros trabalhos ou mesmo apreciações/avaliações de trabalhos já realizados, reunidos de maneira aparentemente caótica, guardados em uma caixa, caderno ou outro lugar de convívio de “pedaços de tempo”. Ideias diversas encontram-se em estado de latência, à espera de realização ou de ressignificação. Cecília Almeida Salles (1998:15) comenta que o artista,

em contato com esse “universo”, lida com índices de materialidades diversas: rascunhos, roteiros, esboços, plantas, maquetes, copiões, ensaios, story-boards e cadernos de artistas. Se a obra de arte é tomada sob a perspectiva do processo, que envolve sua construção, está implícito já na própria idéia de manuscrito o conceito de trabalho. Desse modo, os vestígios podem variar de materialidade, mas sempre estarão cumprindo o papel indiciador desse processo e, como conseqüência, do trabalho artístico. Posso pensar assim que os registros de “Desenhos de coisas” assemelham-se à tipologia dos diários – apresentam o tempo decorrido e os fatos dentro do ateliê, apresentam reflexões sobre esse tempo (as reflexões da luminária) e ainda podem se constituir em documentos processuais de uma vivência globalizante, naquela época, ainda não totalmente assimilada por mim. A aproximação do diário íntimo com um caderno de notas de um artista dá-se também por outro viés, que é mesmo essa exposição de sua intimidade. Em muitas das vezes, ocorre certa resistência em mostrá-lo, pois ali se expõem, juntamente com as formas em estudo, pensamentos, dúvidas e angústias do sujeito. Ou mesmo situações de “desajuste” entre a forma e a palavra, que podem não dar inteligibilidade ao processo, em que uma não consegue traduzir a outra, cabendo ao artista a coabitação desses valores, uma escolha entre elas – ou ainda: a presença de espaços vazios. É oportuno também fazer uma aproximação do caráter de espontaneidade de um diário com a linguagem do Desenho. Em termos gerais, quando pensamos nesta linguagem, consideramos sua imediaticidade, a fácil disponibilidade de seus materiais específicos, a sua adaptabilidade a quaisquer outros materiais, entre outros aspectos. Isto permite uma captação quase que instantânea daquilo que nos é visível, nossos insights que possivelmente serão convertidos em outro trabalho mais elaborado. Podemos pensar que ao Desenho cabe uma função importante no processo de criação de um objeto artístico ou de um pensamento visual e nos procedimentos de preparo, estudo e mesmo de compreensão de seu vir a ser. Nesse sentido, o Desenho está intrinsecamente ligado aos documentos processuais iniciais. Os diários da artista francesa Louise Bourgeois são um espelho dessa questão. No livro “Destruição do pai, reconstrução do pai”, os organizadores e editores nos apresentam parte dos diários íntimos e correspondências de Bourgeois. Trata-se na verdade de uma grande coleção que a artista tem de depoimentos sobre sua vida, seu processo de criação e suas opiniões sobre Arte em geral, construída desde os 12 anos de idade e constituída de seus diários, correspondências, desenhos e entrevistas. Por meio desse relato, percebemos que o Desenho e a Escrita assumem vários papeis para Louise Bourgeois: além de suas funções processuais, as linguagens têm funções afetiva e catártica. Linguagens companheiras da insônia ou dos temores, elas avançam par a par com o desenrolar dos dias, sendo fontes para redescobertas. Marie-Laure Bernadac (2000:18-9), no prefácio do livro relata que: Linhas desenhadas e linhas escritas se entrelaçam para criar a tapeçaria das memórias de infância, e para exorcizar seus temores.

Apesar de o verdadeiro exorcismo ser conseguido somente na escultura, desenhar é uma atividade calmante e curativa, sobretudo durante as longas noites de insônia. Um caderno de notas de um artista apresenta grande diversidade de registros de impressões pessoais dos instantes vividos. Ele pode conter fotografias, recortes de jornais, papeis amassados, objetos de descarte, uma flor desidratada, papel de bala, nota fiscal, bilhete de metrô, verbos de ação no infinitivo (refiro-me aqui ao caderno de notas de Richard Serra); enfim, toda sorte de Madeleines4. No entanto, há no Desenho uma maneira singular de captação do instante, e incluo aqui a escrita à mão. Isto porque apresentam uma materialidade específica que denota, simultaneamente ao conteúdo da tessitura das linhas e das palavras, o modo de tessitura: a velocidade, a indecisão, a caligrafia, a rasura. [Caderno de notas + Desenho&Escrita&Fotografia + diários], pensados nesta perspectiva, tornam-se então, respectivamente, lugar, linguagem e tempo: matéria compósita de consulta tanto para reflexões posteriores, quanto para o devaneio. Folhear nossos cadernos de notas (nossos diários de aventuras poéticas) provoca uma sensação mista de estranhamento (quem fez isso?) e de surpresa, por percebermos que desde o passado, nossos desenhos já apontavam os caminhos poéticos que somente percorremos no presente. Eles já nos diziam de nossos desdobramentos desde aquela época, mas só agora os compreendemos. Cria-se o entendimento da historicidade do percurso poético. A sensação de pertença daquele pensar, ali esboçado, abraça tanto as ideias que foram materializadas quanto os projetos que não tiveram voz; mesmo eles já apontavam para o futuro. Desta maneira, cadernos de notas, ao consubstanciarem a historicidade de um percurso de criação, são também autobiográficos, pois apresentam os caminhos e descaminhos de um sujeito-artista. Paul Klee nos diz: “depois de algum tempo, resolvi folhear alguns dos meus cadernos de esboços. Senti, então, como se uma espécie de esperança voltasse a despertar dentro de mim”. E finaliza: “por enquanto o interesse de ser espectador deste processo mantém-me vivo e desperto. Um interesse autobiográfico.” (KLEE, 1990, p.218) “Desenhos de coisas”, em sua apresentação compósita, pode ser considerado como meu “caderno de notas de viagem”’ - não seria o meu caderno de notas para a elaboração necessariamente de um trabalho artístico, mas o registro diário de uma vivência como sujeito, que teve como pretexto uma experiência no campo da produção poética, e que, por outra sorte de madeleines, não teve tempo de reflexão sistemática daquela experiência de vida e de arte. Foi com um misto de surpresa e encantamento que revisitei meu material produzido durante aquela vivência em Belo Horizonte.

IDENTIDADE, ALTERIDADE e...

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Madeleines: no rigor, são quitutes, mas aqui são consideradas como um elemento externo qualquer que aciona repentinamente um processo intenso de rememoração naquele que percebe esse elemento. Na obra “Em busca do tempo perdido”, Marcel Proust refere-se a essa experiência quando em contato com biscoitinhos (madeleines) que acompanhavam o chá, nas visitas à tia. As madeleines o deslocavam para outra temporalidade.

Ocorreram questões muito caras neste projeto de vivência. Uma delas refere-se ao intercâmbio sujeito/objeto, em que atuei a partir das solicitações de cada uma das coisas, por suas características intrínsecas ou posição espacial. Existia uma solicitação do jogo de identidade/alteridade posto nessas relações, em que assumia momentaneamente as identidades desses objetos, mas num jogo tensivo entre essas maneiras de olhar o mundo, ao sabor de meu filtro de visão, estado de espírito e corporeidade. Esta experiência de emprestar minha voz ao outro impossibilitado de fazê-lo, na realidade tem sua história em dois trabalhos realizados anteriormente, em 2006 e 2007, durante a pesquisa de doutorado. No primeiro, “Móvel da memória: estratégia de exposição”, incorporei a uma cadeira um aparelho que reproduzia em CD uma narração de trinta minutos de minhas memórias do lugar em que estava localizada a cadeira. Chego mesmo a nomeá-la de “cadeira falante”, pois ela poderia ser uma autorrepresentação em que o jogo está na troca de vozes e corpos: eu lhe “empresto” a minha voz, ela me “empresta” o seu corpo5. Já a outra experiência refere-se a um trabalho que realizei durante um ateliê compartilhado, o projeto malaflorsacoladeretalho, com os artistas Glayson Arcanjo e Camila Moreira, em que transformamos uma galeria institucional uberlandense (Galeria Ido Finotti) em ateliê, habitando o espaço durante 15 dias úteis, por cerca de oito horas diárias. Cada um dos artistas havia levado para o “ateliê” alguma coisa que pudesse representar a si mesmo. Glayson levou uma mala, Camila levou uma sacola de retalhos e eu levei uma orquídea branca, do gênero Phalenopsis. Coloquei-a em uma mesinha, junto de um pequeno relógio despertador, próxima à parede que ocupei com vários desenhos a grafite. Um dos trabalhos que realizei naquela vivência foi “O diário de uma orquídea”. Ao fim de cada dia de trabalho, sentava-me em uma cadeira e emprestava minha voz à flor, que fazia um breve relatório do que acontecia no espaço, até onde seu campo de visão pudesse abarcar. Assim, seu relato constituiu um corpo textual de aproximadamente 15 páginas, as quais reescrevi em papel manteiga, cuja textura buscava aproximar-se da delicadeza de suas pétalas, instalando cada página-pétala em um varal, como se fossem roupas. Conectando essas experiências, um dado que me é importante é a condição de invisibilidade que ganho, ao me fazer representar por outro elemento. Como se ficasse mesmo nesse jogo pendular de dizer de mim, mas de maneira indireta, sutil, tendo como “escudo” algo que aparentemente está presente no espaço expositivo para cumprir outra função. Em relação à experiência em “Desenhos de coisas”, um fator agregador da condição de invisibilidade se deu de maneira inesperada. Posso chamar de “acaso” o fato de não haver existido qualquer tipo de registro vídeo ou fotográfico da presença de meu corpo naquele 5

Conferir textos sobre esse objeto em SILVA, C.M.F. “Estratégia de exposição móvel da memória: outra maneira de narrar experiências artísticas pessoais”. REVIS LAV – Revista Digital do Laboratório de Artes Visuais, Santa Maria/RS, UFSM, ano II, nº2, março de 2009. ISSN 1983-7348. Acesso: http://www.ufsm.br/lav. SILVA, C.M.F. “Nada é mais caro ao desabrochar do que a retirada”. In: MIYOSHI, Alexander Gaiotto; DÓRIA, Renato Palumbo (org.). Migrações e alteridades na arte. Publicação de trabalhos apresentados no Seminário Internacional de Teoria, Crítica e História da Arte “Migrações e Alteridades” em agosto de 2012 na Universidade Federal de Uberlândia. Uberlândia: NUPAV-IARTE-UFU, 2013. ISBN: 9788570783417.

lugar. Havia combinado com um amigo fotógrafo que passasse por lá e me fotografasse em situações de trabalho. Seria um simples registro. No entanto, ele não compareceu em nenhum dos dias. Em uma semana de residência, preocupada que estava com a ausência de registros, entrei em contato com ele e o amigo havia se prontificado a ir logo após a entrega de uma encomenda, mas o adiamento constante de sua “visita” foi se tornando um signo para mim, a ausência de provas de meu estar ali como um indício de que a condição de invisibilidade de mim mesma ia se tramando no passar dos dias, reforçando a questão de minha invisibilidade e indicando que deveria dar o primeiro plano a outras subjetividades em construção. Outra questão interessante foi a velocidade de atuação do corpo durante os registros, em que, em intervalos de 15 minutos (por conta da solicitação do relógio), agi em diferentes instâncias, chegando a intervalos quase infinitesimais entre um registro e outro. Cumpre ressaltar que, como porta-voz desses objetos, tive necessidades fisiológicas (comer, descansar, conversar, ir ao banheiro) que flexibilizaram ou mesmo transgrediram o horário de funcionamento desse ateliê intensivo de “tradução”. Isso se acentuou pelo fato de haver nascido em Belo Horizonte, cidade em que vivi por duas décadas e meia; sendo assim, construí fortes laços de amizade e de parentesco; era natural que, ao saberem de minha estada na cidade, recebesse a visita de amigos. Aliado a isso, a vontade de rever a cidade, passear por seus monumentos, incentivada pelo fato da localização do ateliê, importante área histórica da cidade. Os afetos de reencontros, a ativação de lembranças pessoais e lembranças em comum deram o tom dos diálogos, atuando como cortes temporais à “rotina” dos registros. Isso me fez transgredir ou esquecer-me de algumas marcações do relógio, escrever menos do que “deveria” ou deixar um desenho de observação incompleto. Significa dizer que, ao longo da residência, as solicitações do sujeito Cláudia – que por sua vez assumiu para si esse tom memorialista, de boas vindas ao passado - se mesclaram ou se impuseram frequentemente à função de construção das “vozes” dos objetos. Assim, a velocidade de atuação do corpo do tradutor teve de ser negociada com outras posturas corporais, ausências, outras velocidades, demandas de outras subjetividades que queriam “traduzir”, por sua vez, outras experiências. Posso pensar que “Desenhos de coisas” tocou na questão da diversidade de sujeitos que habitam dentro de nós, o exercício de subjetivação que se dá no cotidiano, a relação com as alteridades na construção de uma identidade, mesmo que provisória. Como se, a partir de um determinado momento, eu começasse a questionar a mim mesma, quem eu era naqueles momentos de trabalho, quem eu era ao voltar para casa, quem eu era ao me reencontrar com amigos e com a família, quem eu era ao passear pela cidade, ou mesmo, que cidade era aquela em que eu estava. ... ESTRANHAMENTO Um misto de estranhamento depositado no seio da familiaridade, conforme postulou Freud nas suas considerações sobre o conceito de “estranho”. Em seu texto “Das Unheimliche”, o autor trabalha um conto de Hoffmann (O Homem de areia), em que há um personagem importante - uma boneca animada - Olímpia, que se torna objeto de paixão de outro personagem, Natanael: esse sim, humano. Freud utiliza-se da narrativa literária para

elaborar seu pensamento sobre o estranhamento, apontando inicialmente que o efeito psicológico provocado sobre o leitor - de uma incerteza sobre o que de fato seriam as personagens, se seres humanos ou autômatos - tem sido uma estratégia recorrente na literatura fantástica. Essa questão é de interesse para o contexto de “Desenhos de Coisas” pelo papel ambíguo que assumo na experiência – sendo, ao mesmo tempo um sujeito autônomo e um sujeito que se condiciona às solicitações dos objetos presentes no ateliê. Freud toca na questão do “duplo” como tema central tanto na história quanto em nossas vidas, nas angústias que trazemos da infância, num jogo fundamental entre vida e morte que fazemos quando crianças, desejando que nossas bonecas e bonecos tenham vida – isto porque a representação dada no duplo, ao mesmo tempo em que evoca a superação da brevidade da vida, evoca também a própria brevidade nesse mesmo ato de superação de seu poder: O duplo, o objeto originariamente inventado ‘contra o desaparecimento do eu’, mas que acaba por significar esse desaparecimento mesmo – nossa morte – quando aparece e nos ‘olha’. O duplo que nos ‘olha’ sempre de maneira ‘singular’ (...) única e impressionante, mas cuja singularidade se torna ‘estranha’ (...) pela virtualidade, mais inquietante ainda, de um poder de repetição e de uma ‘vida’ do objeto independente da nossa. (DIDI-HUBERMAN, 1998, p.229) Para Freud, podemos superar esse jogo infantil na vida adulta ou podemos atualizá-lo, por meio das repetições involuntárias: “esse fator de repetição involuntária que cerca o que, de outra forma, seria bastante inocente, de uma atmosfera estranha e que nos impõe a idéia de algo fatídico e inescapável” (FREUD apud VELOSO, 1999, p.6), marcaria o quadro de ansiedade próprio ao complexo de castração na criança. Notemos a esse respeito que a noção do duplo define ao mesmo tempo algo que repete a humanidade – eis aí seu caráter de antropomorfismo – e algo que simultaneamente é capaz de repetirse a si mesmo, ou seja, de adquirir a espécie de inumanidade de uma forma autônoma, “animada” de sua própria vida de objeto puro, eficaz até o diabólico, ou até a capacidade de se auto-engendrar. (DIDI-HUBERMAN, 1998, p.229) Considerando o termo em alemão, formado pela partícula “heimliche” (familiar) somada ao prefixo negativo “un”, Freud conclui que o significado contraditório no seio da palavra expressaria “tudo o que pertence à casa ou à intimidade e aquele relativo ao que é escondido e oculto da vista.” (VELOSO, 1999, p.10) Posso pensar que o estranhamento acompanhou-me na estada em minha cidade de origem, Belo Horizonte, que por ser tão familiar, revelou-me diversos fatos ocultos que me causaram aquelas tensões: a desterritorialização durante as caminhadas pelo centro histórico; o espanto pelas mudanças significativas no entorno do edifício do ateliê, misturas de tempos do passado com a atenção requerida pelo presente, sobreposições de memórias. Rostos estranhos, com sotaque conhecido. Senti-me uma estranha em campo familiar, como no pensamento de Benjamin, sobre o andar na cidade:

Saber orientar-se numa cidade não significa muito. No entanto, perder-se numa cidade, como alguém se perde numa floresta, requer instrução. Nesse caso, o nome das ruas deve soar para aquele que se perde como o estalar do graveto seco ao ser pisado, e as vielas do centro da cidade devem refletir as horas do dia tão nitidamente quanto um desfiladeiro. (BENJAMIN, 1987, p.73) Ao voltar de meus passeios pelo entorno, era hora de viver outro tipo de estranhamento, o de emprestar minhas vozes àqueles objetos inanimados, de readaptar-me ao jogo marcado pelo tempo-direção do relógio, a encarnar a “crise existencial” da luminária, a desenhar o chão do lugar no campo de visão do banquinho. Freud aponta que aquilo que pareceria estranho no campo do cotidiano é perfeitamente aceitável no campo ficcional, como acontece nos contos de fadas, em que seres inanimados ou animais assumem a forma e a vida humanas, assumindo ali funções simbólicas: o contraste entre o que foi reprimido e o que foi superado não pode ser transposto para o estranho em ficção sem modificações profundas; pois o reino da fantasia depende, para o seu efeito, do fato de que o seu conteúdo não se submete ao teste de realidade. (FREUD apud VELOSO, 1999, p.10) Sendo assim, penso que a sensação de estranhamento proveniente das tensões presentes na(s) experiência(s) de câmbios de identidades, propostos em “Móvel da memória: estratégia de exposição”, “O diário de uma orquídea” e em “Desenhos de coisas” – em que vários objetos e uma planta adquirem voz - passa um pouco por essa questão de recuperação de situações “ingênuas” da infância, no ato mesmo de nomear coisas e de dar-lhes o tratamento pessoal, percebendo-as como extensões de mim mesma, ao mesmo tempo em que construindo exercícios de socialização, sem deixar de remeter ao jogo do ocultamento, elemento que faz analogia às perdas. CONSIDERAÇÕES FINAIS “Desenhos de coisas” foi uma experiência singular como “Desenho”, em meu percurso poético. Idealizada no rastro de “O diário de uma orquídea”, a proposta é um pouco mais complexa porque, além de haver exercitado a escrita, também fotografei e desenhei, e acima de tudo, abri-me à imposição do sujeito Cláudia que tinha outras solicitações para além de sua função de tradutora das falas dos objetos, naquele lugar. Particularmente em “Desenhos de coisas” - o estranhamento foi “multiplicado” por permitir-me uma nova vivência na cidade de origem, experiência familiar que me abriu à percepção de sombras e de imagens ocultas. Assim, “Desenhos de coisas” lida ainda com outra tensão dada por essas experiências de estranhamento com algo de uma vivência cotidiana, a repetição de um conjunto programado de ações durante um intervalo temporal de quinze dias úteis. A proposta lida, pois, com a instituição do hábito e com a diferença instalada no interior desse hábito. Posso pensar assim na experiência como uma vivência de Desenho em seu campo ampliado, assumindo não apenas outras linguagens para além do Desenho – a escrita e a

fotografia – mas principalmente o Desenho como ato no gerúndio, no registro diário de cada dia passado no ateliê, envolto em continuidades e descontinuidades, em encontros e desencontros e esquecimentos, como são os nossos dias, constituindo, per si, um material bruto para reflexões e aproximações da arte e da vida.

REFERÊNCIAS BENJAMIN, Walter. Infância em Berlim. In.:_______. Obras escolhidas, v. 2. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987. BERNADAC, M.L. “Introdução”. In. : BOURGEOIS, Louise. Louise Bourgeois: destruição do pai, reconstrução do pai. Escritos e entrevistas, 1927-1997. São Paulo: Cosac & Naify, 2000. DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34, 1998. VELOSO, Marco. Livro 1: Cildo Meireles + Marco Veloso. In.: SALGADO, Renata (coord.) Imagem escrita. Rio de Janeiro: Graal, 1999. P.01-16. MACIEL, Sheila Dias, 2004. “A literatura e os gêneros confessionais”. In.: http://www.cptl.ufms.br/pgletras/docentes/sheila/A%20Literatura%20e%20os%20g%EAneros %20confessionais.pdf Acessado em 26.07.2009.

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